A ESCOLHA
Não pretendo ensinar aqui a arte de escolher cônjuge, tal como outros se gabam de ensinar a arte de se defender na rua ou de ganhar na bolsa. Não tenho receitas práticas para este fim. Um casamento (e refiro-me às uniões mais refletidas) está condicionado por tantos acasos (acasos de situações, de encontros, de fortuna, de sentimentos etc.) que seria ridículo ingressar nestes domínios armado de regras matemáticas. De resto, a escolha humana está rodeada de uma tal obscuridade que aquele que tenha a pretensão de fazer uma escolha definitiva, aquele a quem paralisa uma idéia excessivamente precisa da «alma gêmea» se arrisca bastante, ou a nunca mais se casar, ou a fazer uma escolha absurda, uma dessas escolhas «que nunca se poderia imaginar» como diz La Fontaine, como a experiência nos revela todos os dias. «Em toda a parte tenho conhecido compradores cautelosos ― escreve, não sem um certo exagero, Frederico Nietzsche ― mas mesmo o mais esperto acaba por comprar a mulher a olho». Mesmo nas uniões mais clarividentes, há um aspecto de salto no desconhecido, de «pari», no sentido pascaliano da palavra. Deste modo, as poucas indicações gerais que vou dar sobre este assunto não visam fornecer certezas, mas simples probabilidades.
Um dos problemas primordiais que se põem para a escolha de um cônjuge é o problema biológico. Da saúde dos esposos depende, com efeito, grande parte do equilíbrio material e moral do lar, a existência e o futuro dos filhos. Mas apenas pretendo focar aqui este problema sob o ângulo psicológico e social. Entre os fatores que contribuem para determinar a escolha nupcial, há alguns, na verdade, que são exteriores ou sociais (consideram-se o meio, a classe social, a fortuna) e outros interiores ou psicológicos (decide-se pelo amor ou pela razão). Detenhamo-nos um momento sobre estes pontos.
CASAMENTO E MEIO SOCIAL
Dantes este problema não se punha. Cada pessoa se casava dentro da sua casta e, muito freqüentemente, no meio da sua paróquia ou da sua profissão. Os diversos organismos sociais, firmemente diferenciados, não se invadiam uns aos outros; ausência de invasão que não implicava, aliás, quero sublinhá-lo, ausência de intercâmbios.
Hoje, mercê da facilidade e da freqüência das comunicações e mercê sobretudo da confusão de classes e de funções, este estado de coisas mudou inteiramente. As uniões entre pessoas de meios geográficos, culturais ou profissionais muito diferentes, multiplicam-se cada vez mais. Mesmo nos nossos campos, para não citar mais do que um exemplo, os jovens aldeões que outrora só desposavam moças, não só pertencentes à mesma casta, mas ainda, no meio desta casta, de famílias impregnadas das mesmas tradições, e com opiniões políticas e religiosas iguais às suas, casam-se agora muito freqüentemente com uma datilógrafa parisiense ou com uma italiana recentemente imigrada. E casos semelhantes se observam em todos os meios.
Di-lo-ei claramente: esta confusão não significa um progresso. A identidade do meio social parece-me uma das condições centrais da felicidade conjugal. Não quer isto dizer que eu afaste de um modo absoluto as uniões entre pessoas de diferentes meios. Penso unicamente que devem constituir uma exceção: exigem, de todos os modos, qualidades individuais que não se podem pedir à generalidade dos homens. Sempre que um homem e uma mulher entram, através do casamento, para um meio superior ou simplesmente estranho ao seu, é preciso que entrem subindo (hoje há uma tendência excessiva para entrar em toda parte no mesmo plano) e que superem pelo poder do amor e da adaptação a comunhão espontânea que resulta da identidade do meio. Um príncipe só poderá desposar com acerto uma pastora se essa pastora tiver uma alma de princesa, o que, em boa verdade, não é excessivamente freqüente. Uma das taras do mundo moderno é pretender fazer um costume do que só pode constituir exceção, e cair abaixo da norma ao querer generalizar o que está acima da norma.
Numa união entre indivíduos do mesmo meio, os hábitos, os gostos, as necessidades comuns ― todo esse complexo de elementos bio-psicológicos imponderáveis que constituem o que vulgarmente se chama costume ― contribui para fortalecer a harmonia. No caso contrário, todo o peso do passado dos dois esposos tende, de alguma maneira, a desuni-los. É difícil prever até que ponto determinado comportamento material ou moral, perfeitamente natural num dado meio social, se poderá tornar um fator de perturbação e de escândalo noutro meio diferente.
Uma anedota vivida poderá ilustrar esta afirmação. Assisti um dia a uma conversa de uma velha caseira da minha terra com o filho que pretendia desposar a filha de um comerciante da aldeia. A mãe recusava o seu consentimento e, como ultima ratio, lançou-lhe, em tom de quem faz uma acusação infamante, estas palavras decisivas: «Não te cases com esta moça! Ela precisa de comer carne todos os dias». Esta reprovação estava perfeitamente justificada. Nos nossos campos, o consumo quotidiano de carne tornou-se, desde o fim da outra guerra, incompatível com as possibilidades materiais dos trabalhadores. Por isso, era espontâneamente considerado como um luxo condenável, uma espécie de vício. Confesso que escolhi um exemplo basto, um exemplo limite, se se quiser. Não deixa de ser certo, no entanto, que dois esposos, igualmente animados da melhor boa vontade, se arriscam a desconhecer-se e a chocar dolorosamente pelo simples fato de terem sido modelados por um clima social diferente. O peso dos costumes, as fatalidades do meio, é melhor tê-los como ajuda que como obstáculo à união. Bem sei que vencer tais dificuldades é próprio dos grandes caracteres. Mas refiro-me ao termo médio dos homens...
