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O Bispo e o Imperador

[Nota da Permanência] O texto que se vai ler é o relato de Dom Macedo Costa da Conferência que ele e o Sr. Bispo do Rio de Janeiro tiveram com sua Majestade Dom Pedro II a propósito dos boatos da condecoração do livre-pensador e filólogo francês Ernest Renan (1823-1892), autor de A Vida de Jesus e obras contrárias à religião católica.

 
No dia 23 de Julho (1872) o Sr. Bispo do Rio de Janeiro e eu tivemos, depois do cortejo, uma conferência com S. M. o Imperador, para prevenir a decoração de Renan.
 
—  Senhor, disse-lhe o Sr. Bispo do Rio de Janeiro, o dia não é próprio, mas amanhã será talvez tarde. Nós, como amigos de Vossa Majestade, e como Bispos quiséramos desafogar o nosso coração de um pensamento que o oprime.
 
—  E o que é? Perguntou com ar benévolo o Imperador.
 
—  Senhor, continuou o Sr. Bispo, corre aí um boato, ainda oculto, mas já divulgado entre vários, que querem condecorar Renan, mas Vossa Majestade não o permita.
 
—  Pois já que os Senhores são francos comigo, eu também serei franco, respondeu com certa vivacidade Sua Majestade. Fui eu mesmo que propus isso ao Ministério, e o fiz em conformidade com as minhas convicções — sobre a liberdade de pensamento. Aqui o Sr. Bispo (prosseguiu o Imperador olhando para mim) sabe muito bem quais são as minhas idéias a este respeito.
 
—  Mas, Senhor, Renan é um apóstata, um renegado, um inimigo pessoal de Nosso Senhor Jesus Cristo.
 
—  Eu só quero dar uma mostra de gratidão à pessoas distintas que me prestaram serviços...
 
—  Mas, Senhor, observei eu. Vossa Majestade viajou incógnito, como simples particular, podia, até certo ponto, receber serviços de toda gente: mas agora é o Governo, um Governo católico que dá estas condecorações, e é preciso atender a certas conveniências...
 
—  Então, por este modo, eu não podia condecorar a mais ninguém. Vejam que decorei Julio Simon. Eu não sabia que ele sustentou erros muito funestos? Sabia-o. Mas decorei-o, porque minha intenção foi distinguir com essas honras os homens colocados em posições consideráveis e que me acolheram com bondade.
 
—  Com efeito, disse o Bispo do Rio de Janeiro, alguns entre os já decorados não são nada bons; mas Renan, Senhor, é ímpio mais saliente, e o porta bandeira do anti-cristianismo neste século!
 
—  Eu sou, como sabem, católico apostólico romano, sou-o sinceramente. Quero que se favoreça os Bispos, que se lhes dê todo o apoio, que a sua dignidade seja preservada de todo insulto — mas admito a liberdade plena de pensamento, e propus a decoração de Renan sem partilhar sua doutrina. Antes refutei-o: refutei-o quando lhe falei, mas é membro proeminente do Instituto, e tratou-me muito bem...
 
—  Eu então irei pedir a Deus que poupe a Vossa Majestade desgostos futuros...
 
—  Que desgostos? Perguntou o Imperador.
 
—  ... e tardios, concluiu com voz concentrada o Sr. Bispo.
Durante este tempo eu tinha os olhos baixos e as lágrimas me rebentavam vendo este amalgama estranho de bons sentimentos e de idéias revolucionárias no augusto chefe de uma nação eminentemente católica.
 
—  Não, Senhor, Vossa Majestade não fará isto, disse-lhe eu tomando-lhe com afetuosa confiança a mão. Seria um golpe profundo e doloroso no coração de todos os Bispos e de todos os católicos do Brasil.
 
—  Mas, por que isso? Não há tal. O Senhor sabe quais são meus sentimentos.
 
—  Senhor! Decorar Renan! Um Governo Católico dar esta animação ao maior insultador de Jesus Cristo neste século! Um triste Judas que esbofeteou nosso Deus, que negou-lhe a divindade, e o tratou de mentiroso e impostor...
 
—  Não é tanto assim... não é tanto assim! Ele até tratou as coisas com certa moderação... Olhe, a falar a verdade, eu  li o seu livro como um romance...
 
—  Não Senhor, Vossa Majestade não nos dará essa mágoa...
 
—  Isso depende do Ministério... ele fará o que entender; mas torno a dizer-lhe que minhas intenções para com a Igreja, e para com os senhores são as melhores; somente sou lógico... admito o princípio da liberdade inteira de pensamento e da imprensa e procedo em conseqüência.
 
—  Nós sabemos, Senhor, que as intenções de Vossa Majestade são excelentes; mas não sei que mau fado é este que leva o Governo de Vossa Majestade a proceder de modo a procurar animar os inimigos da Igreja...
 
—  Não, Senhor, não senhor, eu sou lógico... entendo que os homens são livres de ter suas opiniões, e hei de empenhar todos os esforços para auxiliar os Bispos a combaterem as que forem más, pelos meios legítimos, isto é, a persuasão... Eu não decoro senão o escritor e o sábio.
 
—  Mas esta distinção, Senhor, é impossível...
 
Nisto o Imperador atalhou-me, dizendo-nos:
 
—  Os senhores são bastante inteligentes para fazerem esta distinção.
 
E afastou-se de nós.
 
Saímos com o coração magoado, mas contentes de termos confessado nosso Senhor Jesus Cristo, e procurado por todos os meios a nosso alcance prevenir o grande escândalo de decorar um Governo Católico ao mais infame dos blasfemadores contemporâneos.
 
* * *
 
E Renan não foi condecorado? Mais uma vitória do grande Bispo.
 
 
(F. de Macedo Costa, Lutas e Vitórias, Estabelecimento dos dois Mundos, 1916, Bahia, págs. 245-248)

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