1. Não te aflijas com cuidados do futuro; porque o tempo desmancha e baralha toda a ordem das coisas que propunhas na imaginação; e de hora para hora tomam os negócios muito diferente aspecto. Lança-te todo na Providência do Altíssimo; e basta ao dia presente a sua malícia. Especialmente se os negócios são de Deus, experimentarás que nunca estão mais ganhos que quando parecem estar perdidos.
2. Persuade-te muito deveras que, enquanto viveres, hás de ser miserável. Porque isto é condição própria e intrínseca do estado de peregrino neste mundo. E assim como seria pensamento néscio, e esperança vã, querer um condenado no inferno ter glória ou um Bem-aventurado no Céu ter pena, assim o é querer um peregrino no mundo ter satisfação e descanso. Bem podes pois fazer o ânimo, a que nunca te hão de faltar trabalhos, tristezas, tentações e moléstias; e deste modo te serão mais sofríveis e rendosas.
3. Se escorregaste em alguma impaciência, ou desabrimento com o próximo, não te assombres, nem aflijas, nem desmaies; que um vício não se remedeia com outro. Faz então estas três diligências: 1o. Volta logo sobre ti mesmo e dá fé de quão miserável és; 2o. Volta para Deus, e arrepende-te, confiando de sua bondade, que te perdoará; 3o. Não faças mais reflexão sobre o que passou, fazendo-te esquecido, como se por ti não passara. Deste modo fica outra vez temperado o instrumento do teu espírito.
4. Se tens desejo de aproveitar, e lhe fazes as diligências, segundo tua fraqueza te permite, não te mesquinhes, nem entristeças de não estar aproveitado. Não se leva este negócio a gritos e empurrões; antes, quanto mais te impacientares com tuas faltas, tanto mais as recalcas em tua alma. Espera quieto; que Deus é o Senhor das virtudes e não tu. Espera humilde e confiado; para o Espírito Santo o mesmo tardar é querer vir. Desses, que te parecem desejos fervorosos e santos, se lhe afastares a terra, acharás ser a raiz soberba, amor-próprio e impureza de intenção.
5. Os que embarcam trigo para o ultramar, compram-no a peso, e não por medida, porque se o grão é mais pesado e firme em si, sustenta-te contra o tempo, e deita mais farinha. As obras que juntamos para o Céu, não as façamos a olho, nem nos paguemos só do serem muitas: sejam pesadas e sólidas; que assim rendem muito mais.
6. Se quando és convencido e repreendido, te perturbas, é sinal que cometeste o mal por tua vontade e com advertência; porém se levas a repreensão inesperada com sossego, é sinal que o cometeste, ou por muita fraqueza ou ignorantemente.
7. A humildade de coração livra e defende de inumeráveis perigos e graves tentações. Para se adquirir são excelentes meios orar muito, observar pontualmente os mandamentos e conselhos de Deus, e trabalhar e padecer corporalmente.
8. Adverte que as várias disposições e acidentes que tocam ao nosso corpo, pegam o seu modo também ao espírito. Diversamente disposto está o espírito de quem logra saúde, e o de quem está enfermo. Diversa feição e atualidade tem o espírito de quem vai montado num formoso cavalo, e o do que vai em um desprezível jumento. Se o teu vestido for pobre e roto, repara que o espírito recebe daqui alguma disposição diferente, da que tem quando o vestido é novo e asseado; e assim nas mais coisas. Portanto, não desprezes ajudar o teu interior com algumas exterioridades que lhe convém, e não envolvem afetação nem singularidade.