Poder-me-ão dizer que basta o afeto recíproco dos esposos para suprir todos os vínculos climatéricos, se assim lhes podemos chamar, e que o amor, possuindo todos os poderes, tem também todos os direitos. E eu peço então licença para refletir um pouco. Só conheço um amor que seja todo poderoso: aquele de que fala São João na sua definição de Deus: Deus est charitas. E, além disso, coisa curiosa, sempre notei que, quanto mais um homem proclama os direitos absolutos do amor, menos o amor opera nele milagres, e mais provável é que os seus amores acabem mal. É precisamente quando o amor julga ter todos os direitos que ele tem menos poder. E isto deve incitar-nos a procurar o que se esconde, na maioria dos casos, sob o belo nome de amor. E isso nos levará a falar das determinantes propriamente psicológicas da escolha nupcial.
CASAMENTO DE AMOR OU DE CONVENIÊNCIA
Seja-me desculpado o exumar esta velha síntese, já ultrapassada pelos costumes atuais; mas o simples fato de ela ter existido põe já um problema bastante difícil.
As dicotomias neste gênero são anti-naturais: nascem da decadência das almas e dos costumes. Aliás, em presença de muitas fórmulas deste tipo, interessa antes do mais, perguntar, a título de simples hipótese de trabalho, se as palavras não servirão para encobrir uma realidade absolutamente contrária ao que elas exprimem: fazem-se muitas descobertas com este método. Quando uma palavra está na moda, é muito freqüente que aquilo que ela designa seja muito raro ou ande muito adoentado no mundo; todos se precipitam então sobre a palavra como um álibi. No presente caso, eu poderia afirmar, se tivesse o gosto dos paradoxos verídicos como Chesterton, que não conheço nada menos conveniente que um casamento chamado «de conveniência», e nada mais egoísta do que um casamento chamado «de amor».
Os defensores dos «direitos do amor» não deixaram de pôr em manifesto ― sobretudo durante o século XIX ― as conseqüências lamentáveis dos casamentos impostos a dois seres por móbeis perfeitamente extrínsecos à atração dos corações (consideração de castas, de fortuna, de situação etc). Acusaram o «casamento de conveniência» de ser a causa de todos os desastres sociais. longe de mim o pensamento de tomar a sua defesa... Mas basta unicamente um olhar em volta de nós para nos apercebermos de que o «casamento de amor» está muito longe, também, de ser uma garantia segura de estabilidade e harmonia.
Dei-me ao trabalho de acompanhar na minha região alguns casos típicos de casamento de conveniência e de casamento de amor. No primeiro caso, tratava-se de jovens que se casavam quase sem se conhecerem, porque a situação moral e material das suas famílias era sensivelmente idêntica e porque tinha passado por ali um desses benévolos casamenteiros que abundam nos nossos campos. No segundo caso, os jovens casavam-se por pura inclinação recíproca, sem intermediários familiares, e muitas vezes mesmo contra a vontade das suas famílias. Pois bem. Enquanto que a maior parte dos «casamento de conveniência» davam origem a lares sãos e sólidos, era sobretudo entre os casamentos chamados «de amor» que se observavam os resultados pessoais e familiares mais negativos: esterilidades voluntária, desentendimento ou separação dos esposos, etc.
Na realidade, a conveniência e o amor representam aqui dois atentados contra a unidade da vida, duas idolatrias que se atraem.
Seja-me permitida, a este respeito, uma pequena digressão histórica. Nas épocas clássicas, as instituições morais, políticas ou religiosas, estavam acima dos indivíduos que as representavam e levavam atrás de si. A monarquia era mais do que o rei, o sacerdócio mais do que o padre. Isso explica que fosse então possível darem-se ao luxo de desprezar determinado rei ou determinado Papa, sem que o próprio princípio da monarquia fosse de modo algum posto em causa. Recordemo-nos, por exemplo, das invectivas duma santa, como Catarina de Sena, contra o clero do seu tempo, ou de um grande católico como Dante, que punha o Papa então reinante no inferno. Agora, como em todas as épocas de decadência, assistimos ao fenômeno inverso: as instituições só são toleradas e amadas através das pessoas: eis porque, seja dito de passagem, temos necessidade, mais do que nunca, de chefes políticos e religiosos íntegros e enérgicos. Agora mais do que nunca, o chefe que falta á sua missão, compromete a par da sua efêmera pessoa, o princípio eterno que representa. É um tanto ou quanto angustioso ver indivíduos fracos carregar sobre os seus ombros todo o peso das responsabilidades sociais. Julgais que os italianos e os alemães estavam tão vinculados ao princípio da ditadura como à primeira vista parecia? Absolutamente; era a pessoa de Mussolini e de Hitler que eles adoravam. E julgais também que é possível atualmente um anti-clericalismo que não seja ao mesmo tempo anti-religioso? Ah! Cada dia se torna mais difícil separar a causa das instituições da causa das pessoas...
A instituição matrimonial sofreu, como é natural, as mesmas vicissitudes. Outrora, as pessoas encontravam-se não somente subordinadas, mas ainda muitas vezes sacrificadas às instituições. No antigo regime (o mesmo estado de coisas se verifica, aliás, em todos os meios sociais, com exceção da classe estritamente proletária) uma moça estava votada ao matrimônio mais do que a um determinado esposo. As pessoas pouco importavam; o que importava eram as tradições e os quadros sociais. Isto não deixava de ter o seu lado bom. Primeiramente, nada impedia que um amor sólido e até apaixonado se enxertasse numa união contraída por razões de puro conformismo social. Depois, mesmo que a união lhes não desse nenhuma plenitude pessoal, os esposos tiravam dessas imensas reservas de força e de continuidade que são as instituições, o gosto e a coragem para permanecerem fiéis aos seus deveres (aliás, é próprio dos climas clássicos tornar espontâneo e como que natural o cumprimento dos deveres e de sacrifícios que num meio decadente exigem sobressaltos heróicos da personalidade). Quando a hora da tentação chegava, uma esposa do grande século lutava, não somente para permanecer fiel ao seu marido, mas ainda ― para além da personalidade deste ― para permanecer fiel ao matrimônio...
