O sétimo discute–se assim, – Parece que o terem os religiosos bens comuns diminui a perfeição de uma religião.
1. – Pois, diz o Senhor: Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá–o aos pobres; por onde é claro que privar–se das riquezas temporais é próprio da perfeição da vida cristã, Ora, os que têm bens comuns não se privam das riquezas temporais. Logo, parece que de nenhum modo atingem à perfeição da vida cristã.
2. Demais. – A perfeição dos conselhos exige a isenção dos cuidados temporais; por isso O Apóstolo nos seus conselhos concernentes à virgindade, diz: Quero que vós vivais sem inquietação. Ora, são inquietações da vida presente o reservarmo–nos certas coisas, para o futuro; inquietações essas que o Senhor proíbe aos seus discípulos, quando diz: Não andeis inquietos pelo dia de amanhã. Logo, parece que ter bens comuns diminui a perfeição da vida cristã.
3. Demais. – As riquezas comuns de algum modo pertencem a cada um dos membros da comunidade. Por isso, falando de certos, diz Jerónimo: São mais ricos, monges, do que o foram, seculares; possuem, discípulos de Cristo pobre, riquezas que não possuíam quando viviam usufruindo as riquezas do diabo; a Igreja se condói da riqueza desses, que eram mendigos quando viviam para o mundo. Ora, o ter um religioso riquezas próprias é contrário à perfeição religiosa. Logo, também lhe é contrário a ela o terem os religiosos bens em comum.
4. Demais. – Gregório narra, que um certo varão santíssimo, Isaac, como os discípulos humildemente lhe insinuavam aceitasse, para o uso do mosteiro, os bens que lhe ofereciam, solicito guarda da sua pobreza, respondeu–lhes com a maior firmeza: O monge que busca as riquezas da terra não é verdadeiro monge. E isso se entende dos bens comuns, que lhe eram oferecidos para o uso geral do mosteiro. Logo, parece que o terem os religiosos algum bem em comum é contrário à perfeição religiosa.
5. Demais. – Quando o Senhor ensinou aos discípulos a perfeição religiosa, disse–lhes: Não possuais ouro nem prata nem tragais dinheiro nas vossas cintas. Querendo com essas palavras, como adverte Jerônimo, condenar uns filósofos chamados vulgarmente bactroperitas, que, contemplores do século e tendo–lhe todos os bens em nenhuma conta, levavam consigo as suas provisões. Logo, parece que diminuem a perfeição da religião os religiosos que reservam quaisquer bens para si, em particular ou em comum.
Mas, em contrário, Próspero (Juliano Pomério) diz: Está bastante claramente indicado que o religioso não deve, como particular e por amor à perfeição religiosa, ter nada de próprio; mas que pode a Igreja sem nenhum impedimento para a perfeição, possuir bens, para uso, sem dúvida, da comunidade.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, a perfeição não consiste essencialmente na pobreza, mas em seguir a Cristo, como o diz Jerônimo, comentando o Evangelho: Porque não basta abandonar tudo, Pedro acrescenta – e te seguimos – o que exprime a perfeição. Pois, a pobreza é como o instrumento ou exercício para chegar à perfeição. Donde o dizer o Abade Moisés: Os jejuns, as vigílias, a meditação nas Escrituras, a nudez e a privação de todos os bens não constituem a perfeição, sendo apenas os instrumentos dela.
Ora, a privação de todos os bens ou a pobreza é o instrumento da perfeição, porque, excluindo as riquezas, elimina certos obstáculos à caridade. E estes sobretudo são três. – O primeiro, os cuidados que acompanham as riquezas. Por isso o Senhor diz: O que recebeu a semente entre espinhos este é o que ouve a palavra; porém os cuidados dês te mundo e o engano das riquezas sufocam a palavra. – O segundo é o amor das riquezas, que aumenta com as riquezas já possuídas. Por isso diz Jerônimo, que por ser difícil de se desprezarem as riquezas possuídas, o Senhor não disse – é impossível os ricos entrarem no reino dos céus – mas – é difícil. – O terceiro é a vanglória ou a soberba, filha da riqueza, conforme aquilo da Escritura: Aos que confiam nas suas forças e se gloriam na multidão das suas riquezas.
Ora, desses três obstáculos, o primeiro não pode separar–se totalmente da riqueza, quer grande quer pequena. Pois, é forçoso seja o homem de certo modo solícito em adquirir ou conservar os bens externos. Mas, se esses bens forem buscados ou conservados só em pequena quantidade, o quanto bastem a uma vida simples, essa solicitude não é um grande obstáculo. E por isso não repugna à perfeição da vida cristã. Pois, não proíbe o Senhor toda solicitude, mas só a supérflua e a nociva. Por isso, àquilo do Evangelho – Não andeis cuidadosos da vida que comereis – observa Agostinho: Não diz que tais causas não se busquem, na medida em que o exige a necessidade, mas que não se faça delas o principal, de novo a se praticar, por amor delas, o que é ordenado, para pregar o Evangelho. Quanto à posse de abundantes riquezas, elas produzem maiores cuidados, que absorvem demasiado a alma do homem impedindo–a de se dar totalmente ao serviço de Deus. – Quanto aos outros dois obstáculos, a saber, o amor das riquezas e o orgulho e o vangloriar–se delas, só resultam eles das riquezas abundantes.
