Durante as considerações feitas sobre o espírito prussiano, estivemos observando um fenômeno que parece ser, principalmente, uma limitação mental: uma espécie de nó no cérebro. Perante o problema da população eslava, da colonização inglesa ou do armamento e reforço do exército francês, a mesma estranha má disposição filosófica se manifesta. Na medida em que a posso acompanhar, seria possível resumi-la nesta frase: “É muito injusto que vocês sejam superiores a mim porque eu sou superior a vocês”. Os porta-vozes desse sistema parecem dotados de um curioso talento de concentrar confusões ou contradições no mesmo período e muitas vezes na mesma frase. Já mencionei a famosa sugestão do Imperador da Alemanha que nos incitava a nos tornarmos hunos para conjurar o perigo dos hunos. Um exemplo mais eloqüente é o da ordem que recentemente transmitiu às tropas em guerra no norte da França. Como muita gente sabe rezava assim a ordem: “É meu Real e Imperial desejo que concentreis vossas energias, no presente momento, sobre um único objetivo e que apliqueis toda vossa habilidade e todo valor de meus soldados em exterminar antes de tudo os traidores ingleses e em esmagar o desprezível pequeno exército do general French”. A grosseria da observação pode não ser levada em conta por um inglês; o que me interessa é a mentalidade, é o encadeamento de idéias que consegue se embaraçar em tão curto espaço. Se o pequeno exército de French é desprezível, parece evidente que o valor e a capacidade do exército alemão andaria mais avisado não se concentrando sobre ele, e sim sobre maiores e menos desprezíveis forças. Se todo valor e recurso do exército alemão se concentra contra o exército de French, então ele não está sendo considerado como pequeno e desprezível. Mas o retórico da Prússia tem dois sentimentos incompatíveis no espírito, e insiste em enunciá-los ao mesmo tempo. Ele precisa considerar o exército inglês uma pequena coisa, mas precisa também considerar a derrota inglesa uma grande coisa. Tem necessidade de exultar, no mesmo momento, com a completa fraqueza de um ataque inglês, e com a habilidade e o valor dos alemães que repelirem aquele ataque. É preciso, de qualquer maneira, apresentar o mesmo fato como um esperado e banal colapso inglês, e como um ousado e inesperado triunfo alemão. Tentando exprimir simultaneamente essas percepções contraditórias, ele tornou-se um pouco confuso. E por isso ele incitou a Alemanha a cobrir todos os seus vales e montes com os espasmos de agonia desse inseto quase invisível; e a tingir de vermelho as águas do Reno, até o mar, com o impuro sangue dessa barata. Seria, entretanto, injusto basear uma crítica nas alocuções de um príncipe acidental e hereditário, mas o fato é que o mesmo fenômeno aparece com igual evidência nas palavras dos filósofos que têm sido apresentados, mesmo na Inglaterra, como os verdadeiros profetas do progresso. E em circunstância alguma aparece com maior nitidez do que no confuso discurso sobre raça; e ainda mais especialmente sobre a raça teutônica. O professor Havnack, e os indivíduos de sua espécie, nos censuram, se bem os compreendi, pelo fato de termos rompido os “laços do teutonismo”, laço este que os prussianos teriam observado estritamente, tanto nas observâncias como nas brechas. Temos a prova disso na completa anexação de terras exclusivamente habitadas por negros, como a Dinamarca. Outra prova nós temos na rapidez e na alegria com que eles reconheceram os cabelos claros e os olhos azuis dos turcos. Mas é, sobretudo, o princípio abstrato do Professor Havnack que mais me interessa; procurando segui-lo, tenho sempre a mesma complexidade na investigação, mas a mesma simplicidade no resultado. Comparando o meticuloso escrúpulo do Professor a respeito do Teutonismo, com sua displicência a respeito da Bélgica, não posso evitar a seguinte conclusão: “Um homem não precisa manter o que prometeu; mas deve manter o que não prometeu”. Havia certamente um tratado que ligava a Grã-Bretanha à Bélgica, admitindo mesmo que não passasse de um farrapo de papel. Se existia algum tratado ligando a Grã-Bretanha ao Teutonismo, o menos que dele se pode dizer é que é um farrapo de papel perdido. Quase poderíamos dizer que é um farrapo de papel de embrulho. Neste ponto, ainda uma vez, os pedantes que estamos considerando exibem uma perversidade ilógica que produz vertigens em nosso espírito. Há obrigações, e não há obrigações: às vezes parece que a Alemanha e a Inglaterra devem manter mútua fidelidade; às vezes parece que a Alemanha não precisa manter fidelidade alguma. Hoje somos nós os únicos, entre os povos da Europa, que quase merecemos o título de germânicos; amanhã, também os russos e franceses são considerados como se quase alcançassem o encantador caráter alemão. Mas através de tudo isto subsiste, brumoso mas não hipócrita, o sentimento de um teutonismo comum.