Enquanto estas tradições se mantiveram vivas, isto é, alimentadas de seiva cristã e apoiadas na pessoa de Deus, elas foram, a despeito dos excessos sempre inerentes a tudo o que é humano, sólidos tutores, apoios orgânicos para os indivíduos. Mas, desde que foram separadas do concreto divino, desde que degeneraram em formalismo exangue, converteram-se em cargas intoleráveis para os homens.
O casamento, tal como se efetuava em certos meios burgueses do século XIX recusava à pessoa original e livre, ao homem da carne e de alma, o seu lugar no mundo. A «lei» exigia do homem todos os sacrifícios, e isso sem lhe oferecer as profundas compensações concretas que acompanham toda a imolação de natureza religiosa. Então, como era natural, a reação produziu-se: a personalidade retomou o seu lugar. Que direi eu? Fez o que fazem todas as coisas que estão comprimidas e se revoltam: para retomar o seu lugar, ocupou todo o lugar! Subversão total de valores: imolavam-se os indivíduos às instituições; agora, imolam-se as instituições aos indivíduos. Proclamaram-se os direitos absolutos da escolha individual, pretendeu-se tudo submeter ao arbítrio do amor. O século XIX oferece o curioso espetáculo do conservantismo mais chão e mais esclerosado coexistindo com a febre individualista mais ardente.
Se aquilo a que os clássicos degenerados chamam ordem e lei não é mais do que a marca da impotência e da opressão, aquilo a que os românticos de todos os gêneros chamam amor, parece-se bastante a uma espécie de véu adulador lançado sobre a divinização da sensualidade e do eu. Muitos homens tomam por uma verdadeira paixão espiritual, por uma escolha profunda, o que na realidade não passa de uma paupérrima mistura de atração instintiva e de orgulho: nada de mais perfeitamente egoísta que certos casamentos de amor que nascem, não da união íntima de duas almas, mas da vulgar sede de uma felicidade superficial e imediata, de uma felicidade impermeável ao dever... E é essa a razão de que tantos descontentamentos se sigam a essas uniões: aquele que se casa sem consultar outra coisa em si que não seja a concupiscência dos olhos e o orgulho da vida, como diz São Paulo, no dia em que a lassidão ou uma nova paixão o invadirem, estará fortemente ameaçado, uma vez mais, de escutar «a voz do coração» e de exercer de novo «o seu direito ao amor». É difícil permanecer fiel a uma escolha operada pela arbitrariedade individual fora de influências supra-pessoais que emanem do meio moral e social.
A lei, separada de Deus e divinizada, não é mais do que uma abstração esgotadora. Mas o indivíduo concreto, igualmente separado de Deus e divinizado, converte-se também numa abstração sem força e sem vida. É preciso superar esta antítese. O divórcio moderno entre as instituições e os indivíduos acabará, ou nas piores catástrofes, ou numa síntese mais elevada e mais bela do que tudo o que até agora se viu. É possível conceber instituições mais adaptadas que as de outrora às necessidades e à dignidade das pessoas, e, por outro lado, pessoas mais respeitadoras que as de hoje, das instituições sociais e morais.
Já, em muitos casos, a escolha nupcial deixa hoje de ser uma escolha simplesmente «de conveniência» ou simplesmente «de amor», para se tornar uma escolha total, quer dizer, uma escolha de amor, mas de um amor bastante esclarecido para poder respeitar e para poder assumir, ao lado da atração individual dos corpos e das almas, não direi os preconceitos, mas as necessidades centrais da vida social. Uma escolha desse gênero ― é preciso dizê-lo ― só pode ser uma escolha impregnada de espírito religioso, uma escolha apoiada em Deus, Criador comum do indivíduo e da cidade; e no seio da qual se unem todas as coisas que, sob o clima essencialmente dissociador da idolatria, pareciam votadas a uma guerra eterna.
A VIDA COMUM
Depois destas declarações um pouco extrínsecas, voltemos à vida comum propriamente dita. A união dos esposos, para ser completa e fecunda deve repousar sobre quatro condições que separo por necessidade de exposição, mas que na vida se confundem até à identidade: a paixão, a amizade, o sacrifício e a oração.
CASAMENTO E VIDA SEXUAL
«Serão uma só carne», diz o Evangelho. Eu não concebo o casamento sem uma atração sexual recíproca.
Aqui há dois escolhos a evitar: a falta de atração sexual e o primado da atração sexual. O casamento deve encaminhar-se para a plenitude sexual que seja, ao mesmo tempo, uma plenitude humana; quer isto dizer que ele deve repousar sobre a atração dos sexos, mas sobre esta atração assumida, coroada e ultrapassada pelo espírito.
O homem tem sempre tendência para menosprezar aquilo a que os filósofos chamam causalidade material. Julgou-se durante muito tempo que se poderia estabelecer a união conjugal independentemente das regras da sexualidade. Nem a comunidade de meio ou de casta, nem a estima recíproca, nem o sentido do dever social ou religioso, podem suprir a paixão carnal quando esta falta. Quantas uniões soçobram por completo ou não conservaram mais do que a fachada legal por causa do desentendimento sexual! Há que confessar que a educação das moças, tal como se vinha fazendo durante séculos, constituía, sob este aspecto, um paradoxo de que não nos assombramos ainda bastante. Educavam-se as meninas num misto de ignorância e de horror às coisas da carne, e depois lançavam-se de um dia para o outro, sem outra precaução, numa situação em que as coisas, ainda ontem revestidas de uma espécie de mysterium tremendum, se deviam tornar, sem transição, num hábito e num dever! Como admirar-se, depois disto, do fracasso total ou parcial de tantas uniões preparadas com semelhante desprezo das exigências elementares da vida?
