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Apresentação da Encíclica pelo Pe. Leonel Franca, S.J.

Apresentação da Encíclica Pascendi

Apresentar a encíclica Pascendi, de São Pio X, colocando-a no seu contexto histórico, filosófico e teológico, é trabalho árduo que exige algo de erudição e de estudo que não possuo. Por isso, fui desenterrar, com muito proveito, «a única obra em português a propósito do "modernismo teológico" condenado na encíclica Pascendi de S. Pio X». Trata-se dos artigos do Pe. Leonel Franca, S.J. publicados no volume III de suas Obras Completas (Agir, 1953), intitulado Polêmicas. Estes artigos compõem o capítulo desta obra que recebeu o título de Catolicismo e Modernismo.

Antes, porém, de dar a palavra ao ilustre jesuíta, chamo a atenção do leitor para a impressionante atualidade desta encíclica. Basta conhecer o pensamento do progressismo dos nossos dias, basta viver e sofrer com as falsas doutrinas que eles nos impõem, para ver que, verdadeiramente, o Concílio Vaticano II foi a oficialização do Modernismo: gosto pelas novidades, estudo de autores protestantes, colegialidade democrática, laicização da liturgia, ecumenismo e liberdade religiosa. O Modernismo viveu escondido desde a fulminante condenação da Pascendi até 1962. Escondido mas vivo. Subterrâneo. Esgueirando-se pelos seminários, através de diversas publicações clandestinas que passavam de mão em mão e que foram formando os novos modernistas que dominaram a Igreja no último Concílio. Se quiserem mais detalhes sobre este fato, basta ler a série de  artigos publicados pelo jornal SimSimNãoNão, sobre a Nova Teologia (nove artigos publicados entre 1993 e 1994, entitulados Os que pensam que venceram - Encomendas e assinatura à C.P. 96582 cep: 28601-970 Nova Friburgo R.J. Brasil). E para se certificarem que, de fato, o Concílio Vaticano II foi um concílio modernista, recomendo o livro de Dom Marcel Lefebvre: Do Liberalismo à Apostasia, Ed. Permanência (clique no botão "Livros", no menu) e a conferência do mesmo bispo que se  encontra aqui em  "Crise da  Igreja".

Tanto os artigos do Pe. Leonel Franca quanto o texto da própria encíclica foram transcritos aqui, preservado o português. No caso da encíclica, a tradução é do Cardeal Arcoverde, então Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, à qual nos permitimos pequenas adaptações de linguagem.

Segue o texto do Pe. Leonel Franca, verdadeira aula, talvez aqui e ali densa, mas de bom proveito para quem quiser entender alguma coisa sobre o Modernismo e sobre a Pascendi. Recomendo que se leia este texto com vagar, como verdadeiro estudo.

Dom Lourenço Fleichman

Extratos de Catolicismo e Modernismo

Modernismo

Foi nas fontes intoxicadas do protestantismo liberal que os modernistas foram beber as suas doutrinas subversivas do cristianismo que civilizou a Europa. Já há vários anos uma corrente de apologistas católicos frisava com a importância dos elementos afetivos na conquista da fé, a harmonia entre os nossos dogmas e as mais profundas aspirações da natureza humana. Enquanto, porém, os mais prudentes e penetrantes diligenciavam, dentro dos limites da ortodoxia, por utilizar os germes fecundos e separar o ouro da ganga na corrente sentimentalista, outros, espíritos aventureiros e superficiais, se afanavam por agravar os paradoxos, encarecer as ousadias perigosas e joeirar os elementos suspeitos e deletérios para aglutiná-los em sistemas incoerentes. É o critério que, das justas e sensatas, distingue as inteligências falsas e desequilibradas.