9. A virtude chamada Eutrapélia (que tem por ofício remitir ou recrear moderadamente o ânimo, para tornar melhor a aplicar-se) é grande valhacouto de virtuosos ao sensual e esparzido. Logo se patrocinam com as graças de S. Filipe Néri; com as simplicidades do Santo Frei Junípero (de quem a Madre S. Clara dizia ser o chocarreiro da casa de Deus e religiosos); e com as loucuras de S. Simeão Salo, que na verdade eram mistérios e não loucuras. Porém, quem não sabe que as virtudes morais consistem em um certo meio, do qual em passando dão em vícios? O meio da Eutrapélia é mais estreito e limitado que o de todas as outras. E assim, a recreação virtuosa, para fazer o seu pretendido efeito, é necessário ser muito temperada e acomodada ao tempo, lugar e pessoas com quem se trata; menos disso dará em imodéstia, chocarrice, murmuração, escândalo e relaxação do espírito. S. Ambrósio diz que ainda nas zombarias não percamos a gravidade. O P. M. João de Ávila ensina que nos abstenhamos perfeitamente de palavras ridículas, jogos e leviandades. S. Bernardo diz que as zombarias na boca do Sacerdote são blasfêmias. O Beato Henrique Suso dá por sinal de um homem não ter cabedais de Oração e virtude, o fazer e dizer puerilidades e joguetes. O Eclesiastes diz que avaliou o riso por erro, Risum reputari errorem; e que melhor é irar-se do que rir-se: Melior est ira risu. E geralmente os Santos mais se inclinam para o extremo da austeridade, como menos arriscado e repreensível. De espíritos particulares não se toma regra universal.
10. Joguetes, equívocos, ditos graciosos e cortesãos, livros de curiosidade esquisita, ou de história meramente secular, novas e rumores do que passa, e outras coisas desta espécie são como frutas, que relaxam o estômago e lhe tiram a vontade do sustento sólido de pão e carne. E assim o Espírito que se deleita nestas puerilidades não tem o calor que é necessário para grandes propósitos e constância neles; e pela boca vaza quase toda a sua atividade, que havia de aplicar a coisas sérias.
11. Virtude sem trabalhares e padeceres, não a verás tu jamais com teus olhos. Adverte em todas as obras da Natureza e Arte, e verás como nenhuma chega à sua devida perfeição, senão a puro padecer e trabalhar. O pão que comes, o linho e lã que vestes, a cera e azeite com que te alumias, quantos trabalhos passaram para chegar à perfeição que tem? O dinheiro que gastas, se soubesses os transes e mudanças que teve e jornadas que andou desde as veias da mina até à palma da tua mão, pasmarias de que houvesse dinheiro no mundo; porque é uma história muito comprida. Vês um templo magnífico de cantaria, e de vários mármores lustrados e embutidos? Quantos milhares de golpes levaria toda aquela fábrica para chegar àquele estado? Tudo pode o trabalho junto com a constância. E se não tiveres constância no trabalho de adquirir as virtudes, não lograrás a glória de seus frutos. A glória (disse um Santo Padre) é uma planta de tal casta, que se quer regada com suor: Gloria sudoribus libenter irrigatur. [Isidor. Plusiot, lib. 2, epist. 12].
12. Não é fácil discernir um em si, se obra com intenção reta e louvável; e não basta qualquer aplicação extrínseca da vontade a algum fim honesto, para que se entenda que o tal fim foi o que motivou a obra. Para conheceres, pois, o principal fim que te leva, finge vários casos, em que as utilidades da obra estão separadas; e aquela utilidade, que posta ela, ainda obraras; e tirada ela, não obrarás, tem por certo que era o teu principal motivo. Exemplos: dizes que vás a tal Igreja lucrar um jubileu; finge que na tal Igreja não havia música; se achas que então não foras, o fim que te leva é o deleite da música; finge que não pregava um certo Pregador afamado; se achas que então não irias, quem te leva é a curiosidade de ouvir aquele Pregador; finge que havia concurso somente de homens; se achas que então não irias, quem te leva é o perverso afeto de lasciva leviandade; e se achas que faltando tudo isto, ainda assim foras, quem te leva é a utilidade santa de lucrar o Jubileu. Do mesmo modo: Mandou-te o Superior fazer alguma; e obedeces prontamente. Queres saber se vás por mera obediência? finge que de repente revocava e preceito, ou mandava o contrário; se então sentes turbação e tristeza, e murmuras interiormente, certo é que não obravas por pura obediência, senão de mistura por fazer a tua vontade.
13. Não entendas de ti outra coisa, senão que és vilíssimo, negligentíssimo e indigníssimo de toda companhia, conversação e aspecto de outros; e assim desesperado e desfeito de ti próprio, somente na misericórdia e bondade de Deus, assenta tua esperança.