Porém, uma união fundada sobre a atração exclusiva dos sexos não é também uma união verdadeiramente humana. Separados das raízes, o caule e as flores murcham, mas a raiz por sua vez apodrece sempre que a não prolongam e dominam, o caule e as flores. Não há nada tão vulgar, tão vazio sob o brilho das aparências, nem tão frágil e vulnerável ao tempo como um amor dominado pelo impulso dos sentidos.
Disse-se que o matrimônio não resolve o problema sexual. Isto é verdade se se faz do problema sexual um absoluto, se se diviniza a carne separada da alma (o culto da carne, a sexolatria, é uma das pragas do nosso tempo); mas é falso se se põe a sexualidade no seu devido lugar, se a considerarmos já não como um todo autônomo, mas como uma parte ligada organicamente a um conjunto e impregnada por este conjunto. As reivindicações de certos apóstolos da sexualidade baseiam-se na confusão do sexo e da alma, do sexo e de Deus. Nós, pelo contrário, não queremos uma plenitude sexual comprada em troca da plenitude humana; não temos nenhum gosto pelos costumes que, sob pretexto de satisfazerem plenamente o sexo, tornam o homem vazio de tudo o mais. Só o casamento pode satisfazer o instinto sem degradar a pessoa.
A este respeito seja-me permitido esvaziar um dos balões da psicologia contemporânea em que mais se soprou. Pretendo referir-me ao suposto «instinto poligâmico do sexo masculino» ― esse pobre instinto que a instituição de casamento condena a tão tristes renúncias! Pois bem. Na verdade, não há instinto poligâmico. O instinto enquanto tal, isto é, o instinto considerado na sua pureza biológica e virgem de qualquer infiltração espiritual, não é nem poligâmico nem monogâmico. É realmente neutro em relação à fidelidade e à mudança; está mais aquém dessas categorias... O instinto sexual de um animal tende para a fêmea; é-lhe absolutamente indiferente que esta seja a mesma ou outra. Sem dúvida, se uma nova fêmea se apresentar, ele deseja-la-á, mas este desejo irá dirigido àfêmea e não à outra: acomodar-se-á tão bem a esta como à que possuía ontem ou no ano passado, sempre e quando ela preencha as condições fisiológicas desejadas... O que impele o homem para a poligamia é a curiosidade, é o pecado do espírito infiltrado no instinto. O instinto puro deseja a outra enquanto mulher; a curiosidade sexual deseja a mulher enquanto outra. É uma grande ilusão pensar que os impulsos sexuais de um homem civilizado são exclusivamente feitos de instinto sexual; não se sabe até que ponto poderá o instinto estar aqui ao serviço da vontade de poder, da sede de conhecer e de dominar. Se fosse doutra maneira ver-se-iam acaso tantos homens pôr tanto empenho em seduzir mulheres que são muitas vezes inferiores, sob o ponto de vista fisiológico, à sua própria esposa? Quando um homem luta por permanecer fiel a uma mulher amada, não é o ideal que luta nele contra o instinto ― são antes dois «ideais» que se enfrentam, e o combate é sobretudo espiritual. O ideal monogâmico luta, então, contra essa espécie de ideal negativo que é o instinto sexual impregnado e depravado pelo apetite de mudança, de conquista e de conhecimento; luta contra uma das múltiplas facetas dessa mentirosa, dessa infernal sede de infinito que, a partir do pecado original, consome o homem. A fidelidade conjugal não é um problema fisiológico, é um problema moral. Se a alma é profundamente, simplesmente monogâmica, o instinto segui-la-á sempre. Pode-se repetir com Cristo: se o teu olho é simples, todo o teu corpo será luminoso.
A castidade conjugal reside, como antes dissemos, não na negação da carne em proveito da alma, mas na adoção, no «envolvimento» da carne pela alma. Nietzsche disse sobre isso palavras definitivas: «No verdadeiro amor, é a alma que 'envolve' o corpo».
Existe um materialismo da vida em comum. É o casamento baseado unicamente nas alegrias carnais. Mas existe também um pseudo-idealismo amoroso que julga desprezar a carne, mas que na realidade está feito não de espírito, mas de uma sensualidade impotente e turva. Estas duas aberrações «mutiladoras» são igualmente de evitar. A vida em comum deve ser de um realismo total, de um realismo centrado no alto, mas estendido a todo o homem. Os esposos devem educar-se, não renunciando à carne como os ascetas, mas, o que é talvez mais difícil, arrastando a carne na ascensão da sua alma.
Sem dúvida, este ideal plenamente humano implica fatalmente sacrifícios de ordem sexual. O primeiro destes sacrifícios é a adaptação à estrutura sexual do cônjuge. Convém não esquecer, como parecem fazê-lo alguns apóstolos dos direitos imprescritíveis do sexo, que o exercício da função sexual, diferentemente de outros instintos, como a nutrição por exemplo, exige companheiro. Ora, a constituição sexual da mulher e, por conseguinte, os seus gostos e as suas necessidades sob este aspecto, são muito diferentes das do homem. Além disso, é preciso ter em conta as divergências individuais resultantes do temperamento, da educação etc. Se cada um dos cônjuges não procurasse senão a sua própria satisfação que sucederia? O mais elementar sentimento do dever conjugal ensina aos esposos a subordinar sempre a alegria que recebem à alegria que dão. No casamento, o máximo da plenitude sexual recíproca só poderá ser atingido se cada um dos esposos consentir em sacrificar, em certa medida, a sua plenitude sexual individual.
Pode acontecer também que em virtude de necessidades biológicas, sociais ou morais, o sacrifício total dos prazeres da carne seja imposto aos esposos. É preciso então que este sacrifício seja um autêntico sacrifício, isto é, uma imolação reta e franca, a plena luz, sem subterfúgios, sem segundas intenções, sem compensações equívocas. Precisemos: este sacrifício não deve ser um recalcamento. O verdadeiro sacrifício, imolando o instinto, sublima-o e transfigura-o; o recalcamento limita-se a transpô-lo, a disfarçá-lo, a fazer dele uma força vergonhosa e assolapada que recai sobre o espírito e o contamina, uma fonte de ressentimentos, de falsos ideais, de virtudes farisaicas. Depois de Nietzsche e de Freud é inútil insistir na descrição deste quadro... o verdadeiro sacrifício alimenta a alma, o recalcamento envenena-a.
