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Prefácio à Ilusão Liberal

Lançamento da Editora Permanência
 
 
"A ILUSÃO LIBERAL"
 
 
 
R$21,00

 

Dom Lourenço Fleichman OSB
 
Pode parecer temerário para uma editora católica, aqui no Brasil, publicar um livro sobre a doutrina dos Liberais, tantos são os equívocos despertados por este assunto. Não poderíamos, portanto, deixar de tecer algumas explicações preliminares ao apresentar este livro de Louis Veuillot.
 
Comecemos pelo autor. Ilustre desconhecido para a grande maioria dos brasileiros, Louis Veuillot (1813 – 1883) é um dos grandes nomes da literatura católica do século XIX, na França. Polemista temido por seus adversários, coube a ele dar vida a um jornal católico da época, L´Univers, que estava em plena decadência. Seus artigos vigorosos em favor da liberdade de ensino, tema que sempre apaixonou os franceses, transformaram o jornal em referência do Catolicismo Romano. Numa França oscilando entre o espírito revolucionário liberal e a restauração da Monarquia, o combate católico era o combate pela liberdade, e isso naturalmente reuniu católicos que defendiam a liberdade da Igreja a todos aqueles que defendiam toda e qualquer liberdade. Com o passar do tempo, Veuillot se afastará dos Liberais, combatendo em favor da restauração da Monarquia. Na época do Concílio Primeiro do Vaticano, apoiará de forma vigorosa o dogma da Infalibilidade papal, sendo defendido várias vezes pelo papa Pio IX contra bispos que o criticavam. Quando Pio IX achou por bem apontar certos exageros nas expressões polêmicas do grande escritor, Veuillot aceitou humildemente a paternal admoestação e procurou melhorar o tom dos seus escritos. Leia Mais
 
 
O primeiro cuidado que o leitor deverá tomar ao iniciar o estudo da crítica ao Liberalismo Católico é o de não confundir o Liberalismo, na sua essência, como um todo, com uma das suas partes, que é o Liberalismo econômico. Como na mentalidade atual aplica-se o nome Liberalismo a toda economia em regime de iniciativa privada, poder-se-ia concluir que, ao combater o Liberalismo, estaríamos defendendo um Estado intervencionista, ou mesmo o socialismo, o que seria uma aberração. O pecado do Liberalismo econômico não é o de deixar a liberdade ao empresário, mas o de proclamar essa liberdade soberana e sem limites: liberdade de pensamento, liberdade de expressão, liberdade de ensino, liberdade religiosa, liberdade de consciência. Esse liberal pretende a liberdade total, a emancipação do homem em relação a qualquer forma de regra, de lei e de moral, mesmo se esta moral vem de Deus.
 
É preciso insistir: a doutrina católica não condena a liberdade do agir humano, nem a liberdade empresarial ou a liberdade de expressão. O que ela não admite é a pretensão de considerar essas liberdades acima de qualquer regra superior. O relativismo atinge o coração do homem: sua obediência às leis civis será mera obrigação sob pena de sofrer as consequências, descartada toda ligação entre essas leis e a Lei de Deus. Já não existiria, portanto, a verdade. O Liberalismo produz um monstro de duas cabeças aparentemente opostas: monstruosa liberdade e legalismo estúpido.
 
O Liberalismo pretende, então, entronizar a liberdade como fundamento de toda a vida intelectual, social e política. Esta idéia, por si só, deixa qualquer reação como que paralisada, pois fica a impressão de que se nega esta natureza livre do homem. Por mais que os católicos afirmem o contrário, os liberais estarão sempre martelando nessa tecla enganadora: –“Eles não querem a liberdade”.
 
Procuremos lembrar rapidamente como surgiu esta ideologia. Dentro de um pensamento filosófico realista, como foi o da Idade Média, em torno da filosofia de São Tomás de Aquino e de toda a Escolástica tradicional, não seria possível espalhar-se pelo mundo a idéia de que a liberdade seria o principal fundamento da vida humana. O pensamento medieval era por demais realista para negar à verdade seu trono na hierarquia da razão. O homem medieval tinha todo o seu pensamento em torno dessa questão candente:
 
Quid veritas? – O que é a verdade?
 
E responde: a verdade é a adequação da nossa inteligência ao objeto conhecido, à realidade que se apresenta fora de nós. O papel da verdade objetiva era aceito universalmente, e não havia maiores dificuldades para se compreender que a liberdade era uma propriedade da vontade humana, presente em todo ato humano, mas submissa à verdade. Ninguém em bom estado mental admitiria que um homem tivesse liberdade de errar ou de fazer o mal.
 
