O primeiro discute–se assim. – Parece que tentar a Deus não consiste na prática de certos atos pelos quais se espera um efeito, só do poder divino.
1. – Pois, assim como Deus é tentado pelo homem, assim também um homem é tentado por Deus, por outro homem e pelo demônio. Ora quando tentamos a outrem nem sempre esperamos qualquer efeito do seu poder. Logo, quem tenta a Deus também não espera qualquer efeito resultante só do seu poder.
2. Demais. – Todos os que fazem milagres invocando o nome de Deus. esperam, algum efeito só do seu poder. Se portanto, tentar a Deus consistisse na prática de tais atos, todos os que fizessem milagres tentá–lo–iam.
3. Demais. – Parece que a perfeição do homem consiste em pôr a esperança só em Deus, desprezados todos os auxílios humanos. Por isso Ambrósio, aquilo do Evangelho – Não leveis coisa alguma pelo caminho, etc. diz: Os preceitos evangélicos determinam como deve agir quem prega o reino de Deus: não pedir auxílios ao poder secular e, confiado na sua fé, pensar que tanto menos deles precisará quanto menos os buscar. E S. Ágata diz: Nunca tomei remédio para ter a saúde do corpo; o meu remédio é N. S. J. Cristo, que tudo cura só com as suas palavras. Ora, não pode tentar a Deus quem está a ocupar–se com a sua perfeição. Logo, tentar a Deus não consiste na prática desses atos em que só esperamos no seu auxílio.
Mas, em contrário, Agostinho diz: Cristo, ensinando e discutindo publicamente, e contudo não permitindo que os seus raivosos inimigos lhe fizessem o menor mal, mostrava com isso o poder de Deus. Mas também, quando fugia e se ocultava, advertia–nos da nossa fraqueza, ensinando–nos a não tentar a Deus, quando temos meios ao nosso alcance para nos livrarmos do perigo. Donde se conclui, que tentar a Deus consiste em deixarmos de fazer o que podemos para nos livrar do perigo, contando só com o auxílio divino.
SOLUÇÃO. – Tentar é propriamente experimentar a quem tentamos. Ora, experimentamos alguém por palavras e por obras. Por palavras, para saber se pode ou quer fazer o que queremos. Por obras, quando pelo que fazemos exploramos a prudência de outrem, a sua vontade ou o seu poder. E ambas estas cousas podemos fazê–las de dois modos. De um modo, abertamente, quando nos confessamos tentados; assim, Sansão propôs um problema aos Filisteus para tentá–los. De outro; insidiosa e ocultamente; assim os Fariseus tentaram a Cristo, como se lê no Evangelho. Outras vezes ainda, expressamente, por exemplo, quando por um dito ou uma obra pretendemos experimentar alguém; ou interpretativamente, quando, não visando experimentá–lo, o que fazemos ou dizemos não conduz, contudo senão a esse fim.
Assim, pois, o homem tenta a Deus, ora, por palavras e ora, por obras. Por palavras conversamos com Deus nas orações. Por isso, tentamos a Deus expressamente quando lhe fazemos um pedido para lhe experimentar a ciência, o poder ou a vontade. Tentamo–lo expressamente por obras quando os nossos atos visam experimentar lhe o poder, a piedade ou a sabedoria. Mas, tentamo–lo, por assim dizer, interpretativamente quando, embora não pretendamos experimentá–lo, o que pedimos ou fazemos não serve contudo senão para provar–lhe o poder, a bondade ou a ciência. Assim, precipitar à corrida um cavalo, para fugir dos inimigos, não é experimentá–lo; mas o é, fazê–lo correr sem nenhuma utilidade e só para experimentar lhe a velocidade. E o mesmo se dá nos demais casos. Portanto, quando, por alguma necessidade ou utilidade recorremos ao auxílio divino nos nossos pedidos ou nos nossos atos, isso não é tentar a Deus. Pois, diz a Escritura: Como não sabemos o que devemos fazer, por isso não nos fica outro recurso mais que voltar para ti os nossos olhos. Mas, fazê–lo sem utilidade e necessidade, é tentar a Deus interpretativamente. Por isso, àquilo da Escritura – Não tentarás ao Senhor teu Deus – diz a Glosa: Tenta a Deus quem, podendo livrar–se do perigo, expõe–se a ele sem– razão, para experimentar se Deus o livrará.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Podemos também tentar a outrem, por obras, para conhecer, por meio delas, se Ele sabe ou quer nos auxiliar, ou nos trazer obstáculos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os santos fazendo, com suas preces, milagres, são movidos a pedir a intervenção do poder divino, por alguma utilidade ou necessidade.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os pregadores do reino de Deus, uma grande necessidade e utilidade fá–las abandonar os socorros temporais, para vacarem mais prontamente à pregação da palavra de Deus. Por isso, confiados só em Deus, nem por isso o tentam. Mas, se abandonas sem os socorros humanos, sem utilidade nem necessidade, tentariam a Deus. Por isso diz Agostinho: Paulo fugiu, não como quem não confia em Deus; mas para não tentá–lo, deixando de fugir, quando podia fazê–lo. Quanto a Santa Ágata, ela havia experimentado em si a benevolência divina de modo a não sofrer enfermidades, para curar as quais viesse a precisar de remédios materiais; ou porque sentia o efeito imediato da cura divina.