São Luis Bertrán ◆ São Vicente Ferrer ◆ Santa Rosa de Lima
A transfiguração das paixões humanas é uma honra do catolicismo.
Mas há alguma paixão mais difícil de reabilitar que o Medo? O amor e o ódio, a esperança e o desespero, o desejo e a detestação, a cólera, a audácia… todas essas paixões têm lá a sua grandeza. Mas o medo!… Quem ousaria tomar a palavra para defendê-lo? Quem, sobretudo, tentaria atribuir um papel a esse sentimento infame em todo código moral que se preze e diga respeito ao homem?
Eis aí, segundo parece, uma iniciativa vedada à filosofia humana, cujo receio único é não engrandecer-se o bastante. A esses puros moralistas, só lhes interessa uma doutrina completamente desinteressada. Ora essa! Confessar que o homem por vezes tem medo? Isso é vergonhoso! Escondamos rápido essa miséria e, a fim de não macularmos o belo quadro de nossos puros preceitos, risquemos até mesmo o seu nome da moral.
Coube ao Espírito divino reabilitar o medo. É verdade que o temor adotado pelo Espírito nada tem em comum com o temor mundano, pois não se trata de medo de homens, mas do temor de Deus. "O princípio da sabedoria é o temor do Senhor", dizem as Escrituras. E o Santo Concílio de Trento, confirmando a longa tradição dos séculos católicos, declarou como bom e santo até mesmo o temor dos castigos divinos.
Santo Tomás não se contentou de introduzir o temor na moral natural, tornando-o matéria da virtude dos pacientes; tampouco julgou suficiente que o temor fosse considerado motivo legítimo da virtude da penitência; intérprete ousado das ousadias divinas, quis dar-lhe um lugar na Teologia, um lugar que lhe fosse adequado. Não podendo transformar o medo em virtude — porque, apesar de tudo, o medo guarda algo de irracional e como que impróprio à natureza humana — transformou-o num dom do Espírito Santo, ou seja, em algo de superior à razão, emanação direta da influência reguladora de Deus sobre o agir humano. Assim, é como dom do Espírito Santo que o temor ingressará triunfante na moral católica sobrenatural.
Como que para fazer eco a essa doutrina, alguns homens se levantaram e se atreveram a dizer que tem medo, que consideram o medo um instrumento de progresso moral e de santificação, que fazem do medo o pensamento inspirador de suas vidas; em suma, que possuem a religião do temor. Esses homens, contudo, são incapazes de tremer diante dos homens; o justo que a poesia antiga cantou, justum et tenacem propositi virum, não passa de uma criança ao lado desses varões, independentes até o heroísmo; de fato, com seu comportamento extraordinário, representam os tipos mais sublimes da moral humana, divinizada pela revelação de Deus. São os santos mais puros, poderosos e doces.
Eis aqui três deles, pertencentes à mesma família religiosa daquele Doutor Santo, doutor do Dom do Temor: São Luís Bertrán, São Vicente Ferrer e Santa Rosa de Lima.
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Terá lido o décimo artigo da décima nona questão da Prima Secundae o artista tão piedoso que meditou as comoventes Matinas da festa de São Luis Bertrán? O hino se inicia com a ressonância intraduzível dos suspiros e sofrimentos que preenchiam as noites do santo:
Nocturna coeli lumina Suspiriorum conscia Quae Ludovicus aetheri Mittebat inter verbera… |
Estrelas claras da noite escura que sabeis os lamentos Que entre golpes cruentos Emitia Luis na amargura |
As antífonas, responsórios e lições começam a entoar uma estranha melodia em que se mesclam palavras como tribulação, disciplina, cilícios, jejuns, penitência, morte… Aqui e ali gritos desfiguram a salmodia, vibrantes, agudos: “Queimai agora, ó senhor, feri! Nada poupai agora para perdoardes tudo na eternidade!”.