14. Dominus custodiat introitum tuum, et exitum tuum: O Senhor (diz um lugar dos Salmos) guarde a tua entrada e saída. Que porta é esta, cuja entrada e saída necessita de tão vigilante guarda? É a boca; o que entra são manjares; o que sai são palavras; sem abstinência e silêncio não pode haver espírito de Oração. Muito comer e muito falar, é ter a entrada e saída franca para os inimigos.
15. Penitências, as que tirem ao corpo as forças de inimigo da alma, não as de companheiro. Livros, não curiosos e admiráveis, mas devotos e úteis. Rezas, não muitas e depressa, mas com espírito e devoção. Silêncio, como porta que abre e fecha, não como muro imóvel e impenetrável. Condescendências com o próximo, não as que me fazem imperfeito e desordenado como ele, senão as que aproveitam o seu ou o meu espírito.
16. Que muito que leve a terra urtigas e malvas, se a não semeiam de trigo, ou a não plantam de árvores frutíferas? Não esperes ver-te livre de pensamentos maus, ou ao menos vãos e inúteis, enquanto te não ocupares com outros bons e proveitosos; porque esperarás um impossível. Qui non est mecum, contra me est: et qui non colligit mecum, dispergit (diz Cristo Nosso Salvador): Quem comigo não está, contra mim está; e quem comigo não ajunta, espalha e desperdiça.
17. Nada proponhas em tempo de escuridão e tristeza ou turbação: Ne festines in tempore obhuctonis. Aguarda que amanheça; então continuarás o teu caminho. E se ainda receias que vás errado, pergunta a outros, que já por ali passaram; e roga a Deus que te depare a quem perguntes.
18. Se vives em Comunidade Religiosa, guarda-te de mudar lugar por teu arbítrio. Porque assim como, se a ave não cobre seus ovos continuamente, estes goram e ficam estéreis; assim o Religioso passando de um lugar para outro, esfria nos santos exercícios e se lhe amortece a fé.
19. Debalde insistes em vencer a ira, primeiro que venças a concupiscência; porque os furores daquela não militam senão por defender os interesses desta. Dos nossos apetites se pode dizer aquilo que o Profeta Miqueias disse dos ministros interesseiros; que se lhes não dão bem de comer, logo armam uma pendência: Si quis non dederit in ore eorum quippiam, sanctificant super eum praelium [Miq. 3,5]. Por isso não creias que estás despegado do deleite enquanto te vires iracundo. Porque (como diz sabiamente S. Nilo) para que sustenta cães, quem não tem quinta? Eles que ladram e saltam na gente, sinal é que dentro há coisa que o dono possui, e quer que o ajudem a guardá-la: Ecquid autem nutris canem, cum nihil possidere profitearis? Si vero is allatret, et in homnes insiliat, manifestum est, quod intus possides aliqua, eaq; velis custodire [In Cap. de diversibus malignis cogitationibus, c.5]
20. Amemos muito deveras os desprezos; porque são mandados por Deus a ajudar-nos contra a soberba que temos enclausurada no centro do coração. Quando os pressentimos, ou encontramos, diga o espírito com alvoroço: Vinde amigos; que sem vós não posso ser humilde, e sem humildade não pode acomodar-se Deus comigo. Estejamos certos que cada desprezo bem recebido desocupa tanto a alma, que logo na Oração seguinte se sente o vazio que causou; e este vazio é o lugar do Senhor.
21. Com tanta aplicação hás de ter estudado por ti; que te saibas de cor. Não há imagem ou pintura, que tão depressa se lhe desbotem as tintas, como a do conceito de nossa própria vileza. Importa, pois, cada dia e cada hora renová-las, para que te não enganes contigo. Porque não há maior miséria que, sendo miserável, ignorá-lo, e ainda porventura aplaudi-lo.
