Skip to content

A natureza da moralidade

A.  A concepção casuística da moralidade
 
A natureza da moralidade é um dos problemas mais árduos e mais discutidos. Como não podemos trata-lo aqui exaustivamente nos contentaremos em dizer o que é necessário para permitir interpretar corretamente o texto de Santo Tomás que apresentamos.
 
 
Hoje em dia, em nosso espírito, a moralidade está estreitamente ligada à idéia de obrigação ou de dever; a obrigação moral tornou-se uma espécie de fato primitivo, e os sistemas de moral parecem dever se dividir segundo a concepção que deles fazemos e os fundamentos que lhes damos. Também se crê poder, por exemplo, julgar o valor da moral tomista segundo a resposta que esta fornece para a questão dos fundamentos da obrigação moral1.
 
No entanto quando se abre a “Secunda Pars”, tem-se a surpresa de nela não se encontrar uma só questão tratando diretamente da obrigação moral. Como poderemos distinguir atos bons e maus sem sequer falar de obrigação?
 
Muito menos encontramos, nas questões consagradas por Santo Tomás ao bem e ao mal moral, um estudo sobre a consciência que é uma noção correlativa à questão da obrigação. Ora, o tratado da consciência tomou um singular desenvolvimento no curso dos últimos séculos; constitui, hoje, um dos principais capítulos da teologia moral. Os primeiros autores que, no começo do século XVII, elaboraram esse tratado e que ainda seguiam o plano de “IIa Pars” de Santo Tomás, introduziram-no no fim do estudo dos atos humanos2, em seguimento aos artigos concernentes à consciência em erro (qu.19, art.5 e 6); porém mais tarde, por causa de sua extensão crescente, foi-lhe dado um lugar a parte. Desde então os moralistas se disputam sobre o lugar que melhor convém ao tratado da consciência no plano da moral fundamental, em relação com os tratados dos atos humanos, do pecado e da lei. Todas as soluções foram propostas; nenhuma até aqui conseguiu se impor3.
 
Poderíamos crer que essa é uma questão de menor importância, um simples problema de organização da matéria moral; mas quando se estuda a questão com atenção, constatamos que essa dificuldade de localização está ligada a uma vasta mudança da teologia moral operada na época moderna.
 
Se compararmos a ordem habitual dos primeiros capítulos de nossos manuais modernos de moral com o plano da Ia IIæ que eles freqüentemente invocam, notamos claras diferenças: os tratados do “fim ultimo” e da “beatitude” desapareceram (entre os autores de estrita obediência tomista, subsistem, antes porém como referencias testemunhais); os tratados do “pecado” e da “lei” sobrepujaram os tratados dos “habitus” e das “virtudes”, aliás muito reduzidos, e constituem, com os tratados dos “atos humanos” e da “consciência”, a moral fundamental. Alem do mais, todo o domínio da moral foi invadido pelos problemas da consciência duvidosa, da qual Santo Tomás e os autores antigos quase não falavam.
 
De fato, uma concepção nova da moral se impôs pouco a pouco no começo da época moderna, e tornou-se clássica; nós a chamaremos de moral casuística, sem dar o menor sentido pejorativo a esse termo. Essa moral suscitou disputas memoráveis, que duram ainda, tais como a querela do probabilismo; mas, no fogo das discussões, não se teve o devido cuidado para examinar seus fundamentos, para conferir seus títulos. Hoje, a moral casuística é objeto de numerosas criticas; no entanto, apesar de esforços louváveis, não se pôde ainda desvencilhar das perspectivas que lhe são próprias, e continua-se a considerá-la como testemunho fiel do pensamento escolástico, notadamente tomista.
 
Convém, pois, em um comentário de analise tomista do bem e do mal moral, expor os traços característicos da moral casuística para confrontá-la com  a de Santo Tomás. Esse exame fará aparecer duas concepções muito diferentes da moralidade.
 
I.        OS PRINCIPAIS TRAÇOS DA MORAL CASUISTICA
 
Lei, liberdade, consciência, obrigação.
 
O edifício da moral casuística repousa sobre três colunas: a lei, a liberdade e a consciência; tem como pedra principal de sua abobada a idéia de obrigação.
 
A casuística põe em primeiro lugar a lei e a liberdade, uma diante da outra; são como escreveu o P. Lehu, duas proprietárias que disputam no campo dos atos humanos: “Os tratados modernos da consciência têm como principal assunto a questão do Probabilismo que é inteiramente consagrado ao conflito entre os direitos da lei e os direitos da liberdade; daí a expressão usual: “Possidet lex, possidet libertas”; é a lei que possui ou é a liberdade.” Na realidade esse conflito afeta todo o domínio da moral.
 
A lei impera sobre a liberdade pela obrigação que lhe impõe e que acaba por limitar seu campo de ação. Os atos humanos se dividem pois em duas categorias: os que são sujeitos à obrigação legal, ordenados ou proibidos, e os que permanecem livres (atos permitidos); pelo fato da liberdade produzir os atos humanos e porque esses atos lhe pertencem, ela terá sempre a impressão de que a lei lhos rouba. Por isso a primeira característica da moral casuística será a tensão, o próprio antagonismo que reina entre a liberdade e a lei. Por sua vez, a consciência faz um papel de intermediário: indica a lei e se esforça por aplicá-la à liberdade. Sua função principal é determinar o limite que separa seus respectivos domínios, definir exatamente até onde vai a obrigação moral: por ela, a lei submete a liberdade; é ela que deve apartá-las no perpétuo conflito que as opõe.
 
Lei, consciência e liberdade se coordenam em um quadro essencialmente jurídico. A consciência preenche o papel de juiz: em nome de uma lei da qual ela só é a interprete, chama a liberdade ao seu tribunal, para que responda por seus atos. Nessa perspectiva, é inevitável que a consciência e a moral que vem em seu auxilio, se interessem sobretudo pelo pecado, pelos atos contrários à lei; elas quase não se ocupam com os atos livres que, não estando sujeitos à lei, escapam à sua jurisdição.
 
Essa concepção da moral corresponde à principal preocupação dos moralistas pos-tridentinos, que era fornecer aos padres conhecimentos necessários para exercerem dignamente seu papel no tribunal da Penitência. Mas o desejo expresso pelo Concílio de Trento, de dar aos seminaristas um ensino adaptado ao ministério pastoral, não seria suficiente para suscitar essa concepção da moral, se as novas idéias concernentes à liberdade e à lei não estivessem em curso na época, e não fossem, pouco a pouco, se impondo aos moralistas como evidências primeiras.
 
Achamos assim reunidos e logicamente arrumados os assuntos dos quatro tratados fundamentais da moral casuística: os atos humanos, ou melhor, os atos livres, a lei, a consciência, e enfim os pecados dos quais se ocupa principalmente essa moral.
 
A obrigação, noção central da moral casuística.
 
A noção de obrigação é tão primitiva e tão central na casuística que de habito não se pensa dever procurar um fundamento para ela, nem mesmo lhe consagrar um estudo especial: ela designa o poder próprio e direto sobre a liberdade; exprime a própria essência da moralidade. Os moralistas então identificam praticamente a obrigação e o valor moral.
 
A coisa fica manifesta quando se vê a moral casuística se dissociar da espiritualidade e da mística, porque essas últimas se ocupam com ações que ultrapassam a obrigação legal. Aquilo que é de conselho e concerne uma perfeição superior, transborda o domínio da moral propriamente dita e depende de uma ciência distinta. A moral é estritamente a ciência do que é obrigatório e exigido por todos; um ato é moral pela sua relação com a lei e com a obrigação que ela impõe.
 
É por essa razão que os moralistas tiraram o tratado da beatitude – procurando não chamar muita atenção – do lugar de primeiro plano que lhe conferia Santo Tomás. A obrigação procede da lei; o desejo da beatitude nasce no seio da liberdade. Se a lei e a liberdade são princípios opostos, torna-se contraditório querer basear a obrigação sobre o desejo da beatitude: Como explicar uma obrigação cujo papel é limitar o campo de ação da liberdade com a ajuda de um sentimento que é a fonte da ação livre? Isto não é procurar colocar a rocha objetiva da obrigação moral sobre a areia movediça de uma inclinação subjetiva? O valor moral não é antes o fruto de uma vitória conquistada por uma vontade obediente sobre as paixões alimentadas pelo desejo de beatitude?
 
O tratado da beatitude não pôde conservar o primeiro lugar da moral, porque o desejo da beatitude não pode servir de base à obrigação, nem por isso, de ponto de partida de um agir propriamente moral. Logicamente, é preciso relegar o tratado da beatitude para o fim da teologia moral: a recompensa consecutiva ao mérito chega no termo da atividade. A beatitude será mesmo considerada como um efeito acidental ou, ao menos, indireto do agir, porque o mérito autentico implica uma intenção livre de toda consideração interessada relativa à felicidade pessoal. A beatitude é ajuntada pois ao domínio da moral como um acréscimo; terá que seguir por um caminho tortuoso para penetrar em sua fortaleza.
 
Isso mostra o quanto a noção de obrigação é central para a casuística; é uma evidência primeira que os moralistas aceitam geralmente sem sequer sonhar em questioná-la. Aqueles que têm bastante senso filosófico para refletir no problema do fundamento da obrigação colocam-na como uma espécie de fato de base, ponto de partida obrigatório de toda investigação no domínio moral; consideram-na como um fenômeno característico, contendo os traços próprios do valor moral. Com toda boa fé, esses moralistas interpretarão e comentarão os textos tomistas mais afastados de suas concepções, segundo seus pontos de vista, que crêem tão antigos quanto o próprio fenômeno moral.
 
A consciência com duvidas.
 
Ponto de encontro da liberdade e da lei, a consciência está encarregada de aparta-las; convém, então, lhe consagrar um estudo desenvolvido, considerando os diversos estados pelos quais pode passar e os critérios que deve usar para exercer suas funções. Mas como a consciência segura de si, por definição, não cria problemas, os moralistas concentrarão a atenção na consciência com dúvidas; estudada apenas ligeiramente, outrora, ela constituirá um dos capítulos mais importantes da teologia moral. Será pelas posições tomadas em relação à consciência com dúvidas que se distinguirão as diversas escolas dos moralistas.
 
O problema da consciência com duvidas tem uma importância geral na casuística, pois o julgamento do moralista sobre um caso submetido a seu exame – e o são habitualmente casos duvidosos – será diferente conforme o exercer diante da dúvida com uma consciência larga ou severa, audaciosa ou reservada. Por outro lado, a multiplicidade das circunstâncias onde se inscreve o ato humano concreto, muitas vezes torna difícil a aplicação das prescrições universais da lei e causa hesitação no julgamento. A dúvida tende a invadir a consciência e os livros de moral. Também, salvo nos casos onde a autoridade da Igreja se pronunciou, raramente se encontra uma opinião mantida por todos os moralistas e que manifestaria entre eles uma consciência segura de si.
 
A natureza da moralidade
 
O problema da natureza da moralidade foi vivamente discutido pelos moralistas modernos que adotaram as mais variadas posições sobre esse assunto. Muitos concordaram que se trata de uma questão difícil, confessando, assim, que estão conscientes de não trazerem uma resposta satisfatória. No entanto todos colocam o assunto em termos semelhantes: partindo da consideração do ato livre em sua entidade física, eles perguntam o que lhe acrescenta a moralidade. A moralidade será para os moralistas a qualidade do ato físico na perspectiva de sua relação com a lei ou a regra dos costumes. Em seguida se dividem na questão de saber se essa é uma relação de razão ou uma relação real, isto é, predicamental ou transcendental.
 
Em sua problemática dominada pela oposição entre a lei e a liberdade, a opinião mais lógica é a que faz da moralidade uma simples relação de razão entre o ato livre e a lei: tanto quanto a liberdade da qual ele é o produto, o ato humano não pode ter elo natural e real com a lei moral.
 
É, também, interessante notar que segundo essa concepção, a exterioridade da lei em relação à liberdade se comunica ao próprio ato livre quando cai sob o olhar do moralista. A entidade física do ato, tão estranha a uma liberdade que se definirá pela sua oposição à “physis”, torna-se a base da reflexão e da teoria. O moralista daí tira um conceito geral, adaptado ao caráter universal dos preceitos legais, mas muito afastado da liberdade em sua natureza singular. Tudo se passa como se, por obra do moralista, a lei roubasse da liberdade o ato que ela produziu.
 
II.      A LIBERDADE DE INDIFERENÇA
 
NA ORIGEM DA MORAL CASUÍSTICA.
 
Liberdade, lei consciência, obrigação, são os elementos constitutivos da moral casuística. Estão tão estreitamente ligados que suas noções se determinam umas pelas outras. A lógica que as une é tão natural que quando vemos aparecer um de seus termos, podemos predizer, quase com certeza, que os outros virão em seguida; esse encadeamento parece ter penetrado no subconsciente dos autores, para além de suas teorias e de suas intenções explicitas. Apesar de terem o cuidado de fidelidade a Santo Tomás, os autores escolásticos manifestadamente submeterão seu pensamento – sob a cobertura das formulas antigas e através de muitos desvios – à lógica inelutável do sistema em que se comprometeram, o qual não corresponde em quase nada ao pensamento de seu mestre.
 
Também é interessante examinar a concatenação das idéias que estão envolvidas na moral casuística e procurar qual é a raiz primeira de onde procedem.
 