Os inimigos de Deus e da sua Igreja não dormem. Precisavam destruir este arcabouço próprio da Civilização Ocidental que era a sua filosofia perene, realista e tomista. O ataque foi lançado contra o pensamento católico com a criação e expansão, no séc. XIV, do nominalismo, pai do individualismo, que estará presente em toda a Era Moderna e Contemporânea.
 
Aborrecidos, fatigados ou até humilhados diante da complexidade do problema [do conhecimento humano] e encorajados pelo triste espetáculo dos escolásticos da decadência que praticavam o culto do penumbrismo e da complicação pedante, os nominalistas desfraldaram a bandeira da simplificação1
  
Entrava assim o mundo na querela dos universais. Essa simplificação consistia em negar ao conceito universal (homem, casa, ave, etc.) a realidade objetiva. Guilherme de Occam2 ainda aceitava a existência do conceito dentro da mente do homem, não mais do que isso. Daí resulta que a realidade seria composta apenas de indivíduos sem laços entre si senão um nome escolhido ao acaso.
 
Num mundo individualista e nominalista, aparecerá rapidamente o Humanismo que desviará o foco da verdade que vem de Deus, para uma verdade que brota do Homem. O eixo da Terra fora deslocado e a humanidade perdida e cega já não se interessava mais pelas coisas do espírito, pelo mundo do Céu. Encantado consigo mesmo e embriagado com sua humanidade, o homem mergulhará numa busca desenfreada pelas coisas desta Terra. Grandes descobertas e conquistas, enriquecimento e prazeres. Iniciava-se o Renascimento. Se os povos, nesses séculos XV e XVI, ainda aceitam serem governados por reis, estes, por sua vez, já não se submetem muito bem a Deus e à Sua Igreja. Tornar-se-ão absolutistas, também eles embriagados com sua autoridade e seu poder.
 
O mundo avança a passos largos para novas mudanças. Lutero lança fora, ele também, toda e qualquer submissão à Igreja, e inventa uma nova religião sem sacerdócio e sem Sacrifício, fundamentada na autonomia do homem, na liberdade do pensamento, no livre-exame.
 
Essas três manifestações nascidas do Nominalismo de Guilherme de Ockham –– o Humanismo, o Renascimento, e a Reforma –– podem ser considerados como precursoras do Liberalismo. Este nada mais será do que a aplicação generalizada e constante dos princípios daqueles. Mas antes de se chegar a tal conquista será preciso amadurecer o fruto. Surgirão pensadores, escritores e intelectuais que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, espalharão por toda a Europa seu ódio ao Catolicismo e a pretensão de estabelecer um mundo sem a menor sombra da Igreja Católica.
 
A obra nefasta iniciada por aqueles movimentos passará a uma nova fase: o Racionalismo, pelo qual os homens se convencerão de que a única fonte de conhecimento é a própria razão humana. Expulsarão do pensamento qualquer tipo de conhecimento que não brote das próprias entranhas do homem. Serão eles os enciclopedistas e iluministas, o Dicionário flertando com a deusa Razão. Durante mais de cem anos será imposto ao pensamento dos homens que só é verdadeiro o que pode ser apreendido pela razão. Ao mesmo tempo, a pretensão de tais homens os conduzirá a construir uma nova Torre de Babel, a Enciclopédia, que tinha a pretensão de ensinar toda a Ciência.
 
Este foi o meio encontrado para realizar a substituição definitiva da verdade objetiva pela liberdade.
 
Mas...
 
Se toda verdade nasce de dentro de cada um, como conciliar tantas verdades discordantes e opostas? Por outro lado, se o homem possui o livre-arbítrio, aquela capacidade de escolha que vimos acima, como negar-lhe a liberdade de possuir, cada um, a sua verdade subjetiva? Eis completado o quadro da enganação, da ilusão liberal: não precisamos mais de Deus, pois somos nós o próprio Deus; não precisamos mais de um Criador, pois a Natureza é divinamente autocriadora; não precisamos mais de um Salvador, pois o Estado é o Céu que nos salva.
 
Fica assim claro que o Liberalismo destrói não somente a vida do espírito mas também a vida sobrenatural, aquela presença de Deus em nossas vidas, constante e benfazeja. Pretendendo conciliar a Igreja Católica com o mundo moderno, ele a aniquila em seus fundamentos divinos e a encarcera nas suas atividades humanas.
A seqüência dos fatos é conhecida. O racionalismo laicista gerou a Revolução. As idéias rapidamente passaram para a política e montaram a guilhotina sanguinária. Dez anos depois da Revolução de 1789, os revolucionários, divididos e incapazes de governar um país como a França, darão o poder a um general do exército revolucionário, Napoleão Bonaparte.
 
