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Contra o Evolucionismo dos evolucionistas

“Parece-nos indispensável marcar bem a intolerância em relação à Evolução dos evolucionistas, que tira o mais do menos, que faz passar a potência ao ato sem nada que esteja em ato, o que consiste precisamente em ser um processo autocriador que torna sub-repticiamente aceitável a criação “ex-nihilo” sem um Deus Todo Poderoso, desde que essa criação se torne infinitesimal e suficientemente lenta para que as inteligências tardas não percebam o mecanismo do absurdo, e fiquem, de tantos em tantos metros, ou de tantos em tantos séculos, diante de uma situação de fato.
 
É preciso denunciar a absoluta inaceitabilidade do evolucionismo dos racionalistas e dos empiristas”.
 
Gustavo Corção

 
 
- Trechos selecionados de "As Descontinuidades da Criação" –
 
 
[Recomendamos a leitura prévia do artigo "Implicações do Evolucionismo" do mesmo Gustavo Corção. O leitor que quiser se aprofundar no tema, tirará imenso proveito da leitura de seu artigo sobre as contradições do materialismo, "Tudo é Pó".]
 
 
A Variedade dos Seres
 
Consideremos agora o conjunto da criação, os reinos da natureza, os seres espirituais, visíveis e invisíveis, pois nos resta percorrer os demais degraus que formam a escala ascendente de perfeições nos diversos seres vivos, para tentarmos mostrar que eles são também dispostos em níveis ontológicos irredutíveis. As descontinuidades da criação virão reforçar a impossibilidade metafísica de uma evolução que levaria a ameba a virar peixe, o peixe a virar réptil, este passando a mamífero para chegarmos ao homem.
 
Podemos aqui evocar a idéia de dimensão nascida na geometria e alargada para abranger as entidades físicas mensuráveis. Dizemos que uma entidade tem uma só dimensão quando é expressa por uma só medida, que só tem um modo de ser: assim, por exemplo, o comprimento é unidimensional, a corrente elétrica, medida em ampéres é também unidimensional, enquanto que a área na geometria e a potência (em watts ou outra unidade) na física têm duas dimensões e podem ser realizadas de uma infinidade de modos que são produtos de dois fatores. O produto pode manter-se constante com fatores variáveis: 1x10 = 2x5 = 4x2,5 = 0,1x100 etc. O volume na geometria e o trabalho ou energia na física têm três dimensões. Dois princípios governam a disciplina chamada análise dimensional: o da homogeneidade, pelo qual só podemos equacionar grandezas da mesma natureza e mesma dimensão e o da irredutibilidade, pelo qual uma entidade de “n” dimensões não pode passar para o nível “n+1” por gradativa e continua elevação, embora as entidades de nível mais alto contenham em suas partes entidades de nível mais baixo. Exemplifiquemos: a área de um triângulo pode ser igual à de um pentágono, mas não pode ser sequer comparada ao volume de um tetraedro. Por outro lado, por mais complicada que seja a figura desenhada num plano, jamais terá três dimensões, jamais será volumétrica. Do mesmo modo, jamais passarei de uma entidade volumétrica para uma plana por menor que seja uma das dimensões. É uma idéia falsa dizer, por exemplo, que um paralelepípedo tende para uma superfície (de duas dimensões) quando sua altura ou espessura se tornam muito pequenas. A idéia da continuidade vale em cada nível, mas é falsa quando se estabelece entre níveis irredutíveis. Matematicamente, geometricamente, e enquanto nos mantemos fiéis à abstração própria dessa ciência, não há nenhuma diferença essencial entre um paralelepípedo de um bilionésimo de espessura e um outro de um quilômetro, mesmo porque o matemático não sabe (matematicamente) o que é um milímetro ou um quilômetro; essas unidades pertencem ao mundo físico.
 
E o que se passa com entes matemáticos ocorre também com os físicos; apenas aqui a “dimensão” é uma perfeição nova, uma qualidade específica, ou um nível substancial como o que “mede” o ser corpóreo e o distingue irredutivelmente do ser espiritual.
 
Proponho essa imagem, emigrada do mundo geométrico, por me parecer que a algum leitor ela será sugestiva e impulsionadora; mas devemos deixá-la se quisermos galgar abstrações metafísicas mais elevadas.
 
Consideremos o universo no seu quadro atual, e percorramos os vários níveis com os recursos que a ciência atual nos proporciona, e com os critérios e princípios que temos da filosofia perene. Eis o quadro de gradativas dimensões das coisas que compõem o universo criado:
 
DEUS
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Forma Espiritual                                             =                 Anjos
M + Forma (vida + sensibilidade + razão)            =                 Homem
M + Forma (vida + sensibilidade)                       =                 Animal
M + Forma (vida)                                           =                 Vegetal
Matéria + Forma                                            =                 Inanimado
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M = Matéria Prima
 
Antes de mais nada convém lembrar que as sucessivas perfeições, de baixo para cima, se acrescentam à forma compondo uma nova forma. Nossa representação algébrica não deve ser tomada ao pé da letra.
 