22. A Escritura Santa diz: Omnis locus, quem calcaverit pes verster, vester erit. Qualquer lugar que pisar o vosso pé será vosso. É ensinar que por via da mortificação de nossas paixões e apetites ganharemos domínio sobre eles. Exemplos: Para fechar os olhos sem repugnância, é necessário fechá-los com repugnância; para se não levantarem ímpetos de ira, é necessário rebater com força os que se levantarem; para ver o objeto deleitável, e não arrastar-me sua afeição, é necessário haver resistido a esta afeição, e haver-me privado muitas vezes desse deleite; para ter império sobre meus inimigos, é necessário havê-los sofrido com paciência e caridade; para falar sem perigo e com acerto, é necessário haver calado por muito tempo, etc. De sorte que desta boa guerra se faz esta boa paz; e tanto mais firme e durável será a paz quanto mais rija e travada foi a guerra.
23. Não te fies do que julgas cuidando não estar apaixonado. Porque as paixões são de onze castas diferentes; e nem todas dão ladrido forte, como rafeiro; senão sibilo subtil, como serpente; ou canto suave como sereia. E senão tiveres muito exercício em as discernir, e muito alto remanso de coração, para as ver bulir dentro, jurarás que tal coisa não obraste por este ou por aquele motivo; e não é verdade; senão falta de conhecimento próprio.
24. Tem sentido que quando pela imaginação (talvez sem reparares nisso, senão depois que refletires sobre ti) te passou que foste louvado, ou que és benquisto e reputado no conceito de outros, ou outra coisa semelhante, que a natureza tem por bom bocado, faltam no interior umas consolaçõezinhas grosseiras e impuras, que parecem salpicos de água suja. Isto claro está que não é do Espírito Santo. E assim quando te achares satisfeito e consolado, vai desenvolvendo o novelo, a ver onde começou o fio; e pode ser que aches que o princípio foi alguma coisa que sucedeu à tua vontade.
25. Quando o espírito toma ira contra as paixões e apetites, é tempo de silêncio, porque é tempo de luta; e as forças necessárias para a luta debilitam-se, se se não tapam dentro do espírito com o silêncio. Mas quando vires que os tais movimentos já inconstantes cedem à Oração, ou esmola, ou penitência, então é bom ler na Escritura sagrada, ou em outros livros de Santos; para que não resultem complacências vãs da vitória passada e renasça nova batalha.
26. Um Varão muito ilustrado ao ser perguntado qual o maior benefício que do senhor tinha recebido, respondeu: Certamente não é a coisa que mais estimo o sentir a Deus, gostar dele, e experimentá-lo em mim, e receber suas iluminações. Se me prometeis segredo, digo-vos que o principal benefício que tenho recebido é ter vencida toda a rebelião de minha natureza, o poder e o não poder; o amor e o ódio; a esperança e o temor; a dor e o gosto; e o mais deste gênero. Daqui veremos quão dificultoso por uma parte e por outra quão importante é o domínio sobre nós mesmos.
27. A aceleração, viveza e estrondo deve-se moderar em todas nossas ações e movimentos; de sorte que ainda que de si são corpóreos, pareçam espirituais em certo modo: enquanto procedem e indicam outros movimentos da alma racionáveis e santos.
28. Se não puderes vencer um mau costume, tomando-o por inteiro, parte-o em metades e trabalha só com uma delas; e como esta for destruída, vencerás a outra facilmente. Como agora; se costumas responder irado e desabrido, ao princípio procura só não responder; e como estiveres habituado a isto, procura então que o espírito interiormente fique sossegado, e com esse sossego responda. Moisés permitiu que o Povo sacrificasse vítimas a Deus, para que ao menos as não sacrificasse aos ídolos, como tinham aprendido no deserto: Ut mediam quodammodo partem, viti altius inoliti resecaret: aliam vero mediam per aliud tempus reservaret resecandam, disse S. Pedro na doutrina que deu a S. Clemente Romano.
29. Ponhamos mais cuidado na mortificação que na contemplação; porque o imortificado busca a Oração e não acha; porém ao mortificado a mesma Oração o busca e acha.