O elemento original da moral casuística parece ser uma certa concepção da liberdade que se tornou clássica nos tempos modernos e que se acha nos alicerces dos mais diversos sistemas, tanto em filosofia como em teologia: é o que se chama liberdade de indiferença. Quaisquer que sejam as formas que recebeu, as criticas a que está sujeita, a liberdade de indiferença parece fornecer o núcleo primitivo, duro e resistente, do pensamento moral elaborado nos séculos XVI e XVII. Como procuraremos mostrar, pode-se, a partir desse ponto, determinar exatamente o sentido e a função dos outros elementos que constituem o sistema casuístico e deduzir com um espantoso rigor as características principais dessa moral.
 
A liberdade de indiferença consiste no poder atribuído à vontade, de ficar indiferente diante do julgamento da razão; é em sua essência, o poder de escolher entre os contrários, entre o que apresenta a razão e seu contrario, entre o que dita a lei e seu contrario, de modo que a decisão livre seja a obra, no final das contas, apenas da vontade; ou melhor, ela se confunde com a vontade e se torna a faculdade suprema do homem, seu poder de decisão próprio onde se afirma sua autonomia. A liberdade de indiferença comporta uma reivindicação radical de independência do homem, do individuo, em relação a tudo que lhe é exterior; manifesta melhor sua natureza profunda pela separação, pela crítica e pela negação, pela ruptura e pela própria revolta, pelo instinto de dominação. Diante do determinismo da razão se levanta assim a indeterminação pura de uma liberdade tentada a se afirmar como um absoluto. Será preciso escolher entre a liberdade de indiferença e a razão; procurar-se-á em vão conciliá-las. Em todo pensamento moderno subsistirá, admitido ou criticado, mas sempre presente e ativo, o núcleo irredutível da liberdade de indiferença.
 
A atomização do agir humano.
 
Vejamos rapidamente quais as conseqüências produzidas na moral pela teoria da liberdade de indiferença. Nessa concepção, a decisão livre se torna uma espécie de absoluto que se impõe por si mesmo. Essa liberdade não pode ter graus; ela é ou não é, inteiramente presente no momento em que se exerce. Sem dúvida, pode haver obstáculos que a impeçam de agir sobre o mundo exterior; mas só a decisão interior que importa para ela e ela se compromete toda no sim ou no não que pronuncia. Tal é o ato plenamente livre. Em conseqüência, cada ato humano, na medida em que é obra da decisão livre, formará também um todo independente, onde se concretiza a autonomia de cuja liberdade goza a cada momento em que é exercida. Deveremos estudar esse ato em si mesmo, separado dos outros atos. Essa é a razão profunda porque a casuística considera cada ação como um caso particular, uma espécie de individuo na ordem do agir, um átomo ou uma monada que só pode manter com o exterior relações acidentais. A casuística merece assim perfeitamente seu nome: ela é o estudo dos casos, tais como puros acontecimentos subsistindo cada um de per si. A atividade do homem se decompõe desde então em uma infinidade de pequenos atos separados como por natureza, por causa da indeterminação da liberdade da qual nasceram.
 
A finalidade posta de lado
 
A liberdade de indiferença é incompatível com a idéia de finalidade, pois essa estabelece um elo interno e uma continuidade real entre os atos que inspira e dirige para um mesmo fim; ela os une por uma determinação comum que é contraria à pura indeterminação reivindicada por essa forma de liberdade.
 
A casuística reduzirá, pois, o fim ao nível de uma circunstância que se acrescenta do exterior à substância do ato humano; desse modo, a finalidade não poderá diminuir a autonomia dos atos particulares, não mais do que um acidente afeta uma substancia. A escolástica moderna vai negligenciar assim a dimensão da finalidade no agir humano, que era o que dominava a moral tomista. O tratado do fim último perde sua preponderância e mesmo sua razão de ser. Fora de toda finalidade, a obediência à lei é suficiente para assegurar o valor moral; à intenção finalizante de Santo Tomás se substitui a única e pura intenção de obedecer à lei.
 
O caráter “pontual” da liberdade da indiferença no tempo.
 
Uma outra característica da liberdade da indiferença é seu caráter “pontual”: ela só pode ocupar um ponto no tempo e no espaço psicológico do homem.
 
Na dimensão do tempo, a liberdade de indiferença é instantânea, no sentido de se fechar no único instante em que nasce a decisão livre. Consistindo em um poder absoluto de escolher entre o sim e o não, a liberdade se negará comprometendo-se para um instante futuro, pois estará renunciando, para esse momento que virá, a faculdade de escolher o contrario do compromisso tomado. Não pode tão pouco reconhecer um compromisso passado sem renunciar a seu poder presente de escolher como bem quiser. A liberdade da indiferença não pode se estender para além do instante presente; pode, no máximo, simular a duração concebendo seus compromissos como fossem renovações continuas de uma decisão inicial; mas isso não passa de uma continuidade aparente, pois não se pode fazer uma duração de instantes separados, como um pontilhado não pode formar uma linha contínua.
 
Em conseqüência a casuística não poderá mais conceder aos habitus e às virtudes o lugar que lhes cabia antigamente na moral. Os habitus e as virtudes supõem a continuidade do agir numa mesma linha e o exercício de uma finalidade; produzem uma permanência e uma estabilidade na atividade humana que parecem inconciliáveis com o poder de que dispõe a liberdade de se determinar a si mesma a cada instante. Sem duvida, por fidelidade à tradição, retomar-se-á a teoria dos habitus e das virtudes, mas os farão elementos de um mecanismo inframoral: eles vão se transformar em simples hábitos, reflexos condicionados. Somente a intervenção da decisão livre poderá lhes conceder um valor propriamente moral: mas no momento em que a decisão livre os assume, a liberdade os nega em sua essência própria feita de continuidade e de duração, pois ela só os aceita no instante presente e afirmando que ela teria podido muito bem rejeitá-los.
 
Essa concepção da liberdade conduz logicamente à negação da validade de todo compromisso para o futuro, por exemplo: o laço matrimonial, as virtudes de religião, a recusa a toda fidelidade. Sem duvida, os teólogos não quererão jamais ir tão longe; manterão com todas as forças o valor desses compromissos; mas terão contra eles a lógica da liberdade de indiferença4.
 
O caráter “pontual” da liberdade de indiferença no homem.
 
A liberdade de indiferença será também “pontual” no plano da totalidade psicológica que é o homem. Por causa de sua pretensão em ser a única fonte do ato moral, a liberdade deve recusar toda participação direta das outras faculdades do homem, da sensibilidade e do corpo principalmente, na decisão moral. É combatendo a tendência da sensibilidade em intervir na ação que a liberdade se afirma mais claramente e assegura sua independência. A liberdade se separa assim da sensibilidade e do corpo como fez com a razão; retira-se para as profundezas do homem como para um ponto inaccessível, uma torre inexpugnável de onde partem seus decretos, semelhantes a relâmpagos.
 
A liberdade de indiferença engendra no homem um dualismo insuperável que isola a liberdade de toda a ordem sensível e corresponde ao dualismo ontológico da alma e do corpo. Suscita um voluntarismo que é o fruto do confronto entre a liberdade e o desejo, e concebe a vontade como uma força de pressão e de constrangimento, primeiramente em relação à sensibilidade, a si mesma e em seguida aos outros.
 
Essa é uma nova razão para abandonar a teoria das virtudes morais elaborada por Santo Tomás que, contrariamente a São Boaventura, sujeitava à força e à temperança as duas partes da sensibilidade, o irascível e o concupiscível, paixões que assim submetidas tornavam-se capazes de colaborar ativamente na obra do agir moral. Na moral casuística, as virtudes não exercerão outra função além de oferecer divisões cômodas para classificar as diversas obrigações morais e os pecados. Já que a liberdade arrogou-se todo poder de decisão e de ação do homem, ela não tem necessidade das virtudes para se determinar no agir; quando muito as virtudes podem facilitar a tarefa de levar a ação ao seu termino afastando certos obstáculos na sua execução.
 
O antagonismo entre a liberdade de indiferença e a sensibilidade explica também a posição tão negativa dos casuístas quanto ao assunto da sexualidade. Manifestam uma repugnância instintiva e um temor que confina às vezes com a obsessão, em relação a esse elemento do homem que o faz constatar que ele não é um puro espírito, uma pura liberdade, o que põe em perigo sua autonomia moral. Como nos outros domínios, essa moral quase só considera a sexualidade como falta; mas terá a tendência de fazer do pecado da carne o pecado por excelência, porque é o mais contrario à liberdade e representa seu antípoda carnal.
 
Lei e liberdade: o “extrinsecismo”.
 
Se a liberdade é o apanágio de uma pura vontade, a lei, por sua vez, só poderá ser concebida como a expressão de uma outra vontade, exterior à primeira. Com efeito, a lei não pode mais se apoiar sobre um elo qualquer anterior à decisão livre, para penetrar na liberdade, como seria o caso de uma inclinação natural. Se a liberdade abarca toda a determinação de seu ato, só deixará continuar subsistindo diante dela realidades estrangeiras, outras liberdades também independentes, como serão Deus e os outros homens. Essas liberdades só poderão atingir a vontade por uma coerção que, qualquer que seja a forma que tome, diminui seu poder de ação. Tal será a obrigação moral, expressão manifesta da vontade divina. A liberdade terá sempre a tendência, para se afirmar diante de si mesma e diante dos outros, de romper os vínculos que querem lhe impor; pelo menos manterá entre ela e a lei uma certa distância, essa tensão latente que subsiste, no que quer que se faça, no fundo da idéia da obrigação legal.
 
A lei e a obrigação formam o objeto da ciência moral, que será por conseqüência marcada por um “extrinsecismo” essencial. Os mandamentos e as proibições, os preceitos da moral não podem se enraizar na liberdade, nem despertar nela um eco profundo: nenhuma aspiração, nenhum desejo pode responder ao apelo dos preceitos da moral em uma liberdade cujo principio primeiro é a afirmação de sua indeterminação, de sua independência em relação a todo movimento afetivo, de sua indiferença fundamental.
 
Esse “extrinsecismo” se prolonga pela divisão entre os domínios do “subjetivo” e do “objetivo”. Face ao subjetivismo de uma liberdade que queria ser senhora absoluta do agir humano, a moral vai levantar a lei e seus imperativos como normas dotadas de uma objetividade pura; ao arbitrário e à instabilidade do sujeito se oporão as prescrições que terão o peso e a duração dos objetos físicos. Quer neutralizar as pretensões excessivas do sujeito, elevando diante dele um dique de exigências perfeitamente a-subjetivas. É assim que o extrinsecismo leva ao fisicismo. Por isso, como já tínhamos notado, a casuística concebe a moralidade a partir do ato físico. Os casos de consciência serão estudados como se fossem objetos materiais; serão submetidos ao frio olhar de uma razão pretensamente objetiva que considera unicamente a relação do ato com a norma legal, e faz abstração de todo elemento subjetivo e pessoal. Também essa moral se isolará em uma consideração universal, abstrata e impessoal, apesar de seu esforço para voltar ao plano concreto da ação humana por um estudo detalhado das circunstancias materiais. Apesar de seus esforços, permanece especulativa e só preenche imperfeitamente sua função pratica. O fosso traçado entre a liberdade de indiferença e a lei, entre o sujeito e o objeto, separará também a universalidade da lei e a singularidade da ação pessoal, a especulação moral e o agir em sua dimensão pratica.
 
A moral de situação é uma reação contra a moral casuística em nome do sujeito e das exigências de sua liberdade; mas se desenvolve nas próprias perspectivas que presidiram à formação da moral objetiva que ela critica. Também se vê acuada a negar praticamente o caráter universal das leis morais. Só se poderá fornecer uma resposta valida aos problemas colocados pela moral de situação fazendo a critica das bases que ela divide com a moral casuística; as concepções da lei e da liberdade, do singular e do universal que ambas tomam como ponto de partida, devem ser revistas.
 
O juridicismo da moral casuística.
 
O extrinsecismo da moral casuística a conduz ao juridicismo, ao legalismo. A justiça é uma virtude, uma qualidade que afeta a vontade do sujeito e o estabelece em um relacionamento conveniente com outro por intermédio da troca de bens exteriores. O juridicismo é o reino de uma certa justiça que permanece inteiramente exterior ao sujeito e se impõe a ele por um constrangimento moral ou físico, negligenciando sua qualidade de pessoa. A justiça é uma das virtudes morais encarregadas de reger um setor do agir humano. Mas quando o juridicismo penetra na moral, invade-a inteiramente, porque trás consigo uma certa concepção da lei que faz da moral um absoluto. A virtude da justiça comunica um espírito, fortifica a vontade; o juridicismo reclama apenas a observância da letra da lei.
 
No entanto os caracteres particulares da justiça entre as virtudes morais ofereciam à casuística elementos coincidentes com suas perspectivas gerais: a justiça tem por matéria os bens exteriores e por objeto o estabelecimento de uma medida “secundum rem”, fazendo abstração das disposições daquele que age; coloca sobretudo a idéia de obrigação, de “debitum”, diante do sujeito. A casuística se apossou assim da justiça para fazer dela uma espécie de virtude universal e quase única: as outras virtudes, incluindo as virtudes teologais, parecem muitas vezes dever seu valor, para os casuísticos, às obrigações especiais que elas impõem.
 