A dupla barra superior separa absolutamente o criado do Incriado: esta descontinuidade máxima é a transcendência de Deus e a infinita superioridade do Ser Necessário sobre o contingente, do Incausado sobre o causado, do Imutável sobre o móvel. A criação, abaixo da dupla barra superior está submetida, em todos os patamares, a Deus Causa Primeira criadora e sustentadora de todos os seres visíveis e invisíveis.
 
Abaixo da dupla barra inferior está a “matéria prima”, em sentido aristotélico. Não é um ser, mas princípio potencial de todos os seres corpóreos que só emergem na existência sob alguma determinação ou “forma”.
 
Entre as duas barras arrumam-se os diversos degraus de seres criados que compõem os reinos da natureza. É fácil constatar que cada degrau se distingue do outro por um acréscimo de perfeição. Porém, antes de aproximarmos nossa lupa de cada reino para examinarmos de perto o comportamento de seus habitantes, acrescentemos aqui algumas considerações sobre a diversidade dos seres.
 
O problema que armamos neste tópico, como o da origem do universo, não encontrará jamais na ciência, e mesmo na filosofia, uma resposta adequada. Temos de buscar outro grau de saber, que aliás é o que norteia todo este capítulo. E este grau de saber mais alto não depende, senão “per accidens”, das pesquisas e das descobertas científicas. Não é de admirar, então, que consultemos Santo Tomás, como já consultamos Santo Agostinho, que tem dobrada antiguidade.
 
Santo Tomás: “A multidão das coisas e sua variedade vêm de Deus? Os filósofos atribuíram a diversas causas a distinção dos seres. Atribuem-na uns à matéria, isolada ou associada a um agente. Demócrito e todos os antigos filósofos da natureza não admitiam outra causa além da material. No dizer deles, a distinção dos seres era fortuita e provinha do movimento da matéria.” (Ia/47/1).
 
Como se vê, o probabilismo e a civilização do acaso são antigos como o mundo. Anaxágoras, que Aristóteles dizia ser um único sóbrio andando no meio de embriagados, exigiu uma Inteligência que tivesse a função de filtrar, selecionar o que a matéria produzisse. A “Inteligência” de Anaxágoras quer ter função análoga à do demônio de Maxwell, que conseguia, graças a uma filtragem de moléculas lentas, desmentir a irreversibilidade térmica. Ouçamos o que diz Santo Tomás a respeito da idéia de Anaxágoras:
 
Santo Tomás: “... mas isso não se pode sustentar, por duas razões. Primeiro porque já provamos que a própria matéria foi criada por Deus, e por conseqüência, se alguma distinção vem da matéria, mesmo assim deve ser referida a uma causa mais alta. E segundo porque a matéria é ordenada para a forma, e não inversamente, e como a distinção das coisas se faz pelas formas que lhe são próprias, essa distinção não se pode explicar pela matéria; ao contrário, é preciso dizer que as disposições variadas foram criadas na matéria a fim de que ela possa receber formas diversas.”
 
“Outros atribuíram a distinção das coisas a agentes secundários. Para Avicena, por exemplo, Deus, tomando consciência de si mesmo, produziu a Inteligência Primeira que, pelo próprio fato de não ser sua existência, é necessariamente composta de potência e ato, como se verá adiante. Essa primeira inteligência, na medida que conhece a Causa Primeira, produz a Inteligência Segunda; e na medida em que ela se conhece a si mesma como estando em potência, produz o corpo do céu, causa do movimento, e na medida em que se conhece em ato, produz a alma do céu”.
 
Mas isto não se pode sustentar, por duas razões. Primeiro, nós vimos que só Deus pode criar, e por conseguinte só pode ter Deus por autor o que se produz por via de criação. É o caso dos seres estranhos à geração e à corrupção [1]. Além disso, em tal hipótese, a universalidade dos seres não proviria de uma intenção do primeiro Agente, mas do concurso duma pluralidade de causas agentes, e é isto que dizemos vir do acaso. Concluiríamos assim que a perfeição do universo, que se funda na diversidade de seres, seria fruto do acaso, o que é impossível”.
 
“É preciso então, dizer que a distinção das coisas e sua multidão provêm da intenção do primeiro agente, que é Deus. Deus deu ser às coisas por sua bondade, que ele quer nelas comunicar e representar. Já que uma só criatura não bastava, produziu múltiplas e diversas, a fim de que o que falta a uma para representar a divina bondade seja por outra suprida. Assim, a bondade que em Deus é simples e uma, nas criaturas é múltipla e fracionada. De tal sorte que o universo inteiro participa e representa a bondade divina mais perfeitamente do que uma só criatura. E é por isso, por ser a distinção das coisas causada pela sabedoria divina, que Moisés atribui ao Verbo de Deus, concepção de sua Sabedoria. Lê-se no capítulo I do Gênesis: “Deus disse: que a luz seja. E Ele separou a luz das trevas”. (idem)
 
A variedade das coisas criadas é assim o reflexo que a criatura pode proporcionar da simplicidade de Deus. E esse reflexo não surgiu, digamos assim, por via de conseqüência, como se dos próprios seres nascesse tal virtude. Como Santo Tomás assinala, essa diversidade e esse modo de chamar a si esta criação, que por assim dizer Ele projeta longe de si, estavam na intenção do primeiro Agente.
 
