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Eutrapelia, a virtude da recreação

Catecismo familiar sobre as leituras e o modo cristão de divertir-se em geral.

Existiu um grande homem chamado Tomasino, Francisco Tomasino, natural de Aix-en-Provence e súdito de Luís XIV. Como costumam os grandes homens, era ele cristão; na verdade, padre; melhor ainda, oratoriano.
 
Escreveu livros gigantescos, pesadíssimos e sobretudo sapientíssimos.
 
Mas escreveu também uns folhetos que sempre começavam com as palavras: “Sobre o modo cristão de...”. Havia o “Sobre o modo cristão de compreender a história”, o “Sobre o modo cristão de ensinar as Belas Letras”, e também o “Sobre o modo cristão de ensinar a filosofia”.
 
Mas Tomasino não escreveu livros, quer grandes quer pequenos, “sobre o modo cristão de divertir-se”. Que pena! Ele teria escrito um trabalho mui agradável, pois ele mesmo era um homem agradável.
 
Tentaremos fazer - decerto com menos talento - o que ele não fez, mas enfim faremos o melhor.
 
Começaremos pelas leituras, que constituem uma parte considerável do divertimento. A leitura é apenas uma das inúmeras manifestações e satisfações da necessidade – natural ao homem – de conhecimento. Essa necessidade não fica em estado bruto: o próprio uso que cada um faz dela lhe imprime uma prega, determina-a, harmoniza-a ou deforma-a, conforme obedeça ou não a reta razão, intérprete da Soberana Inteligência de Deus.
 
Regrada, torna-se virtuosa: chama-a S. Tomás estudiosidade. Desregrada, torna-se viciosa: chama-a S. Tomás curiosidade.
 
Na ação de ler pode haver a virtude ou o vício. O ato da leitura não é indiferente, sem valor moral, sem bom e sem mau – nenhum de nossos atos são indiferentes.
 
Existem vários modos de bem fazer, mas todos eles são bons e resultam em bons atos. Podem eles ser mais ou menos bons (e mais ou menos meritórios ao paraíso), conforme a escolha seja mais ou menos boa; mas se o modo de agir, ainda que menos bom que algum outro, resta verdadeiramente bom, o ato será verdadeiramente bom.
 
Há também muitos modos de mal fazer; se eles forem verdadeiramente maus, ainda que escolhamos de boamente o menos mau, o ato nos sairá mau.
 
Num momento legítimo de repouso, Pedro tem a sua escolha três bons livros, que vamos considerar igualmente interessantes: um a distraí-lo, por ex., um romance de aventuras; outro a instruí-lo – além de diverti-lo –, por ex., o relato de uma expedição ao pólo sul; e um terceiro que o elevará em coração e mente, por ex., a narrativa pulsante da vida dum grande santo.
 
Decerto a melhor escolha de Pedro é a terceira leitura, mas a segunda será ainda boa; a primeira não é também má. Imaginemos que o pobre rapaz esteja bem cansado, esmagado de deveres, cheio de preocupações; neste caso, pode acontecer que o livro menos bom em teoria seja na prática o melhor a escolher.
 
Como fica então a estudiosidade?
 
Calma, meu caro leitor, vamos entender. Ninguém pode ir jamais contra alguma virtude. Ninguém está obrigado a agir sempre por alguma virtude em particular: elas podem se exercer em conjunto. Cada qual por sua vez. Ademais, são irmãs e não sentem inveja.
 
Se Pedro refrescar bem a cuca e escolher o livro apenas divertido, não age com estudiosidade, mas a leitura é ainda assim virtuosa: a Irmã Estudiosidade com muita graça cede o lugar à Irmã Eutrapelia.
 
Eutrapelia?
 
- Eutrapelia, digo e repito: eutrapelia. Oh, não é ela uma daquelas senhoras soberanas – as virtudes teologais – nem mesmo sequer uma dama de honra – as virtudes cardeais: é uma virtudezinha simples, serviçal, uma virtude copeira. Não faz questão de que falem dela, não se abalam as cátedras ao seu nome – a maioria dos que a usam a ignora. Mas é absurdo se privar de seus cuidados discretos e anônimos.
 
Ninguém é de ferro! No corpo nem tudo são fibras nobres, tecidos finos e especializados, como o são os nervos, os músculos ou o formoso tecido liquido do sangue. É preciso uma espécie de “cola” para que o corpo não se desfaça. A “cola” é aquele vilão, aquele plebeu, aquele proletário que os cientistas chamam “tecido conjuntivo”, justo porque ele serve para que se dê conjunto aos outros. Só serve pra isso, mas sem ele os demais se espalhariam por aí.
 
Eutrapelia (não é culpa dela esse nome antipático: ela é como uma menina rubicunda que se chamasse Anemia; ademais, seu parente, Aristóteles, falava grego e no grego eutrapelia é palavra bonita). Continuando, eutrapelia é a virtude “conjuntiva”. Ela “dá a liga” entre dois exercícios de grandes e nobres virtudes; com um sorrizinho avisa que é permitido respirar; ela dá sentido e medida à recreação legítima. Mudando a comparação, ela é um quartel-mestre-general que, malgrado o uniforme, não é lá muito marcial e assina as permissões de saída.
 
Eis o elogio da eutrapelia – de mau nome, mas de bons ofícios. Ela ordena o repouso segundo Deus.
 
- Coisa estranha haver uma virtude para o repouso. – Mais absurdo seria se não houvesse nenhuma! Há algum instante da vida humana que se pode subtrair ao domínio universal de Deus? O olhar onisciente não nos consegue ver quando brincamos? Pode cessar a presença Dele? Se assim fosse, quem cessaria seríamos nós.
 
São Pedro acha que os pagãos são parvos, já que não acreditam Naquele em que subsistem: seriam eles como pessoas que não acreditassem na terra em que põem os pés. O que quer que se faça, uma pessoa não se ausenta de Deus. Não se pode impedi-l’O de estar lá. Devemos homenageá-l’O no repouso, pelos mesmos motivos que o fazemos no labor.
 
Não há como abrir mão da eutrapelia. Não que essa menina humilde agora queira bancar a importante, mas deve ela ao menos cumprir seu papel, porque não podemos nos divertir nem trabalhar longe de Deus.
 
Ah, meu caro leitor, se ao menos conservásseis essas últimas palavras!
 
Abbé V.-A. Berto. 
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