O primeiro discute-se assim. — Parece que o Filho de Deus não assumiu a carne mediante a alma.
1. — Pois, mais perfeito é o modo pelo qual o Filho de Deus está unido à natureza humana e às suas partes, do que o pelo qual está em todas as criaturas. Ora, nas criaturas está imediatamente pela essência, pela potência e pela presença. Logo, com maior razão, o Filho de Deus está imediatamente unido à carne, e não mediante a alma.
2. Demais. — A alma e a carne estão unidas ao Verbo de Deus na unidade da hipóstase ou da pessoa. Ora, o corpo pertence imediatamente à pessoa ou à hipóstase do homem, como a alma; antes até, parece mais intimamente pertencente à hipóstase do homem o corpo, enquanto matéria, que a alma, enquanto forma; pois, o princípio de individuação, compreendido na denominação de hipóstase é a matéria. Logo, o Filho de Deus não assumiu a carne mediante a alma.
3. Demais. — Removido o meio, removido fica tudo o que por ele está unido; assim, removida a superfície, desapareceria a cor do corpo, que nele existe mediante a superfície: Ora, separada pela morte a alma, ainda permanece a união do Verbo com a carne, como a seguir se dirá. Logo, o Verbo não está unido à carne mediante a alma.
Mas, em contrário, diz Agostinho: O poder divino, que é imenso, uniu-se uma alma racional e, por ela, o corpo humano e o homem todo inteiro, para mudá-lo tornando-o melhor.
SOLUÇÃO. — O meio é assim chamado por implicar relação com o princípio e com o fim. Por onde, assim como o princípio e o fim implicam uma certa ordem, assim também o meio. Ora, há uma dupla ordem, a do tempo e a da natureza. Assim, na ordem do tempo, não se diz que há nenhum meio, no mistério da Encarnação, porque o Verbo de Deus uniu a si, simultânea e totalmente, a natureza humana, como a seguir se dirá. Quanto à ordem da natureza entre certos seres, podemos considerá-la a dupla luz. Primeiro, conforme o grau de dignidade; assim dizemos que anjos são médios entre os homens e Deus. Segundo, conforme a razão da causalidade; assim dizemos que existe uma causa média entre a primeira causa e o último efeito. E esta segunda ordem de certo modo é consequente à primeira; assim, como diz Dionísio, Deus age, pelas substâncias que lhe são mais chegadas, sobre as que dele estão mais afastadas. — Se, pois, atendemos ao grau de dignidade neste último sentido, a alma é um termo médio entre Deus e a carne. E então podemos dizer, que o Filho de Deus uniu a si a carne, mediante a alma. Mas, também na ordem de causalidade, a alma é de certo modo a causa de a carne ter-se unido ao Filho de Deus. Pois, não poderia ser assumida, senão pela ordem que tem para com a alma racional da qual lhe resulta o ser carne humana. Pois, como dissemos acima, à natureza humana convinha, mais que a todas as outras, ser assumida.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Podemos considerar uma dupla ordem entre a criatura e Deus. — Uma, segunda a qual as criaturas são causadas por Deus, e dele dependem como do princípio do qual têm o ser. E então, pela infinidade do seu poder, Deus atinge imediatamente qualquer ser, pelo causar e conservar. Donde vem, que Deus está imediatamente em todos pela sua essência, presença e potência. — Outra ordem é a em virtude da qual as coisas se reduzem a Deus como ao fim. E, então, há um meio entre a criatura e Deus; pois, as criaturas inferiores se reduzem a Deus por meio das superiores, como diz Dionísio. E a essa ordem pertence a assunção da natureza humana pelo Verbo de Deus, que é o termo da assunção. E portanto, pela alma se une a carne.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Se a hipóstase do Verbo de Deus fosse constituída simplesmente pela natureza humana, resultaria o tocar o corpo de mais perto a essa hipóstase, por ser matéria, que é o princípio da individuação; assim como a alma, que é a forma específica, toca de mais perto à natureza humana. Ora, como a hipóstase do Verbo é anterior e mais elevada, relativamente à natureza humana, tanto mais chegado lhe será o que, em a natureza humana, mais elevado for. Por onde, mais de perto lhe toca ao Verbo de Deus a alma que o corpo.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Nada impede, que uma coisa, sendo causa de outra, quanto à aptidão e à conveniência, o efeito continue a existir, mesmo quando a causa for suprimida. Pois, embora a produção de uma coisa dependa de outra, contudo, quando esta última for existente, já não depende daquela. Assim, se a amizade entre duas pessoas for causada por uma terceira, ela permanece embora essa terceira desapareça. E assim também, se uma mulher foi tomada em casamento por causa de sua beleza, qualidade da mulher que facilita a união conjugal, contudo, desaparecida essa beleza, perdurará a união conjugal. E semelhantemente, separada a alma, subsiste a união do Verbo de Deus com a carne.