 
Ainda o Primeiro Degrau
 
Poderíamos, para maior clareza, agrupar os diversos seres do primeiro degrau de nossa escala no que chamaríamos de quadros de dispersão por caracterizarem eles a crescente possibilidade de os elementos naturais se combinarem entre si.
 
No primeiro quadro de dispersão encontramos os elementos químicos: hidrogênio, hélio, lítio, boro, centúrio... Sabemos que são mais de cem os elementos conhecidos e que diferem entre si pelo número crescente dos elétrons e dos equivalente prótons nucleares, ou seja, pela diferença de peso atômico principalmente. Varia neles a quantidade: estado físico, aspecto, cor, densidade, gosto, cheiro, e principalmente varia o comportamento das substâncias ao longo da escala dos pesos atômicos. Os diversos elementos terão maior ou menor capacidade combinatória segundo o estado de sua última órbita de elétrons. Assim, o hidrogênio tem uma capacidade de combinações só menor que a do carbono. Ele perfaz mais de 90% da massa total do universo. Ao contrário, o hélio é raro e refratário, com sua órbita ocupada por dois elétrons enquanto o hidrogênio só tem um.
 
Acrescentemos um elétron e o correlato próton e encontraremos no lítio um metal de extrema leveza e com grande facilidade em se oxidar. Já o Néon, tendo preenchido a segundo órbita, que no lítio é incompleta, será um gás inerte e fechado sobre si mesmo.
 
Pulemos até o carbono, com quatro elétrons na sua camada exterior. Sua disposição combinatória é incomparável. Para dar uma pequena idéia de tal sociabilidade química, basta lembrar que o lítio, o berílio e o flúor só formam combinação com átomos de hidrogênio. O oxigênio tem dois compostos, o boro e o nitrogênio têm sete. O carbono tem mais de dois mil compostos com o hidrogênio.
 
Nosso primeiro quadro de dispersão abre-se assim, como um leque que acrescenta uma coleção progressiva na razão aproximada de 1 para 100.
 
Todos nós sabemos que na realidade os corpos físicos das substâncias simples não são formados de átomos isolados e sim de átomos agrupados em moléculas, que assim constituem a menor porção do corpo dotada da mesma composição, ou seja, de átomos iguais.
 
O segundo quadro de dispersão será formado pelas combinações, isto é, pelas substâncias resultantes das trocas recíprocas dos átomos das diferentes substâncias simples. Este resultado, chamado substância composta, terá sua molécula formada de átomos desiguais. Assim é que o hidrogênio e oxigênio formam a água; o cloro combinado com o sódio forma o sal de cozinha. E daqui por diante o leitor facilmente imaginará a variedade possível de combinações. Não contando os compostos de Carbono que merecem um quadro à parte, passam de dez mil os compostos possíveis e aqui temos neste segundo quadro, a razão de 100 para mil.
 
O quadro de compostos até aqui considerados pertence à categoria das chamadas substâncias inorgânicas. A partir da síntese da uréia, realizada em 1828 pelo químico alemão Wohler, a chamada química orgânica alcançou avanços espantosos. Este feito, realizado pela reação térmica de uma substância inorgância, o cianato de amônia, e sobretudo os trabalhos de Liebig e Berthelot levaram o número de compostos orgânicos conhecidos a mais de um milhão. É o terceiro quadro de dispersão. Não somente constatamos aqui a grande facilidade e diversidade de combinações dos compostos orgânicos, como também admiramos a complexidade dos imensos edifícios moleculares com milhares de átomos, perto dos quais a molécula de cloreto de sódio faria figura de um tijolo ao lado do Empire State Building.
 
Já o quarto e último quadro de dispersão dos seres inanimados será formado pelas misturas várias de todas as substâncias homogêneas em várias proporções. É o caso das amostragens brutas da natureza. Um punhado de terra, um seixo, um graveto, uma pétala de rosa realizam um prodígio de mistura de substâncias diversas. Se nos laboratórios encontram-se substâncias de apurada homogeneidade, cá fora o regime é o da mistura, ou melhor, é dos aglomerados, com formas acidentais e resultantes de cruzamentos acidentais nos itinerários das coisas. Os geólogos procuram nas rochas certos elementos que as caracterizem, que as diferenciem, que as “especifiquem” a seu modo, mas uma rocha não passa de um amontoado sem regra, ou com umas poucas regras que só funcionam depois do encontro acidental.
 
E o planeta inteiro, e o sol e as galáxias outra coisa não são. E aqui neste quarto quadro de variedades e dispersões falta-nos o critério, escapa-nos o cálculo, e o leque dos seres se abre numa prodigiosa variedade. Como passar daí para o degrau seguinte?
 
