Por três vezes a Encíclica se refere à visibilidade da Igreja. Logo ao princípio, explicando a metáfora “Corpo”, ensina que a Igreja é por essência visível e condena os erros do protestantismo antigo. (E. 34, 3 e 25). Mais adiante, ao tratar da “Cabeça” do corpo eclesiástico inculca que, sem prejuízo do governo invisível de Cristo, é a Igreja governada visivelmente pelo Papa e pelos Bispos (E. 43, 37). Enfim, aclarando o qualificativo “místico”, completa a doutrina sobre a essência da Igreja e de novo se refere à visibilidade, condenando desta feita a oposição moderna entre a Igreja da caridade (invisível e divina) e a Igreja jurídica (visível e humana) (E. 54, 30).
É de notar que a nossa Encíclica, ao fixar essa verdade de fé, cita dois trechos da Encíclica de Leão XIII Satis cognitum e por duas outras vezes se refere ao mesmo documento. Procuremos pois explicar Pio por Leão; venha o “Lumen in cœlo” aclarar a doutrina do “Pastor angelicus”. Leão XIII serve-se de dois pontos de referência para esclarecer a doutrina da Igreja: a nossa pessoa humana; a pessoa divina de Cristo.
Dois princípios ou elementos constituem a pessoa humana; um, interno, espiritual, invisível: a alma; o outro externo, material, visível: o corpo. Assim, se atentarmos no fim supremo que colima e nas causas mais íntimas de sua santidade, será a Igreja de certo espiritual; mas se considerarmos ao contrário os membros que a compõem e os meios que nos encaminham até os dons espirituais, ela será externa e necessariamente invisível. Ora, assim como é impossível reduzir o homem apenas ao corpo ou apenas à alma, antes a pessoa humana requer, para ser constituída, a estreita conjunção de ambos; assim também é essencial à constituição da Igreja unirem-se estreitamente o elemento espiritual e o material, porquanto ela nem é um cadáver nem um puro espírito, senão o Corpo de Cristo, dotado de vida sobrenatural. Prosseguindo, Leão XIII mostra como na contextura da Igreja o elemento interno, invisível e o externo, visível, se encontram entremeados, sem que seja possível separá-los.
A missão espiritual de ensinar, os Apóstolos só a puderam exercer por meio das palavras e atos que os sentidos percebiam. A voz exterior, escutada pelo ouvido, gerou a fé no íntimo das almas.Por sua vez a fé, imanente ao espírito, deve transparecer pela profissão externa. Nada mais interior ao homem que a graça, fonte de santidade; todavia, os meios normais e principais pelos quais ela se comunica são exteriores, a saber os sacramentos administrados segundo determinados ritos, por ministros adrede escolhidos. Enfim, Jesus Cristo encarregou os Apóstolos e seus sucessores perpétuos de instruir e reger os povos; a esses pediu que lhes acolhessem os ensinamentos e lhes obedecessem ao governo; nunca esses laços mútuos de direitos e de deveres se poderiam ter formado e mantido sem o recurso aos sentidos, intérpretes e mensageiros da realidade. Motivo pelo qual as Sagradas Letras tão freqüentemente rezam ser a Igreja um Corpo, o Corpo de Cristo.
Por ser Corpo, ela é visível; por ser Corpo de Cristo, ela é viva, atuosa, vegeta. Guarda-a e sustenta-a Jesus Cristo pela virtude que lhe influi; bem assim nutre e faz frutificar as vides da cepa que unidas lhe permanecem. Como nos seres animados, o princípio da vida, invisível e escondido, se traduz e manifesta no exterior pelo movimento e pela ação dos membros, assim na Igreja o princípio de vida sobrenatural se patenteia pelos atos que ele dele dimanam.
Essa última frase de Leão XIII põe a descoberto o âmago da questão: está em jogo a visibilidade da Igreja precisamente como organismo sobrenatural. Que ela seja visível, nos homens de carne e osso que a integram, é por demais evidente para ser negado; também é visível a existência dum corpo social dotado de instituições jurídicas, morais, litúrgicas, denominado “Igreja Católica”. O que está em jogo é a visibilidade da Igreja enquanto divina, instituição sobrenatural fundada por Cristo. Afirma a doutrina católica que essa visibilidade é essencial à Igreja, lhe é nativa, pois pertence-lhe à própria constituição.Nossa alma enquanto espírito é invisível, todavia enquanto encarnada, ela se manifesta, transparece, se torna visível através das atividades do corpo por ela promovidas. Não só distinguimos o corpo animado do corpo inanimado ou cadáver; mas ainda quantos pensamentos, por vezes mui recônditos, percebemos através de simples atitudes corporais? Um sorriso, um olhar, um bater de pálpebras, podem ser mais reveladores do que um fluxo de palavras. Semelhantemente, o aspecto sobrenatural da Igreja é, em si, de todo invisível, porque “a Deus nunca ninguém o viu” (Jo, I, 18). Sem embargo, esse sobrenatural não reside, incomunicável, num santuário misterioso e inatingível; ele anima as atividades visíveis da Igreja. O poder de santificar, espiritual e invisível, manifesta-se exteriormente pelos ritos sacramentais e pelo culto; o poder espiritual e invisível de iluminar as inteligências com a doutrina revela-se extremamente pela pregação; o poder espiritual e invisível de reger as almas patenteia-se externamente pelas instituições jurídico-sociais. Desde os mais primitivos tempos, pregadores e apologetas apontaram a constância dos mártires, a pureza das virgens, a caridade dos fiéis, quais sinais visíveis da seiva invisível que animava o Corpo Místico; e o Concílio Vaticano, estatuindo que a Igreja é um milagre permanente, ensinou que a vida visível da Igreja manifesta-se como realidade divina, já que o milagre mostra “como com o dedo de Deus a missão sobrenatural e o sobrenatural múnus da Igreja” (E, 41, 34).