Haveria muito que dizer sobre esta sublimação dos instintos nos esposos votados a uma continência permanente ou transitória. Uma análise diferencial da sexualidade superior no homem e na mulher seria muito elucidativa a esse respeito. Mas o problema é demasiado vasto e demasiado delicado para poder ser abordado aqui. Contentemo-nos com fazer notar que, quando os dois esposos sacrificam as suas relações de ordem puramente genésica, o homem sublima normalmente o seu instinto sexual em pensamento, em ideal extra-pessoal e a mulher em ternura. Se a mulher é muito menos carnal que o homem no exercício material da sexualidade, é-o muito mais nas suas sublimações mais sãs. A compenetração da carne e da alma existe nela num grau desconhecido para o sexo oposto; nas emoções mais carnais ela põe mais alma que o homem; pelo contrário, mistura muito mais do que ele a carne nas paixões do espírito. Freqüentemente sucede que, quanto mais uma mulher se encontra privada de satisfação sexual completa, mais carinhosa ela se torna: a sua sexualidade, muito menos localizada e brutal, muito menos animal, por assim dizer, que a do homem, encontra muitas vezes nas mais inocentes satisfações de ternura uma satisfação suficiente. Porém as próprias carícias que para a mulher substituem a plena posse carnal, apenas conseguem, no homem, preparar esta posse e, em vez de acalmar o instinto, exacerbá-lo mais. Se as mulheres soubessem isto, creio que a continência conjugal se tornaria em muitos casos mais fácil.
Subordinado deste modo o amor ao dever e como que embebido no espírito, a união dos corpos fica revestida do seu mais profundo significado e realiza a sua finalidade verdadeiramente humana. Não é já unicamente a sociedade de dois desejos soldados um ao outro, a conjunção de dois egoísmos; é a expressão mais forte que pode existir da doação mútua e como que o selo material, o símbolo sensível da união das almas. Sob este aspecto, a posse corporal confere ao amor um não se quê de acabado e de irrevogável que só os verdadeiros esposos conhecem. E é uma grande tristeza ver tantos seres humanos ― e entre estes tantos esposos ― profanar este sinal sagrado do amor e abandonar a sua carne enquanto reservam a sua alma. Em vez de ser posta em primeiro lugar e, muitas vezes, de andar sozinha, a união dos corpos deveria seguir e prolongar um dom superior,descer da plenitude do amor. Assim abandona o ramo à terra o seu fruto e o céu o seu orvalho.
O significado profundo da sexualidade reside no uso que o homem dela faz. Segundo o modo como ela é vivida, usada pela personalidade, poderá tornar-se na mais forte manifestação do amor espiritual ou no pior obstáculo a este amor. De resto, o instinto sexual não pode nunca exercer-se na sua pureza e simplicidade animais. É preciso que se remonte mais acima ou caia mais abaixo de si mesmo. Se se não elevar para Deus descerá para o diabo. Se não é amor, tornar-se-á luxúria. Muitas vezes se tem pretendido que os dois esposos (e o marido em particular) se podem entregar a todos os seus impulsos inferiores e cometer carnalmente o adultério enquanto se mantém fiéis na alma. Hipócrita justificação da pior das desordens! Como se a carne não estivesse, ainda no seu fundo, impregnada pela alma! Como se a alma estivesse cativa e não fosse a forma do corpo!
Bem sei que um tal grau de integração espiritual do instinto não é coisa vulgar nem fácil. Falo dele como de um ideal que os esposos não deveriam nunca perder de vista, por maiores que sejam as suas fraquezas e os seus desfalecimentos concretos. Porque, se viver na mediocridade é de si um mal, consentir na mediocridade é uma espécie de mal supremo, de pecado contra o espírito.
CASAMENTO E AMIZADE
Não é sob a paixão carnal, e não é também ― porque não existem no homem paixões puramente animais ― sobre essa espécie de ternura superficial que nasce da emoção sexual, sobre esse sentimentalismo de romance e de café-concerto que se pode fundar uma união sólida e pura. A vida em comum exige uma comunhão muito mais profunda, muito mais universal. O amor dos esposos, para ser verdadeiramente amor e não um capricho do instinto, deve ser também uma amizade.
Nietzsche diz algures que todo o homem, antes de se casar, deveria fazer a si próprio uma pergunta: Serás capaz de conversar com esta mulher em todos os dias da tua vida? E, realmente, não há pior solidão que viver junto a um ser ao qual nos une unicamente uma atração subordinada ao instinto. A carne, como tal, não é a porta da alma. Com razão escreveu o poeta:
«A tua carne, impenetrável à força da proximidade, pedra tão suave e tão dura, onde se afia a minha solidão.
«A tua carne que eu toco e que não sabe o caminho da minha essência e do meu centro
«Enquanto que a mais longínqua estrela corre dos meus olhos até ao meu coração».
E Paul Géraldy, que tão bem expressou, no seu pequeno livro Toi et Moi a miséria desta ternura epidérmica de colorido puramente sexual que tantos modernos tomam por amor, faz dizer o amante à amante: «Se fosses um homem, seríamos amigos?»
O instinto sexual, com efeito, é o isolamento. Os animais procuram-se e acasalam-se, mas, psiquicamente, continuam totalmente impermeáveis um ao outro. Acontece-me muitas vezes contemplar o soberbo pavão que ornamenta a minha capoeira: ele empertiga-se, espilra, arma a cauda, reveste-se de todo o seu atrativo sexual sem que a fêmea se digne premiá-lo com a menor atenção; cada um evolui na sua esfera impenetrável como as mónadas sem janela de Leibnitz, e quando se juntam, pensa-se, na realidade, nalguma harmonia pré-estabelecida, mais do que numa simpatia, no sentido psicológico da palavra. Se uma tal solidão pudesse ser consciente, seria a coisa mais trágica e mais insuportável do mundo.