A moral será pois concebida como um código de leis, aumentado e determinado pela jurisprudência que os moralistas elaboram em suas soluções dos casos de consciência. A moral quase que só exigirá uma observação exterior de suas prescrições ou, ao menos, se contentará facilmente com esse mínimo. Isto é o legalismo.
 
O temor é o sentimento que a moral casuística inspira principalmente  é a expressão, no plano afetivo, da tensão que reina entre a liberdade e a lei. Se a lei é obra de uma vontade estrangeira agindo pela força da obrigação e a ameaça do castigo, só poderá fazer nascer no homem o temor e nunca o amor, pois o amor nasce da percepção de uma harmonia e de um acordo. É revelador que a casuística tenha transformado o tratado da caridade em um estudo da obrigação de amar a Deus e ao próximo e que  chegue a propor questões ridículas como se estamos obrigados a fazer um ato de caridade ao menos uma vez por ano.
 
O individualismo.
 
A liberdade de indiferença produz também o individualismo no plano das relações entre os homens. Notamos o caráter “pontual” dessa liberdade no tempo e na psicologia humana; vamos encontra-lo também no plano da sociedade. A liberdade de indiferença se define pela afirmação de sua independência, tal como um absoluto original, e por isso ela não pode reconhecer nenhum vinculo, anterior à sua decisão, que uniria o homem aos outros homens. Estes representarão para ela liberdades igualmente independentes, constituindo por elas mesmas uma grave ameaça de servidão. A simples existência da liberdade de outro, escapando ao império de sua própria liberdade, põe em questão sua pretensão de absoluto. A sociedade será formada pela justaposição de indivíduos que defendem sua liberdade uns contra os outros e que tendem sempre s se combaterem; ela só poderá subsistir graças a um compromisso, por algum contrato social cujo fim ultimo será sempre a afirmação da liberdade, seja em cada um dos indivíduos que compõem a sociedade, seja em sua hipóstase estatal.
 
O individualismo, que está ligado à liberdade de indiferença, é incontestavelmente uma característica da moral casuística. A realização da salvação individual, a procura do mérito pessoal, compreendida dentro de uma perspectiva egocêntrica, descreve quase sempre o horizonte estreito em que se movimenta sua consideração. Essa moral perdeu o sentido da dimensão social do homem. Concedeu a prioridade à justiça comutativa, que rege as relações entre os indivíduos e fez dela a justiça propriamente dita; relegou a justiça geral para as partes potenciais dessa virtude, apesar da importância de seu objeto que é a organização e a estruturação das sociedades humanas.
 
Mas por uma estranha reviravolta das coisas, esse individualismo acarretou a exclusão da  moral do domínio das relações sociais, daí em diante monopolizada pela política, pela economia, etc. e seu desterro para os estreitos limites da vida dita pessoal. Justo quando ela queria ser puramente objetiva por temor da arbitrariedade do sujeito, a moral se vê afastada do mundo exterior e fechada na interioridade subjetiva.
 
A consciência e o estatismo da moral
 
Em seu papel de arbitro entre a lei e a liberdade, a consciência não exerce nenhum papel ativo ou construtivo em relação ao valor moral; a consciência deve se contentar em definir o que pertence à lei, o que é obrigatório ou permitido. Diante de uma liberdade ativa e dinâmica, representa a lei e seus limites.
 
A moral centrada na consciência será necessariamente estática, uma moral de limites, de fronteiras, de diques e de barreiras; estará sempre na defensiva diante de uma liberdade que se arroga todo o poder de iniciativa. Essa moral só poderia ser modificada por uma hipotética mudança da vontade legislativa; como esta é transcendente, a consciência não pode se dar em conta de tal eventualidade de acordo com o curso normal das coisas. E mesmo se a vontade divina modificasse a lei, a moral não faria mais do que passar de um estado a outro; não se tornaria mais dinâmica.
 
A tentação do mínimo
 
Encarregada de medir com a máxima justiça a obrigação que pesa sobre a liberdade, a consciência se inclinará sempre para o mínimo na moral casuística. A lei é necessariamente universal; a obrigação que edita deverá então ser limitada ao mínimo indispensável e que se possa exigir de todos. Por outro lado, a consciência, que permanece apesar de tudo, uma faculdade do sujeito, terá sempre alguma simpatia para com a liberdade.Os moralistas se preocupam em não sobrecarregarem demais a liberdade e tentarão aliviar tanto quanto possível o fardo da obrigação moral.
 
O que ultrapassa o mínimo requerido será considerado livre e destacado do domínio da moral propriamente dita. Assim se constitui o que se pode chamar a moral do mínimo vital; uma estranha tendência ao mínimo substitui a inclinação ao máximo de perfeição que animava a moral antiga.
 
O extrinsecismo na consciência.
 
O extrinsecismo da moral casuística se comunica à própria consciência. Esta, apesar de sua vontade de ser um testemunho objetivo, permanece uma faculdade do sujeito , que pode se enganar e contradizer a lei, única fonte do valor moral. A consciência também será perseguida por uma duvida secreta que se avivará no curso do exame dos casos variados e difíceis que encontra. Virá procurar uma ajuda e uma garantia de objetividade no exterior, junto de outras consciências de opinião com autoridade, no caso junto a moralistas. É por isso que na moral casuistica o argumento de autoridade adquiriu uma importância desconhecida antigamente e nitidamente desmesurada. Porem, se multiplicando, os autores se dividem e acabam por sustentar,  na maior parte dos assuntos, opiniões diversas, ao ponto de ser possível legitimar não importa qual conduta pela autoridade de um entre eles. Diante das autoridades, a consciência retoma sua duvida. Ainda tenta ultrapassa-la com uma espécie de aritmética das autoridades onde calcula o melhor que pode, o peso de credito necessário para que um ou vários autores possam dar valor moral a uma opinião. Mas o empreendimento fica aleatório e a consciência finalmente não terá mais outro recurso do que se submeter, de olhos fechados, à autoridade da Igreja por uma renuncia de seu julgamento que a Igreja não exige. A Igreja, com efeito, pede que a consciência, apoiada na lei, assuma sua tarefa com segurança e ouse apresentar seu julgamento, quando for preciso, apesar dos riscos de erro.
 
Conclusão.
 
Tais são, nos parece, as principais características da moral casuística, tal a armadura interna que a sustenta, edificada sobre a base da liberdade de indiferença.Cremos ter assim separado os elementos estruturais típicos dessa forma de moral, que ficam muitas vezes escondidos sob o vai e vem das objeções e das respostas, sob a abundancia das considerações, das distinções e contra distinções que dão às obras escolásticas o aspecto de uma floresta inextrincável.
 
Sem duvida não se encontra nenhum desses traços em estado puro em todos os moralistas que seguem essa corrente.  Principalmente os que estão ligados à tradição tomista se esforçam para corrigir certos pontos do sistema que são por demais contrários ao texto do mestre; procuram também conformar o plano de sua moral ao da Suma, acrescentando os tratados negligenciados. O sentido cristão dos autores casuísticos, sua experiência da vida moral, muitas vezes os retém na beira do precipício do sistema, impedindo-os de ir até o fim de sua lógica e permitido-lhes estabelecer, com a ajuda de complementos e de contrapesos, um equilíbrio aceitável entre a lei e a liberdade.  Mas sua posição restará sempre instável, pois a tensão que reina entre esses dois princípios é uma perpetua ameaça para suas construções.
 
Se é indispensável mostrar as insuficiências da moral casuística e descobrir suas causas, seria um grande erro rejeitar em bloco o inteiro conteúdo de sua doutrina, com suas regras, seus princípios e suas prescrições, considerando-as sem valor. A moral casuística se esforçou por defender os valores morais e cristãos em face de uma liberdade que tudo   questionava. Ela errou aceitando como base para sua reflexão a própria liberdade, sem fazer-lhe uma critica mais profunda, sem se perguntar se não se poderia conceber a liberdade humana de outro modo.Convém, pois, distinguir, no edifício da moral casuística, os valores cristãos e humanos o dado tradicional que ela quis conservar e transmitir e as teorias que elaborou. São essas teorias que julgamos insuficientes em nome de uma razão que reflete no seio da fé, e que nos força a acusar  a casuística de ter proporcionado, muitas vezes inconscientemente, uma verdadeira ruptura com a tradição teológica que foi transmitida à Idade Media pelos Padres e que Santo Tomás, em particular, excelentemente exprimiu.
 
Não é uma obra de demolição que queremos realizar, porém uma obra de restauração, como se faz nas velhas igrejas góticas ou românicas para as desembaraçar das adições de duvidoso valor artístico acumulados ao longo dos séculos posteriores e restituir o estilo antigo em sua pureza, sua verdade e seu vigor. Esse termo de restauração pode ser ainda mal compreendido. Não se trata de voltar à Idade Media nem fazer uma moral neo-gotica. Trata-se mais exatamente de reatar, com um dos mais autênticos e mais fortes pensamentos teológicos, um dialogo que nos é indispensável para encontrar os fundamentos sólidos sobre os quais possamos, hoje, edificar uma moral que seja ao mesmo tempo cristã, teológica e moderna.
 
É preciso evitar que, por reação contra uma moral centrada em uma lei autoritária e opressiva, nos deixemos arrastar a reboque de uma liberdade que, sob o pretexto de criar valores morais, torna-se sua corruptora e que não é a autentica liberdade. Ficaríamos então prisioneiros das próprias perspectivas que se pode reprovar à casuística de tê-las por demais aceitado. Ainda assim, ela ao menos teve a coragem de limitar os estragos, de combater como podia pela defesa dos verdadeiros valores morais.
 
B.  A revolução ockhamista.
 
Poderia-se dizer que nossa descrição da moral casuística, engenhosa que seja, não passa de uma dessas construções do espírito que sempre coincidem imperfeitamente com a realidade histórica. No entanto a historia das doutrinas nos trás uma notável confirmação nas teorias de Ockham que marcaram no século XIV uma reviravolta decisiva nas concepções morais. Já encontramos em Ockham, expostas com toda clareza desejável, expressas com um rigor inigualável, as principais posições que vão comandar a moral casuística. A influencia de Ockham foi extraordinária em diversos ramos da teologia e da filosofia; mas não foram ainda suficientemente trazidas à luz as mudanças que ele causou nas idéias morais. Com aquele que foi justamente chamado o “Inceptor”, assistimos a uma verdadeira revolução, se não ao nascimento do espírito da revolução. Ockham consumou, em relação às doutrinas anteriores, uma ruptura que vai desenvolver seus efeitos durante séculos influenciando tanto a filosofia moderna quanto a escolástica. O nominalismo do qual foi o iniciador, modificou os fundamentos  e a atmosfera do pensamento ocidental.
 
Estranho o destino desse franciscano em rebelião contra o papa e pregando, sob o disfarce da defesa de sua Ordem e do Império, um individualismo que iria se impor pouco a pouco e ganhar os próprios moralistas católicos. Ora, Ockham foi adversário do papa João XXII que canonizou Santo Tomás, e foi das obras do Doutor Angélico que esse pontífice retirou as teorias e os argumentos para opor ao Franciscano, infrator banido. A historia apresenta diretamente Ockham e Santo Tomás como campeões de concepções antagônicas.Um dos principais objetos de seu litígio será precisamente a natureza da liberdade; foi principalmente contra Santo Tomás que Ockham construiu sua tese do indeterminismo absoluto da vontade, sua teoria da liberdade de indiferença que vai dominar sua moral5.
 
Aqui estão alguns traços da moral de Ockham que são suficientes para mostrar que ele é realmente o inspirador secreto da moral casuística.
 
Ockham põe a liberdade como um postulado, um fato primeiro da experiência humana; ela é por definição o poder que o homem possui em qualquer momento de se pronunciar por uma ou outra de duas posições contraditórias; ela consiste em uma indeterminação total, uma indiferença da vontade em relação a seus atos.
 
Ockham recusa admitir qualquer inclinação natural da vontade e principalmente a inclinação para o bem e para a beatitude. O homem pode, graças a sua liberdade, recusar o fim ultimo e a beatitude, considerados em geral ou em particular; os próprios bem aventurados gozam dessa liberdade, em uma certa medida (I Sent., qu.1 e IV Sent., qu.14). Para provar essa afirmação, Ockham usa um raciocínio extremamente revelador: a vontade pode se conformar aos preceitos de Deus; ora Deus pode ordenar ao homem odia-lo; logo a vontade criada pode odiar Deus, quer dizer recusar a beatitude. Para Ockham, Deus pode modificar como quiser a lei natural, inclusive o preceito de O amar.
 
Assim fazendo, Ockam rompe o elo fundamental que Santo Tomás põe entre o espírito do homem e Deus e que se exprimia no amor de Deus, no desejo natural da beatitude como fim ultimo. Ele o substitui pela relação da liberdade com o preceito, expressão da vontade divina e a obrigação que daí decorre.  O bem não se define mais pela plenitude do ser, pela perfeição que convém ao homem; ele significa a conformidade dos atos de um ser livre com um preceito exterior. “Fazer o mal é fazer o oposto do que se é obrigado”(II Sent., qu. 4 e 5).
 
Em face da liberdade se levanta a lei  moral, formada pelo conjunto dos preceitos ditados por Deus e que só dependem de sua vontade. O próprio Deus, em sua liberdade absoluta, está acima da lei moral e pode muda-la como quiser. Também é absurdo procurar o porque de um preceito a partir de sua matéria ou de sua finalidade; O preceito é assim porque Deus quis. A lei é pois, perfeitamente exterior à liberdade humana.
 