30. O Imperador Carlos V, entrando numa Cidade, reparava em três coisas: 1a. Se os Templos estavam bem ornados; 2a. Se os relógios andavam certos; 3a. Se as ruas estavam limpas. E por aqui conjeturava a piedade, indústria e governo dos moradores. Também se pode conjeturar o bom governo interior de uma alma por três sinais semelhantes: 1o. Se o templo de Deus, que somos nós mesmos, está exteriormente ornado com modéstia e presença do Senhor; 2o. Se o tempo anda bem repartido, com os exercícios santos a suas horas, e o mesmo num dia, que em outro; 3o. Se as ruas estão limpas; isto é, se os seus caminhos e obras vão bem feitos, com perfeição e limpeza; e não como costumam os tíbios, que tudo o que fazem vai semeado de faltas e imundícies.
31. Vencer-se é coisa muito difícil, porém necessária, se é que pretendes ter virtude e agradar a Deus. O método que deves seguir para te venceres pode ser o seguinte: Primeiro, medita algum espaço naquela virtude de Cristo, cujo vício contrário intentas vencer em ti. Logo pede-lhe humildemente graça para impugnar esta ou aquela ação ou paixão do tal vício, puramente por lhe dar glória. Depois, sem cuidar mais, nem reparar na repugnância da natureza, tanto que se oferecer a ocasião, arremessa-te a vencer-te. Ultimamente dás ao Senhor graças pela vitória e não a atribuas senão ao seu auxílio. E adverte que hás de começar por coisas poucas, e menos dificultosas, e destas ir caminhando às maiores, e não saltar em outra antes que tenhas adquirido hábito de vencer aquela primeira; e enquanto a não venceres, hás de repetir os assaltos, com tal inteireza e desassombro de coração, como se nada te sucedesse mal. Nem depois de vencido da tal paixão, ou vício, hás de pôr-te a olhar para tua desgraça, chorando-te e desconsolando-te por isso; senão com alegria tornar a começar o jogo, certo de que, se porfiares, Deus Nosso Senhor, mais cedo ou mais tarde, ajuntará a sua poderosa mão com a tua débil; e logo vencerás.
32. Quando cansamos e sentimos acídia em algum ato, ou exercício de mediana virtude, o remédio não é aliviar a natureza descendo para o menos, senão antes carregá-la subindo para o mais. Porque daquele menos, em que nos pusermos, pesará a natureza ainda mais para baixo, começando já a tomar carreira para a sua miséria; e como lhe ouviram a primeira queixa, secundará com outras muitas. Porém se subirmos para o mais, cobrará medo de meter petições em que tão ruim despacho lhe damos; e quando por fraqueza descair, ficará na mediania racionável, que antes tinha, e tomará por descanso o que até ali lhe parecia trabalho. Desta indústria usava o glorioso S. Pedro de Alcântara, o qual se lhe parecia insofrível o rigor do frio, não se abrigava com mais roupa; antes se despojava então do manto, para que depois tornando a tomá-lo, ficasse o corpo contente com aquilo mesmo, que antes lhe não bastava. A esta traça pois, se o corpo cansar na Oração estando arrimado, me desarrimarei; se me doer muito um golpe da disciplina, secundarei em cima com outro mais rijo; se estiver com o sentido em se acabar o tempo costumado da Oração, assentarei logo comigo, ficar mais algum tempo, além do costumado, etc. Neste sentido podemos tomar aquele conselho do Evangelho; que se alguém nos alugar para caminho de uma milha, vamos com ele caminho de uma légua: Quicumque te angariaverit mille passus, vade cum illo et alia duo.
33. Não é contra a humildade conhecer um os dons que tem recebido de Deus, segundo aquilo do Apóstolo: Sciamus quae a Deo donata sun nobis [1 Cor. 2,12]. Especialmente poderá ser útil este conhecimento quando a desconfiança de nosso aproveitamento nos acobarda de modo que nasce dela perigo de largar a empresa começada. Mas é necessário referir à graça do Senhor tais dons e aproveitamento, e levantar os olhos para o caminho que resta por andar, que é muito mais que o que fica andado e temer a conta, pois cresce conforme crescem os benefícios.