O instinto sexual é também guerra. Nenhum amor está tão próximo do ódio como este. A brutalidade do macho e a astúcia e a coqueteria da fêmea demonstram suficientemente a tensão entre os dois sexos. Naturalmente este dualismo biológico foi consideravelmente agravado e infectado pela malícia do homem pecador. Quando o eu (no sentido «pascaliano» e pejorativo do termo) se sobrepõe, com o seu orgulho e a sua vontade de poder, ao instinto sexual, o amor converte-se na guerra mais surda que se pode imaginar. Então, a própria atração exercida pelo ser «amado» se transforma em tortura e veneno. Aos psicólogos que pretendem que o amor do homem e da mulher está baseado no ódio mortal dos sexos, não lhes faltariam argumentos concretos. Que outra coisa é a mulher fatal e pérfida (Dalila, Cleópatra, etc.), tal como a história no-la revela, senão uma mistura de instinto sexual e de pecado ― uma fêmea em cuja carne se enxerta não uma alma, mas um eu que a corrompe? Ora, a verdadeira mulher é, antes de mais, uma alma.
O instinto sexual é também a indiferença em relação à personalidade. O instinto procura no outro a sua própria satisfação e não o ser singular que o satisfaz. «Gostarias menos de mim se eu fosse um outro?», pergunta ainda Géraldy. Nem mais, nem menos, se é apenas o instinto que está em jogo. Vimos já que os problemas de fidelidade e de mudança não tinham qualquer entrada neste domínio.
A amizade, essa, penetra o objeto amado, vive da sua vida, desposa a sua alma. E, deste modo, destrói a solidão interior que afeta os seres a quem um mero instinto sexual aproxima.
A amizade é também portadora de paz. Corrige e domina a tensão inerente ao dualismo sexual. No amor dos sexos, conserva o ardor e acalma o conflito. Ensina o homem a dominar sem brutalidade e sem jactância e a mulher a dar-se sem baixeza e sem artifício. Aqui devemos destacar um ponto em particular. O homem só conta com o amor espiritual para vencer em si a inconstância e a guerra sexual, enquanto que a mulher, além deste amor, possui ainda um outro instinto que, misturado à sexualidade, assegura a esta uma estabilidade e uma profundidade que não estão na sua natureza. Refiro-me ao instinto mais elevado e mais puro que existe, à maravilha biológica por excelência: o instinto maternal. A mulher, com efeito, pode realizar o prodígio (inteiramente desconhecido no mundo animal) de fazer convergir para o mesmo ser, o seu instinto sexual e o seu instinto maternal. Julgo que não exagero se disser que o primeiro filho de qualquer mulher, que nasceu realmente para ser mãe, é o seu esposo. E penso que é essa uma das mais profundas raízes da perenidade do amor feminino.
Enfim, a amizade, que está feita de atração e de escolha pessoais, dá à personalidade o seu lugar no amor e substitui a ligação necessariamente efêmera de dois egoísmos pela união estável de dois seres eleitos um para o outro e insubstituíveis um para o outro.
Só a amizade permite aos esposos compreenderem-se. Mas como esta mesma amizade, por mais espiritual que seja, fica enraizada na sua constituição (e por conseguinte na sua diferença) sexual, reveste-se, de um lado e de outro, de formas muito diferentes. Para melhor se compreenderem ― e, portanto, para melhor se amarem ― os esposos devem compreender antes de mais com que espécie de amor são amados um pelo outro. Um amor mal compreendido pelo ser amado está mais exposto a ferir ou a cansar este do que talvez a própria indiferença.
O Larousse do século XX diz-nos no artigo Mulher que o traço dominante do caráter feminino é oegoísmo. Todos sabemos, por outro lado, quanto as mulheres têm o costume de se queixarem do egoísmo masculino. Na realidade, o homem e a mulher têm cada qual o seu modo específico de egoísmo e de amor.
É sabido ― e não insistirei mais sobre este ponto já tantas vezes tratado ― que o amor da mulher se dirige em geral para objetos, não direi mais concretos, mas mais imediatos, mais materiais, se se quiser, do que o amor masculino. O ideal da mulher está muito mais «encarnado» que o do homem. A mulher foi criada para se sacrificar pelos seres que a rodeiam e que conhece, e assegurar o futuro imediato da humanidade. O homem, pelo contrário, está votado a um dom mais universal; a sua missão é entregar-se ― desgastar-se muitas vezes ― por fins sem dúvida igualmente reais, mas muito menos próximos no tempo e no espaço. A mulher vela pelas subestruturas, o homem pelas superestruturas. E não creio que estas duas funções ganhem nada por estarem invertidas como o estão freqüentemente nos nossos dias (há que confessar, no entanto, que com algumas exceções). A consciência pública considera espontaneamente um fraco, e até como um covarde, um homem que, ao ter de optar por uma coisa ou por outra, sacrifica a sua missão na sociedade ao amor de uma mulher (será preciso recordar o recente exemplo do rei de Inglaterra?), ao passo que uma mulher que, em face de idêntico dilema, renunciasse a um ser amado para fazer política ou filosofia, seria, com razão, tida por ridícula. O heroísmo está polarizado de uma maneira muito diferente segundo os sexos... E o egoísmo também (refiro-me ao egoísmo normal, ao egoísmo bom): o da mulher consiste em abstrair das coisas longínquas e universais para melhor se dedicar às coisas próximas; o do homem em desprezar, em certa medida, as coisas imediatas com vistas a um dom mais elevado e mais longínquo. Esta divergência não se pode dar sem certos choques.