Neste meio recolheu a escola modernista os seus adeptos. Mais conhecidos entre eles, na Alemanha, foram: Gebert e os redatores da revista Das neue Jahrhundert; na a Itália, o senador Fogazzaro e o Pe. R. Murri, que a febre da ação social precoce afastou bem cedo dos estudos sérios; na França, E. le Roy, leigo, bom matemático mas filósofo amouco de Bergson, A. Loisy, sacerdote, de formação teológica notoriamente sumária, a quem já em 1903 publicamente censurara o arcebispo de Paris pela heterodoxia de suas opiniões matizadas de hegelianismo; na Inglaterra, J. Tyrrel, ex-jesuíta, convertido, que nunca se desembaraçou inteiramente dos preconceitos de sua primeira educação protestante. Estes soldados das novas idéias lutavam aqui e ali, não como um exército disciplinado, conduzido por um chefe para a realização de um plano, mas como franco-atiradores, avulsos e independentes. Idêntico, porém, era o espírito que os animava, idênticos os princípios que lhe informavam a atividade intelectual. Se calhava cruzarem-se no caminho, um gesto, uma palavra bastavam para se compreenderem. Loisy, no seu L’Evangile et l’Eglise, cita um só filósofo e este é Ed. Caird, que mais tarde iria colaborar no Rinnovamento, órgão modernista. Critica Le Roy o milagre da Ressurreição de Cristo? Na exegese de Loisy vai ele beber os princípios de que se socorre. É que, à maneira de subestrutura de todas essas construções, se ocultava, em alguns talvez inconscientemente, uma filosofia desorientada. Não foi principalmente o progresso das ciências históricas e bíblicas que acelerou a crise modernista, como por aí se andou superficialmente afirmando. No campo dos fatos não havia desacordo, a divergência acentuava-se na sua interpretação, na esfera dos princípios filosóficos. Confessou Loisy: «ante a inteligência do crente o simples conhecimento da história do dogma não levanta nenhuma dificuldade nova... se o problema(cristológico) se põe de novo...é em conseqüência do renovamento integral que já se efetuou e que ainda continua na filosofia moderna»(Autour d’un petit livre, pp. 129, 202). E em trabalho posterior: «Não é a origem deste ou daquele dogma em particular que entra em discussão atualmente: é a filosofia geral do conhecimento religioso».(Quelques lettres, p. 157)

Foi esta filosofia geral do conhecimento religioso, por todos os modernistas implicitamente suposta e por nenhum lealmente proposta em toda a sua extensão, que ao mundo católico, em síntese admirável de clareza e exatidão, apresentou a Encíclica Pascendi (1907). As novas doutrinas, antes nebulosa esparsa e incoerente, aí aparecem, como núcleos definidos a gravitarem na ordem lógica de suas dependências relativas.

Em todo o orbe acordou o importantíssimo documento uma repercussão imensa. Entre modernistas foi uma explosão de cóleras mal dissimuladas. Na Itália, em resposta ao papa saiu, sob o véu do anonimato, o Programma dei modernisti (Roma, 1903), acervo indigesto de insolências grosseiras e incoerências pueris, para logo traduzido em francês e alemão. Artigos de jornais e revistas, opúsculos e libelos, afinados em todos os tons do insulto e desrespeito, desde a crítica olímpica até o palavrão de sarjeta, pulularam por toda a parte. O papa havia excedido em severidade, declarava-se inimigo de todo o progresso, comprometera para sempre o desenvolvimento do catolicismo, deturpara as doutrinas modernistas a ponto de as tornar irreconhecíveis, etc., etc. Era a velha e vulgar psicologia de todos os hereges, sofistas e revolucionários que modestamente se identificam com a religião, a ciência e a pátria.