Já alcançara o temor expressão mais viva? Contudo, junto ao gemido de temor se desenrolava o canto do desafio e da intrepidez. “Ele não temia as tribos selvagens que o rodeavam; as pedras, lanças e flechas não o amedrontavam”. Nos lábios do Santo se puseram estas palavras do Apóstolo: “Se agradasse ainda aos homens, não seria servo de Cristo”. Finalmente, os dois cantos, o temor de Deus e o desprezo do mundo, acabam por se unir numa única harmonia, o canto da Caridade: com ele, a mortificação se transfigura: “Dai-me, Senhor, a felicidade de morrer por vós, assim como vós morrestes por mim”.
E as Matinas concluem num grito de triunfo, em que toda a rudeza das vagas impetuosas da penitência expiram nas margens encantadoras da glória: “Rompestes o meu cilício, ó Senhor, e me circundastes de alegria para que nos séculos dos séculos vos cante a minha ventura”.
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São Luís Bertrán representa o dom do temor à serviço da santificação pessoal. São Vicente Ferrer, por sua vez, figura o dom do temor atuante e, por assim dizer, apostólico. A esse pregador incomparável não lhe bastava possuir o temor de Deus: queria que toda a terra tremesse com ele.
Como é terrível! Sua palavra de fogo se consagra à produção do espanto; o rosto do Cristo vingador surgindo por entre as nuvens do céu é sua devoção preferida. Seu Evangelho é o do fim do mundo. Sua meditação percorreu por antecipação todos os castigos, e empalideceu diante de todas as justiças. Ele engendra o horror por força do seu próprio horror. Assim como o viajante que, navegando à noite pelas costas da Sicília, vê o cume dos montes avermelharem-se com o fogo sombrio que as entranhas ardentes do Etna expelem; do mesmo modo, o semblante desse homem, elevado por Deus à uma altura donde se descobrem os horizontes invisíveis da justiça divina, reflete antes do tempo as chamas vingadoras do inferno. Ele plana tão alto na cátedra onde prega, sua voz tem um acento tão penetrante e terrível, que hesitamos em acreditar que se trate de um homem. Sua voz é a trombeta que acorda os vivos e os mortos, é o próprio Anjo do juízo final.
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Porém, com São Luís Bertrán e São Vicente Ferrer, o dom do temor ainda não se revelou por inteiro. O temor mortificado do primeiro é a raiz da árvore, que abre a terra mediante um trabalho obscuro e fecundo; o temor ativo do segundo é o tronco de casca áspera por onde sobe a seiva vivificante; em Santa Rosa de Lima, o temor é a flor que espalha ao redor o perfume, e parece prestar uma homenagem discreta e suprema à beleza invisível do Criador.
Não pense, leitor, que encontrará em Santa Rosa de Lima algo que de longe se pareça com moleza ou preciosismo. Trata-se de uma santa rude, a nossa pequena religiosa. Sua mortificação mal se difere da dos seus terríveis irmãos.
Mas ela, sobre o caule robusto do temor expiatório, eleva em todo o resplendor a flor delicada e trêmula do temor filial, do temor que, segundo Santo Tomás, não receia nada mais do que não se submeter a Deus o bastante. Como a rosa desabrochada que uma aragem invisível agita sob a luz do sol, assim é Santa Rosa de Lima no jardim dos santos, diante do seu Senhor.
E como a rosa parece resumir no seu perfume e nas suas cores vivas e inigualáveis os mais quentes e luminosos raios do sol, assim também essa Rosa mística vê nascer e desenvolver-se em seu coração, como que resumidos, toda a luz e o calor que o Espírito Santo infunde na alma dos justos: a pureza insaciável, a humildade em seu contínuo fluxo e refluxo de heroísmo e sofrimento, a oração sempre fervorosa, uma sede de perfeição ou do infinito — como queiram, pois aqui é o mesmo; as perpétuas elevações em busca da semelhança do Pai Celeste, o zelo de não perder de vista nenhum dos traços dessa imagem e a deliciosa inquietude de reproduzi-los, a busca delicada por todas as nuances do ideal sobrenatural; em suma, o temor filial de Deus, temor sem terror, temor tranquilo desde a raiz, porque se sabe obra do amor de Deus, porque a única coisa que a tormenta é não fazer o bastante por Deus, e permanecer para sempre, malgrado seus esforços, separada por uma distância imensurável da beleza do rosto de Deus, que vive e reina nos céus pelos séculos dos séculos.