Mas, nesta matéria, há diferença entre o serem as riquezas abundantes ou moderadas possuídas em particular ou em comum. Pois, os cuidados empregados com as riquezas próprias derivam do amor de si, com que cada um temporalmente a si mesmo se ama; ao passo que os cuidados empregados com as coisas comuns resultam do amor da caridade, que não busca os seus próprios interesses, mas tem em vista o bem da comunidade. E como a religião se ordena à perfeição da caridade, aperfeiçoada pelo amor de Deus até o ponto de nos desprezarmos a nós mesmos, o ter o religioso bens próprios repugna à perfeição religiosa. Mas, cuidar aos bem da comunidade pode–o ele fazer, pela caridade; embora isso também possa impedir o ato de uma caridade mais elevada, a saber, a da contemplação divina ou da instrução do próximo.
Donde, é claro que ter em comuns riquezas superabundantes, quer em bens móveis, quer em imóveis; é um impedimento à perfeição, embora de todo não a exclua. Mas, ter bens exteriores em comum, quer móveis, quer imóveis, o quanto baste ao simples sustento da vida, não impede a perfeição religiosa, se considerarmos a pobreza relativamente ao fim comum das religiões, que é vacar ao serviço divino.
Mas, se a considerarmos relativamente aos fins especiais das religiões, então, pressuposto um desses fins, a pobreza se acomodará mais ou menos a uma determinada religião. E tanto mais perfeita será a pobreza de uma religião, quanto mais for aquela proporcionada ao fim desta. Pois, como é manifesto, para as obras externas e corporais da vida ativa, o homem precisa de muitos bens materiais; ao contrário, de pouco precisa a vida contemplativa. Por isso, o Filósofo diz, que uma vida ativa precisa de muitas causas, e de tanto mais quanto maiores e melhores forem os atos; ao contrário, o especulativo nenhuma necessidade tem de tais causas para a sua vida, mas só do necessário precisa, sendo tudo o mais obstáculo à especulação. Por onde, é claro que a religião ordenada às ações materiais da vida ativa, por exemplo, à milícia ou a dar hospitalidade, seria imperfeita desprovida das riquezas comuns. Mas, as religiões ordenadas à vida contemplativa tanto mais perfeitas são quanto, pela sua pobreza, têm menores solicitudes com as causas temporais. Pois, tanto mais a solicitude com as causas temporais é um obstáculo à religião, quanto maior é a solicitude com os bens espirituais, que a vida religiosa requer. Ora, é manifesto, que maior solicitude com os bens espirituais exige a religião instituída para a contemplação e para distribuir aos outros os frutos desta, pela doutrina e pela pregação, que a religião instituída só para a contemplação. Por onde, a primeira deve praticar uma pobreza tal que exija um mínimo de solicitude.
Ora, como é manifesto, causa um mínimo de solicitude conservar as causas necessárias ao uso humano, quando elas são procuradas em tempo oportuno. Por isso, aos três graus supra referidos de religiões corresponde um tríplice grau de pobreza. – Assim, as religiões ordenadas aos atos corporais da vida ativa devem ter abundância de riquezas comuns. – As ordenadas porém à contemplação devem ter, antes, bens em quantidade moderada; salvo se os seus religiosos, por si mesmos ou por meio de outrem, deverem simultaneamente com a vida contemplativa dar hospitalidade ou socorrer os pobres. – Quanto às religiões ordenadas a distribuir os frutos da contemplação, essas devem ter uma vida de todo isenta das solicitudes externas. E isso se lhes torna possível se os seus religiosos conservarem o necessário à vida, buscado em tempo oportuno. Tal o ensinou o Senhor, instituidor da pobreza, com o seu exemplo; pois, tinha uma bolsa confiada a Judas, na qual se guardava o que lhe ofereciam, como se lê no Evangelho. – Nem obsta o que diz Jerônimo: Quem quiser objetar – como Judas levava o dinheiro na bolsa, responderemos, porque reputava injusto o Senhor aplicar em seu proveito o bem dos pobres, isto é, pagando com ele o tributo. Porque entre esses pobres estavam sobretudo os seus discípulos, com as necessidades dos quais era gasto o dinheiro das bolsas de Cristo. Assim, diz o Evangelho: Os seus discípulos tinham ido à cidade a comprar mantimento. E noutro lugar, diz que os discípulos, como Judas era o que tinha a bolsa, cuidavam que lhes dissera Jesus: compra as coisas que havemos mister para o dia da festa; ou que desse alguma coisa aos pobres.