Em alguns, a acusação nascia da estreiteza de vistas. Encantoados numa especialidade, não se elevavam à altura dos grandes princípios que a informavam e iam repercutir em outras disciplinas. Assim, o exegeta não se julgava solidário dos desvios do filósofo, o historiador desligava a sua responsabilidade das aventuras do teólogo. Esqueciam todos que o papa não condenava diretamente um indivíduo, mas uma doutrina, não feria um modernista, mas o modernismo em todo o âmbito de suas manifestações polimorfas. Em outros revia manifestamente a má-fé. Professores ou escritores católicos, haviam eles falado muitas vezes em harmonia, ao menos verbal, com os ensinamentos tradicionais. O erro se lhes insinuava por entre a verdade. Nada mais espontâneo a um amor próprio ferido, que a idéia de respigar uma meia dúzia de trechos irrepreensíveis e florear a paveia artificial, como pendão triunfante de ortodoxia, contra as malsinações do papa. Era um expediente desleal do primeiro momento, à espera que a crítica, sincera e conscienciosa, em magnífica apologia da sinceridade do documento pontifício, enfileirasse, atrás de cada afirmação da Encíclica, uma série irrespondível de asserções modernistas. A fidelidade foi muitas vezes levada à identidade verbal. Esse desabafo explosivo de cóleras mal domadas então não se justificava, mas entendia-se. O que se não justifica nem entende, o que é tristemente deplorável é que, volvidos quase 20 anos, um foliculário qualquer venha julgar o documento do papa e tachá-lo de calunioso, estribado nestes libelos nascidos na efervescência dos primeiros ódios e despeitos.

Nos ambientes católicos, a Encíclica foi acolhida, não só com a submissão devida à palavra do supremo pastor a quem Cristo confiou a missão de confirmar na fé a seus irmãos, mas ainda com entusiasmo pelo seu elevado valor doutrinal. “É uma obra-prima de verdade!” escrevia o periódico belga Revue des sciences philosophiques et théologiques, 1907, p. 648.

Entre muitos acatólicos sérios e desinteressados na pendência, a atitude foi de respeito e mesmo de admiração. A uns impressionou a solidez da estrutura científica da Encíclica, como ao filósofo Gentile, que nela viu «una magistrale esposizione e una critica magnifica dei principi filosofici di tutto il modernismo». Paulsen, professor de Berlim, reconheceu a primeira origem das idéias profligadas. «É bem provável, diz ele, que todas as doutrinas condenadas na Encíclica sejam de origem alemã». (Internationale Wochenschrift, 7 de dez. 1907). A outros causou maravilha a exatidão e o tom de sinceridade do papa. «O que é notável e novo é que a Encíclica expõe o modernismo, não sob a forma de caricatura mas com uma espécie de objetividade e quase em todo o seu encanto». (Aulard,  Progrès de Saône et Loire, 27 set. 1907).

O próprio Tyrrel, contradizendo-se à distância de poucas linhas, confessou num artigo do Times que «o retrato do modernista era tão sedutor que a leitura da Encíclica constituía um perigo para os filhos dos século». (Times, 30 set).

Expondo doutrinas

«O Cristianismo, escreveu Fontenelle, é a única religião que tem provas”. E só a Igreja Católica sabe respeitar plenamente os direitos da razão. Se alguém lhe bate à porta, antes de lhe impor a fé, fala-lhe à inteligência, antes de lhe exigir a sujeição, mostra-lhe os títulos de seus direitos, exibe-lhes as credenciais de sua missão divina. Quando se desenvolve em toda a sua plenitude, esta demonstração compreende três fases ou momentos, que se resumem na trilogia: Deus, Cristo, Igreja.

A existência de Deus pessoal e transcendente, Criador e Providência, é o primeiro alicerce da vida religiosa. Prová-lo à evidência, eis o objeto da teodicéia.

Cristo apareceu na plenitude dos tempos, preparado e anunciado pelos profetas como Filho de Deus, Mestre e Redentor da humanidade. Aos homens fala com acentos que se não encontram em outros lábios humanos, entre os homens obra maravilhas que só Deus podia obrar: si mihi non vultis credere operibus credite – Quando não queiras crer em mim, crede nas minhas obras. E o estudo profundo e minucioso, crítico e histórico, da grande teofania, deste fato singularmente divino que domina a história do gênero humano, fá-lo o tratado da Revelação cristã.

Intacta, imutável, incorrupta, a doutrina salvadora do Evangelho deverá chegar a todos os povos na perpetuidade do tempo e na universalidade do espaço, sobrevivendo a todas as revoluções, a todas as vicissitudes dos homens e das coisas – única firme na torrente das caducidades humanas que tudo arrasta nos vórtices de sua constante mutabilidade. A uma instituição divinamente fundada é cometida esta empresa árdua e sobre-humana.