O dogma da visibilidade essencial da Igrejanão significa — como caluniam os protestantes — que para os católicos o principal seja a parte exterior, por exemplo: a estrutura jurídica. Afirmar a visibilidade essencial do homem não é manter que o principal no homem seja o corpo. Segundo a doutrina católica o elemento espiritual é primário na Igreja, como é primário no homem;no entanto, como a alma, invisível em si, se revela através do corpo que ela organiza, faz viver, crescer, e multiplicar-se, assim o sobrenatural, invisível em si, se revela na Igreja pelas manifestações da vida cristã que da graça dimanam e se expressam nas atividades do corpo eclesiástico. Aliás, tendo Deus decretado salvarem-se os homens pela Igreja, tornava-se imprescindível que eles pudessem discernir, com certeza, onde está a Igreja precisamente enquanto meio de salvação.
À pessoa humana como termo de comparação adita Leão XIII, na citada Encíclica, a pessoa de Cristo subsistindo em duas naturezas: a divina invisível, a humana visível. Símile mais adaptado, por ser Cristo exemplar da Igreja (E. 47, 7; 49, 23; 54, 25). Assim como — ensina Leão XIII — Cristo não é todo, se nele só se considera a natureza humana e visível (segundo queriam os fotinianos e nestorianos) ou só a natureza divina (como o queriam os monofisitas), antes Cristo é uno, constituído por duas naturezas e subsistindo em duas naturezas, uma visível e outra invisível; assim também a verdadeira Igreja não é o Corpo Místico de Cristo, senão porque aquilo que nela há de visível deriva a sua natureza própria, a sua força e a sua vida dos dons sobrenaturais. Leão XIII condena, em conseqüência, tanto o erro do protestantismo, que faz da Igreja evanescer num mistério inacessível; quanto o erro do naturalismo, que na Igreja só percebe o lado exterior, louvando-lhe embora a força de coesão social ou a virtude educativa. “Laboram em profundo e pernicioso erro, sentencia o Pontífice, os que fantasiam uma Igreja abscôndita e irreconhecível, como também os que a consideram apenas qual instituição humana, regida por forte disciplina e provida de ritos externos, não porém enriquecida pelo constante afluxo de graça divina, nem dotada de sinais, atestando, aberta e cotidianamente, que a Igreja haure a sua vida do mesmo Deus”.
Novo erro seria contudo imaginar que esses “sinais”, embora de meridiana clareza, suprimam a fé. Absolutamente não. “Creio na Santa Igreja Católica”, professamos no Símbolo. A Igreja é um mistério de fé. Os sinais evidenciam tão-somente que o mistério da Igreja merece certamente a nossa fé; são “notas de credibilidade”, dizem os teólogos, entendendo por aí que aquilo que da Igreja vemos, torna evidentemente crível o que dela não vemos. A evidência vem pois desabrochar num ato de fé. A vida sobrenatural que, interna e abscôndita, anima a Igreja revela-se no exterior apenas o bastante para que todo homem, procurando com intenção reta, veja claramente que ali existe algo de milagroso. Constatar a intervenção divina, entretanto, não é ainda entender o sobrenatural; devemos aceitá-lo, crê-lo. A visibilidade essencial da Igreja não suprime a fé, justifica-a, fundamentando-a os israelitas de vontade reta, ao presenciarem os milagres de Jesus, exclamava: “Um grande profeta surgiu entre nós e Deus visitou seu povo” (Lc. 7, 16). Mas, se o milagre tornava crível a afirmação de Jesus que Ele era Filho de Deus, em compensação não fazia de modo algum penetrar os arcanos dessa filiação divina. Por isso mesmo, era ela crível: objeto de fé e não de ciência. O mesmo, proporcionalmente, pode-se dizer da Igreja, prolongamento de Cristo. Na bela expressão de um grande eclesiólogo: “A Igreja é a morada viva, é o Corpo quase diáfano de um Deus escondido e incompreensível”.
Como do oceano apenas avistamos a superfície que os ventos agitam, e a nós escapam as profundezas abismais que as ondas recobrem, assim na Igreja o mistério transparecendo ao exterior é pouca coisa, pouquíssima mesmo, em face das riquezas incompreensíveis de Cristo que se recatam no íntimo, e que só a fé atinge obscuramente. Reflitamos nos prodígios que a cada instante opera o Espírito Santo — Alma incriada da Igreja — nos invioláveis refolhos dos corações.
(Cap. de O Corpo Místico. Publicado originalmente como artigo na Revista Eclesiástica Brasileira)