O valor moral de um homem se define pelos atos que realiza segundo sua liberdade de fazer a qualquer momento o que lhe agrada, como lhe agrada; esses atos são sucessivos e diversos. “Caem como frutinhos isolados tendo cada um seu valor próprio... Os atos caíram cada um com seu contorno fora do comum e sem coordenação.”6Assim se instala a descontinuidade no agir humano.
 
A lei divide os atos humanos em duas categorias: os atos obrigatórios e os outros que são indiferentes; melhor ainda, todo ato exterior é em si indiferente e só se torna bom ou mau se uma vontade de obediência ou de desobediência o assume. A bondade ou a malicia de um ato dependerá unicamente do fato de ser ordenado ou interdito pela lei. Um ato só será verdadeiramente bom se for feito pela vontade expressa de obedecer ao mandamento divino ou a reta razão; só essa intenção tem diretamente valor moral.
 
Ockham formou com um extremo rigor lógico e uma notável penetração as principais noções e as linhas que constituem a armadura intelectual subjacente, não somente à moral casuística, mas a quase toda reflexão moral posterior: a liberdade de indiferença fazendo face a uma lei que é a expressão de uma vontade estrangeira, moralidade definida pela idéia de obrigação, descontinuidade ou “atomização” do agir humano, etc.; só falta na lista das noções características da casuística o termo “consciência”, pois seguindo Santo Tomás, Ockham fala antes de razão pratica; mas isso é mais uma diferença de vocabulário do que de idéia.
 
Vemos assim convergir a reflexão teórica e a historia. Estudamos a estrutura da moral casuística fundada na liberdade da indiferença; acabamos de descobrir o iniciador dessa concepção da moral e ao mesmo tempo o adversário que ele ataca, Santo Tomás. Resta-nos levantar, em face de Ockham e da casuística, o sistema moral tomista, que tentaremos desvencilhar de toda contaminação nominalista e exprimir em sua força original; ele constituirá a melhor e a mais construtiva critica da moral dos casuístas.
 
C.   A concepção tomista da moralidade
 
Não é fácil expor com perfeita fidelidade o pensamento moral de Santo Tomás, de manifestar o equilíbrio exato e a justa proporção dos múltiplos elementos que compõem seu sistema. A principal causa dessa dificuldade está no próprio eco que seu pensamento desperta no nosso, e sua refração em nosso espírito. Falta muitas vezes à nossa inteligência a sensibilidade e a transparência necessárias para reproduzir fielmente as idéias de outra pessoa, principalmente essas de um espírito tão vasto e tão preciso, tão poderoso e ao mesmo tempo tão delicado. O obstáculo mais sério para uma interpretação correta de Santo Tomás é o seguinte: nossa consciência é como que perseguida pela oposição que levantamos, antes de qualquer reflexão, entre o sujeito e objeto, entre nós mesmos e o outro, entre nossa liberdade e nossa razão; nossas reações intelectuais mais espontâneas se acham embaraçadas por essas espécies de categorias “a priori” que formam o fundo de nossas idéias. Ora, temos pela frente um autor cujo pensamento não sofre dessa forma de  traumatismo espiritual, mas que já começa seu trabalho além dessa antinomia, na percepção de uma harmonia espiritual superior que ele se esforça para estender a toda vida do espírito.
 
Se queremos compreender Santo Tomás, devemos nos manter constantemente em guarda, para evitar, lendo-o, colocar cada palavra que ele emprega numa ótica que não é a sua. Beatitude, liberdade, objeto, finalidade, virtude, lei são palavras as quais atribuímos muitas vezes uma significação desviada de seu sentido original, um peso diferente, como se nos não possuíssemos mais o principio de avaliação  necessário para lhes conceder uma medida justa.
 
I.      BEATITUDE E AMIZADE,
 
DUAS BASES DA MORALIDADE TOMISTA.
 
Basta abrir a Suma Teológica para se perceber que a beatitude é um dos elementos principais do sistema moral de Santo Tomás. O tratado da beatitude que abre a “Secunda Pars” não é uma simples preliminar; é mais do que um fundamento prévio da construção. Esse tratado traça a perspectiva geral onde vai se inserir a atividade moral; descreve a linha do cume que domina todo o edifício e sustenta sua armação; tal como duas pedras do alto da  abobada que se correspondem com as extremidades da construção, essa  concepção liga a vontade humana, fonte do agir, à perfeição divina beatificante que é o seu fim ultimo. Assim podemos qualificar a moral tomista de moral da beatitude.
 
Infelizmente se tem sido menos atentos a uma outra noção da moral de Santo Tomás que ocupa um lugar igualmente central, e que nos é necessária para interpretar corretamente o pensamento do santo Doutor no que concerne à beatitude: a noção da amizade da qual se serve, numa visão original e audaciosa, para definir a principal virtude cristã, a caridade. O tratado da caridade completa, com efeito, o tratado da beatitude que corresponde ao movimento da esperança. É indispensável perceber a coordenação desses dois tratados se queremos adquirir uma inteligência exata e completa da moral tomista em suas perspectivas mais profundas.
 
Muito facilmente concebemos o movimento que leva o homem para a beatitude como o efeito de um desejo interesseiro, que penetra no mundo pela ação  para se apoderar dos objetos que ele contem e faze-los servir unicamente à satisfação das necessidades humanas.A beatitude é então representada como a satisfação completa dos desejos do homem, o ponto culminante e o lugar de encontro de todos os sentimentos interesseiros, tanto no nível espiritual como no plano material.
 
Se assim é, o que quer que se faça, não se pode mais fazer concordar o desejo da beatitude com a caridade evangélica, que “não procura seu interesse próprio”, como diz São Paulo, nem mesmo com o senso moral espontâneo que nos faz ligar o desinteresse e a generosidade ao valor moral. Nesse caso, o edifício moral de Santo Tomás ameaça desmoronar; acha-se cortado em duas partes dispares que procuram em vão se reunirem. Seria então melhor voltar a moral da obrigação que, ao menos, tem o mérito de combater o egocentrismo do desejo pela obediência à lei exterior, sem outro motivo, no fim das contas, do que a vontade de fazer a obrigação, de cumprir com seu dever.
 
Uma tal interpretação da noção de beatitude é falsa, porque repousa na opinião de que o desejo da beatitude é necessariamente interesseiro em um homem fechado em sua subjetividade, incapaz de ter para com o outro um sentimento que ultrapassasse a procura da utilidade própria. Essa interpretação é viciada por um pessimismo fundamental em relação ao homem, pois nega um valor diretamente moral a todo desejo que nele nascer.
 
Ora, a amizade, tal como Santo Tomás a descreve, comporta a percepção e a realização da possibilidade para o homem de se abrir espiritualmente ao outro (Deus, os outros homens e em certa medida, todos os seres), de amar a esse outro por ele mesmo ao contrario de um retorno interesseiro para si mesmo; mas ao mesmo tempo ela assegura ao homem a perfeição mais autentica e mais pessoal. Amando o outro por ele mesmo, e reconhecendo-o como sujeito semelhante a si mesmo e digno de amizade, o homem se abre ao outro e, acolhendo nele esse ser e sua perfeição, contribui para sua própria perfeição, pela comunhão das pessoas e um comunidade de perfeições.
 
A amizade nos revela uma perfeição muito diferente da satisfação de necessidades: a amizade se obtém quando se ultrapassa o desejo interesseiro, muitas vezes mesmo combatendo-o; a amizade não suscita a luta do homem contra o homem, mas nasce de sua comunhão no plano pessoal; a amizade é essa própria comunhão. Pode-se dizer que a amizade realiza a síntese entre o desejo da própria perfeição e do amor desinteressado por outro, ultrapassando tudo aquilo que os poderia opor; ela é de uma ordem superior, espiritual. A amizade também é pessoal pois nasce da pessoa, se dirige a uma pessoa e realiza um comunidade de ordem antes de tudo pessoal. A amizade também é por essência diretamente moral (pois, segundo Santo Tomás, um ato é moral porque é voluntário e portanto procede de uma pessoa), a tal ponto que ela pode intervir na definição do valor moral em geral: o bem moral é esse que merece ser amado por si mesmo e que, por esse amor que se lhe dá, realiza a perfeição daquele que o ama. O bem consiste assim ao mesmo tempo na coincidência e na distinção, quer dizer, na comunidade, entre as perfeições daquele que é amado e daquele que ama.
 
Tal comunidade de perfeição é ainda reforçada pelo caráter recíproco da amizade. A amizade convida à reciprocidade, não com um fim interesseiro, como para receber um salário, pois isso seria contrario à sua natureza,mas para crescer e finalizar em sua própria generosidade. Graças a essa reciprocidade, cada um dos amigos quererá a perfeição do outro e a sua própria, não só por uma vontade pessoal, mas pela própria vontade do outro que  fez sua. Não pode haver união mais real, mais forte nem mais pura.
 
A perfeição que realiza no homem a amizade pode ser evidentemente um desejo de sua parte. Não se pode censurar ninguém por desejar a generosidade e o desinteresse que permitem ter acesso à amizade, nem de procurar a caridade. Esse desejo será mesmo o mais profundo e o mais vivaz no coração do homem. Pois ele tem por objeto a mais verdadeira perfeição e a mais intima; esse desejo poderá ser tão puro quanto à perfeição que ele visa, ao menos em seu núcleo central, pois o desejo implica sempre alguma imperfeição. Vemos assim nascer, no interior da amizade, um desejo da perfeição pessoal que está em harmonia com ela, que a prepara e a sustenta, pois é preciso desejar a amizade para obtê-la e os amigos desejam ser sempre mais amigos como dizia Aristóteles. Tal desejo não está fechado no eu pessoal, mas aberto ao outro, graças ao senso de amizade que ele inspira.Como desejo, ele é um movimento “para si”, mas que se coordena com a amizade que realiza a união do “para outro” e do “para si”.
 
Esse desejo, conforme ao amor de amizade, se encontra na origem e no fundo da aspiração do homem à beatitude e permite compreender o primeiro tratado da “Secunda Pars”. Nós nos encontramos aqui em um ponto crucial da interpretação da moral de Santo Tomás, e mesmo da moral simplesmente. Se admitirmos a possibilidade, se compreendemos a natureza de um tal desejo em sua pureza, podemos avançar ousadamente nas vias do sistema tomista. Do contrario, se tropeçamos nessa dificuldade, se duvidamos da verdadeira natureza e do valor moral da amizade e do desejo de perfeição que ela contém, é melhor voltar atrás; é em vão que empreenderemos o estudo da Suma Teológica, pois cada tratado parecerá finalmente levar a um impasse, como em um labirinto do qual não se possui o segredo.
 
O estudo da amizade nos envia ao estudo do desejo da perfeição no homem. O tratado da caridade pressupõe o da beatitude, porque é conveniente estudar o homem em particular antes de estudar a virtude que o une aos outros, nos quais encontramos a mesma natureza humana. Por nossa parte, se fizemos uma volta pela caridade para tornar precisa a noção de beatitude, foi unicamente por causa da especial dificuldade que temos hoje de perceber o valor moral de tal desejo.
 
Beatitude e finalidade.
 
Para Santo Tomás, o elemento principal da beatitude não é o estado de repouso, de satisfação ou de alegria, porém a realidade objetiva que a produz. A primeira questão concernente  à beatitude do homem será a de determinar em que bem ela reside.Depois de passar em revista os diferentes bens possíveis, desde as riquezas até as qualidades espirituais, Santo Tomás demonstra que só Deus é o verdadeiro objeto da beatitude humana e para isso se baseia no desejo natural.
 
Isso significa – é preciso não se equivocar ainda –  que a realização da beatitude comporta a abertura do sujeito ao objeto (no sentido em que se fala do objeto do amor para designar uma pessoa) pelo amor de amizade que lhes permite se unirem sem se corromperem mutuamente. O objeto beatificante não é um instrumento que o homem utiliza para se dar a beatitude; ele é a causa principal e direta da beatitude por sua perfeição própria comunicada ao homem. Esse caráter objetivo é mais manifesto ainda na definição que dele fornece Santo Tomás; opondo-se a uma longa tradição e à escola franciscana, o Doutor Angélico sustentará que a essência da beatitude consiste em um ato da inteligência, isto é da faculdade humana que apreende o objeto: é pela percepção do objeto beatificante, pela visão de Deus, que se estabelece uma perfeita “comunicação” entre  o homem e Deus e que a amizade entre eles é levada a esse ponto de acabamento onde o desejo natural encontra seu termo. Nessa ação suprema, inteligência e vontade, amor de amizade e desejo se conjugam e formam uma unidade indissociável; mas é em volta do objeto beatificante que eles se coordenam.
 
O caráter “objetivo” da noção de fim, que vai de par com a beatitude, é mais marcado ainda. O fim, para Santo Tomás, não é o simples termo de um projeto formado pelo sujeito e variável à sua vontade, o elemento ultimo da projeção intencional. O fim designa antes de tudo uma realidade exercendo um tal atrativo sobre a vontade que a intenção voluntária para nele e ai repousa, sem volta posterior sobre si mesma ou sobre qualquer outro bem. Nesse sentido, só merece ser chamado de fim o que se ama com amizade, o que é amado por si mesmo.
 
