Artigo 2: (Exórdio) Iminente separação de Cristo e seus resultados
O começo do Sermão da Última Ceia é grandioso. O Evangelista, que não se referiu à instituição da Eucaristia, põe o discurso logo após a saída de Judas. Até então a presença do traidor oprimia os grandes afetos do Coração de Cristo naquela hora suprema e lhe impedia as efusões; mas após lhe dar um pedaço [de pão] e vê-lo partir ao seu convite: O que queres fazer, faze-o depressa, Jesus, como que livre de um pesadelo, começa o exórdio ex abrupto, no qual menciona sua glorificação e a do Pai e dá aos queridos apóstolos o novo mandamento.
Jesus logo será glorificado e o Pai Nele
O tom destas primeiras linhas é alegre e triunfante: Cristo considera a paixão virtualmente completa, e por isso se expressa como se Ele e o Pai já tivessem obtido a santíssima glória que resultaria dela. A palavra “glorificar”, repetida cinco vezes neste canto de vitória, dá forte realce ao pensamento: Deus glorificará ao Filho do Homem, mas o fim principal da vida humana de Cristo fora glorificar ao Pai. Admirável intercâmbio de honras que mutuamente se procuram!
Agora é glorificado o Filho do Homem. O momento da saída do traidor é como o começo da paixão, e a paixão é a glorificação de Jesus: a) primeiro, porque na paixão Jesus se viu glorificado pelo Pai, por meio de prodígios estupendos; b) logo, porque a paixão era condição indispensável para que Cristo entrasse em sua glória1; c) em terceiro lugar, porque o resgate da humanidade – sua redenção, santificação e glorificação, que são a glória de Jesus e prêmio de seu triunfo – Dele provém como de causa eficiente e meritória, sobretudo da paixão de Cristo. Qual um general aguerrido que conta com a certeza do triunfo, entra Jesus na batalha com estas palavras: “Hoje vou cobrir-me de glória”.
E Deus é glorificado Nele. A glória do Filho é também a do Pai: a) porque o que mais glorifica a Deus é a obediência e o amor, i. e., o amoroso cumprimento da vontade divina; e o maior ato de obediência e amor o realizou Jesus quando se submeteu à morte, e morte de cruz; b) porque a paixão do Filho resplandecerá a santidade, a justiça e a misericórdia de Deus, bem como o imenso amor que professou aos homens; c) finalmente, porque a paixão de Cristo é o começo do reino que Ele veio estabelecer no mundo; neste reino de Cristo o Pai é glorificado, porque é Ele mesmo [Jesus] o reino de Deus: “Venha a nós o vosso reino”.
Em troca da glória que o Pai recebe de Jesus, será Jesus glorificado pelo Pai: Se Deus foi glorificado Nele, também Deus O glorificará em si mesmo, i. e., Deus compartilhará com Ele a própria glória mediante a ressurreição, a ascensão e o assento à direita do Pai. E isto será rápido: E o glorificará em breve: durante três dias o Filho, ao entrar no mundo, se oferece com presteza à morte pela glória do Pai2; e o Pai também com presteza restitui com juros a vida e a glória que por sua honra sacrificara.
Mas a glorificação do Filho na paixão e ressurreição pressupõe uma separação e ausência dolorosa para os discípulos. Com que ternura Ele os prepara para isso! Filhinhos meus, por um pouco apenas ainda estou convosco. Vós me haveis de buscar, e sentirão saudades. Mas como disse aos judeus, também vos digo agora a vós: para onde eu vou, vós não podeis ir. Já em outra ocasião 3 Cristo anunciara aos inimigos sua partida, mas em forma de ameaça severa e em sinal de reprovação, pois a ruptura entre Ele e eles devia ser absoluta; enquanto os discípulos deixava apenas por algum tempo, como quem dissesse: Nem o fim, que é o Pai, nem o caminho, que é o martírio, são ainda para vós.
O novo mandamento
Cristo aproveita a impressão causada nos discípulos para lhes impor o grande mandamento da caridade, que aqui – por causa da iminência de sua morte – adquire o valor de testamento e última vontade, que há de observar-se fielmente. Utiliza Jesus três fórmulas distintas:
1º. A primeira fórmula expressa a novidade: Dou-vos um novo mandamento: Amai-vos uns aos outros. Convém distinguir duas coisas, cada uma com três características: a) a prescrição: é mandamento, e não conselho; é novo, próprio do Mestre; é algo pessoal a Jesus e aos discípulos; b) o conteúdo do mandamento: amar, i. e., querer bem a outrem, e portanto fazer o bem; recíproco: uns aos outros; que vise às pessoas, não a grupos ou corporações (o amor corporativo anda amiúde acompanhado de desamor e até de ódio pessoal).
2º. A segunda fórmula expressa o motivo: Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros. Embora se prescreva a caridade fraterna no Antigo Testamento4, o critério dela era o amor que cada qual se devia a si: “Amarás teu próximo como a ti mesmo”, ao passo que agora é o amor de Jesus: “Amareis como eu vos tenho amado”. Deste modo o amor de Cristo apresenta-se a nós como modelo, motivo e medida do nosso: a) como modelo: amor desinteressado, imenso, eterno, ardente, sem distinção de pessoas, eficaz nas boas obras, abnegado e sacrificado até a morte; b) como motivo: o amor de Cristo por nós força-nos a pagar amor com amor; e se amamos a Cristo, amaremos também os que Ele tanto amou, e nos sentiremos obrigados a cumprir o mandamento; c) como medida: amar até à morte5.
3º. A terceira fórmula apresenta [o novo mandamento] como distintivo de sua escola: Nisso todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros. E assim, com delicadeza, apresenta-se Jesus a Si mesmo como o Mestre do amor.
Predição da tripla negação de Pedro
De tudo quanto se disse impressionou-se Pedro sobretudo com a partida iminente do Mestre. Por isso, sem prestar atenção ao resto, interrompe a Nosso Senhor perguntando-lhe: Senhor, para onde vais? Diante da pergunta indiscreta de Pedro Jesus respondeu-lhe com calma, como quem não se sente molestado: Para onde vou, não podeis seguir-me agora, mas tu seguirás mais tarde. Antes Pedro tem de cumprir a função de príncipe dos apóstolos, e após cumpri-la sofrerá o martírio por Jesus e irá com Ele. Mas imaginava Pedro que a impossibilidade de segui-lo devia-se ao pouco amor ou à covardia do discípulo; por isso, ferido no amor-próprio, tornou a perguntar: Senhor, porque te não posso seguir agora?6 Darei a minha vida por ti. Pedro fala com sinceridade, mas presumindo mais do que podia da sua fragilidade. Por isso Jesus reprime a presunção excessiva e lhe responde: Darás a tua vida por Mim!... Em verdade, em verdade te digo: não cantará o galo até que me negues três vezes. O canto do galo se calculava pela quarta vigília da manhã, das três da madrugada até às seis horas; pois bem, antes destas poucas horas, Pedro já o terá negado três vezes. Ante um tal anúncio Pedro deve ter ficado aniquilado; de fato já não intervém mais durante o colóquio de Jesus com os discípulos.