O terceiro discute-se assim. ─ Parece que os corpos dos condenados serão impassíveis.
1. ─ Pois, segundo o Filósofo, toda paixão, aumentando, causa detrimento à substância. Ora, se diminuirmos sempre um corpo finito, acabará ele necessariamente por desaparecer, diz ainda Aristóteles. Logo, os corpos dos condenados, sendo sempre passíveis e padecentes, hão de acabar deperecendo e consumindo-se. O que já se demonstrou ser falso. Portanto, serão impassíveis.
2. Todo agente torna o paciente semelhante a si. Se, pois, os corpos dos condenados sofrerem o suplício do fogo, ao fogo hão de assemelhar-se. Ora, o fogo não consome os corpos senão fazendo-os desaparecer pelos tornar semelhantes a si. Se, portanto, os corpos dos condenados forem impassíveis, hão de acabar consumidos pelo fogo, De onde a mesma conclusão que antes.
3. Demais. - Os animais, como a salamandra, de que se conta que podem suportar o fogo, não sofrem com ele; pois, nenhum animal sofrerá dor no seu corpo sem este ser de algum modo ofendido. Se, portanto, o corpo dos condenados podem sofrer o fogo sem se aniquilarem, como os referidos animais, segundo o diz Agostinho, parece que nenhum detrimento deles lhes advirá, O que não seria possível se não tivessem o corpo impassível. Logo, etc.
4. Demais. ─ Se os corpos dos condenados são passíveis, a dor que os tormentos lhes causam hão de, segundo parece, superar todas as dores que nesta vida lhes afligiram o corpo; assim como a felicidade dos santos superará todas as felicidades desta vida. Ora, nesta vida, uma dor pode ser tão intensa que cause a separação da alma, do corpo. Logo e com muito maior razão, se na vida futura os corpos dos condenados forem passíveis, a imensidade dos sofrimentos lhes separará a alma do corpo, que será então corruptível. O que é falso. Logo, os corpos dos condenados serão impassíveis.
Mas, em contrário, aquilo do Apóstolo ─ E nós outros seremos mudados ─ diz a Glosa: Só os bons é que seremos transformados pela imutabilidade e pela impassibilidade da glória. Logo, os corpos dos condenados serão impassíveis.
2. Demais. ─ Assim como o corpo colabora com a alma para o mérito, assim também para o pecado. Ora, por causa dessa cooperação, não só a alma será premiada depois da ressurreição, mas também o corpo. Logo e pela mesma razão, também serão punidos os corpos dos condenados. O que não se daria se fossem impassíveis. Logo, serão passíveis.
SOLUÇÃO. ─ A causa principal, por que os corpos dos condenados não serão consumidos pelo fogo, será a divina justiça, que lhes jungiu os corpos a uma pena perpétua. Mas a justiça divina se serve das disposições naturais do corpo, quer do paciente, quer do agente. Porque, sendo a paixão uma recepção há uma dupla modalidade de paixão, conforme os dois modos por que pode uma causa ser recebida por outra. ─ Pois, pode um sujeito receber uma forma só no ser material desta; assim o ar recebe o calor do fogo. E este modo de receber determina uma espécie de paixão chamada paixão da natureza. ─ De outra maneira, uma cousa é recebida por outra espiritualmente e a modo de semelhança; assim, o ar e a pupila recebem a imagem da brancura. E este modo de receber é comparável ao pelo qual a alma recebe as semelhanças das cousas; e nele se funda outra modalidade da paixão, chamada paixão da alma.
Ora, como depois da ressurreição, cessado o movimento do céu, nenhum corpo pode sofrer alteração nas suas qualidades naturais, como se disse, nenhum corpo poderá sofrer a paixão da natureza. E assim, quanto a esta modalidade da paixão, os corpos dos condenados serão impassíveis bem como incorruptíveis. ─ Mas, cessado o movimento do céu, ainda restará a paixão da alma; porque ainda o ar será iluminado pelo sol e fará com que as diferenças de cores atinjam a vista. E assim, conforme esta modalidade da paixão, os corpos dos condenados serão passíveis. E como tal paixão aguça a sensibilidade, por isso os corpos dos condenados serão sensíveis à pena, sem alteração da sua disposição natural.
Quanto aos corpos gloriosos, mesmo que recebam certas impressões e de certo modo sejam passíveis ao sentir, contudo não serão passíveis. Porque nada receberão como pena nem dor, ao contrário do que se dá com os corpos dos condenados, chamados por isso passíveis.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ O Filósofo se refere à paixão que altera a disposição natural do paciente. E essa não a sofrerão os corpos dos condenados, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. ─ A semelhança do agente de dois modos está no paciente. ─ Primeiro, pelo mesmo modo por que está no agente, como se dá com todos os agentes unívocos; assim o calor gera o calor e o fogo, o fogo. ─ De outro modo, com existência diversa da que tem no agente; tal o caso de todos os agentes equívocos. E nestes pode-se dar que a forma exista no agente espiritualmente e seja recebida materialmente pelo paciente; assim, a forma de uma casa feita por um arquiteto tem na casa o seu ser material, e o espiritual na mente do artífice. Outras vezes se dá o contrário: a forma esta materialmente no agente e é recebida espiritualmente pelo paciente; assim a brancura que esta materialmente numa parede, donde é recebida espiritualmente pela pupila e pelo meio transmitente. E o mesmo se dá no caso vertente. Porque a forma, existente materialmente no fogo, é recebida espiritualmente pelos corpos dos condenados. E assim o fogo torná-los-á semelhantes a si, sem contudo as consumir.
RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Segundo o Filósofo, nenhum animal pode viver no fogo. E Galeno também diz que nenhum corpo há que, exposto ao fogo, não acabe sendo consumido por ele; embora haja certos corpos, como o ébano, que podem ficar algum tempo no fogo sem lhe sofrer a ação. Por isso, o caso aduzido, da salamandra, não pode de nenhum modo ser verossímil; pois não podia perseverar no fogo sem finalmente ser consumida, ao contrário do que se dá com os corpos dos condenados no inferno. ─ Nem se deve, do fato de os corpos dos condenados não serem em nada consumidos pelo fogo do inferno, que não sejam torturados pelo fogo. Porque é da natureza do sensível não só deleitar ou afligir os sentidos, pela sua ação natural de fortificar ou alterar o organismo, mas também pela sua ação espiritual. Pois, quando o sensível é proporcionado ao sentido, causa-lhe prazer; e ao contrário, quando há nele superabundância ou defeito. Por isso as cores médias e as vozes harmônicas são deleitáveis; mas os sons discordes ofendem o ouvido.
RESPOSTA À QUARTA. ─ A dor não separa a alma do corpo enquanto permanece numa das potências dela, que é o sujeito da dor; mas quando a paixão da alma muda a natural disposição do corpo; assim, vemos que a cólera escandesce o corpo, ao passo que o temor o esfria. Mas depois da ressurreição já não pode a disposição natural do corpo ser transformada, como do sobre dito se colhe. Por onde, por maior que seja a dor, não poderá separar a alma do corpo.