É interessante notar que o pensamento cristão, de Santo Agostinho a Santo Tomás, tenha modificado profundamente a concepção aristotélica da finalidade7.Para Aristóteles, o fim era um dos múltiplos elementos do agir; o principal, a seus olhos, não era atingir o fim, porque um acaso podia impedir seu sucesso; era principalmente fazer tudo o que era conveniente para atingi-lo. A perfeição em matéria do agir, fosse a virtude moral ou intelectual, vinha para ele antes da obtenção do fim; a perfeição dependia do homem, senhor de sua ação, mais do que de qualquer fator exterior a ele. Para os autores cristãos, ao contrario, o valor moral vai depender antes de tudo da obtenção efetiva, pelo homem, do fim ultimo, isto é de Deus, fonte de toda perfeição. Ora, querer uma realidade como fim último é ama-la por ela mesma, absolutamente. Assim fazendo, a teologia, entre outras a teologia tomista, não defende simplesmente o contrario da moral aristotélica, como se ela apostasse apenas em Deus com desprezo pelo homem. Santo Tomás assume e ultrapassa ao mesmo tempo Aristóteles; ele toma seus estudos sobre o agir moral, como esse sobre a amizade, e os eleva ao nível de uma teologia que ensina como o homem encontra na amizade divina sua verdadeira perfeição.
 
O caráter “objetivo”das noções de beatitude e de fim que dominam a moral tomista, corresponde à capacidade de abertura para o “objeto”que o amor de amizade concede ao homem. O senso de amor de amizade é pois tão fundamental no homem quanto o objeto desse amor o é à beatitude. Contudo, enquanto o homem fica afastado de Deus, enquanto seu amor por ele é imperfeito, o desejo deverá se juntar ao amor de amizade, nele se inserir para contribuir para seu desabrochar pela ação que suscita. Correlativamente o desejo da beatitude conterá o amor de amizade como o grão contem o germe; dele recebe seu valor moral e sua retidão. Juntos e um pelo outro é que desejo e amor progridem em direção a sua realização.
 
O senso do bem, o desejo da beatitude são indestrutíveis no coração do homem, pois, segundo Santo Tomás, eles decorrem da própria natureza da vontade. A vontade inclina para o bem e foge do mal, ela não pode querer nada que não lhe apareça como bem, tal é o primeiríssimo principio da atividade voluntária. O desejo da beatitude é assim o ponto de partida e a fonte do agir moral ordenado para Deus como seu fim ultimo; mas esse desejo é de um gênero particular, nitidamente diferente dos desejos engendrados pela sensibilidade: ele sai de uma natureza espiritual e aspira a uma perfeição que é da ordem do amor de amizade.
 
Tais são as duas bases que suportam a moral tomista e que substituem a liberdade e a lei: a vontade naturalmente desejosa do bem e a realidade beatificante; o homem na busca da perfeição e Deus, a própria perfeição. Entre a vontade e seu objeto divino, Santo Tomás estabelece uma harmonia e uma correspondência originais: a conveniência que une o desejo e seu objeto e como alicerce desse desejo, essa pré-formação de harmonia perfeita, de união de amizade que é o senso do amor de amizade; então o desejo mais humano é uma sede de amizade. A oposição entre a liberdade e a lei, que minava a moral casuística, se encontra substituída por uma harmonia primitiva, que comunica à moral tomista um sentido de equilíbrio e de medida no ajuste de suas partes, uma serenidade e uma segurança no estudo do agir humano que se procuraria em vão nos moralistas posteriores. Para Santo Tomás, a harmonia é mais profunda que a desordem, a paz mais rica e mais humana do que a angustia, a amizade mais forte do que a discórdia.
 
A harmonia entre a razão pratica e a vontade.
 
A razão pratica está, no sistema tomista, no lugar que ocupa a consciência na moral casuística; Santo Tomás preferiu essa noção, que lhe permitia ligar melhor o agir moral ao organismo aristotélico das faculdades humanas. Quais são as relações da razão pratica com a vontade em busca da beatitude? Vemos ressurgir aqui a hidra do nominalismo. A reflexão ockamiana toma como ponto de apoio a experiência da oposição entre a razão e a liberdade no ato mau. A razão é a interprete da lei diante da liberdade; mas, no pecado, a liberdade recusa obedecer à razão e manifesta assim sua independência fundamental. A luta entre as duas faculdades mostra que são distintas e as separa radicalmente: de um lado, uma liberdade que se determina sem o socorro da razão; de outro, uma razão que não pode penetrar no interior da liberdade e que vai herdar as relações sempre tensas que a lei mantém com essa última. Por mais que se esforcem para interiorizar a lei moral relacionando-a com a razão do homem, verdadeiramente nunca conseguirão,, porque concebeu-se, desde o inicio, a liberdade e a razão como faculdades separadas ou mesmo antagônicas.
 
Daí, a razão se tornará essa faculdade orgulhosa que se deleita na especulação e na elaboração da ciência pura, a mestra severa que dita soberanamente para a vontade as leis e os mandamentos, mas que crê decair se fosse preciso se misturar para formar a ação concreta. A razão reflete no universal, julga, ordena; abandona a execução unicamente para a vontade.Mas acontece que esta não suporta mais o jugo e recusa essa função subalterna, a tal ponto que os papeis são trocados: a vontade se apodera da ação e pretende forma-la sozinha.
 
Para Santo Tomás, a razão e a vontade se encontram unidas desde o principio por vínculos naturais que subsistem até o termo da ação. O bem é uma espécie de verdadeiro e o verdadeiro uma espécie de bem, nos diz ele em sua linguagem metafísica. Isso quer dizer que a razão e a vontade são faculdades complementares e que seus atos estão contidos um no outro. A razão revela o bem à vontade e a vontade ama a verdade como seu bem, pois, dizia Santo Agostinho, ninguém quer ser enganado; a razão é como o olho da vontade que  lhe mostra o objeto amável e lho descobre progressivamente. Como a vontade amaria o bem em si mesmo se ela não o conhecesse naquilo que ele é, em sua verdade? O amor, que é o ato próprio da vontade, reclama, por sua própria natureza, a luz da razão.
 
O julgamento da razão pratica não se limita a juntar os textos da lei e comenta-los; vai mais longe que a consciência e penetra na ação para a formar em conjunção com a intenção voluntária. O julgamento pratico é tão inseparável da escolha voluntária quanto a direção de um veiculo e seu movimento.
 
Mais precisamente, o julgamento pratico assume como maior primeira e preliminar a inclinação da vontade à beatitude e se encontra atravessado desde o começo pelo dinamismo voluntário.É porque a vontade possui o senso do bem e lho comunica, que a razão pode fazer uma idéia dele e julga-lo com conhecimento de causa. O julgamento pratico se desenvolve em seguida em conexão tão estreita com o movimento voluntário que a escolha poderá ser chamada igualmente, segundo Aristóteles, uma escolha julgada ou um julgamento escolhido. O pecado não será unicamente obra da liberdade se insurgindo contra a razão; ele conterá, ao mesmo tempo, um erro da razão e uma depravação da vontade.
 
A razão julga portanto a ação voluntária, não por uma lei e conclusões abstratas, mas no final de contas em nome da inclinação para o bem que forneceu o principio supremo da moral, segundo Santo Tomás. Quando a razão condena a vontade, é em nome da própria vontade e daquilo que ela tem de mais profundo; mas a razão baterá no peito sua própria culpa, pois o pecado é também obra do julgamento pratico. O pecado contém uma contrariedade da razão em relação à razão, da vontade para com a vontade, do homem para com ele próprio.
 
Notemos enfim que a razão não se contenta, para dirigi-la, em fornecer à vontade planos que bastaria aplicar. É em sua colaboração com a vontade, à medida que se desenvolve a ação, que a razão procura, descobre e muitas vezes inventa a linha a seguir, os traços que formarão a face moral particular de obra comum de ambas.
II. A CONCEPÇÃO TOMISTA DA LIBERDADE
 
E SUAS CONSEQUENCIAS NA MORAL.
 
Vimos como a liberdade dita de indiferença comanda as principais características da moral casuística; após a exposição dos fundamentos da moral tomista, nos resta mostrar qual a idéia da liberdade que nos propõe Santo Tomás e quais são suas conseqüências para sua moral.
 
Antes, no entanto, para ajudar nossa reflexão lhe oferecendo um exemplo cômodo, examinaremos como a liberdade humana aparece em certas ações que, sem pertencerem diretamente a ordem moral, dela estão bem próximas para terem traços comuns com a ação moral. Quando se quer aprender uma arte, a música, por exemplo, procura-se um professor para tomar lições. O mestre não se contenta em ensinar as regras de sua arte, ele faz o aluno aplicá-las com exercícios repetidos, de dificuldade crescente. À força de exercício, as capacidades musicais do aluno se fortalecem e se desenvolvem progressivamente; ele toma gosto por essa arte e em breve sentirá prazer em executar trechos que, no começo, lhe custavam muito esforço. Se perseverar, chegará a tocar convenientemente as obras que quiser, e mesmo, se tiver inspiração, poderá compor novas obras. O talento musical, que antes estava fechado no aluno, como numa crisálida, desabrochou graças ao exercício, ao esforço perseverante e a uma direção inteligente.
 
Nessa atividade da ordem artística se exerce efetivamente a liberdade humana. Como ela aí aparece? No começo, o aluno pensava talvez que a liberdade residia no poder de tocar as notas como quisesse no piano, segundo a inspiração do momento e fora de qualquer regra e mando. Mas descobre logo uma outra liberdade, mais real; o poder adquirido pelo exercício, de tocar com perfeição todas as obras que quiser, de exprimir à vontade pela musica os sentimentos que experimenta. A primeira liberdade se opõe à regra como a seu contrário; não se preocupa com as faltas, mas é incapaz de evitá-las; é caprichosa e variada; todos possuem essa liberdade. A segunda liberdade não é dada a todos, mas se adquire pela aplicação das regras e pela luta contra as faltas; está inscrita na linha de um esforço contínuo e concede um poder durável para agir com perfeição e de criar novas obras, como uma planta que chega à maturidade dá seus frutos.
 
Tomemos um outro exemplo. Para aprende uma língua estrangeira, é indispensável estudar as regras de sua gramática e exercitar pacientemente seu uso. Falando uma língua, podemos evidentemente brincar de dispor as palavras na frase sem ordem e a despeito das regras; mas usando dessa liberdade, garantida tanto aos ignorantes como aos instruídos, arriscamos não sermos compreendidos. A verdadeira liberdade, nesse domínio, é o resultado de um esforço perseverante de assimilação da gramática e do vocabulário de uma língua; ela reside no poder de exprimir aquilo que se quer, de dizê-lo bem e sem erro; essa liberdade atinge seu cume na arte oratória, na arte de escrever, na poesia, etc.
 
Em toda atividade artística e mesmo em todas as profissões encontram-se essas duas espécies de liberdades, uma oposta, a outra conforme às regras; uma pretendendo agir a sua vontade, a outra se preparando pacientemente para agir com perfeição. No plano moral, a primeira liberdade corresponde à liberdade de indiferença, com o poder de escolher entre dois contrários, a favor ou contra a razão, que se exprime na regra; tal liberdade se afirma manifestando sua independência em relação à regra, até negar sua validade; está permanentemente  presente no homem e pode mudar de uma instante para o outro.
 
A segunda forma de liberdade é a que iremos expor em seus traços principais, e que se encontra na moral de Santo Tomás. Vamos chamá-la de liberdade da perfeição para distinguí-la da liberdade de indiferença.
 
Vamos deixar esclarecido que, de acordo com a linguagem atual, daremos às vezes ao termo liberdade um sentido mais largo do que o de Santo Tomás, para designar a totalidade concreta formada pela razão, a vontade e o livre arbítrio em exercício.
 
A liberdade e a inclinação natural para o bem.
 
O ponto de distinção mais radical entre a liberdade de indiferença do tipo nominalista e a liberdade tomista é o enraizamento dessa última na inclinação natural para o bem. Para Ockham, a liberdade é, em sua essência, faculdade dos contrários e ponto de partida absoluto da ação; para Santo Tomás, é inicialmente inclinação para o bem. Para Ockham, a liberdade precede a razão e a vontade; para Santo Tomás, ela se enxerta nessas duas faculdades.
 
O leitor moderno não é favorável, de saída, a uma opinião que funda a liberdade sobre a natureza. Ele está acostumado a opor esses dois conceitos e a definir a liberdade precisamente por sua independência em relação ao determinismo natural. A oposição entre a liberdade e a natureza tornou-se como um axioma do pensamento filosófico.
 
Ora, para Santo Tomás, e os próprios tomistas esquecem, a noção de natureza é analógica e adquire um sentido diferente no plano físico e no plano espiritual. A natureza física determina inteiramente o movimento que ela faz nascer; a natureza espiritual é tal que longe de contrariar a liberdade limitando-a, é sua causa e principio. O homem não é livre apesar de sua inclinação natural para o bem, mas por causa dela. Não devemos nos representar essa inclinação seguindo o modelo das tendências físicas ou sensíveis; ela é de uma outra ordem que é preciso descobrir. É no coração da experiência de nossa própria liberdade, na fonte de nossos quereres íntimos, que podemos discernir qual é essa inclinação, qual é essa natureza que nos torna livres e constitui nossa vontade.Isso requer uma certa perspicácia, porque essa inclinação nunca se manifesta em estado puro; acompanha sempre uma escolha livre na ação concreta sujeita à nossa experiência; nessa ação, ela é a fonte e a origem. Infelizmente, nossa linguagem não nos fornece termos aptos para designar adequadamente as realidades espirituais no que as distingue das realidades sensíveis. Para os dois planos, é preciso usar as mesmas palavras, com o risco de criar equívocos se não apreendemos seu caráter analógico.
 