34. A razão por que os Santos se reputam por piores que os mais depravados pecadores, é porque com uma especial luz do Espírito Santo, a qual não é discursiva, senão apreensiva e simples, abstraem de tudo aquilo bom em que eles excedem os mais; e só apreendem clarissimamente suas misérias próprias, e o nada puro que são de si mesmos. Ou, se fazem alguma comparação de si com os outros homens, comparam somente o vício, ou defeito próprio, com a virtude que o próximo tem, ou presumem ter; v. g. comparam os benefícios que sabem haver recebido de Deus, com esses mesmos que não sabem havê-los recebido o próximo. Comparam a sua má inclinação da natureza com algumas inclinações boas que vem nos outros; comparam as suas ignorâncias, ainda que poucas na verdade, com a ciência ao menos experimental e prática dos outros. E como os Santos estavam aplicados só a estas comparações, ao menos virtual ou habitualmente; por isso sem ficção nem falsidade formavam conceito de que eram piores que todos; porque a comparação é verdadeira, conforme se compuserem os extremos dela. E nesta forma bem podia um S. Francisco entender que ele era o péssimo de todos os nascidos; e um S. Tomás, que ele era o mais ignorante e estúpido. Por isso também, havendo dito Deus de Salomão[3 Reis, 3, 12] que era o mais sábio de todos, não mentia Salomão em dizer de si que de todos era o mais néscio: Stultissimus sum virorum, et sapientia hominum non est mecum [Prov. 30,2].
35. Desconfianças da salvação ordinariamente procedem de falta de amor de Deus; que quem muito ama, pouco teme; e se o Espírito Santo [1 João, 4,18] nos dá testemunho de que somos filhos, não o pode negar de que somos herdeiros. Podem também nascer de falta de consideração da bondade e misericórdia Divina [Rom. 8,17], que se não deleita com a perdição do pecador; e não há coisa tão própria de Deus como valer a miseráveis e perdoar a arrependidos [Tob. 3,22].
36. Os escrúpulos quase todos são filhos da soberba e do amor próprio, que quer saber mais que os Letrados e Confessores, que asseguram as consciências; e por isso nunca se acabam estas almas de satisfazer, e cuidam que o remédio é consultar muitas pessoas de letras e de espírito, para se aquietar, e cada vez ficam pior.
37. Quem sai do recolhimento anual dos exercícios espirituais, se deseja conservar o fervor que ali adquiriu, observe os seguintes documentos práticos: 1o. Freqüente o mais que for possível a presença de Deus, levantando a este Senhor o coração em toda a parte com viva fé e afetos pios; 2o. Os pontos, que por razão da brevidade do tempo se não puderam expender bem naqueles dias, torne a meditá-los nos seguintes; 3o. Costume-se a dirigir a Deus e sua maior glória todas e quaisquer ações que ocorrerem no discurso do dia; 4o. Tenha cuidado em não perder migalhinhas de tempo, ocupando-o, não a vulto, e casualmente, senão em obras bem repartidas pelas horas do dia; 5o. Ponha especial custódia na língua; e tenha assentado firmemente de não falar do próximo, se não bem; 6o. Não vaze prodigamente os sentimentos bons que teve de Deus, que esfria o forno se lhe abrem a porta; 7o. Cada mês (e melhor cada semana), tome um dia, como os dos exercícios, em que se peça conta do aproveitamento, e sonde a altura em que navega. E não desmaie ainda que sempre se veja caído; lembrado do que disse o Profeta Eliseu a el-rei de Israel [4 Reis, 13, 19], quando bateu três vezes com a seta em terra: Se bateras cinco, ou seis, ou sete vezes, acabarás com teu inimigo.
38. Não empregues muito a alma na obra exterior, ainda que seja muito do serviço de Deus; senão que fique livre e despegada, e capaz de mudar de exercício sem turbação, ou confusão dos sentidos interiores. Os meios desta liberdade de espírito, são a intenção pura de agradar só a Deus, a presença do mesmo Senhor renovada a miúdo entre o fazer a tal obra, e o fazer conta que não importa que se acabe mais depressa, ou mais devagar, agora ou depois, com aprovação ou reprovação dos juízos humanos.