Iniciou-se um período de mais de cem anos, em que a política francesa mais se assemelhou a um grande espetáculo, variado, feérico, colorido e trágico. O povo francês continuava profundamente ligado às suas tradições monárquicas, de ordem e de autoridade. Mesmo sendo um homem da Revolução, profundamente liberal, Napoleão soube satisfazer este anseio dos franceses e trouxe certa paz interior à nação. Por outro lado, levou a termo as mudanças mais significativas nas instituições governamentais e cívicas, modificando para sempre o espírito da nação très chrétienne, instituindo a nova Lei e a nova ordem racionalista, chamadas de Direito Novo.
 
“Quando o mal penetra na legislação, quando se torna a lei fundamental das instituições, quando não é mais fruto efêmero de uma violenta paixão, mas se estabelece como sistema de governo; quando ele é declarado doutrina oficial de um ensinamento monopolizado, então ele penetra todo o organismo da sociedade, cria à sua imagem um espírito público, deprava e deforma as consciências e torna-se humanamente incurável” 3
  
Apesar de Napoleão I estar fortemente estabelecido no poder dentro da França, a sua política externa belicista provocou-lhe dupla queda: em 1814 e, após uma volta surpreendente, tão rápida quanto catastrófica, em 1815. De tal forma os revolucionários eram incapazes de governar que não houve alternativa para os políticos franceses senão a Restauração da Monarquia. Luiz XVIII, irmão do rei decapitado Luiz XVI, foi chamado para o trono. Governou a França até sua morte, em 1824, sucedendo-lhe seu irmão Carlos X. A agitação liberal, que já se fazia sentir, provocará a queda do rei, em julho de 1830, o qual abdicou em favor do seu neto, o Duque de Bordeaux. Carlos X tentou salvar a frágil monarquia unificando a família Bourbon, então dividida, e nomeou o Duque de Orleans, que não fazia parte da linha sucessória, como Regente. Os políticos de então preferiram oferecer o trono ao próprio regente, pois temiam que os republicanos tomassem o poder, o que significaria a anarquia e a guerra. Subiu ao trono Luiz Felipe, na chamada Monarquia de Julho. Mas esses governos tradicionais e conservadores, mesmo conseguindo manter a paz, tanto internamente como na política externa, não saberão conter os avanços liberais ou serão eles próprios liberais.
 
“Os princípios dos legistas, sua mentalidade, permanecia fixada e como que estereotipada no Código Civil, enraizada nas instituições parlamentares, proclamada pela imprensa e pelo ensino oficial, e isso era suficiente, mesmo na ausência da paixão antirreligiosa, para acelerar o movimento de laicização, ou seja, de descristianização universal.” 4
  
Enquanto a vida política ia seguindo um curso estranho e como que controlado pela mão de Deus, a vida cultural e religiosa renascia das cinzas da Revolução. Bastou um mínimo de liberdade aos católicos para que, rapidamente, os mosteiros se povoassem, as paróquias recebessem de volta seus padres, aqueles “refratários” que se esconderam por causa das perseguições sangrentas dos anos do Terror. Grandes nomes de escritores surgirão ao longo deste século XIX; livros, jornais e revistas circularão por toda a França católica. Não chegam a converter todo o povo francês, mas conseguem ao menos levantar o debate das idéias, mostrar a grandeza do pensamento católico e combater os erros destruidores da Civilização. É dentro desse contexto político, cultural e religioso que encontraremos Louis Veuillot e seu jornal, L´Univers, trabalhando pela cultura católica e pela Igreja:
 
Idéias como as nossas não conseguirão fazer muito sucesso. Elas não carregam o mundo, mas servem para freá-lo. Fomos fincados como barreiras cortando a correnteza, sobre as quais certo número de náufragos conseguem se salvar.” (Louis Veuillot, carta à sua irmã)
 
Foi assim que Veuillot escreveu A Ilusão Liberal, pequeno livro onde pretende expor e criticar a posição dos liberais, a partir de uma conversa imaginária entre um grupo de católicos e um liberal. Este representava o pensamento da hora, a moda, a modernidade; aqueles representavam a sólida doutrina tantas vezes posta à prova ao longo de dois mil anos, mas nem sempre bem defendida pelos discípulos fiéis da Santa Igreja. Havia, portanto, a necessidade de se desmascarar a falácia dos liberais. E Louis Veuillot resolveu encarar o desafio, com o texto que apresentamos aqui.

 

 

  1. 1. Corção, Gustavo. Dois Amores Duas Cidades. Rio de Janeiro: Agir, 1967. Vol. II, p. 1, cap. 1, tópico 6. Todo este Tomo II trata com profundidade esse tema e suas consequências sobre a civilização.
  2. 2. Ou Guilherme de Ockham (Inglaterra, c. 1285 – c. 1347).
  3. 3. Roussel, Augustin. Liberalisme et catholicisme. Rennes: 1926, p. 41.
  4. 4. Idem, p. 42
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