Quais os caracteres que distinguem a verdadeira sociedade das almas cristãs? Como discerni-la hoje da multidão de igrejas que apelam para o Cristo? Estudo largo e delicado, exegético e histórico, que enche as páginas dos admiráveis tratados Da Igreja.

Sobre a solidez logicamente inconcussa deste tríplice pedestal descansa a fé, racional e serena. Magnífico monumento, glória imortal do trabalho incansável de vinte séculos de cristianismo, honra não menos da inteligência católica que da inteligência humana.

Apologética Modernista 

Tão bem travada é a estrutura científica da nossa apologética que não há derrocá-la sem ferir ao mesmo tempo a razão na essência de sua dignidade e atentar, em assaltos de vandalismo destruidor, contra todas as construções intelectuais do espírito humano. Fê-lo certa filosofia moderna que, num gesto de desalento, se enclausurou na resignação de uma ignorância confessadamente incurável. Perfilhou-lhe as negações céticas o modernismo superficial.

Não bastam os protestos verbais com que os inovadores repeliram, em tom de indignação hipócrita, a acusação de agnosticismo. É tarefa pueril conservar um erro e repetir-lhe o nome. Para os que se não pagam de palavras,  o que antes de tudo importa é a realidade. E a realidade do agnosticismo, reconhecida ou dissimulada, se acha toda na origem das doutrinas modernistas. «Aceitamos, escrevem eles, a crítica que da razão pura fizeram Kant e Spencer». (Programma dei modernisti, p. 96).

Ora, que fez Spencer, relegando o absoluto para o domínio do incognoscível, senão ligar indissoluvelmente o seu nome ao agnosticismo? Não foi Kant quem negou à razão o poder de atingir qualquer realidade supra-sensível? Não foi Kant quem a condenou, ainda na esfera dos objetos sensíveis, a não lhes conhecer senão as aparências determinadas pela categorias apriorísticas da nossa natureza? Aceitar, pois os resultados da crítica da razão pura é emparedar-se nas muralhas chinesas do mais absoluto subjetivismo agnóstico. Aqui a confissão dos modernistas é mais explícita. «A crítica recente da várias teorias do conhecimento leva a concluir que é tudo subjetivo e simbólico no campo do conhecimento». (Prog. Dei Mod., p.109)Tudo, inclusive a demonstração da existência de Deus, base racional de qualquer religião. «Já não podemos aceitar uma demonstração de Deus levantada sobre esses  “idola tribus” que são os conceitos aristotélicos de movimento, causalidade, contingência, fim». (Prog. Dei mod., pp. 99-103). Que importam as definições vaticanas acerca da demonstrabilidade racional da existência divina! Foram formuladas por “teólogos tomistas.” E o termo “tomistas” vem sublinhado com esse desdém olímpico tão freqüente na auto-suficiência de espíritos superficiais. Como historiadores, fingem ignorar que esta é a via real trilhada pela humanidade de todos os tempos nas suas ascensões para o infinito. Como filósofos, esquecem que esses argumentos, tão puerilmente ridicularizados, são subscritos pelos maiores gênios desde Aristóteles e Platão até Descartes e Leibnitz. Como teólogos que ainda se dizem católicos, desgarram manifestamente da doutrina explícita de S. Paulo (Rom. I, 19) a ecoar, nos primórdios da Nova Aliança, os antigos ensinamentos da Sabedoria (Sap. XIII).

É que os modernistas declararam guerra sem quartel à inteligência na mais nobre de suas funções. «Para nós não existe a razão abstrata: só existe em função de outras faculdades instintivas, cujas exigências e resultados assinala» (Prog. Dei Mod., loc. cit). Se não existe a razão abstrata, que resta do nosso patrimônio científico, todo ele baseado nos princípios especulativos por ela formulados?