Ora, o degrau seguinte é o ser vivo vegetal, ou seja, dotado já de uma perfeição ontológica inexplicável. Já vimos que essa perfeição ontológica faz do ser vivo um ser uno. Vimos que esta unidade formal segue um curso oposto ao da matéria inerte, que tem tendência a se desagregar, a se decompor. É a lei da entropia crescente. Vemos agora por esses quadros de dispersão, que um novo abismo separa o não vivo do vegetal. Aquele se dispersa, se combina, varia, mistura-se. Este é uno, fecha-se, se preserva, é sempre o mesmo. Mas na verdade há um só abismo nesta descontinuidade da criação. O que fizemos foi apenas iluminá-lo sob dois ângulos diferentes. Primeiro, quanto à tendência energética de cada elemento em si mesmo. Agora, quanto às interações destes mesmos elementos com vizinhos: sua sociabilidade. E se quisermos arrematar esta descontinuidade e fechar este tópico devemos concluir de novo que só uma causa rica da nova perfeição seria capaz de atravessar o abismo. Só um ser possuindo a vida por excelência poderia comunicar à matéria uma tal ruptura com suas tendências inatas.
 
 
Operatio Sequitur Esse
 
Em termos de probabilidade, o ser vivo é um escândalo. Se quiséssemos calcular suas chances a partir da idéia do puro acaso, chegaríamos a números completamente loucos. Lecomte de Nouy, reagindo contra a filosofia do probabilismo, e valendo-se de cálculos feitos por C. E. Guye “Les Frontières de la Physique et de la Biologie”, Ed. Hermann et Cie. mostra que uma simples molécula de proteína, dotada de um grau de asimetria igual a 0,9 e constituída (para simplificar os cálculos) de 2.000 átomos de duas espécies, tem uma probabilidade de surgir, por acaso, espantosamente pequena.
 
Lecomte de Nouy — “Com efeito, se supomos quinhentos trilhões de jogadas por segundos — o que corresponde à ordem das periodicidades luminosas — acha-se que o tempo necessário para que se forme, em média, uma molécula semelhante de dissemetria igual a 0,9 num volume material igual ao do globo terrestre, é de cerca de 10243 anos. Lembremos que a idade da Terra, a partir do começo de seu resfriamento, é certamente inferior 2x109 anos, e observemos que este “acidente” teve de ocorrer forçosamente no primeiro bilhão de anos, pois tudo indica que a vida existe no globo há mais de um bilhão de anos” (“L’Homme Devant la Science”, Flammarion, 1956, pg. 137 ss).
 
Neste ponto da discussão tudo é favorável para o defensor do criacionismo; e tudo parece extremamente desfavorável aos materialistas que queriam ser rigorosamente coerentes. O rendimento apologético que se pode tirar desses números de fantásticas improbabilidades de coisas que todavia nasceram e estão diante de nós, sem falar no que está dentro de nós, é tão grande que deveria despertar desconfiança. Pobre quando vê muita esmola desconfia... E na verdade, nós somos pobres na visão das coisas espirituais, e paupérrimos na evidência de Deus. É bem verdade que desde o nível do senso comum o homem sempre teve a crença teísta; mas é também verdade que a demonstração cabal da existência de Deus constitui o mais alto e difícil problema metafísico. A maior parte dos pensadores e filósofos de outras escolas não hesita em negar valor apodítico às famosas Cinco Vias de São Tomás, e por aí se vê que, ressalva feita da certeza sobrenatural da Fé, nós somos efetivamente míopes, quase cegos para as coisas espirituais.
 
Nossos “olhos de coruja”, como já dizia Aristóteles, são proporcionados para a meia luz, ou para a penumbra do fenômeno sensível. Em termos filosóficos, o objeto conatural da inteligência humana é o inteligível das coisas sensíveis. E é por isto, torno a dizer, que devemos desconfiar da apologética clara e convincente demais.
 
No caso vertente Lecomte de Nouy reage contra o materialismo probabilístico, com argumentos do materialismo probabilístico. Seu raciocínio será bom “ad hominem”, mas não é bom em si mesmo, e sobretudo não é bom para deixar, como única e última reserva para o problema da origem da vida, o milagre puro, a criação sem nenhum contexto do universo já criado. Em outras palavras, a argumentação probabilística nos acua num criacionismo maravilhosamente incoerente nas partes.
 
Jules Charles, no seu excelente opúsculo da coleção “Que sais-je” que citamos atrás, viu muito bem o defeito das “simplificações” dos cálculos de Guye, usados por Nouy:
 
Jules Charles — “Nós pensamos que esta conclusão, a impossibilidade do surgimento da vida por acaso, é exata; mas temos o direito e até o dever de perguntar se essas bolas pretas e brancas podem ser comparadas aos átomos. É preciso não esquecer que os átomos têm valências desiguais e nunca passam indiferentes perto dos outros” (op. cit. Pg. 69).
 
Mais exatamente, o que os físicos costumam esquecer mais depressa do que os químicos, e o que Lecomte de Nouy também esqueceu para rebater os físicos com suas próprias armas, não é apenas a “valência”, não é a maior ou menor “stickness” desta ou daquela molécula, é a forma, princípio de operação dos átomos, das moléculas, e de todos os seres corpóreos em todas as escalas.
 
Nas experiências das duas câmaras de gases com uma comunicação, onde a probabilidade de assimetria é praticamente infinita, ainda podemos comparar as moléculas rápidas e lentas, as bolas brancas e pretas em agitação absolutamente aleatória; mas aí mesmo é preciso ter consciência da quase abstração, do esquecimento-limite em que se tem a forma, a natureza e as inclinações dos átomos.
 