Um homem, por exemplo, fica um pouco desiludido quando, no meio de uma conversa em que ele expõe com entusiasmo à sua mulher as suas mais caras convicções, esta o interrompe para lhe dizer: «A propósito: E se eu fizesse um soufflé com queijo para o jantar?». Inversamente, as mulheres espantam-se muitas vezes da falta de delicadeza e de atenção dos homens em mil pequenas circunstâncias da vida quotidiana. Para não sofrer com estas coisas é preciso compreender o cônjuge e saber que se pode ser amado por ele tanto ou mais do que o amamos, mas não com o mesmo amor. Além disso, entre os esposos, a reciprocidade do amor dá sempre origem a uma certa identidade de amor. O afeto da mulher universaliza-se em contato com o ideal do seu marido; do mesmo modo, o amor do homem ganha em delicadeza concreta em contato com a ternura feminina. A vida em comum preta a cada um dos cônjuges o maior serviço que pode receber um ser limitado e unilateral; ser salvo de si mesmo...
Uma outra diferença essencial na estrutura do amor dos esposos. O afeto feminino é infinitamente menos dependente do intelecto que o do homem. Existe, na mulher, uma espécie de autonomia do coração. Um homem ama uma mulher pelas suas qualidades: (tem ou julga ter razões para amar) justifica o seu amor em face da sua consciência. Uma mulher, pelo contrário, amará um homem por si mesmo. Um homem dirá: Amo-te porque tu és bela, ou meiga, ou boa, etc. A mulher dirá simplesmente: Amo-te porque te amo! Para o homem, amar é preferir. Para a mulher, amar é não comparar. Percebe-se o matiz...
É um lugar comum dizer que o amor da mulher é mais «cego» que o do homem. O que menos se tem feito notar é o seguinte: o amor feminino, precisamente porque é cego, como o amor, porque se apóia pouco nas razões de amar, permite uma maior clarividência em relação ao ser amado e nutre-se menos de ilusões. Na medida em que o amor é independente do intelecto, o intelecto pode, por sua vez, funcionar independentemente do amor. E é isto precisamente o que acontece na mulher. Ao contrário do homem, em quem o amor, ligado a juízos, a comparações, se sente ameaçado pela revelação das falhas do ser amado e reage através de ilusões, a mulher pode dar-se ao luxo de julgar lucidamente aquele que ama, sem que o seu amor diminua por isso. Para além das qualidades banais e como que provisórias que motivam a maior parte das vezes o afeto masculino, o seu amor, atinge, por assim dizer, a substância única e eterna do ser; situa-se espontaneamente para além da decepção, não necessita do apoio das ilusões. É por isso que se encontram tantas mulheres inflamadas de amor e de admiração por um homem e, ao mesmo tempo, conscientes de todos os pequenos defeitos desse homem. É por isso também que nos podemos mostrar tal qual somos diante de uma mulher, descer ao limite inferior de nós próprios sem pôr em perigo o seu amor (é típico, a este respeito, o exemplo das esposas dos criminosos). E creio, além disso, que há um grande número de homens que, julgando as mulheres pelas suas medidas, se crêem obrigados, para conquistar ou para as reter, a dissimular as suas fraquezas, a tomar atitudes falsas ou lançar-lhes poeira para os olhos. Não conseguem com isto, acrescentar o amor das mulheres, porque isso não é necessário, mas fazer com que se riam deles. Era o que fazia dizer a Toulet: as mulheres sabem muito bem que os homens não são tão bestas como se julga ― são bem mais...
Se a carne pode aproximar um do outro o homem e a mulher, só a amizade os pode abrir um ao outro. Não obstante, e a precedente análise o revela suficientemente, esta amizade só muito raramente poderá atingir essa perfeita transparência intelectual que constitui o único encanto das amizades entre os homens. Os dois sexos, porque são complementares e portanto diferentes, permanecem sempre um pouco opacos um ao outro; mais ainda, o amor que os une alimenta-se deste mistério recíproco, repousa em parte na impossibilidade de «se compreenderem» inteiramente: o que nos atrai num amigo é aquilo que sabemos dele; na mulher, aquilo que ignoramos (a isso nos conduz a consideração de que enquanto a amizade cresce na medida em que penetramos na alma do amigo, o amor muitas vezes decresce na medida em que despimos a mulher do seu mistério, como diz Proust). É preciso aceitar este estado de coisas. Creio que muitos esposos se encontram desiludidos porque o seu amor estava excessivamente carregado de exigências intelectuais. Quereriam possuir a esposa tanto pelo pensamento como pelo coração. Mas, se compreendessemos uma mulher a esse ponto, já a não poderíamos amar, porque deixaria de ser uma mulher, isto é, o ser estranho que nos completa. Poderíamos pôr ao invés o verso de Géraldy e dizer ao amigo mais querido: se fosses mulher, seríamos amantes? No casamento ― não pretendo levar demasiado longe a analogia, mas ela existe ― é preciso, como na vida mística, aprender a respeitar e a amar o que não se compreende totalmente. O amor da criatura, também ele, exige atos de fé.
VIDA CONJUGAL E SACRIFÍCIO
Se há tarefa tragicamente urgente para o moralista moderno é a de lembrar aos homens a noção do sacrifício. Todos os desastres, todas as misérias do casamento, procedem do esquecimento desta necessidade. Não concebo um casamento feliz sem sacrifício mútuo. Não há nisto nenhum paradoxo. A primeira condição da felicidade é não a procurar. Nesta ordem de idéias é lícito dizer, pondo ao contrário as palavras evangélicas: Não procurei e encontrareis.
Um homem nobre esforçar-se-á por viver como um homem; um homem vil procurará viver feliz. O último procurará na terra as coisas e os seres que o poderão satisfazer; o primeiro procurará os seres e as coisas a quem se possa imolar. Não «arranjamos» uma esposa, damo-nos a ela. Casar é talvez o modo mais direto e mais exclusivo de deixar de pertencer-se. Chesterton, lendo um jornal americano onde dizia: «Todo o homem que se casa se deve convencer de que renuncia a cinqüenta por cento da sua independência», fazia notar: «Só no Novo Mundo é possível um otimismo deste gênero!».
