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Art. 1 — Se os dons se distinguem das virtudes.

(III Sent., dist. XXXIV, q. 1, a. 1; In Isaiam, cap. XI; Ad Galat., cap. V lect. VI).
 
O primeiro discute-se assim. — Parece que os dons não se distinguem das virtudes.
 
1. — Pois, Gregório, expondo aquilo de Jó (Jó 1, 2) — E nasceram-lhe sete filhos e três filhas diz: Nascem-se sete filhos quando pela concepção do bom pensamento surgem em nós as sete virtudes do Espírito Santo1. E cita aquilo da Escritura (Is 11, 2): E descansará sobre ele o espírito de entendimento, etc., onde se enumeram os sete dons do Espírito Santo. Logo, estes sete dons são virtudes.
 
2. Demais. — Agostinho, expondo aquilo da Escritura (Mt 12, 45) Então vai, e ajunta a si outros sete espíritos etc. diz: Sete vícios são contrários às sete virtudes do Espírito Santo2, i. é, aos sete dons. Ora, esses sete vícios são contrários às virtudes consideradas em sentido geral. Logo, os dons não se distinguem das virtudes consideradas nesse sentido.
 
3. Demais. — Sujeitos a que convém a mesma definição são idênticos. Ora, a definição da virtude convém aos dons; pois, o dom é uma boa qualidade da mente, pela qual vivemos retamente, etc3. Semelhantemente, a definição do dom convém às virtudes infusas; pois, o dom é uma doação irretribuível, segundo o Filósofo4. Logo, as virtudes não se distinguem dos dons.
 
4. Demais. — Alguns dos chamados dons são virtudes. Pois, como já se disse5, a sabedoria, o intelecto e a ciência são virtudes intelectuais; o conselho pertence à prudência; a piedade é uma espécie de justiça; e por fim, a coragem é uma virtude moral. Logo, as virtudes não se distinguem dos dons.
 
Mas, em contrário, Gregório distingue os sete dons, designados, diz, pelos sete filhos de Jó, das três virtudes teologais, representadas pelas três filhas do mesmo6. E noutro lugar, distingue os mesmos sete dons, das quatro virtudes cardeais., representadas, diz, pelos quatro ângulos da casa7.
 
SOLUÇÃO. — Se considerarmos o dom e a virtude, quanto às suas noções, nenhuma oposição há entre esta e aquele. Pois, a virtude, por essência, é assim chamada por conferir ao homem a perfeição de agir retamente, como já dissemos8; ao passo que o dom essencialmente é relativo à causa de onde procede. Ora, nada impede, que o precedente, como dom, de uma certa causa, confira a quem o recebe a perfeição de agir retamente; sobretudo que, como já dissemos9, certas virtudes são infundidas em nós por Deus. Por onde, a esta luz, o dom não pode ser distinto da virtude.
 
E por isso certos ensinaram não devem os dons ser distintos das virtudes. — Mas nem por isso deixa de lhes ser menor a dificuldade, quando se trata de dar a razão de se considerarem certas virtudes, e não todas, como dons; e de certos dons não se contarem evidentemente entre as virtudes, como, p. ex., o temor.
 
E daí o dizerem outros que os dons se devem distinguir das virtudes, mas sem darem suficiente causa de distinção, de tal modo comum às virtudes que de nenhum modo conviesse aos dons, e vice-versa. E então outros, considerando que, dentre os sete dons, quatro a sabedoria, a ciência, o intelecto e o conselho pertencem à razão; e três a coragem, a piedade e o temor à potência apetitiva, disseram que dons fortificam o livre arbítrio, enquanto faculdade racional, e as virtudes, enquanto faculdade voluntária. E isso por descobrirem só duas virtudes a fé e a prudência na razão ou intelecto, pertencendo às outras à potência apetitiva ou afetiva. ­Ora, seria necessário, se esta distinção fosse pertinente, todas as virtudes pertencerem à potência apetitiva, e todos os dons, à razão.
 
Outros ainda, tiveram em vista o lugar de Gregório seguinte: o dom do Espírito Santo que forma, na mente que lhe é obediente, a prudência, a temperança, a justiça e a fortaleza, também a mune, pelos sete dons, contra todas as tentações10. E consideraram então as virtudes como ordenadas a obrar bem e os dons, a resistir às tentações. Mas esta distinção também não é suficiente. Pois, também as virtudes resistem às tentações, que induzem aos pecados e que as contrariam pois cada um resiste ao que lhe é contrário, como bem vemos suceder com a caridade, da qual se diz (Ct 8, 7): as muitas águas não puderam extinguir a caridade. Outros, por fim, refletindo que a Escritura nos transmite esses dons como existiram em Cristo, disseram que as virtudes se ordenam, absolutamente, ao bem agir; ao passo que os dons nos tornam semelhantes a Cristo, principalmente quanto aos seus sofrimentos, pois os dons de que tratamos resplenderam principalmente na sua paixão. ­Mas também isto não é suficiente. Pois, o próprio Senhor nos induz precipuamente a nos assemelhar com ele pela humildade e pela mansidão, conforme está na Escritura (Mt 11, 29): aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e também pela caridade, conforme àquilo (Jo 13, 34): Que vos amei uns aos outros, assim como eu vos amei. Ora, estas virtudes resplandeceram, precipuamente, na paixão de Cristo.
 