“Operatio sequitur esse”. O ser opera segundo sua natureza ou segundo sua forma, já que no composto corpóreo é na forma que se encontra o princípio de sua operação. Por onde se vê que todo o monismo materialista, que está subjacente à filosofia da natureza dos cientistas modernos, é uma escamoteação semiconsciente, ou uma “tricherie” do mal. O jogo das bolas brancas e pretas em regime de pura “randomness” é um ente de razão, ou um jogo de espírito, que corresponde ao mais profundo mergulho que a inteligência pode fazer na direção da matéria. Ou é um modelo limite sem correspondência ontológica com o real.
 
No mundo real, em qualquer milímetro cúbico de espaço do universo, o que temos sempre é uma composição de acasos e necessidades: as coisas operam segundo suas inclinações, e nesta linha percorrem itinerários de causalidade; mas também as coisas se cruzam, se interceptam, se chocam, se magoam, sem que tais intercessões das linhas de causalidade sejam exigidas por esta ou aquela natureza. É conhecido o exemplo que dá Aristóteles: um homem que morava perto de um rio e de uma estrada come comida salgada, esgotando a provisão de água, vai se abastecer no rio; uma quadrilha de salteadores que passava, mata-o para roubar-lhe as roupas e os utensílios. Será lícito dizer que o sal da comida foi a causa da morte? Há lineamento de causa e efeito entre o sal e a sede, entre a sede e o ato de ir ao rio; há linha causal entre o ato de os salteadores verem o homem e de o matarem; há linha de causalidade entre a facada e a morte. E assim por diante. Mas cada uma destas linhas de leis necessárias se cruza com outras, estando tal cruzamento desligado de ambas, como cruzamento e como efeito. A imagem da intercessão é fraca, porque duas linhas que se cruzam têm um ponto comum. No caso das linhas de causalidade o ponto de encontro não pertence, como tal, a nenhuma das linhas. É um acaso que só terá causa na Causa Primeira; mas é preciso acrescentar que, a partir desse acaso, novas linhas de causalidade se articulam na rede geral.
 
Todo o universo é uma trama urdida de necessidades e de acasos, ou de natureza e aventura como diz Maritain. A tentativa de isolar uma das faces do real contingente será sempre malograda. Na história da Ciência moderna começou-se por pretender totalizar leis necessárias, e a Astronomia, ou mais precisamente a Mecânica Celeste, foi o ponto alto, o modelo excelente de tal epistemologia; hoje é a Física corpuscular, a micro-astronomia que nos pretende inculcar um modelo de universo feito somente de acasos.
 
Não acredito que um físico como Boltzmann, Born, Heisenberg, pensem realmente que a realidade cósmica seja essencialmente estatística. Parece-me antes que a atitude mental desses físicos é a de uma renúncia de real realismo. Contentam-se com o jogo remunerador, e vingam-se do senso comum com os resultados espetaculares da técnica.
 
*
 
Tomemos um exemplo de operação ou valência que invalida uma supercósmica improbabilidade. Uma das modernas hipóteses cosmogônicas sugere a explicação da formação dos astros e dos planetas pela condensação da poeira cósmica. Imaginemos o espaço imenso de uma nuvem de poeira cósmica. Se admitirmos que os grãos de poeira se movem desordenadametne, sem nenhuma lei, concluiríamos que a probabilidade de uma assimetria apreciável e fecunda seria desprezível. Quando porém se considera a nuvem de poeira na sua realidade física, somos forçados a admitir algumas decorrências dessa realidade, sem o que estaremos manipulando entes de razão. O primeiro dado que se impõe é a existência da massa, isto é, da capacidade operacional que tem cada grão e que se traduz num campo de gravitação. O menor desequilíbrio que se processar na suposta assimetria igual a 0,5 ou na suposta uniformidade da distribuição de grãos, resultará numa zona de maior densidade. A zona de maior densidade passará a ser imediatamente um centro de atrativos para os grãos de pó vadios, e então a assimetria crescerá provavelmente segundo uma lei parabólica, isto é, crescerá aceleradamente podendo outro episódio da “entourage” interromper ou ajudar o processo de concentração. Verifica-se assim no espaço cósmico a mesma coisa que se verifica no campo econômico: as regiões pobres tendem a ficar mais pobres, as regiões mais concentradas tendem a se tornar mais concentradas. E isto acontece porque as partículas em jogo não são neutras, não são puramente passivas, mas operam segundo a forma que têm. “Operatio sequitur esse”.
 
 
Não há efeito sem causa
 
Não temos uma objeção principal de ordem probabilística a opor aos cientistas que emendam hipóteses em hipóteses com o intuito de mostrar um progresso de crescente multiplicação de formas; não nos opomos à sopa quente progressivamente engrossada dos oceanos da Terra primitiva; nem mesmo nos escandalizamos com o facilitário um pouco excessivo oferecido às moléculas de proteína. Tudo pode ter acontecido aproximadamente como sugerem Prenant, Haldane, Oparin.
 