Para ajudar a descobrir o que é essa inclinação natural para o bem, podemos compara-la ao talento no domínio artístico. Ninguém vai pretender que o talento, sendo um dom natural, entrave a liberdade de um artista. O ideal na arte é justamente atingir o natural e não se aprecia uma obra aonde se sinta o artifício e seja produzida por um esforço que não inspirado pelo o senso da beleza. A vontade tende, ela também, para o “natural”, no plano moral, para o bem, para a perfeição. É graças a esse seu senso intimo do bem que a vontade pode se tornar livre na criação de seus atos.
 
Quando se experimenta uma inclinação para alguém, não se tem tampouco o sentimento de estar sendo forçado, nem de perder sua liberdade. Não se sente logo uma alegria, uma felicidade, que são os sinais de um desabrochar intimo? O amor, que faz nascer tal inclinação, não é o inspirador das artes, o sustentáculo da liberdade criativa? Foi algum dia possível realizar uma ação de valor sem alguma inclinação?
 
A inclinação natural da vontade é desse gênero. Ela é gerada pelo amor do bem; inspira e sustenta a liberdade em seu esforço para produzir ações morais de valor conformes a esse amor primeiro. Merece ser chamada natural porque é a fonte mais profunda e mais pura da espontaneidade, do “natural” no homem.
 
A liberdade não se funda pois na faculdade que a vontade teria de ficar indiferente diante dos bens que lhe são oferecidos. Porque possui o senso natural do bem, a vontade esta interessada em todos os bens que lhe aparecem como tal; mas permanece livre diante deles, por causa de seu desejo secreto de um bem que ultrapassa tudo aquilo que é parcial e limitado. É livre, não porque pode ficar insensível, mas porque, se todos os bens podem move-la, ela pode ultrapassa-los graças ao atrativo de um bem superior.
 
A liberdade que quer se definir pela indiferença chega pouco a pouco a só se interessar por sua própria afirmação diante do mundo e a negar até a possibilidade do amor e qualquer interesse espontâneo por outra coisa que não por si mesma, pois a indiferença é o verdadeiro oposto do amor. Ao contrario, a liberdade fundada sobre o senso natural do bem se afirma desde o começo como  capacidade de amar e  coloca o amor de amizade, que é o amor propriamente dito, como um fato primitivo, um ato direto e primeiro que manifesta sua verdadeira natureza.
 
A liberdade, o bem e a perfeição.
 
A inclinação natural para o bem permite repartir os atos humanos entre a liberdade e a regra moral de modo bem diferente da moral casuística. Se a liberdade tende espontaneamente para o bem, os atos humanos poderão pertencer ao mesmo tempo à liberdade e ao bem, bem que se exprime na lei, a regra moral, pela razão. Não há mais separação entre os atos livres que escapam à lei e os atos obrigatórios. Se a vontade ama o bem, livremente agirá bem, e esse ato lhe pertencerá tanto quanto à lei. Vontade, liberdade, bem, lei se coordenam uns aos outros e procuram se harmonizar entre si.
 
A noção de bem também se transforma. O bem não é mais simplesmente o que é permitido pela lei; ele se define como o objeto da inclinação mais profunda do espírito humano, pelas noções de perfeição e de plenitude. A própria liberdade tende para a sua perfeição; esforça-se para obter esse poder de agir com perfeição quando quiser, que é seu próprio desabrochar.
 
Se a liberdade se ordena espontaneamente para a perfeição, não limitará mais a atividade moral à observação de um mínimo prescrito; ela própria visará o máximo  possível, como o artista possuído do amor de sua arte desdenha a obra medíocre e consagra seu esforço à perseguição da perfeição que entrevê.
 
Convém notar também o caráter inovador da perfeição de que estamos falando. A perfeição do ato humano não se limita à realização minuciosa de um plano estabelecido de antemão, à observância de leis que seria suficiente aplicar materialmente à conduta, como um bom aluno faz seu dever segundo as indicações do professor. A verdadeira perfeição tem sempre um caráter de novidade que atrai e que surpreende, correspondendo ao que se desejava secretamente; ela espanta por sua própria justeza, por uma conformidade superior ao ideal moral indicado pelas regras. Uma pintura de acordo com os cânones de uma escola de arte será um trabalho meritório mas que se qualificará de acadêmico porque lhe falta originalidade, personalidade; a verdadeira perfeição merece o louvor e suscita o entusiasmo porque ela descobre uma beleza desconhecida e corresponde ao mesmo tempo a esse gosto do belo que é natural no homem.Estamos gravemente equivocados em relação à perfeição moral. Se a perfeição consiste na simples obediência a leis fixadas uma vez por todas, parece que se poderia de antemão imaginar exatamente e prever com toda certeza o que faria o homem virtuoso. Ora, haveria algo mais tedioso do que uma conduta e uma perfeição sempre assim previsíveis? Somente a liberdade desprezando as regras e as leis seria então capaz de introduzir novidade e surpresa na vida humana. Esse é o modo de ver que convém à liberdade de indiferença.
 
A perfeição moral autentica é bem outra; ela é conforme às regras morais mas as ultrapassa por um jorro saído da própria fonte da regra, e bastante poderoso para renovar aquilo mesmo que se acreditava para sempre envelhecido.Ademais, as leis e as regras são outra coisa alem de um esforço da razão para conservar e explorar as riquezas produzidas pelos jorros do espírito? Sem duvida uma aplicação estreita das regras pode sufocar o espírito; mas o desprezo das regras seguramente também o enfraquece e o extingue.
 
Liberdade aberta e “compreensiva”.
 
Se a liberdade está enraizada em uma vontade animada pelo senso do amor de amizade, ela se abrirá espontaneamente para o real em todas as suas dimensões. Longe de se opor ao mundo exterior em um esforço de separação, de dominação, de destruição ou de escravidão, a liberdade se desenvolverá no sentido de uma colaboração, de uma comunhão com o que a cerca. Sem duvida seu crescimento não será sempre pacifico; deverá às vezes afirmar sua independência em relação ao mundo e ao outro, segundo um movimento dialético que pode ser violento; mas seu desenvolvimento ficará sempre orientado interiormente pelo desejo de uma amizade superior.
 
A liberdade de indiferença é uma liberdade fechada, que se fecha nela mesmo para afirmar sua superioridade e salvaguardar sua independência; nós a chamávamos “pontual”, porque ela se mantém como um ponto no tempo e no espaço psicológico humano. A liberdade de perfeição é uma liberdade aberta, que qualificaremos de “compreensiva” porque procura compreender, assumir em si o ser e a ação daquilo que não é ela, sem deixar de respeita-los. Esse caráter “compreensivo” da liberdade de perfeição se manifesta em três planos: o da dimensão temporal, o da sensibilidade e do corpo e enfim o das relações com a sociedade.
 
Uma liberdade que dura.
 
Todo aprendizado exige uma ação perseverante em uma linha determinada. O desenvolvimento da liberdade moral pede, ele também, tempo e esforço durável orientado para a perfeição. A virtude, que é o fruto desse esforço e como que a maturidade da liberdade, é ela própria uma disposição estável, que garante a tenacidade e a constância  necessárias para realizar obras perfeitas.
 
Se pois a liberdade se aperfeiçoa pelo exercício prolongado do bem agir, se pela virtude seu poder se fortifica e se consolida é porque ela é capaz de durar. Ao contrario da liberdade da indiferença, que reside inteiramente no instante, a liberdade de perfeição reúne em si, no momento de agir, o passado do homem para formar com ele o presente e construir o futuro que começa. É uma liberdade que dura, que integra a duração à sua própria substancia.
 
Para assegurar essa continuidade temporal, a liberdade deve perseverar em um a linha de ação determinada. Esse é o poder que lhe acordam os “habitus” e as virtudes; costuma-se dizer também que eles determinam o agir voluntário. Mas vemos aqui renascer a obsessão do determinismo natural. Como uma ação pode ainda ser livre se é determinada em um certo sentido por uma virtude?Não se diz que a virtude é uma segunda natureza, que age “modo naturæ”, de um modo que parece o do determinismo natural?
 
Responderemos que a determinação do agir pela virtude é, apesar das semelhanças, muito diferente do determinismo que se encontra nas naturezas que não são livres porque, longe de ser um fator exterior que diminuiria o caráter voluntário da ação, a virtude é obra e uma realização completa da vontade livre; é a própria vontade que adquiriu toda a sua força. Quando se fala de um homem dotado de uma vontade determinada, não se que dizer que ele é forçado a agir de uma certa forma, mas que possui uma vontade forte, capaz de seguir seu caminho e de se impor apesar dos obstáculos. É nesse sentido que a virtude determina a vontade: ela lhe dá determinação; ao mesmo tempo fortifica e esclarece a vontade.
 
Pode-se do mesmo modo dizer que o talento de um  verdadeiro artista determina sua atividade, porque se pode estar certo de antemão que ele representará, que cantará, que falará de modo notável; é por essa razão que seu nome atrai multidões. Mas essa determinação não é absolutamente contraria à liberdade, à criatividade porque ela permite justamente prever que a obra será nova e corresponderá à espectativa da curiosidade. Da mesma forma a virtude determina a vontade em relação à perfeição moral; assim se pode esperar que o homem virtuoso aja perfeitamente; é o que lhe atrai a confiança.Mas ao mesmo tempo, pode-se estar certo de que a sua ação virtuosa surpreenderá por seu valor; ela é como uma criação do homem virtuoso que somente ele é capaz de imaginar e de realizar. É pois muito lógico que Santo Tomás seja levado a conceder um lugar de primeiro plano às virtudes que constituem o elemento durável e que consolida a conduta humana; as virtudes estão na origem dos atos particulares e os orientam para a perfeição moral. Elas fornecerão a divisão da parte mais especial da moral contida na “Secunda Secundæ”.
 
Liberdade e finalidade
 
Se a liberdade pode agir de modo durável, se o tempo lhe é necessário para produzir sua obra, a finalidade deverá ter um papel preponderante na ação moral. Para a liberdade da indiferença o fim só pode ter um valor acessório, já que cada um de seus atos é independente dos outros. Para a liberdade de perfeição, o fim traça o caminho por onde o homem progride em direção ao valor moral com a ajuda de seus atos, como fosse passo a passo. O fim estabelece entre os atos um vinculo que decorre da própria essência da moralidade porque os une à fonte da perfeição. Assim, desde suas primeiras obras e ao contrario de seus predecessores,  Santo Tomás concede um papel de primeiro plano à finalidade entre os elementos do agir moral. Ele fará a “Secunda Pars” da Suma Teológica começar pelo estudo da finalidade, indicando claramente que a considera como fundamental; introduzirá a menção do fim na definição do ato voluntário e lhe dará uma prioridade sobre a matéria do ato no estabelecimento da moralidade, da qual será o elemento formal8.
 
Assim, pois, o fim exerce a função de principio unificador em relação à multiplicidade dos atos particulares. O fim os reúne em uma totalidade organizada, onde cada um adquire; no tempo, sua duração e seu alcance.
 
Além disso, a finalidade garante a profundidade do agir humano. Em baixo de uma casca visível formada pela matéria de cada ato, a finalidade cava caminhos por onde circulará a seiva das intenções profundas, que assegura a lenta maturação das ações  de valor.  Para a liberdade de indiferença, ao contrario, um ato não pode conter nada além da decisão instantânea que surge na superfície como uma centelha de luz em uma tela. Somos então  conduzidos ou a reduzir o agir a um puro fenômeno sem espessura, sem interioridade  ou a cindi-lo em duas partes: de um lado o fenômeno que se pode ver, de outro o númeno, o mistério da decisão livre, que é inútil querer esclarecer e compreender.
 
A liberdade da sensibilidade
 
A liberdade, segundo Santo Tomás, é também “compreensiva” em relação à sensibilidade e em conseqüência ao corpo. Apesar da instabilidade das paixões e de uma tradição ascética que vê sobretudo nas paixões os inimigos da vida moral, Santo Tomás permanece otimista quanto à sensibilidade e sustenta que ela pode contribuir eficazmente para a perfeição do homem. Ao contrario da opinião franciscana, ele concede à sensibilidade o poder de ser a sede das virtudes morais da força e da temperança; estabelece uma colaboração estreita, no plano das virtudes, entre a razão, a vontade, a sensibilidade e o corpo. Está ai, na ordem do agir, a aplicação da tese da unicidade da alma humana; ela põe um elo natural entre a alma e o corpo, entre suas respectivas faculdades. Essa unidade é mais profunda  e mais firme  do que os conflitos que podem se produzir entre esses elementos do homem; quaisquer que sejam os desvios das paixões, a submissão à razão e à vontade permanece natural na sensibilidade. A virtude moral toma para assento esse elo natural, o desenvolve e o fortalece.
 
Para Santo Tomás, o valor moral não se obtém apenas pelo esforço da liberdade e apenas pelo desprezo da sensibilidade, mas pela luta contra os seus desregramentos; ela deve ser a obra do homem inteiro. Graças à virtude, a liberdade assume a sensibilidade, a forma e a educa para que ela possa colaborar eficazmente na edificação de uma obra que lhe é superior.
 