E portanto, para distinguir os dons, das virtudes, devemos seguir o modo de falar da Escritura, que no-los transmite, não sob o nome de dons, mas antes, sob o de espíritos. Assim, diz Isaias (11, 2): E descansará sobre ele o espírito de sabedoria e de entendimento etc. Essas palavras dão manifestamente a entender que tal enumeração dos sete dons os supõe existentes em nós por inspiração divina; e a inspiração implica uma moção externa. Ora, devemos considerar que há no homem um duplo princípio motor: um, interior a razão; outro exterior Deus, como já dissemos11; e o Filósofo também diz o mesmo12. Ora, como é manifesto, todo o movido deve necessariamente ser proporcionado ao motor; e a perfeição do móvel, como tal, consiste em ter uma disposição que o faça bem receber o movimento do motor. Quanto mais elevado porém for o motor, tanto mais necessariamente, e por uma disposição mais perfeita, o móvel se lhe há de proporcionar; assim, vemos ser necessário o discípulo dispor-se tanto mais perfeitamente, a receber a doutrina do mestre, quanto mais perfeita ela for. Ora, é manifesto que as virtudes humanas aperfeiçoam o homem, ao qual é natural ser movido pela razão, em todos os seus atos, interior ou exteriormente. Logo, é necessário existam no homem perfeições mais altas que o disponham a ser movido por Deus. E tais perfeições se chamam dons, não só por serem infundidos por Deus, mas também por disporem o homem a se deixar facilmente mover pela inspiração divina, como diz Isaías (50, 5): O Senhor me abriu o ouvido, e eu o não contradigo; não me retirei para traz. E o Filósofo também diz: quando movidos por inspiração divina não devemos buscar conselho na razão humana, mas seguir essa inspiração, porque somos movidos por um principio superior13 à razão humana. E assim o entendem os que dizem aperfeiçoarem os dons o homem para atos superiores aos da virtude.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Os dons em questão também se denominam virtudes, conforme a noção comum de virtude. Tem contudo algo de supereminente a essa noção, por serem certas virtudes divinas que aperfeiçoam o homem, enquanto movido por Deus. E por isso o Filósofo introduz, além da virtude comum, uma virtude heróica ou divina, que faz certos serem chamados homens divinos14.
 
Resposta à segunda. — Os vícios sendo contrários aos bens da razão também contrariam as virtudes; como contrários, porém, à divina inspiração, contrariam os dons. Ora, contrariar a Deus é também contrariar a razão, cujo lume deriva de Deus.
 
Resposta à terceira. — A definição em apreço se dá da virtude quanto ao seu modo comum de ser. Por onde, se quisermos restringir a definição às virtudes, enquanto distintas dos dons, diremos que a expressão pela qual vivemos retamente deve ser entendida da retidão da vida conforme a regra da razão. Semelhantemente, o dom, enquanto distinto da virtude infusa, pode ser considerado como o dado por Deus para lhe recebermos a moção, que leva o homem a seguir retamente as suas inspirações.
 
Resposta à quarta. — A sabedoria se chama virtude intelectual, enquanto procede do juízo da razão. Chama-se porém, dom, enquanto obra por instinto divino. E o mesmo se deve dizer nos demais casos.

  1. 1. I Moral. (c. XXVII).
  2. 2. I De quaestion. Evangel. (quaest. VIII).
  3. 3. Q. 55, a. 4.
  4. 4. Lib. IV Topic. Cap. IV.
  5. 5. Q. 57, a. 2.
  6. 6. I Moral. (ubi supra).
  7. 7. II Moral. (cap. XLIX).
  8. 8. Q. 55, a. 3, 4.
  9. 9. Q. 63, a. 3.
  10. 10. II Moral. (cap. XLIX).
  11. 11. Q. 9, a. 4, 6.
  12. 12. In cap. De bona fortuna (Ethic. Eudem, lib. VII, cap. XIV.
  13. 13. In cap. De bona fortuna (loc. cit.).
  14. 14. VII Ethic. (lect. I).
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