Note bem o leitor que não nos apegamos demais ao “milagre da improbabilidade” do ser vivo; nem tiramos as subseqüentes reflexões daqueles números que ultrapassam em espaço e tempo as dimensões de um milhão de universos armados, a partir do nosso, em progressão geometria igual à relação entre U1 e o átomo de hidrogênio. Devemos notar de passagem, que a improbabilidade de uma molécula de proteína não é mais espantosamente grande do que a improbabilidade de um próton, ou de um nêutron. Sejam o que forem estas partículas, se existem de algum modo, existem com matéria e forma, e se tentássemos explicar a forma como um acontecimento estatístico surgido de assimetrias dos componentes do corpúsculo, ou melhor, se tentássemos explicar o surgimento da forma pelo lado da matéria, chegaríamos aos mesmos números fantásticos que só significam uma coisa: a pista errada que seguimos.
 
Acabamos de fazer um jogo muito franco, quando poderíamos ficar no deleite da perplexidade dos materialistas. De certo modo vimos em socorro dos probabilistas: não será tão grande assim a improbabilidade das moléculas de proteína ou melhor, não é legítimo calculá-la com aquela simplificação que é uma indevida abstração. Será possível ter idéia da ordem de grandeza de tal improbabilidade? Receio muito que seja impraticável.
 
Mas torno a dizer que não faço nenhuma questão de regatear improbabilidades. Se em lugar de 10-321 chegarmos a uma improbabilidade um trilhão de vezes maior, teríamos 10-309, que está muitíssimo longe de nos consolar. Mas não é nesta direção que contamos confundir definitivamente o pensamento materialista neste problema; é noutra direção, e é com recursos muito mais decisivos, mas também muito mais finos que contamos mostrar que é verdadeiramente milagrosa a aparição da vida no planeta.
 
O que falta de um modo alarmante em toda aquela descrição, mesmo hipotética, da origem da vida, é a noção mais justa e mais profunda de causa. Os cientistas que muito meritoriamente se esfalfam em pesquisar o que terá acontecido na Terra há três ou quatro bilhões de anos, e conseguem organizar uma engenhosa concatenação de hipóteses, de verosimilhança aqui e ali apoiada em alguma experiência famosa, não parecem perceber um equívoco filosófico colossal: eles estão procurando entender a ocorrência feliz de vários fatores que convergem todos para as circunstâncias favoráveis, para a “conditio sine qua non”; e de repente, sem dizer água vai, eles dão um pulo infinito, sim, o pulo que separa as condições favoráveis, ou até as condições indispensáveis, da causa eficiente capaz de produzir a forma em questão.
 
Senão vejamos. Achamos uma razão para o planeta ter tido uma atmosfera de hidrogênio, vapor d’água, metano e amônia, à semelhança da atual de Júpiter, já que a atmosfera de oxigênio e azoto seria mortal para a formação dos depósitos prévios de proteína; achamos relâmpagos e raios que o cientista Miller mui engenhosamente reproduz no seu laboratório, e com os quais se precipitam nos mares primitivos as primeiras moléculas do grupo dos aminoácidos; engendramos hipóteses para passar do aminoácido para a proteína mil vezes mais complexa; e depois disto inventamos (agora o russo Oparim) a hipótese dos coacervados, que são coágulos ou condensações de matéria orgânica já delimitada, já dotada de unidade quantitativa. E daí pulamos a infinita distância que separa esse aglomerado de um ser misteriosamente, majestosamente centrado numa nova unidade, numa totalidade, numa inaudita perfeição até aqui desconhecida no universo físico.
 
Esse salto que parte da condição, ou até da causa material, para dar a razão de ser de uma forma é uma cambalhota cômica freqüentemente apresentada no circo da cultura moderna. Imaginemos um viajante que, visitando as regiões polares, encontrasse lá um iglu, e lá dentro vestígios de peixe e de fogo, além de outros objetos. Como explicaria ele, com o método materialista, aquela construção? Muito simplesmente pela matéria de que é feita, e que não falta nas cercanias. O gelo, o vento, as chuvas, a rotação da Terra, e mais dez ou doze fenômenos explicam o iglu sem necessidade de lembrar o esquimó. Creio que seria um pouco mais difícil explicar a catedral de Chartres pela existência de pedra a distâncias acessíveis. A natureza, ou se quiserem, a Natureza é mestra em fazer amontoados com formas bizarras. A nossa Guanabara é protegida por um gigante de pedra, que tem o nariz e queixo perto do Andaraí e pés na entrada da barra. Mil fenômenos convergiram nessa “forma acidental”.
 
O coacervado de Oparin, por mais engenhoso que seja, pertence à ordem dos amontoados, mais múltiplo do que uno; ora, o ser vivo é mais do que um múltiplo.
 
Sim, a pesquisa do primeiro vivo foi feita, nessa linha de hipóteses que chega ao coacervado de Oparin, na direção de uma reunião de matéria de complexidade crescente; diríamos, como adiante repetiremos, que a pesquisa foi feita na direção da complexidade, ou então, na direção de uma dispersão de elementos quando muito trazidos para uma unidade de volume. Temos ali, protegidos por películas de matéria coloidal, todos os ingredientes da vida.
 
