Em 23 de fevereiro de 2002, Mons. Richard Williamson apresentou uma conferência sobre Hamlet aos professores da Escola Sainte-Famille, em Lévis, no Quebec. Publicamos o resumo feito por Jean-Claude Dupuis no boletim Long-Sault, número 2 (primavera de 2002), págs. 14-18. -- Le Sel de la Terre
William Shakespeare (1564-1616) é o escritor mais famoso de língua inglesa. Sua peça de teatro Hamlet (1600) permanece como uma das mais conhecidas e apreciadas do mondo anglo-saxão. Mons. Williamson precisa que Shakespeare não era nem teólogo nem filósofo. Era um artista, um dos maiores de todos os tempos, diz. E como todo artista, sua obra é marcada por uma relativa imprecisão. Shakespeare reflete a passagem da mentalidade medieval para a mentalidade moderna, a passagem de um sociedade cristã à uma sociedade apóstata. Sua obra traz, a um tempo, algo do teatro moralizador da Idade Média e algo do drama psicológico moderno. Podemos, portanto, fazer uma leitura cristã e tradicional ou, ao contrário, uma leitura romântica e revolucionária, que Mons. Williamson qualifica de hollywoodiana. Naturalmente, é esta última que prevalece em nossos dias. Mas, um católico pode encontrar em Shakespeare interessantes reflexões sobre o problema do mal.
Mons. Williamson lembra que a Bíblia contém tudo o que é necessário para compreender a natureza satânica do mundo moderno e para aprender a resistir a ele. Não obstante, a literatura profana pode por vezes nos ajudar a ilustrar os princípios católicos em uma linguagem mais acessível aos nossos contemporâneos e, sobretudo, aos jovens que infelizmente são demasiadamente marcados por uma visão cinematográfica da vida. Os clássicos literários, diz o Bispo, nos desvendam a profundeza da natureza humana e as causas da sociedade moderna.
O problema da apostasia constitui a trama de fundo da obra de Shakespeare. Seus heróis lutam contra uma insurreição interior da alma, conseqüência do eterno conflito entre o Bem e o Mal, o Amor e o Ódio. O herói shakespeariano é inicialmente nobre, mas entretém uma fraqueza que o fará sucumbir à tentação. Assim é a ambição para Macbeth, o ciúme, para Otelo e o puritanismo, para Ângelo. O herói cai. Ele rejeita o amor para satisfazer sua paixão desregrada cometendo um assassinato. Em seguida, toma consciência do mal que fez e que se fez, mas ele não pode resolver o conflito senão por uma fuga desesperada para a morte. O herói shakespeariano é um idealista que se perde no niilismo por não encontrar resposta às suas questões. Com efeito, falta-lhe a graça divina. Não é ele a imagem do mundo moderno?
Mons. Williamson analisa a peça à luz desta dupla leitura, católica e moderna. A história se passa na Dinamarca. O rei é envenenado furtivamente por seu irmão Cláudio, que usurpa a coroa e desposa sua cunhada Gertrudes, mãe do herói Hamlet. O espectro do rei assassinado aparece a Hamlet. Ele revela a seu filho as circunstâncias de sua morte e pede a ele de o vingar. Hamlet é um homem jovem de coração puro que denuncia a corrupção da corte (Há algo de podre no reino da Dinamarca) e ama sinceramente a filha do lorde camareiro Polônio, Ofélia. Entretanto, ele sofre de melancolia (hoje dir-se-ia: depressão) e pensa até em suicídio. A aparição do espectro de seu pai transforma suas nobres aspirações em paixões odientas. Ele repele o amor de Ofélia, cujo pai ele mata por acidente, mas sem remorso. Sua noiva perde a razão e se mata, talvez voluntariamente. Hamlet tem a oportunidade de matar Cláudio enquanto ele reza; mas renuncia a isto para não enviar seu tio para o céu. Seu desejo de vingança não tem mais limite. Contudo, a melancolia e uma certa crença o paralisam. Hamlet pergunta a si mesmo se mais vale combater o Mal ou fugir dele pela morte.