Tão radical e tão antiintelectualista é a parte destrutiva da nova apologética.

Imanência

Agora é mister construir. Se o edifício religioso já não pode descansar em seus fundamentos racionais, importa assentá-lo em novas bases. Se a inteligência não as pode subministrar, batamos à porta do coração, do sentimento, das exigências religiosas indefiníveis, dos impulsos latentes da subconsciência. Nestas penumbras talvez consigamos lobrigar o que se n os não depara na região luminosa da vida intelectual. Aí tocaremos a Deus com a experiência imediata. Ouçamos os interessados a descrever-nos a natureza desse novo conhecimento religioso como uma "experiência atual do divino que opera em nós e no todo...experiência do divino que se realiza nas profundezas mais obscuras da nossa consciência e leva-nos a um sentido especial das realidades supra-sensíveis". Pouco depois, esse novo sentido do divino se transforma num «senso ilativo...com o qual nos é dado aferrar, no seu inefável mistério, a presença de energias superiores, com as quais nos achamos em contato direto» (Prog. dei mod., pag. 96-97). «A forma nativa [das verdades de fé]escreve Loisy, é uma intuição sobrenatural e uma experiência religiosa, não é uma consideração abstrata ou uma definição sistemática de seu objeto». (Autour d'un petit livre, pag. 200) (...)

Eis, pois, a origem da vida religiosa: uma emoção a irromper das escuridades profundas da nossa alma. Por uma espécie de reação espontânea,esta emoção provoca uma representação de ordem cognoscitiva. Aqui entra pela porta do coração, a inteligência. Já ouvimos o programa dos modernistas a proclamar que a razão só existe para assinalar as exigências e os resultados das faculdades instintivas.

Loisy  pouco difere quando afirma que «diversamente das percepções de ordem racional e científica, a percepção das verdades religiosas não é fruto só da razão. É um trabalho da inteligência executado, por assim dizer, sob a pressão do coração, do sentimento religioso e moral, da vontade real do bem» (Autour d'un petit livre, pag. 197). Neste impulso do sentimento religioso que aflora à consciência consiste para o modernista a Revelação: «O que se chama revelação não pode ser senão a consciência que o homem adquiriu de suas relações com Deus».(ibid. pag. 195) (...)

De quanto fica dito, claramente se vê que a parte construtiva da apologética dos modernistas é toda baseada na imanência. Eles já não o contestam. (...)

No sentido mais geral, o imanentismo afirma que só quanto se inclui na esfera de nossa atividade subjetiva, quanto é por nós experimentado e vivido, pode ser objeto de conhecimento. Aplicada à questão religiosa, o novo sistema pretende que Deus se deve buscar dentro, não fora de nós. Aqui ainda, a imanência pode ser utilizada como método ou afirmada como doutrina. Como doutrina, a experiência interna constitui já a afirmação de Deus; como método, essa experiência subministra apenas o ponto de apoio de uma verdadeira demonstração.

Das tendências e exigências religiosas de nossa alma se pretende inferir a realidade capaz de as satisfazer. É legítima, semelhante inferência? Não, evidentemente. Uma religião que satisfaz aos desejos profundos  da alma, às suas mais íntimas aspirações, convém ao sujeito, é boa. Será, por isso mesmo, verdadeira? Ainda não; da bondade  à verdade não se pode passar sem intermediários. A transição torna-se de todo impossível quando se trata de uma religião sobrenatural; o sobrenatural, por definição, se acha fora das exigências da natureza. O método imanente não pode, portanto, construir exclusivamente um vestíbulo racional do cristianismo. Como complemento, porém,  da apologética externa, presta-lhe inestimáveis serviços. Os argumentos externos demonstram a verdade da religião, os internos a sua bondade; aqueles falam à inteligência, estes ao coração; uma apologética integral enfeixa-os harmoniosamente na síntese perfeita de suas demonstrações.