Mas a vida nos traz uma perfeição nova que nenhum daqueles ingredientes possui; não apenas uma qualidade nova, mas um nível de ser jamais antes realizado. O ser vivo é um todo em que cada parte está interessada na perfeição do todo; o ser vivo é complexo, sem dúvida, é riquíssimo de elementos, mas só é vivo enquanto é capaz de manter uma atividade imanente que assegure a vitória da unidade sobre a diversidade. Se nos permitem, diríamos que antes mesmo de possuir a ciência sensível, ainda no vegetal cego, surdo e insensível, antes portanto da ciência, o ser vivo inaugura um modo de ser que se caracteriza por uma consciência de si. Ora, esta perfeição é nova, surpreendentemente nova. É descontínua e irredutível. Cabe pois a indagação: De onde veio?  A idéia de que surgiu por gradação muito lenta não explica coisa nenhuma, já que não é uma complexidade, uma soma que nos espanta, é uma unidade que, para ser feita, exige uma descontinuidade, e portanto uma ação instantânea.
 
Se eu chegar ao delírio de querer fazer um gato, e no delírio mantiver intacto um mínimo de bom senso, afastarei resolutamente a idéia de fazer o meu gato aos poucos; terei de me entregar ao desatino de querer fazê-lo de uma só vez.
 
De onde vem a perfeição nova do ser vivo? A resposta trivial que os livros dão é que veio do encontro feliz de vários fatores e da lenta elaboração desse encontro. O leitor inteligente perceberá que minha pergunta não foi respondida. Responderam-me, sim, que o ser vivo se originou dentro de tais e quais circunstâncias pelo encontro feliz de vários e numerosos fatores; mas não me disseram de onde vem a “perfeição nova” do ser vivo, ou de onde lhe foi comunicado esse novo modo de ser.
 
Vejam bem: o ser vivo, que a experiência abundantemente nos proporciona, é o modelo excelente de causalidade com todas as grandes exigências de tal convicção: só o ser vivo produz o ser vivo. Ainda mais, dentro de pequenas flutuações genéticas, que serão talvez as gradações que explicam as lentas transformações da espécie, a geração de vivo por vivo se enquadra dentro dos limites da espécie: só um cão gera outro cão, só um homem gera um homem. E ainda mais, dentro dos quadros da espécie, como a ciência moderna nos revela, há ainda uma transmissão de forma mais estrita: o código genético pelo qual, por assim dizer, o pai transmite ao filho, como primeira lição, o modo de estruturar suas proteínas.
 
A vida aparece assim como o domínio exuberante da causalidade eficiente e da causalidade formal. E ainda não falamos da causa final, na perigosíssima idéia que o materialista terá de evitar cuidadosamente para não encontrar algum ser transcendente na curva do caminho.
 
Como tão bem assinala Dominique Dubarle O.P., a noção do saber, isto é, do conhecimento ordenado e mais alto do que o conhecimento espontâneo do senso comum, está mais diretamente ligado à idéia da causalidade: o saber é um conhecimento pelas causas, e mais precisamente pela causa adequada. Em Aristóteles, II Phys, cap. 3, 194b, 18-20 lemos: “Nós não cremos saber algo antes de haver apreendido o porque de cada coisa em detalhe, o que é, a bem dizer, o mesmo que conhecer a causa adequada”. É o próprio dominicano acima referido que traduz o grego την πρώτηυ αιιαυ por “causa adequada”.
 
Em cada nível do saber impera, por assim dizer, uma causa adequada. Na matemática tudo se reduz à causalidade formal: os seres de razão são concebidos como puras formas despojadas da materialidade mas não despojadas da categoria quantitativa que só tem existência extramental nos seres materiais. Como já assinalamos em outros lugares, a matemática, sobretudo em suas formas mais modernas, tem duas faces, uma que corresponde à clássica definição da ciência do “ens quantum”, e outra que mais se configura como linguagem, lógica de símbolos esvaziados de sua procedência genética por via de abstração.
 
Nas ciências físicas predomina ainda a causa formal na medida em que ela se matematiza; não apenas como quem usa o funcionamento matemático, mas como quem inverte seus critérios. A física matemática dos tempos modernos constitui uma realização epistemológica desconhecida dos antigos. É tão profunda a assimilação da alma matemática da física-matemática moderna que tornou possível a descoberta de um ente físico-matemático, o positron, um elétron positivo, por meios matemáticos. A descoberta de Dirac é, nesse sentido especial que aqui abordamos, profundamente diferente da famosa descoberta de Netuno por Le Verrier.
 
É bem verdade que Le Verrier não saiu de seu escritório e não chegou a colar o olho à ocular de um telescópio; descobriu Netuno pelo cálculo, mas por um cálculo de perturbações físicas observadas na órbita de Urano. A descoberta de Dirac foi puramente matemática, e só posteriormente traduzida em conveniência física.
 
Nas ciências físicas propriamente ditas impera a idéia de movimento, de devenir, de transformação, e por conseguinte impera, queiram ou não queiram seus praticantes, a idéia de causa eficiente. Nas ciências da vida, enquanto atendemos mais às transformações, ou enquanto não vemos o ser vivo em todo o seu fulgor, ainda predomina a causa adequada produtiva, geradora; mas logo emerge com singular realce a majestosa causa final.
 