O Professor Haeckel, uma das outras testemunhas invocadas contra nós, adquiriu um dia certa celebridade quando demonstrou a notável semelhança de duas coisas diversas, fazendo imprimir duas vezes a imagem da mesma coisa. A contribuição do Professor Haeckel em biologia, nesse caso, era exatamente igual à contribuição do Professor Havnack em etnologia. O Professor Havnack sabe como é a cara de um alemão; quando deseja ter uma idéia da cara de um inglês, torna a fotografar, simplesmente, o mesmo alemão. Em ambos os casos há provavelmente tanta sinceridade quanta simplicidade. Haeckel estava tão certo da relação e da ligação existentes entre as espécies ilustradas em embrião que lhe pareceu mais fácil simplificar tudo por meio de uma repetição. Havnack tinha tamanha certeza da semelhança existente entre alemães e ingleses, que não hesitou em arriscar a generalização, dizendo que eles são exatamente iguais. Ele fotografa, por assim dizer, a mesma cabeça loura e tola duas vezes, e depois assinala a notável semelhança desses dois primos. Assim consegue ele provar a existência do teutonismo tão irrefutavelmente como Haeckel provou a proposição mais sustentável da não existência de Deus.
Ora, o alemão e o inglês não são de modo algum parecidos — exceto no sentido de não serem negros tanto um como outro. Eles são realmente, nos defeitos e nas qualidades, mais diferentes do que qualquer par de homens tomados ao acaso na grande família européia. São antagônicos pelas raízes de suas histórias e, ainda mais, por suas geografias. Não basta dizer que a Grã-Bretanha é um país insular. Sob os golpes do mar, a Grã-Bretanha é uma ilha quase dilacerada em três ilhas, e nos seus recantos mais abrigados e mais interiores ainda se pode sentir algum cheiro de sal. A Alemanha é um belo, poderoso e fértil país continental que só pode alcançar o oceano por um ou dois caminhos estreitos e tortuosos, como os que vão ter aos lagos subterrâneos. Por isso a marinha britânica é realmente nacional porque é natural; ela ganhou corpo à custa de centenas de acidentais aventuras com navios e marinheiros, antes e depois de Chaucer. Mas a marinha alemã é uma coisa artificial; tão artificial como seria a construção de uns Alpes na Inglaterra. Guilherme II copiou simplesmente a marinha britânica como Frederico II copiou o exército francês: e essa insistência na imitação, de japonês ou de formiga, é uma das mil qualidades que os alemães possuem e de que os ingleses são singularmente desprovidos. Há outras superioridades alemães, entretanto, que são realmente superiores.
As duas ou três coisas realmente apreciáveis que os alemães possuem são exatamente aquelas que faltam nos ingleses: o verdadeiro senso da música popular, por exemplo, e das canções do povo que não saíram das cidades nem foram buscadas entre profissionais. Nisto, os alemães mais se parecem com os galenses, mas sabe Deus o que ficaria do teutonismo se essa semelhança tivesse fundamento. A diferença entre o alemão e o inglês é mais íntima, mais profunda, do que seria de esperar das simples aparências; eles diferem mais do que quaisquer outros europeus pela habitual disposição do espírito. Diferem sobretudo por um traço, o mais inglês dos ingleses; diferem por esse pudor que os franceses, talvez com razão, chamam de fausse honte, e que, certamente, se compõe de doses de orgulho e desconfiança, formando um total que chamamos “timidez”. A própria grosseria de um inglês provém quase sempre de uma certa encabulação. Mas a grosseria de um alemão provém quase sempre de sua incapacidade de encabular. Ele come e ama ruidosamente. Nunca lhe parece que um discurso, uma canção, um sermão ou um banquete estejam deslocados, como a nós se afigurariam em determinadas circunstâncias. Quando os alemães são patriotas ou religiosos não sabem manter nenhuma reação contra o patriotismo e a religião, como os ingleses e os franceses.
