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Art. 10 ― Se a vontade humana, querendo um objeto, deve conformar-se sempre com a divina.

(I Sent., dist. XLVIII, a . 2, 3, 4; De Verit., q. 23, a . 8).
 
O décimo discute-se assim. ― Parece que a vontade humana, querendo um objeto, não deve sempre conformar-se com a divina.
 
1. ― Pois, não podemos querer o que ignoramos, porque o bem apreendido é o objeto da vontade. Ora, na mor parte das vezes, ignoramos o que Deus quer. Logo, a vontade humana não pode conformar-se com a divina, querendo um objeto.
 
2. Demais. ― Deus quer danar quem ele de ante-mão sabe que morrerá em pecado mortal. Se pois, o homem querendo um objeto, tivesse que conformar a sua vontade com a divina, teria de querer a própria danação, o que é inadmissível.
 
3. Demais. ― Ninguém é obrigado a querer nada contrário à piedade. Ora, às vezes, tal se daria se o homem quisesse o que Deus quer; assim iria contra a piedade um filho que quisesse a morte do pai, querida por Deus. Logo, o homem, querendo um objeto, não está obrigado a conformar a sua com a vontade de Deus.
 
1. Mas, em contrário, sobre aquilo do salmo (Sl 32, 1) ― aos retos convém que o louvem ― diz a Glosa: Tem o coração reto quem quer o que Deus quer. Ora, todos estão obrigados a ter o coração reto. Logo, a querer o que Deus quer.
 
2. Demais. ― A forma da vontade, como de qualquer ato, provém do objeto. Se pois o homem deve conformar a sua vontade com a divina, isso há-de ser em relação ao objeto querido.
 
3. Demais. ― A discordância das vontades consiste em os homens quererem coisas diversas. Ora, quem tiver vontade oposta à divina a tem má. Logo, tem má vontade quem, querendo um objeto, não a conforma com a divina.
 
Solução. ― Como do sobredito resulta1 a vontade move-se para o objeto que lhe for proposto pela razão. Ora, acontece que esta aprecia um objeto diversamente, de modo que uma coisa boa, a uma luz não o é a outra. Por onde, a vontade de quem quer o que lhe parece bom, é boa; e também será boa a de quem não quer esse mesmo objeto por lhe parecer mau. Assim, o juiz tem vontade boa querendo a morte de um ladrão, que lhe parece justa; mas a vontade de outrem, p. ex., da esposa ou do filho, será também boa, não querendo a morte do mesmo, por ser má, por natureza.
 
Seguindo, pois, a vontade a apreensão da razão ou do intelecto, quanto mais geral for a noção do bem apreendido, tanto mais geral será o bem para o qual a vontade é movida, como se vê pelo exemplo aduzido. Pois o juiz, curando do bem comum, que é a justiça, quer a morte do ladrão, que lhe parece boa em relação ao estado comum; a esposa, porém, considerando o bem privado da família, quer que o seu marido, embora ladrão, não seja morto.
 
Ora, o bem de todo o universo é o que é apreendido por Deus, criador e governador do mesmo; e por isso, quer tudo de um ponto de vista universal, que é a sua bondade, bem de todo o universo. Ao passo que a apreensão da criatura, recai, por natureza, sobre algum bem particular, proporcionando à sua natureza. Ora, pode acontecer que uma coisa boa, num ponto de vista particular, não o seja, no ponto de vista universal, ou inversamente, como já se disse. E por isso pode se dar que uma vontade seja boa, quando quer, particularmente considerada, uma coisa que contudo, universalmente considerada, Deus não quer; e inversamente. Donde vem que vontades diversas de homens diversos, querendo coisas opostas, podem ser boas, querendo-as por diversas razões particulares.
 
Não é porém reta a vontade do homem que quer um bem particular, quando não o referir ao bem comum, como fim; pois também o apetite natural de qualquer das partes deve se ordenar ao bem comum do todo. Ora, do fim provém a como que razão formal de querer o que a ele se lhe ordena. Por onde, quem quiser um bem particular com vontade reta há-de querê-lo materialmente; ao passo que há-de querer o bem comum divino, formalmente. Logo, a vontade humana querendo um objeto, tem de se conformar com a divina, formalmente, pois, tem de querer o bem divino e comum; não porém materialmente, pela razão já dita. Porém, num e noutro sentido, a vontade humana se conforma, de certo modo, com a divina, porque, conformando-se com ela pela razão comum do objeto querido, conforma-se pelo fim último; e não se conformando, em relação ao objeto querido materialmente, conforma-se na ordem da causa eficiente, porque a inclinação mesma conseqüente à natureza ou à apreensão particular de determinado objeto, todos os seres a receberem de Deus, causa eficiente. E por isso costuma-se dizer que, neste ponto, a vontade humana conforma-se com a divina, porque quer aquilo que Deus quer que ela queira.
 
Mas há outro modo de conformidade, no ponto de vista da causa formal, quando o homem quer uma coisa pela caridade, como Deus quer. E esta conformidade também se reduz à formal, que se funda na ordem ao último fim, objeto próprio da caridade.
 
Donde a resposta à primeira objeção. ― Segundo a razão comum de querer, podemos conhecer o objeto querido por Deus, pois sabemos que ele só quer o bem. Logo, quem quer uma coisa, sob qualquer razão de bem, tem a sua vontade conforme com a divina, quanto a essa razão. Mas em casos particulares, não sabemos o que Deus quer, e então não estamos obrigados a conformar a nossa vontade com a divina. No estado da glória porém todos veremos em particular a relação de tudo o que quisermos com a vontade de Deus, a esse respeito; e portanto teremos a vontade conforme com a de Deus, não só formal, mas também materialmente e em tudo.
 
Resposta à segunda. ― Deus não quer a danação como tal, nem a morte, em si mesma, de ninguém, pois, quer que todos os homens se salvem (1 Tm 2, 4); mas o quer em nome da justiça. E por isso basta neste ponto que o homem queira que seja garantida a justiça de Deus e a ordem da natureza.
 
Donde se deduz clara a Resposta à terceira.
 
Resposta à primeira objeção em contrário. ― Quem conforma a sua vontade com a divina, quanto à razão mesma de querer, quer mais o que Deus quer do que quem a conforma quanto à coisa querida; porque a vontade move-se principalmente mais para o fim que para os meios.
 
Resposta à segunda. ― A espécie e a forma de um ato funda-se mais na razão formal do objeto do que naquilo que nele existe materialmente.
 
Resposta à terceira. ― Não há oposição de vontades quando pessoas diversas querem coisas diversas, não pela mesma razão. Mas haveria se pela mesma razão o que é querido de um não o fosse de outro. Ora, tal não está em questão.

  1. 1. Q. 19, a. 3, 5.
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