O segredo da felicidade conjugal está em amar esta dependência. O ser que vive ao nosso lado, devemos amá-lo menos na medida do que nos dá que na medida do que nos custa.
A vocação do casamento consagra-nos ao nosso cônjuge. Estas palavras têm um grande alcance. Dão sentido a todos os nossos deveres e a todas as dores da vida comum. Fazem sobretudo da felicidade conjugal, não há uma espécie de sacrifício estéril, mas um ato religioso do mais alto valor humano.
Já não sabemos ser fiéis porque não sabemos sacrificar-nos. Tantos homens há que só amam pelo prazer imediato... Condenam-se, deste modo, a conhecer apenas a superfície do objeto amado, e, quando esta superfície os desilude, a trocá-lo por uma outra superfície, e assim por diante.
Andar à volta de tudo e não chegar ao centro de nada, não será o que alguns denominam plenitude e liberdade? É de tal maneira mais fácil correr do que aprofundar! Mas aquele que quer saborear a profundidade de uma criatura deve saber sacrificar-se por essa criatura; o seu amor deve superar as decepções, superar o hábito; mais ainda, deve alimentar-se dessas decepções e desse hábito. O amor humano tem a sua aridez e as suas noites; também ele não encontra o seu centro definitivo senão para além da prova sofrida e vencida. Mas, uma vez chegado a esse ponto, ele saboreará a riqueza, a pureza eterna da criatura pela qual se imolou. Porque, se a criatura é tremendamente limitada em superfície, é infinita em profundidade. É profunda até Deus. Sempre cantaram os poetas esta captação amorosa do eterno através do ser efêmero:
Tu que passas, tu que desvaneces,
busquei-te para além dos dias e das sombras,
sobre as praias invariáveis da vontade eterna...
Desci às tuas entranhas,
mais além dos latidos do teu coração,
mais adentro que a fonte das tuas promessas
até ao centro solene onde a tua vida se une à Vida,
até ao fremir irrevogável,
até à palpitação criadora de Deus!
― Eu amo a tua alma!
Chegou a falar-se do que a vida conjugal tem de banal, de monótono, de terra à terra. Bem sabemos quanto o homem é capaz de banalizar e de prostituir as coisas mais profundas. Mas, se a vida conjugal é muitas vezes vulgar, que se poderia dizer da vida sexual extra-conjugal? Creio que uma das mais sutis malícias do demônio é tentar persuadir os homens de que a ordem é a morte e a desordem a vida. Na realidade, nada mais vulgar do que o vício. O demônio não é profundo ― não é mais do que um revoltado. É um desertor que tenta fazer-se passar por evadido...
As humildes realidades da vida quotidiana, o cortejo de pequenos deveres e de pequenos sofrimentos, em nada deverão alterar a pureza do amor nupcial. O verdadeiro ideal tira nova seiva destas pequenas coisas. O realismo da vida conjugal não tem por função profanar ou estiolar o ideal primitivo dos esposos, mas purgar este ideal das ilusões que com ele se misturam, e não reter dele mais do que a sua suprema essência. Na alma dos esposos que são dignos desse nome, a união do mais elevado amor e das necessidades mais terrenas, mais materiais, cria uma espécie de síntese do ideal e do real, uma espécie de realismo do ideal, se assim me posso exprimir, que em parte alguma poderá existir em tal grau.
Josefina Soulary disse que Deus «se só estivesse lá em cima, não estaria em parte alguma».
O casamento é, por excelência, a vocação que permite pôr Deus no que a vida tem aparentemente de mais comum e de mais banal.
Ia-me esquecer de uma observação importante. O casamento deve ser um sacrifício, é certo. Mas um sacrifício recíproco. Haverá algo de mais vão, de mais prejudicial mesmo, do que uma imolação em sentido único? Dois egoísmos juntos travam-se mutuamente e, de certo modo, neutralizam-se. Que caldo de cultura não seria para as tendências egoístas de uma criatura o sentir em torno de se uma atmosfera de dedicação infatigável! Todos conhecemos lares em que o espírito de sacrifício de um dos esposos faz do outro um monstro de exigência e de egoísmo. Cada esposo deve tirar do espetáculo de generosidade do seu cônjuge, não um pretexto para fazer as suas vontades, mas um motivo para se imolar mais a si mesmo.
AMOR E ORAÇÃO
Sacrificar-se a uma criatura, amá-la apesar do seu nada, por causa do seu nada, amá-la com um amor mais forte e mais puro que o desejo de felicidade, tudo isto só é possível se o amor humano se conjuga e se amalgama com o amor eterno.
Não convém divinizar o ser amado. Esta idolatria conduz, a breve prazo, à indiferença ou à repulsa. O autêntico amor nupcial acolhe o ser amado não como um Deus, mas como um dom de Deus em que todo o divino está escondido. Não o confunde nunca com Deus e não o separa nunca de Deus.
«Ela olhava para o alto e eu olhava nela», escreve Dante falando de Beatriz. Nisso reside o supremo segredo do amor humano; beber a pureza divina nos olhares, na alma, no dom de uma criatura.
«Sentir como o ser sagrado freme no ser querido», assim definia magnificamente Vitor Hugo, o grande amor. Num tal grau de amor, o ser amado é verdadeiramente insubstituível: dado por Deus, ele é único como Deus; um mistério inesgotável habita nele. Os verdadeiros esposos conservam eternamente almas de noivos; a posse aprofunda para eles a virgindade. Quanto mais são um para o outro, mais fome têm de ser um para o outro. É uma maneira sagrada de possuir as coisas que, em vez de matar o desejo, como na satisfação da carne, o exalta e transfigura. Aquele que beber desta água terá ainda sede... Como poderia estiolar-se o amor dos esposos, se eles foram criados e unidos para dar Deus um ao outro? A vida dos dois desenvolve-se e torna-se infinita numa oração única.
(Gustave Thibon, O Que Deus Uniu, Editorial Aster Ltda., Lisboa 1956)