Esse modo de ver, tem conseqüências principalmente para a doutrina do matrimonio. Santo Tomás desde as Sentenças, rompe com uma longa tradição  que considerava a sexualidade fundamentalmente corrompida pelo pecado original; para ser legitimo, o uso do casamento tinha necessidade de “justificativas” que são os “bens” do matrimonio: fidelidade, prole e sacramento. Para Santo Tomás, a união conjugal é boa em si, como obra de uma inclinação natural; também pode ter valor moral e tornar-se meritória. A sexualidade não é mais, portanto, o contrario vergonhoso do espírito e da liberdade no homem, que a moral deve combater a todo transe; é uma parte da natureza humana que é preciso integrar no organismo das virtudes sob a égide da temperança. A liberdade tomista é bem “compreensiva” do homem em sua totalidade.
 
A posição de Santo Tomás em relação à sensibilidade tem nuances e visa sempre produzir uma harmonia entre ela e as faculdades espirituais. A virtude não reside na sujeição da sensibilidade aos duros imperativos de uma razão pura e de uma vontade autoritária; está ainda mais afastada de um naturalismo fácil, que procura legitimar em nome de uma espontaneidade superficial, os impulsos da paixão, as velhacarias da imaginação. A virtude é um domínio da imaginação e da sensibilidade, por meio de uma razão que vê mais justo e mais longe do que os sentidos e os dirige com sabedoria, por uma vontade, por um amor e um desejo mais profundos, mais duráveis e suficientemente poderosos para comunicar seu impulso ao homem inteiro.
 
A liberdade e a sociedade
 
Entre as inclinações naturais do homem, Santo Tomás menciona, no plano de seu ser espiritual a inclinação de viver em sociedade. Se a liberdade contem tal inclinação, poderá formar e manter com outras liberdades relações bem  diferentes das que inspira a liberdade de indiferença. Sobre esse plano se manifestam claramente os caracteres “aberto” e “fechado” dessas duas espécies de liberdades.
 
A liberdade de indiferença se apresenta como uma espécie de absoluto que  seria o constitutivo radical da individualidade. Ela assegura sua supremacia reduzindo o mundo a seu serviço até à escravidão; afirma sua independência pela recusa de se submeter a quem quer que seja, indo até à revolta violenta. As outras liberdades que ela se representa à sua imagem, lhe aparecem como inimigas que  ameaçam sujeita-la e que é preciso dominar se quiser ficar autônoma. A liberdade de indiferença é assim lançada numa dialética sem fim do senhor e do escravo, da conquista e da revolta. O homem torna-se um lobo para o homem, e cada consciência procura devorar a outra. A sociedade só pode se fundar em um compromisso que  as liberdades se vêem forçadas a subscrever para poder sobreviver a essa guerra que parece natural. Concluem contratos sociais de diversas formas assegurando entre elas uma coexistência pacifica. Mas a sociedade assim criada é uma obra artificial e pode se chamado antinatural, porque reúne em seu seio forças naturalmente antagônicas. Entre a sociedade e o individuo se estabelece uma tensão irredutível, que faz perpetuamente oscilar as idéias políticas entre o individualismo anárquico e o absolutismo comunitário.
 
Inteiramente ao contrario, a liberdade de perfeição, graças ao senso de amor de amizade que possui, procura espontaneamente se por de acordo com as outras liberdades e a atar com elas esse elo de harmonia que Aristóteles chamava “philia”, que Santo Tomás chama amizade, que pode se estender e se diversificar segundo as múltiplas formas de comunidades humanas: a família, o Estado, como também a amizade pessoal. Sem dúvida a necessidade que os homens têm  uns dos outros para suprir suas necessidades fornece a razão  a mais obvia das formações da sociedade; mas esse motivo utilitário se  enraíza e se completa em uma necessidade de uma outra ordem , o desejo de amizade dos outros homens, que dá às suas relações uma qualidade e um valor propriamente humanos. A sociedade encontra assim seu primeiro fundamento na natureza espiritual do homem, no senso do outro e da amizade que é a fonte da liberdade.
 
Por ai, a moral tomista oferece à reflexão política, no sentido antigo do termo, uma base muito sólida: a amizade natural do homem pelo homem, onde se reencontra o otimismo essencial que inspira essa moral. As relações do homem  com a sociedade serão, nessa perspectiva, tão afastadas do individualismo que considera a sociedade e a autoridade como inimigos  ou ao menos, com um mal necessário, que do autoritarismo que tende a sujeitar o individuo e a suprimir, entre a autoridade suprema e seus súditos, os graus intermediários que dividem seu poder. A concepção tomista da sociedade se caracteriza primeiramente pela procura da unidade sob a forma de um bem comum seguido por todos como fim ultimo, nessa ordem, e que seja verdadeiramente o bem de todos, permitindo a cada um  chegar a uma perfeição superior à que teria podido alcançar sozinho. Mas, ao mesmo tempo, essa concepção respeita a multiplicidade; mantém a diversidade das funções e a especificidade própria de cada grau da hierarquia dos poderes e dos organismos da comunidade; o bem comum como fim ultimo não suprime, mas exige, ao contrario, a procura dos fins segundos e subordinados. O tomismo se esforça para inculcar em todos os membros da sociedade essa “philia”, esse espírito de amizade que deve ser o cimento psicológico dela.
 
No entanto não nos iludamos; se o homem recebeu o germe precioso do senso da amizade, está incumbido de desenvolve-lo e faze-lo frutificar e a tarefa é árdua. É preciso sustentar lutas, vencer mal-entendidos, ultrapassar fraquezas, experimentar fracassos , recusar compromissos ilusórios e passar por uma longa e às vezes desorientadora dialética das relações  e dos sentimentos humanos; mas o ideal subsiste no coração do homem, no final das contas, o único que vale nas suas relações com os outros: a amizade do homem pelo homem.
 
Pode-se aplicar essas vistas no plano dessa sociedade especial que é a Igreja e dizer que a moral tomista não tem nenhuma dificuldade em ser plenamente eclesiástica. Com efeito, a “philia”, a amizade oferece uma base natural para a caridade que deve servir de ligação entre as diversas partes do corpo que é a Igreja. Também nesse domínio a posição tomista ultrapassa o individualismo, o particularismo e o autocratismo clerical. Somente uma caridade “amigável” permite realizar a harmonia entre o bem, a função de cada cristão e o progresso do conjunto da comunidade eclesiástica, entre a iniciativa pessoal e o poder hierárquico, pois suscita em cada membro da Igreja um interesse e um devotamento ativos, tais que cada um experimenta como seu próprio o bem ou o mal que advenham aos outros membros. Não se pode elaborar uma teologia sólida da caridade e da Igreja se não se criticar e ultrapassar a concepção nominalista da liberdade e da moral, pois não basta usar freqüentemente o termo caridade, comunidade, Igreja para resolver tais  problemas.
 
Esse modo de ver tem evidentemente suas conseqüências para a concepção da virtude da justiça. Onde a moral casuística limitava praticamente o papel da justiça às relações entre os indivíduos, Santo Tomás põe na frente a justiça geral, que regula as relações dos homens no seio da sociedade e preside à formação de suas comunidades. A seus olhos a justiça geral representará diante das virtudes naturais um papel análogo ao da caridade para com todo o organismo das virtudes: fixa o fim ultimo nessa ordem e torna-se como  que a forma das virtudes naturais.
 
A liberdade e os objetos.
 
A liberdade de perfeição estabelece relações especiais entre o sujeito e o objeto, que permitem ultrapassar o subjetivismo e o objetivismo entre os quais oscilam as morais de inspiração nominalista. Se a liberdade de perfeição é capaz de apreender e amar em si e por si o objeto que a ela se apresenta, saberá fazer a distinção entre as diferentes categorias de objetos e lhes conceder o gênero de amor que convém à natureza de cada um: a amizade propriamente dita para as pessoas, o interesse pela coisas úteis e também um certo respeito pelos valores mais altos que podem conter ou representar.Essa liberdade não fará do mundo uma “coisa”; não o fará um puro objeto, um simples instrumento do sujeito; porque o objeto para ela não é o contrario do sujeito, como seu inimigo ou seu escravo; ele é posto diante do sujeito, oferecido a seu conhecimento e a seu amor, para formar com ele uma certa comunidade  de perfeição.
 
A moral tomista não merece a censura de ser objetivista como se pode dizer da moral casuística. Não faz do valor moral uma espécie de atributo do objeto que lhe daria poder sobre o sujeito pela obrigação e o subjugaria em parte. O objeto só se torna um bem se for para o sujeito, se mantiver com ele uma relação de conveniência; mas é por si mesmo que ele o é. O objeto atrai o sujeito para uma espécie de amizade, de amor, sob suas diferentes formas, amor que é no entanto o sentimento mais “subjetivo” possível.
 
Entretanto essa moral não conduz ao subjetivismo quando põe o sujeito humano como fonte do valor moral, quando afirma a equivalência entre ato voluntário e ato moral e atribui o primeiro lugar à intenção e à finalidade no estabelecimento da moralidade; esta moral mantém o valor do objeto no seu “em si”, em nome da própria perfeição do sujeito. É por isso que, quando se quer ficar fiel a essa moral, é preciso reconhecer ao objeto do ato exterior, à sua matéria, um valor moral distinto daquele que o fim dá; esse objeto não pode ser confundido com o objeto do ato interior, com a intenção,, mesmo se é assumido por ela na relação de finalidade.
 
Para compreender a posição de Santo Tomás em face a esse problema, é preciso dar aos termos “objeto” e “sujeito” um indício de significação que não nos é habitual. Não se deve conceber esses termos como elementos irredutivelmente antagônicos, mas, ultrapassando os movimentos dialéticos que de fato podem opô-los, é preciso admitir entre eles uma harmonia mais profunda, que tende a se realizar pouco a pouco através das vicissitudes da vida do espírito. Então se explica o aparente “objetivismo” do pensamento tomista, onde o sujeito parece se apagar inteiramente diante dos objetos que estuda. Sem dúvida essa predominância do objeto é uma característica da forma do espírito de Santo Tomás, como da mentalidade do século XIII; mas o sujeito humano não está ausente desse pensamento; apenas aparece de outra maneira do que entre os pensadores modernos que, opondo sujeito e objeto, devem por essa razão produzi-los como pressupostos de seus escritos e debater continuamente suas relações. Quando Santo Tomás fala de um objeto, não pensa no contrario de um sujeito, mas no que ele é para o sujeito, para seu principio de perfeição. No seu espírito, sujeito e objeto se implicam mutuamente como elementos correlatos, de tal modo que, quando ele fala de um não sente necessidade de mencionar o outro. É preciso mesmo dizer que, nessa perspectiva, quanto mais o pensamento se faz  objetivo, quer dizer, verdadeiro e puro, melhor permite ao sujeito entrar com ele em comunhão perfeita.
 
Na obra de Santo Tomás, o sujeito se manifesta pela força, originalidade, audácia de um pensamento que renova quase todos os problemas que aborda. Quando se segue a gênese do pensamento de Santo Tomás, quando se o compara com suas fontes, com a doutrina adquirida da época, percebe-se como uma marca dágua da obra, um sujeito, uma personalidade  humana de uma capacidade extraordinária.
 
A obrigação moral
 
Depois de ter exposto os principais elementos da moral tomista, falta dizer o lugar que nela ocupam a obrigação e a lei.
 
Apesar da moral tomista não fazer da obrigação o princípio e o centro do universo moral, ela mantém firmemente seu valor. Ela não a considera como um fato primitivo, como um principio que se sustenta por si mesmo; ela lhe assegura um fundamento distinto pertencente à natureza espiritual do homem: este será o senso de amor de amizade com o  qual se coordena o desejo da beatitude.
 
O sentimento de obrigação moral é constituído pela percepção direta da imposição do ser-outro sobre a vontade livre e as exigências que ele impõe à ação pessoal. Esse sentimento pressupõe a capacidade de perceber o ser exterior em sua alteridade e correlativamente em sua relação com o homem como “ego”. A raiz disso é o senso do outro que dá nascimento ao amor de amizade e se desenvolve na amizade. A obrigação moral repousa pois sobre o senso do amor de amizade natural ao espírito humano, seu poder de amar o “ser-outro” em si e por si.
 
O caráter absoluto que se concede à obrigação moral tira sua origem do sentimento de que o ser-outro não é relativo a nós mas tem valor em si, do senso misterioso de absoluto do ser divino, que ultrapassa os seres particulares e reúne em si todo o ser como em sua origem transcendente. Esse sentimento é moral, porque ele nos atinge em nosso fundo pessoal, na fonte de nossa ação própria, porque nos toca nesse senso da perfeição e do bem que é nossa própria vontade, porque, enfim, ele contem a percepção do caráter pessoal ou espiritual de ser-outro e especialmente de Deus.
 
Por outro lado como vimos, o senso de amor de amizade tem necessidade do desejo do bem e da perfeição para se desenvolver; deve tomar como fim o bem perfeito que realiza a beatitude. Em conseqüência, a obrigação moral receberá igualmente como fundamento da ordenação do homem para a beatitude como seu fim ultimo, ou o desejo natural dessa beatitude. A obrigação moral torna-se assim a ajuda e o sustentáculo desse desejo primordial dessa finalidade ultima.
 