Esse admirável trabalho tem sido empreendido por inumeráveis autores católicos. Aos modernistas,  porém, veda a lógica a utilização da imanência-método, acima descrita. A argumentação que parte das tendências naturais descansa em princípios especulativos, em princípios de ordem abstrata, que não podem ter valor objetivo para quem mutilou a razão com o subjetivismo kantista.

Só lhes resta pois, a imanência-doutrina, a afirmação de que a nossa experiência religiosa aferra imediatamente a Deus. Neste intuicionismo pseudo-místico vão ainda adiante, pretendendo que a emoção já é uma manifestação do infinito  imanente, uma aparição do divino nas profundidades da consciência. Ultrapassamos destarte os limites da mais tolerante ortodoxia e entramos afoitamente no panteísmo com todos os seus perigos e absurdos. (...)

Com efeito, se todo o conhecimento de Deus se reduz a uma experiência que tenta sentir o divino na consciência ou na natureza; se nos é impossível elevar-nos dos efeitos criados à causa primeira, segundo os processos lógicos e naturais do espírito humano; se o divino é objeto de intuição direta e a intuição direta não atinge senão o próprio ato consciente, por que não identificar Deus com a própria consciência? (...)

E assim, de decadência em decadência, de erro em erro, de abismo em abismo, os modernistas mais lógicos justificaram a destruição gradual da fé e da vida religiosa assinalada concisamente na Encíclica: «O primeiro passo foi dado pelo protestantismo (de Lutero), o segundo pelo modernismo (na alheta de Kant e Schleiermacher), o seguinte precipitará no ateísmo.

Aí estão as inevitáveis conseqüências das aberrações religiosas destes incautos doutrinadores que uma crítica míope tentou aureolar com a glória de libertadores do pensamento católico e restauradores do cristianismo primitivo.

A ENCÍCLICA “PASCENDI”

Das eminências a que chegamos agora, e com um recuo histórico de quase 20 anos, podemos apreciar, em toda a sua grandeza, o valor excepcional do grande ato de Pio X. Depois de multiplicar por vários anos os conselhos e admoestações paternas, a intervenção enérgica e decidida do Papa foi, ainda uma vez, na história, uma afirmação da dignidade do homem e uma defesa dos direitos intangíveis de Deus.

Repare o leitor como o autor fala aqui de dignidade do homem, sempre na ordem da natureza humana e não da pessoa humana. A distinção é importante diante do pensamento moderno, até mesmo dos  Papas , a partir de João XXIII até João Paulo II, que quer atribuir à pessoa humana direitos inalienáveis. Ora, se a natureza humana tem uma dignidade que lhe vem de sua semelhança para com Deus, aumentada pela encarnação do Verbo, e  pelo nosso batismo, que nos eleva à vida sobrenatural divina, já a pessoa humana, sendo pecadora e fraca, só terá dignidade na medida em que viver da virtude e fugir dos vícios. E mesmo essa será uma dignidade de empréstimo, pois só Jesus Cristo, verdadeiramente é digno de honra, tendo conquistado com seu Sangue a remissão das nossas culpas. [nota de Dom Lourenço]

Afirmou a dignidade do homem, tutelando a integridade de suas forças intelectuais. Contra as diminuições injustificáveis de todos os agnosticismos, subjetivismos e relativismos, o Pontífice reivindica para a razão os direitos inalienáveis de investigar os fundamentos  da fé; reconhece-lhe a capacidade de elevar-se ao conhecimento das realidades supra-sensíveis, defende a verdade absoluta dos grandes e imutáveis princípios que constituem a alma insubstituível da nossa vida intelectual.

Afirmou a dignidade do homem, salvando a coerência da sua atividade moral. Nada de vida religiosa ao sabor das flutuações do sentimentalismo, nada de ficções degradantes a velar mal dissimuladas hipocrisias.  Unidade e continuidade entre a vida moral e intelectual, entre o cérebro e o coração. Acima de tudo, a verdade na expressão natural dos grandes princípios e na manifestação sobrenatural dos dogmas revelados, a imprimir aos atos passageiros da nossa existência a orientação segura, coerente e constante das coisas eternas.