Ser ou não ser, essa é que é a questão: Será mais nobre suportar na mente as flechadas da trágica fortuna ou tomar armas contra um mar de escolhos e, enfrentando-os, vencer? Morrer — Dormir: Nada mais; e dizer que pelo sono findam as dores, como os mil abalos inerentes à carne — é a conclusão que devemos buscar. Morrer — Dormir. Dormir! Talvez sonhar — eis o problema, pois os sonhos que vieram nesse sono de morte, uma vez livres deste invólucro mortal, fazem cismar. Esse é o motivo que prolonga a desdita desta vida. [...] Quem carregara suando o fardo da pesada vida se o medo do que depois da morte —o país ignorado de onde nunca ninguém voltou — não nos turbasse a mente e nos fizesse arcar c'o mal que temos em vez de voar para esse, que ignoramos?1
Enquanto que Hamlet se interroga sobre o sentido da vida e da morte, Cláudio conspira com o irmão de Ofélia, Laertes, para fazer com que ele perca a vida na ponta de um florete envenenado, durante uma competição de esgrima. Hamlet pressente a cilada. Ele poderia facilmente evitar a competição, mas ele não está mais interessado na vida, e se deixa conduzir por um sombrio pessimismo.
Se tiver que ser agora, não está para vir; se não estiver para vir, será agora; e se não for agora, mesmo assim virá. O estar pronto é tudo: se ninguém conhece aquilo que aqui deixa, que importa deixá-lo um pouco antes?2
O drama termina em uma carnificina rocambolesca em que morrem Hamlet, Laertes, Cláudio e Gertrudes. Um rude guerreiro estrangeiro, Fortimbrás, termina por se empossar do trono. A força bruta triunfa sobre as ruínas da corrupção moral (Cláudio) e do niilismo espiritual (Hamlet), dois traços característicos do mundo contemporâneo.
Hamlet é um herói ou criminoso? Os modernos responderiam que Hamlet teve razão de se revoltar contra a corrupção da sociedade encarnada por Cláudio. Ele comete talvez alguns erros grosseiros em sua revolta, como a morte, no fundo justificada, de Polônio ou o quase-suicídio, mais triste, de Ofélia. Mas o rebelde tem todos os direitos e a revolução exige sangue. Cláudio e Laertes, que representam o poder estabelecido (o papai), associam-se para destruir a juventude revolucionária (o adolescente em crise). O herói termina por triunfar e por restabelecer uma certa justiça, mas ao preço de sua vida (o suicídio "interpelante" do adolescente incompreendido). Tudo termina por uma carnificina malsã, cuja responsabilidade é devolvida à ordem social hipócrita. Assim, Hamlet encarna, na ótica moderna, "o drama da ascensão à consciência e à liberdade" (Petit Robert).
Um católico fará, da mesma peça, uma leitura completamente diferente. Hamlet é um nobre príncipe enfraquecido por sua melancolia (a tristeza, primeira armadilha do demônio) que não pode resistir à tentação da vingança. O espectro de seu pai vem certamente do inferno, pois uma alma do purgatório não poderia incitar ao mal. Tendo preferido o ódio ao amor, Hamlet rechaça sua noiva, destrata sua mãe e ataca o rei, do qual é, contudo, o legítimo herdeiro. Hamlet solapa os fundamentos da ordem social: o matrimônio, a piedade filial, a autoridade pública. Sua rebelião odienta arruinará sua vida pessoal, sua família e a paz do reino, mas ele prossegue com vivacidade, como estes jovens burgueses decadentes que se tornam comunistas para acertar suas contas com seus pais. Quem vive da espada, perecerá pela espada. A revolta conduz à morte, tanto a do herói como a de seus inimigos. Ela conduz sobretudo ao desgosto pela vida que Hamlet manifesta aceitando o duelo contra Laertes. Definitivamente, Hamlet não restabeleceu a justiça na Dinamarca; ele simplesmente fez aquele reino cair nas mãos do estrangeiro Fortimbrás.