Por onde é claro, que guardar dinheiro ou quaisquer outras cousas comuns destinadas ao sustento dos religiosos de uma mesma congregação ou de quaisquer outros pobres, é conforme à perfeição que Cristo com o seu exemplo ensinou. E assim, também os discípulos, depois da Ressurreição, que foram a origem de todas as religiões, conservaram o preço por que venderam as suas terras e distribuíam–nos por todos segundo a necessidade que cada um tinha.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como dissemos, pelas palavras citadas do Senhor não se entende seja a pobreza em si mesma uma perfeição, mas só o instrumento desta. E é mesmo, como mostrámos, o mínimo dos três instrumentos principais da perfeição; pois, o voto de continência tem preeminência sobre o da pobreza e o da obediência, sobre ambos. Ora, como um instrumento não é buscado como um fim, mas usado como um meio, não é o que com ele fazemos tanto melhor quanto maior ele for, mas, quanto mais proporcionado ao fim. Assim como não cura um médico tanto melhor quanto mais remédio dá, mas, quanto mais o remédio for proporcionado à doença. Por onde, não há de necessariamente ser tanto mais perfeita uma religião quanto maior pobreza exigir, mas, quanto _ mais essa pobreza for proporcionada ao fim comum e especial. E ainda concedido que o excesso de pobreza tornasse uma religião mais perfeita por isso mesmo que é mais pobre, nem por isso a tornaria mais perfeita absolutamente falando. Pois, outra religião poderia sobrepujá–la no atinente à continência e à obediência e, então, seria absolutamente mais perfeita, pois, o que excede pelo melhor é absolutamente melhor.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O dito do Senhor Não andeis inquietos pelo dia de amanhã – não significa que não se deve guardar nada, em vista do futuro. Pois, o perigo desse procedimento Santo Antão o denuncia quando diz: Aqueles que querem se despojar de todos os bens a ponto de não guardarem para si nem o sustento de um dia nem consentirem em conservar um dinheiro, que sobrou, e fazem coisas semelhantes, esses nós os vimos subitamente enganados a ponto de não terem podido levar a bom êxito a obra começada. E, como diz Agostinho, se as palavras do Senhor – não andeis inquietos pelo dia de amanhã – forem entendidas como significando que nada devemos guardar para o dia seguinte, elas não poderão ser observadas pelo que, durante longos dias, se conservam reclusos, longe da vista dos homens, entregues com grande contenção à oração. E logo acrescenta: Ou porventura, quanto mais santos forem tanto menos se assemelham aos pássaros? E depois ajunta: Se, pois, se exigir a eles que, conforme o Evangelho, nada guardem para o dia seguinte, responderão muito acertadamente – Então por que o próprio Senhor tinha bolsas onde se guardava o dinheiro recolhido? Por que, muito tempo antes, numa época de fome, se mandava comida aos Santos Patriarcas? Por que os Apóstolos ocorriam com o necessário à indigência dos santos? – Assim, pois, as palavras – não andei; inquietos pelo dia de amanhã Jerônimo comentando–as explica: Baste–nos pensar no tempo presente; deixemos nas mãos de Deus o futuro, que é incerto. – Ou, segundo Crisóstomo: Basta o trabalho que temos em buscar o necessário; não nos fatiguemos com o supérfluo. – E segundo Agostinho: Quando fizermos alguma boa obra, não pensemos nos bens temporais, significados pela expressão dia de amanhã, mas pensemos nos eternos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – As palavras de Jerônimo se aplicam às riquezas superabundantes, possuídas como próprias; ou ao abuso delas, que torna soberbos e lascivos os membros da comunidade. Mas não se aplicam às riquezas moderadas, que a comunidade só conserva para o sustento da vida e, assim, como um meio de dar a cada um o necessário. Pois, a razão de cada um usar das coisas necessárias à vida é a mesma pela qual a comunidade as conserva.
RESPOSTA À QUARTA. – Isaac se recusava a aceitar propriedades porque temia, assim, viesse a ter riquezas supérfluas, cujo abuso impedisse a perfeição da religião. Por isso Gregório no mesmo lugar acrescenta: Pois, temia perder o tesouro da sua pobreza, como os ricos avarentos temem perder as suas riquezas perecíveis. Mas dele não se lê que recusasse receber e conservar o necessário ao sustento da comunidade.
RESPOSTA À QUINTA. – Como ensina o Filósofo, o pão, o vinho e produtos semelhantes são riquezas naturais; ao passo que o dinheiro é uma riqueza artificial. Por isso, certos filósofos não queriam usar deste, quase vivendo segundo a natureza. Por onde, Jerônimo, no mesmo lugar, mostra que pelas palavras do Senhor, proibitivas das duas referidas espécies de bens, vem a ser o mesmo ter dinheiro e as outras coisas necessárias à vida. E contudo, embora o Senhor tivesse ordenado que os mandados a pregar não levassem consigo nenhum desses bens, todavia não proibiu fossem conservados para o uso comum. – E em que sentido essas palavras do Senhor devam ser entendidas, já o mostrámos antes.