Submetendo a obrigação moral ao desejo da beatitude, não  lhe tiramos seu caráter absoluto; não a fazemos depender de uma condição incerta como seria a hipótese: se desejas a beatitude, então tu deves... O desejo da beatitude não é hipotético para Santo Tomás, como é par Ockam; é, se ousarmos empregar esse termo a seu respeito, categórico: o homem não pode se impedir de procurar a beatitude e esse desejo se encontra mesmo no pecado que persegue também um bem, porém puramente aparente. O primeiríssimo preceito do agir moral: “bonum est faciendum”, digamos: “bonum est desiderandum”, é, em sua raiz intransgressivel; exprime a lei natural da vontade.
 
A obrigação moral repousa pois, do lado de seu objeto, sobre o senso do absoluto do ser, em sua alteridade e do lado do sujeito humano, sobre o senso da beatitude e do bem, natural à vontade. No entanto a relação estabelecida entre a vontade e o bem pela obrigação fica imperfeita e parcial. Só comporta um aspecto da relação moral completa que a “amizade”realiza. A obrigação indica sobretudo o império que exercem sobre a vontade o bem e a lei, como fatores que lhe são exteriores; a obrigação marca a dualidade entre a lei e a vontade e não sua unidade. Nessa etapa, a resposta da vontade permanece imperfeita, porque só obedece ainda forçada e não por sua própria iniciativa: não agiria assim sem a obrigação.
 
 Essa imperfeição não é devida a um limite ou uma impotência do bem, mas antes à fraqueza da vontade, à sua incapacidade de conhecer e amar perfeitamente o bem desde o começo da vida moral. A vontade humana tem necessidade de uma educação que lhe ensine as vias do bem e a ajude a percorre-los. Nesse nível, onde ela não pode conhecer claramente, nem amar eficazmente  o bem para agir por ela mesma com perfeição, a vontade tem necessidade de que o bem a mova pela força de uma autoridade que se impõe do exterior, que obrigue. A obrigação caracteriza a primeira etapa do desenvolvimento moral que se poderá chamar a idade da infância moral. À medida que a vontade progride para o bem, o caráter constrangedor da obrigação se atenua, até que uma espécie de conversão se realize, assegurando a passagem da obediência obrigatória ao amor pessoal, que é o apanágio da idade adulta no plano moral. O amor não suprime a obrigação; ele mantém e fortifica o laço entre o bem e a vontade que é essencial na obrigação; somente faz desaparecer o constrangimento e a exterioridade que ela comportava, a tensão que ela engendrava.
 
Notemos, para evitar qualquer equivoco, que o amor do bem não é o resultado de uma interiorização material da obrigação moral que teria pouco a pouco impregnado a vontade ao ponto de substitui-la; penetrando até no inconsciente, a obrigação teria tão profundamente invadido a personalidade do homem que este  acreditaria ainda fazer prova de iniciativa, quando teria se tornado escravo de uma vontade estrangeira. Tal amor do bem seria mais uma perversão do que uma perfeição da personalidade moral porque destruiria na realidade a vontade e a liberdade.
 
Mas o amor do bem não é o puro resultado da obediência à obrigação; é anterior, como o germe está escondido na semente que não pode sem ele se desenvolver e produzir seus frutos; ele lhe é superior porque só se acede do estado de obrigação ao do amor por uma ultrapassagem que é obra da vontade pessoal, onde ela reconhece no bem o objeto amável que já procurava através da obrigação sem ainda distingui-lo, e se lança então para ele por sua própria iniciativa. A obrigação não é a causa eficiente do amor do bem, mas ajuda-o a se formar; ela é a educadora dele.
 
A lei moral
 
Não podemos expor aqui com detalhes a concepção tomista da lei; basta fazer um esboço dos traços que a distinguem da concepção casuística.
 
A lei não é, para Santo Tomás, a adversária da liberdade, pois a seus olhos ela não é a simples expressão de uma vontade estrangeira; é principalmente a obra da razão. Por um lado, conhecendo o verdadeiro bem, ou mais precisamente o bem comum e supremo e, de outro, a inclinação natural da vontade para o bem em geral, a razão se esforça em estabelecer entre eles a relação mais justa, a que melhor se ordena para essa comunidade na perfeição que é o acabamento do agir moral; a lei é a expressão dessa ordenação. A lei é portanto um principio  de harmonia entre o bem e a vontade; tem por função, por ordem no agir voluntário; é a medianeira do bem em relação à vontade, em proveito da própria vontade. A lei não diminui, nem limita verdadeiramente a liberdade; seu fim é aperfeiçoa-la. A lei não merece nem a desconfiança nem a hostilidade, mas a confiança, porque é a obra da sabedoria legisladora e não de uma autoridade dominadora.
 
Apesar de reger a ordem moral, a lei não é o principio primeiro da moralidade, pois é o resultado de um julgamento pratico que recebe sua maior inicial na inclinação da vontade para o bem, ou se se quiser, na predominância natural do bem sobre a vontade.
 
A idéia tomista da lei é mais ampla do que a da casuística, que fica ligada à obrigação. Sem duvida, principalmente no plano da sociedade civil, a lei possui um poder de coerção, pois tem em vista diretamente o bem comum que pode ter exigências diferentes das do bem particular e pedir sacrifícios que ninguém faria por vontade própria. Se o bem comum e o bem particular podem se opor parcialmente e dar lugar a conflitos, permanecem no entanto, essencialmente coordenados. O caráter constrangedor da obrigação legal não destroi a coordenação primitiva entre a vontade particular e a lei. Em conseqüência, se a idéia de harmonia é mais essencial à noção de lei que a idéia de obrigação, poder-se-ia falar de lei onde mesmo a obrigação e a repressão tivessem desaparecido, onde só restasse uma obra de sabedoria. Se é verdade que o amor aperfeiçoa a liberdade e lhe faz ultrapassar a obrigação, mesmo nesse plano elevado se encontrará ainda uma certa lei que será a expressão de uma sabedoria superior se aliando à espontaneidade do amor.
 
Conclusão.
 
Vamos concluir essa nota sobre a moralidade segundo Santo Tomás reunindo os resultados de nossa pesquisa. Santo Tomás admite praticamente a equivalência entre o ato voluntário e o ato moral; pode faz-lo porque existe a seus olhos, uma harmonia primitiva entre a vontade e o bem, uma inclinação natural da vontade que subsiste apesar das faltas e dos vícios. A partir dessa inclinação, podemos encontrar todos os elementos que intervêm na moralidade: o bem que é seu objeto e a causa de sua perfeição, a lei que ordena a ação para o bem, a obrigação que a lei impõe, o amor para com o bem, a obediência para com a lei, enfim a razão que forma a lei e rege o agir juntamente com a vontade.
 
Contudo, precisamos  que o desejo natural do bem, no homem, está enraizado em um senso do amor de amizade que permite amar o bem por si mesmo, de sorte que a perfeição possuída pelo bem e aquela do homem coincidem e se realizam uma pela outra.  O bem se define como o que merece ser amado em si e que, por conseqüência, vale ser desejado pela vontade como sua verdadeira perfeição. A moralidade reside na própria essência do agir voluntário, na sua relação natural com o bem. Mas lembremos que se trata aqui de uma natureza espiritual que, como tal, longe de se opor à liberdade, ela a causa e a sustenta. Capacidade de amar o bem por si mesmo, desejo espontâneo do bem como principio de perfeição, tais são os dois esquemas que dominam e inspiram a concepção tomista da moralidade.
 
No entanto, se quisermos ir até o fundo do problema da moralidade, é preciso levar em consideração a natureza dos diversos bens, dos diferentes seres, e seguir até o fim a linha que eles traçam ao mesmo tempo em direção a sua origem e em direção a seu termo. Na sua procura do bem e do ser, o homem é levado pouco a pouco à descoberta do Ser e do Bem absolutos, que dão ao problema moral sua dimensão ultima. A experiência do Ser divino (quaisquer que sejam suas modalidades, de que não tratamos aqui) é de um tipo particularíssimo; revela os fundamentos absolutamente primitivos da moralidade e descobre as etapas do movimento dialético que pode conduzir o homem para o Bem perfeito.
 
Quando um homem conhece e ama um outro homem, permanece ele mesmo em face desse homem e continua a perceber sua própria alteridade no seio da união amigável. Em face de Deus, o homem percebe que seu ser próprio, que sua própria personalidade espiritual se aniquila de alguma maneira diante desse ser absoluto do qual recebeu, do qual recebe ainda a existência. Diante de Deus, parece ao homem que o peso de ser que lhe permite se por em face dos outros seres, lhe escapa e passa para o lado de Deus. A alteridade de Deus em relação ao homem será a mais extrema, pois o homem experimenta que por si mesmo não possui nenhum fundamento sobre o qual pudesse repousar uma proporção qualquer de si em Deus; mas, ao mesmo tempo, a unidade entre eles é a mais estreita, pois Deus atinge o homem até em sua existência e seu ser intimo. O amor de amizade e o desejo de perfeição são então a matéria de uma espécie de deslumbramento. O amor para com Deus é levado a um ponto tal que o homem ama exclusivamente a Deus, mais do que a si mesmo e isso com toda a espontaneidade, porque ele vê em Deus a fonte dessa natureza espiritual que o torna capaz de amar. Ao mesmo tempo, o desejo da perfeição encontra um fundamento novo na vontade divina, criadora dessa natureza e do desejo que engendra. Esses movimentos terminam em uma amizade de um gênero único, onde o homem ama a Deus por acima de tudo e em toda verdade, onde Deus impele o homem, se assim se pode dizer, a deseja-lo e a amá-lo.
 
A formação de uma tal amizade necessita da parte do homem um aprendizado das relações com Deus, onde se pode distinguir três etapas caracterizadas pela predominância de um dos componentes dessa amizade. Na primeira etapa predomina o desejo da perfeição moral procurada através e a propósito dos seres que, no mundo, encaminham o homem para Deus. Em seguida, descobrindo Deus nele mesmo, o homem percebe ao mesmo tempo, qual é sua alteridade, sua transcendência e sua amabilidade absoluta; ele se sente chamado a amar a Deus acima de tudo e para realizar tal amor se inclina a tudo sacrificar por Deus, até a sua alma, como diz o Evangelho, e até seu desejo naquilo que tem de egocêntrico; é a etapa da purificação do amor. Na terceira etapa, o amor de Deus, experimentado, tornado autêntico, reproduz de alguma maneira, o ato criador e  restitui ao homem seu ser espiritual diante de Deus, com seu desejo de perfeição agora já retificado; entre o homem e Deus se estabelecem laços de uma amizade, da qual a caridade sobrenatural é a plena realização.
 
É evidentemente nessas relações entre o homem e Deus que o caráter absoluto, comumente reconhecido como obrigação moral, encontra seu ultimo fundamento; mas uma teoria moral centrada na idéia de obrigação e na liberdade de indiferença, não pode se dar conta disso; ela tem que se contentar em reconhecer o fato da obrigação na experiência moral. Alem do mais não pode lhe dar toda a sua dimensão, pois o conhecimento do Ser divino encaminha o homem para alem do sentimento de obrigação, que é como a percepção da pressão de Deus sobre o homem, encaminha-o para o amor de Deus e para a sua amizade.
 
E assim, naturalmente, encontramos, no termo de nosso estudo da moralidade, o primeiro dos mandamentos divinos e nos concederão  que o segundo se segue logo. A teoria de Santo Tomás concernente à moralidade, terminando por demonstrar a primazia e o caráter central do amor de Deus, parece-nos, portanto, mais de acordo com o Evangelho e à experiência cristã do que uma teoria centrada sobre a idéia de obrigação e que chega a só considerar na caridade as obrigações que ela comporta.
 

 

  1. 1. Cf. H. Reiner, Weisen und Grund der sittlichen Verbindlichkeit (obligatio) bei Thomas von Aquin, em “Sein und Ethos”, Mainz,1963,ps.236 e seguintes, e nossa resposta, ibid, ps. 267 e seguintes.
  2. 2. Cf. J. Azor, s.j., Institutes Morales, Paris, 1602 Essa obra é conhecida como iniciadora dos manuais modernos de teologia moral.
  3. 3. Cf. B.M. Merkelbach, o .p., Que lugar determinar para o tratado da consciência? in RSPT 12 (1923), p.170-183.
  4. 4. Encontrar-se-á uma expressão dessa limitação da liberdade ao instante presente, que a faz recusar todo compromisso, em Lês Mots de J. -P. Sartre: “Tornei-me um traidor e assim permaneci. Eu me ponho inteiro em tudo que empreendo, dou-me sem reserva ao trabalho, à cólera, à amizade em um instante me renegarei, eu o sei, eu o quero e me traio já, em plena paixão, pelo pressentimento alegre de minha futura traição”.
  5. 5. Cf. G. de Lagarde, Naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen Age. VI: Okham, la Morale et le Droit, Paris, 1946, p.72, nota 50.
  6. 6. G. de Lagarde, op.cit.,ps.46-47.
  7. 7. Cf. E. Gilson, L’esprit de la philosophie médievale, Paris, 1948, ps.336-338; R. Holte, Beatitude et Sagesse, Paris,1962.
  8. 8. Cf. o capitulo por nós consagrado ao “papel do fim na ação moral segundo Santo Tomás”, em Lê Renouveau de la Morale, Paris, 1964.
AdaptiveThemes