O drama que aflige a alma de Hamlet é fascinante. Em uma sociedade corrompida, é melhor combater (inutilmente) ou suportar e morrer (também inutilmente)? Notemos que Hamlet não deseja aderir à imoralidade: seu coração é demasiado nobre. Notemos igualmente que os católicos podem por vezes colocar-se a mesma questão: É preciso combater a desordem atual (sem esperança de sucesso) ou se desinteressar dela (o que equivale a morrer espiritualmente)? Resistir é inútil, golpear também. Que fazer?
Segundo Mons. Williamson, Hamlet não encontrou a solução porque não colocou o problema em termos católicos. Hamlet é o filho perturbado de um Shakespeare perturbado, no qual a juventude de nosso tempo se reconhece. Mas, por que Shakespeare era perturbado?
A obra de Hildegard Hammerschmidt-Hummel, The Hidden Existence of William Shakespeare [A Vida Desconhecida de William Shakespeare], pode nos esclarecer. Shakespeare era um católico em uma Inglaterra elisabetana que perseguia severamente os católicos pela violência, mas, sobretudo, pelo ostracismo. Em 1600, ano em que Hamlet foi escrito, o triunfo do protestantismo é absoluto. A maior parte dos ingleses aceitou o cisma e os católicos que ainda sobreviveram não ousam se manifestar muito. Ora, Shakespeare era um destes católicos que escondiam sua fé para se manter na sociedade. Ele recusa tomar o caminho do martírio. Mons. Williamson não o culpa: é preciso, diz ele, ser um verdadeiro mártir antes de apontar o dedo para aqueles que cedem na perseguição. Quantos dentre nós terão a coragem de testemunhar a fé quando as forças do anticristo nos perseguirem violentamente (o que talvez ocorra em breve)? Mas a pusilanimidade de Shakespeare altera sua concepção da vida. Seu meio-catolicismo não o permite resolver os problemas existenciais que ele colocava, por outro lado, muito bem.
Mons. Williamson traça um paralelo entre Hamlet, Shakespeare e a juventude atual.
Hamlet, príncipe herdeiro da Dinamarca, vive exilado em seu próprio reino, abandonado ao mal pela dupla traição de seu tio e de sua mãe. Ele tem razão de reagir contra a corrupção, mas não emprega bons meios. Sua ação termina em um inútil banho de sangue e em uma interrogação niilista: Ser ou não ser?
Ao fim de sua vida, Shakespeare consegue sair do impasse ao redescobrir a resposta cristã ao problema do mal: a redenção pela morte sacrificadora. Em Rei Lear (1606), a heroína regenera o mundo por sua própria oblação, não pela morte dos maus. O Cristo não salvou o mundo caçando os Heródes e os Pilatos, mas oferecendo a si mesmo na cruz. No mundo atual, os católicos devem reagir imitando Nosso Senhor, sacrificando a si mesmos pela oração e pelo dever de estado, como justamente nos ensinou Nossa Senhora de Fátima. Shakespeare recuperou sua paz interior desta maneira. Ele morreu piedosamente, após ter recebido os últimos sacramentos de um monge beneditino.
Mons. Williamson termina sua magistral conferência explicando o objetivo do ensino da literatura clássica em uma escola católica. Os cinco últimos séculos da história ocidental são marcados pela apostasia. A literatura não poderia senão experimentar as conseqüências. Não teríamos o direito, diz ele, de procurar nesta literatura, mesmo na mais clássica, a expressão perfeita dos princípios cristão. Para isso, é preciso ler a Bíblia e os Padres da Igreja. Mas a literatura clássica ilustra uma certa ordem natural. Por exemplos, os homens aí são masculinos e as mulheres, femininas. A obra de Shakespeare é tão ligada à mentalidade tradicional, que quase se passa em silêncio sobre ela nos programas escolares atuais dos países anglófonos. De fato, Shakespeare, assim como tudo o que é clássico, contraria os modernos, uma vez que nos eleva ao nível dos princípios naturais da antiga sociedade. Se não se deve fazer da literatura um fim em si, ao modo dos humanistas ateus, lembremo-nos, contudo, que o sobrenatural tem de se apoiar sobre a natureza e que a fé dificilmente pode se enraizar em uma alma impregnada dos princípios contrários à natureza da cultura moderna. O estudo de Shakespeare pode servir de antídoto contra os grandes danos do espírito hollywoodiano.