Afirmou ainda a dignidade do homem, defendendo a sinceridade religiosa do cristianismo. É sabido como, entre protestantes, muitos pastores se resignam ao aviltante mister de comediantes religiosos. O eclesiástico protestante, escreviam eles há mais de um século, não é obrigado a subscrever uma profissão de fé senão para a paz e tranqüilidade pública, sem outro fim que o de conservar, entre os membros de uma mesma comunidade, a união exterior.

Loisy pretendeu aclimar entre católicos esta indigna hipocrisia. «O fiel adere com sua intenção à verdade plena e absoluta figurada pela fórmula imperfeita e relativa». (Autour d’un petit livre, p.206). A intenção do fiel vai à verdade absoluta (como e por que via a conhece ele?) enquanto os seus lábios pronunciam palavras figuradas e simbólicas. Sendo assim, por que não podemos amanhã recitar simultaneamente uma profissão de fé luterana, anglicana, muçulmana, passando com os lábios pelo símbolo das palavras e aderindo com a intenção à verdade absoluta, incógnita e incognoscível?

A Igreja Católica não conhece essas transações vergonhosas com a sinceridade. Não há “considerações pedagógicas” que a seus olhos legitimem a mais abominável das hipocrisias, a hipocrisia religiosa. Quando ela nos impõe o seu credo, exige dos nossos corações a adesão leal ao significado do que pronunciamos. Quando dizemos “creio em Jesus Cristo Filho Unigênito de Deus, Deus de Deus, Luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, toda a nossa alma, na plenitude de um ato consciente, se inclina em homenagem de adoração ao Salvador. Outros poderão não ter essa fé; nenhum homem reto, porém, poderá deixar de admirar a coerência, a lealdade, a nobreza de semelhante proceder.

Acima da afirmação da dignidade do homem, a palavra do Papa foi principalmente uma defesa das prerrogativas intangíveis da verdade divina. Quem não tem um conceito exato, uma percepção viva da infinita, absoluta e inefável majestade de Deus, na inviolabilidade soberana dos seus direitos, não pode entender a intransigência dogmática da Igreja Católica. A Igreja não é autora de um sistema humano, filosófico ou religioso, é depositária autêntica de uma revelação divina. Cristo ensinou-nos uma doutrina celeste: “A doutrina que eu vos ensinei é d’Aquele que me enviou.” (S. João, VII, 16; XII, 49).  Aos seus discípulos ordenou que a transmitissem a todo o gênero humano na sua integridade incorruptível. “Ensinai-lhes a observar tudo o que vos mandei”.(Mat. XXVI, 20). E para que a falibilidade humana não alterasse o depósito divino, prometeu-lhes a eficácia preservadora de sua assistência. “Estarei convosco até o fim dos séculos.”

A Igreja Católica tem, pois, promessa divina de imortalidade e infalibilidade. Não foi, não será nunca infiel à sublimidade da sua missão. Quando a sinagoga, alarmada com os prodígios que sancionavam o cristianismo nascente, prendeu os apóstolos e lhes impôs um silêncio criminoso, Pedro respondeu aos sinedritas um sublime non possumus. No volver dos séculos nunca desmentiu a Igreja as promessas deste seu batismo de sinceridade. Todas as vezes que o erro, armado como a força, mascarado como o sofisma ou sub dolo como a política, bateu às portas do Vaticano, pedindo ou impondo-lhe uma concessão, uma aliança, um compromisso, saiu-lhe ao encontro um ancião inerme e venerável na candura simbólica de suas vestes, e, com voz firme e olhar fito no céu, respondeu-lhe: Non possumus.

Após quase dois mil anos, ecoando ao protesto necessário do humilde pescador da Galiléia, outro humilde filho do povo opôs à mais refinada, altiva e perversa aberração religiosa, a negação serena de sua divina intransigência.

E o non possumus de Pio X, que foi uma reivindicação solene dos direitos e da dignidade da nossa natureza, salvou ainda uma vez o cristianismo, que, só, é fermento de vida da humanidade.     (1926)

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