39. Toda a repreensão, tristeza, afronta ou desabrimento e trabalho que me vier, quando não haja forças para desejá-lo, ao menos sofrê-lo com paciência, calando e não atendendo a quem mo diz, senão para a mão de Nosso Senhor, da qual vem. E assim lhe rogarei, por quem me é causa desses trabalhos, e que me dê graça para os sofrer por seu amor, considerando que sofrê-los com paciência é grande sinal de nossa salvação.
40. O amor da Nação e Pátria necessita ser correto. É vergôntea do amor próprio; mas pode e deve enxertar-se no de Deus; quando não, levará muito amargosos e desabridos frutos (especialmente em comunidades) de ranchos, divisões e amizades particulares e outros piores, que se multiplicam destas pevides. Advirtamos pois, que a nação dos espíritos é uma só, porque nasce do espírito de Deus, que é simples e indiviso. E para o varão forte todo o mundo é pátria; para o perfeito, todo é desterro.
41. Fabriquemos espiritualmente dentro do nosso coração três instâncias ou moradas, onde nos recolhamos, para estudar a humildade. A primeira destas estâncias chama-se Aniquilação: e aqui nos sumamos no fundo do próprio nada, que temos por natureza. A segunda, chama-se Confusão: e aqui consideremos nossos pecados, parecendo-nos maiores que os de todo o mundo. A terceira chama-se Desesperação: e aqui nos consideremos no inferno, que temos merecido.
42. Importa muito a mortificação do entendimento, porque nele está todo o governo e direção da nossa interior República. Por isso dizia meu Padre S. Filipe Néri pondo a mão na testa: Tudo está em saber render estes quatro dedos. Os atos em que esta mortificação se exercita são os seguintes: 1o. Não fazer coisa alguma de importância por arbítrio próprio e sem conselho de pessoa prudente; 2o. Não contradizer a alguém, especialmente aos maiores. Sendo necessário tirar algum engano, fazê-lo com brandura de voz, e bom modo, e pedindo licença para responder; 3o. Não perguntar os porquês, a quem me pode mandar, ou me governa; 4o. Não falar muito diante de muitos; e se são mais velhos, ou superiores, quase nada; 5o. Não levar com impaciência, que o meu voto não fosse seguido, ou seja impugnado; 6o. Não perguntar nem ocupar o pensamento no que me não importa, nem ser amigo de dar e ouvir novas; 7o. Não escolher palavras eloquentes ou esmeradas quando falo ou escrevo, fugindo de toda a afetação no trato com meus próximos; 8o. Não julgar, discernir ou calcular as intenções, palavras ou ações alheias; 9o. Não porfiar com pessoa alguma; se o que digo é certo, poderei afirmá-lo segunda vez e isso pacificamente; não bastando, me calarei; 10o. Não redarguir o próximo, querendo convencê-lo com suas próprias razões; porque é coisa que estimula muito ao redarguido, e gera contendas e esfria a caridade; 11o. Não dizer chistes, equívocos, chanças e agudezas; porque tudo isto é sinal de espíritos pouco sérios, e debilita a eficácia dos bons propósitos, e afugenta a presença de Deus; 12o. Não cortar, ou prevenir a palavra do próximo, mostrando que já sei o que ele quer dizer-me; 13o. Não ler os livros só por curiosidade e para saber; senão para aproveitar o meu espírito e o de meus próximos, no temor e amor de Deus; e para isto, ratificar a intenção antes que leia; 14o. Não investigar curiosamente as profundezas de Deus e mistérios de nossa Santa Fé; e na Oração dar pouco lugar aos discursos, muito aos afetos; 15o. não me alegrar vãmente com que os outros aprovem o que eu disse; nem atribuir a mim a glória do acerto.
Os meios para pôr em praxe o sobredito podem ser os seguintes: 1o. Hábito de presença de Deus; porque esta simplifica as potências e faz desprezar a glória vã; 2o. Hábito de silêncio e soledade interior; 3o. Pedir a Deus com humildade esta humildade, e ter-se por indigno que lha conceda; 4o. Exercício, quando se oferecem as ocasiões de praticar os sobreditos atos, ou de negar-me aos tais vícios; 5o. Conta fiel ao Confessor, ou Padre espiritual, e ter sofrimento consigo e com ele.