Ainda mais, o equívoco dos alemães no atual desastre em larga medida proveio de terem julgado que a Inglaterra é simples, quando no contrário ela é extremamente sutil. Observando que nossa política se tinha tornado financeira, pensaram que ela era exclusivamente financeira; observando que nossos aristocratas se tinham tornado regularmente cínicos, pensaram que eles eram inteiramente corruptos. Não puderam apreender a sutilieza pela qual um gentleman arruinado pode vender um título mas não venderia uma fortaleza; pode baixar um estandarte e resistir para não baixar uma bandeira.
Em resumo, os alemães estão certíssimos de nos terem compreendido, justamente porque não nos compreenderam. Se chegassem a nos compreender, é possível que ainda nos detestassem com mais força: eu preferiria porém ser malquisto por algum pequeno, mas verdadeiro motivo, do que perseguido com amor por toda sorte de qualidades que não possuo nem desejo. E, quando os alemães lograrem o primeiro vislumbre genuíno do que vem a ser a Inglaterra de hoje, descobrirão que essa Inglaterra tem, imperfeito embora, humilhado e tardio, um sentimento de obrigação para com a Europa; mas não sente o menor vestígio de obrigação para com o teutonismo.
Essa é a última e mais forte das qualidades prussianas que aqui consideramos. Há nessa espécie de estupidez uma estranha força escorregadia que nos arrasta, não somente para fora das regras, mas para fora da razão. O homem que realmente não percebe suas próprias contradições leva uma vantagem na controvérsia, se bem que essa vantagem se dissipe quando ele tentar aplicá-la a uma simples soma, ao jogo de xadrez ou a esse jogo chamado guerra. Dá-se o mesmo com o caso do parentesco unilateral. O bêbedo que está persuadido firmemente que um indivíduo totalmente desconhecido é um irmão perdido há muito tempo, leva uma vantagem incontestável até o momento de se apurarem os detalhes. “Precisamos ter um caos dentro de nós”, disse Nietzsche, “para podermos dar a luz a uma estrela dançante”.
Esbocei, nestas ligeiras notas, as principais grandes linhas do caráter prussiano. Uma deficiência de honra que chega a ser uma deficiência de memória, uma egolatria que é honestamente cega para o ego dos outros; e, acima de tudo, uma cócega de tirania e de intromissão com que o demônio atormenta, em todos os lugares, os ociosos e soberbos. Devemos ainda acrescentar qualquer coisa de informe no espírito, algo que se contrai e se distende sem nenhuma relação com a memória e com a razão: um infinito potencial de desculpas. Se os ingleses estivessem combatendo ao lado dos alemães, os professores prussianos assinalariam quão admiráveis eram as energias desenvolvidas pelos teutões. Como os ingleses estão no lado oposto, os mesmos professores dirão que aqueles teutões não estão perfeitamente evoluídos. Ou, então, que eles tinham apenas o necessário desenvolvimento para mostrar que não eram teutões. Provavelmente dirão as duas coisas. Mas a verdade é que tudo que eles chamam evolução mercê com mais justeza o nome de evasão. Dizem-no eles que estão abrindo janelas para a luz e portas para o progresso. A verdade é que eles estão destruindo inteiramente a casa da inteligência humana para poderem escapar em todas as direções. Há um paralelo quase monstruoso, um presságio de mau agouro, entre a alta cotação anunciada por seus filósofos, e a relativa baixa cotação de seus soldados; porque aquilo que os professores chamam caminho do progresso é, na realidade, o caminho da fuga.