Metafisicamente, sabemos que “tudo o que age, age em vista de um fim”. Mas o mundo físico inanimado é por demais obscuro em seus processos para o discernimento da finalidade. O espetáculo do universo físico, dos átomos às galáxias, nos parece desprovido de propósito. Ordenado será, se quiserem, seus mecanismos de órbitas, massas, valências, mas ordenado para que? A fenomenologia no nível do ser inanimado obscurece a idéia de causa e obscurece especialmente a causa final.
 
No ser vivo, ao contrário, além da causa eficiente de que falamos atrás, surge a causa final. E de dois modos se vê o finalismo, a presença do “para que” no ser vivo.
 
Primeiro assinalaríamos o finalismo funcional que explica os órgãos à maneira que explicamos os artefatos. Garrigou-Lagrange O.P. (Le Sens Comum, La Philosophie et l’étre; Desclée, Paris) pergunta ao senso comum: Para que temos olhos? E o senso comum lhe responde: Para ver. E aqui o verdadeiro e elaborado saber, que é o conhecimento pelas causas, confirma rigorosamente o que diz o senso comum, obrigando o afinalista a esta bisonha sentença: Não. Nós não temos olhos para ver, nós vemos porque temos olhos.
 
Prefiro exemplificar com o ouvido que nos proporciona um maravilhoso exemplo de finalidade funcional.
 
Na audição do homem e dos animais superiores há um pequeno problema de engenharia e outro de tecnologia. Por uma razão que diríamos tecnológica, a parte interna do ouvido, chamada órgão de Corti recebe as vibrações do som em meio líquido. A energia sonora tem de passar do meio aéreo para o meio líquido; e para realizar essa transmissão com o máximo de rendimento, a energia tem de ser configurada com outra impedância. Expliquemo-nos: a energia da vibração é um produto de força F por velocidade V, mas o mesmo produto, e portanto a mesma energia pode ser realizada com uma infinidade de fatores diferentes. Suponhamos que a energia de 10 unidade seja o produto F x V; é claro que podemos ter F=1 e V=10, F=2 e V=5, ou até F= 1.000 e V= 0,01. Todos os produtos são iguais. Chama-se impedância acústica, em cada caso, a relação F/V.
 
A experiência acústica mostra que a impedância do ar é muito menor do que a do líquido do ouvido interno. Digamos que seja 100 vezes menor, de onde se segue que a força F deve ser 10 vezes maior e a velocidade V 10 vezes menor, para que a boa transmissão de energia do meio externo para o ouvido interno. E como poderemos realizar praticamente esse ajuste de forças e velocidades, ou melhor, esse ajuste de impedância?
 
Qualquer estudante de física responderá: com uma alavanca calculada com aquela redução de velocidade 10:1 e aumento de força 1:10. Ora, é exatamente essa alavanca que encontramos no ouvido médio.
 
Poderá alguém mostrar razoavelmente o conteúdo inteligível de tal fato, deixando-o explicado por uma série de acasos filtrados pela sobrevivência do mais apto?
 
Mas não é só nessas finalidades de instrumentos que se vê, como acima dissemos, o fulgor da causa final. A principal feição do ser vivo, como atrás dissemos, é a inteireza, a unidade que se traduz numa espécie de consciência vital, análoga inferior da consciência racional. O ser vivo tem em sua imanência, em todas as suas atividades, uma experiência de si mesmo que se traduz imediatamente num comportamento de defesa orgânica (e num correlato comportamento de agressão) que pode ser visto como uma inclinação, uma procura veemente de seu próprio bem. Ora, esse bem próprio, esse bem intrínseco que movimenta todo um feérico processo de defesas, de astúcias, de táticas, tem evidentemente caráter de fim.
 
Creio que foi Gustave Thibon quem disse que o homem é um ser que se valoriza. Podemos estender a definição até a ameba: o ser vivo se valoriza com essa consciência vital, na proporção em que o homem se valorizará com a consciência racional.
 
Acho melhor dizer que o ser vivo é o que se finaliza de um modo ostensivo e fulgurante, e nisto ele se separa infinitamente do inanimado.
 
São conhecidas as perfeições com que os vivos defendem a integridade do indivíduo e a bandeira genética da espécie que poderia ter, contra um fundo azul celeste, o emblema de cromossomos, e de moléculas de proteínas. A “inteligência” das flores, descontado todo o entusiasmo apologético de Maeterlinck, ainda é bastante para nos espantar. De onde vem a astúcia da planta que fabricou cápsulas de petardos que explodem arremessando o mais longe possível as sementes? De onde a idéia de prender a semente a um paraquedas para deixar que o vento a leve, “menina e moça a longes terras...”
 
Um dos recursos de que se vale instintivamente o materialismo é o de deslocar a aptidão para a espécie, ou melhor, para o Gênio da Espécie, e assim, pela porta da mitologia foge-se à teologia que já começa a se impor
 


Notas
[*] Os fragmentos aqui apresentados não estão em sua ordem original. Diante da impossibilidade de reproduzir aqui o livro integralmente, nos vimos obrigados, por razões didáticas, a adotar esta disposição da argumentação. 

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