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Category: História da Idade MédiaConteúdo sindicalizado

A cruzada albigense (parte IV)

[Esse texto foi extraído da obra apologética de Jean Guiraud, Histoire partiale, histoire vraie (Beauchesne Editions, 1912). Jean Guiraud desmantela, parte por parte, os falsos argumentos do anticlericalismo, dedicando um capítulo ao tema da Cruzada contra os Albigenses. Na primeira parte, resumiu os argumentos dos anticlericais e mostrou suas contradições. Na segunda, terceira e quarta parte, examina a moral e a doutrina dos albigenses.]

 

Jean Guiraud

Após analisar a moralidade do albigensianismo e sua negação do casamento, devemos tomar nota de suas doutrinas políticas e sociais.

 

Negação das sanções sociais e do patriotismo

Os outros compromissos assumidos pelos hereges quando se juntavam à seita são contrários aos princípios sociais nos quais se fundam as constituições de todos os Estados.

Eles prometiam, no dia de sua iniciação, não fazer nenhum juramento, porque, como todas as seitas cátaras ensinavam, “não se deve fazer juramento”. Atualmente, há seitas filosóficas e religiosas que rejeitam a tomada de juramentos com o mesmo ânimo, e conhecemos todas as dificuldades que acarretam em uma sociedade que, apesar de sua secularização, ainda envolve o uso de juramentos como parte dos aspectos mais importantes da vida social.

Que tipo de mudanças profundas tais doutrinas trariam aos Estados da Idade Média, quando todas as relações dos homens entre si, de súditos com seus soberanos, de vassalos com seus suseranos, de cidadãos da mesma cidade, dos membros de uma confraternidade em si, eram garantidas por um juramento, quando, finalmente, toda a autoridade derivava sua legitimidade de um juramento?

Era um dos laços mais fortes do corpo social que os maniqueus1 destruíam e, ao fazê-lo, se assemelhavam a verdadeiros anarquistas. Agiam também como verdadeiros anarquistas quando negavam à sociedade o direito de derramar sangue em defesa contra seus inimigos internos e externos, invasores e malfeitores.

Tomavam em sentido literal e rigoroso a palavra de Cristo declarando que quem matar pela espada deve perecer pela espada, e disso deduziam a proibição absoluta, não apenas do homicídio, mas também de matar por qualquer razão.

Desse princípio advinham consequências sociais muito sérias, e, em sua formidável lógica, os albigenses não se furtavam delas.

Qualquer Guerra, mesmo que fosse justa em suas causas, tornava-se criminosa em razão das matanças que acarretava: o soldado defendendo sua vida no campo de batalha, após ter se armado pela defesa de seu país, era tão assassino quanto o criminoso mais vulgar; porque nada lhe autorizava derramar sangue humano.

Assim como o soldado em campo de batalha, os juízes, nem qualquer detentor de autoridade pública em seu ofício têm direito de prolatar sentenças de morte. “Deus não quis”, dizia o albigense Pierre Garsias, “que a justiça dos homens pudesse condenar alguém à morte”; e, quando um dos seguidores da heresia se tornou cônsul de Toulouse, ele lhe lembrou do rigor desse princípio.

Os hereges do Século XIII negavam à sociedade o direito em si de punir? É difícil dizer, porque, se a maioria deles parecia sustentar essa posição ao proclamar que “não se deve, de modo algum, fazer justiça, que Deus não quer justiça”, outros não hesitavam em restringir essa negação absoluta às sentenças capitais, “ao condenar alguém à morte”.

A última posição, porém, parece ter sido tomada por considerações políticas, mitigando o rigor do preceito através de restrições razoáveis. A Suma Contra os Gentios nos ensina que todas as seitas ensinavam “que não deveria haver nenhuma punição, nem justiça alguma feita pelo homem”; o que parece indicar que a doutrina cátara em si negava, absolutamente, à sociedade o direito de punir.

De qualquer modo, pela proibição absoluta de juramentos e da guerra, pelas restrições feitas às leis positivas, os albigenses tornaram difícil a existência e a preservação não apenas da sociedade medieval, mas de qualquer sociedade; e é compreensível que a Igreja tenha, incansavelmente, denunciado o perigo que suas doutrinas poderiam representar à humanidade.

“Devemos admitir”, diz o autor das Adições à História do Languedoc, “que os princípios do maniqueísmo e dos hereges dos Séculos XII e XIII, atacando as fundações últimas da sociedade, produziriam as perturbações mais estranhas e perigosas e colocariam em cheque as leis e a sociedade política para sempre”.

Esses são os hereges que Aulard e Debidour apresentam como sendo simples reformadores do Cristianismo, que Gauthier e Deschamps apresentam como “pessoas simples e pacíficas” e que Guiot e Mane apresentam como homens gentis e inofensivos, sonhando, apenas, com poesia.

O Sr. Lea, em sua História da Inquisição, entendia os cátaros melhor. Embora fosse protestante e inimigo da Igreja, percebeu que o niilismo dos albigenses representava um retorno ao barbarismo, enquanto a doutrina cristã representava a civilização e o progresso.

A vitória dos Albigenses teria sido o despertar do fanatismo mais terrível, pois dava glória ao homem que cometesse suicídio e o dever às famílias de se dissolverem. Ao combate-los, a Igreja Católica defendeu, com a verdade da qual é depositária, a causa da vida, do progresso, da civilização.

É isso que dizem os documentos contra esses historiadores privados de consciência, que pintam um quadro falso e fantasioso dos albigenses, para melhor representá-los como inocentes vítimas da Igreja.

  1. 1. N.T.: O maniqueísmo foi uma religião da antiguidade criada por um persa chamado Maniqueu. O maniqueísmo inseria-se em um conjunto de religiões e heresias que foram condenadas pela Igreja e agrupadas sob o nome de gnosticismo, cujos princípios eram bastante semelhantes ao catarismo medieval: a pregação da salvação através do conhecimento, crença num deus bom em batalha contra um deus mal, crença no mal como uma substância (é bastante comum nas seitas gnósticas a ideia de que o corpo é mau em si), mentalidade sectária que tornava os “iluminados” separados do restante da sociedade, que vivem em trevas. O autor chama os cátaros de maniqueus para enfatizar a natureza gnóstica que o catarismo tinha em comum com o maniqueísmo. O leitor mais atento perceberá que muitos dos erros, heresias e seitas dos nossos tempos são profundamente gnósticos, incidindo nos mesmos erros dos maniqueus antigos e dos cátaros medievais.

A cruzada albigense (parte III)

Esse texto foi extraído da obra apologética de Jean Guiraud, Histoire partiale, histoire vraie (Beauchesne Editions, 1912). Jean Guiraud desmantela, parte por parte, os falsos argumentos do anticlericalismo, dedicando um capítulo ao tema da Cruzada contra os Albigenses. Na primeira parte, resumiu os argumentos dos anticlericais e mostrou suas contradições. Na segunda e na terceira parte, examina a doutrina dos albigenses.]

 

Após analisar a moralidade do albigensianismo e sua negação do casamento, devemos tomar nota de sua licenciosidade fundamental e sua rejeição da família.

 

Casamento e libertinismo

Os hereges tinham tanta aversão ao casamento que chegaram ao ponto de declarar que o libertinismo era preferível a ele e que era mais grave “praticar o ato carnal com a própria esposa do que com outra mulher”.

E isso não era nenhuma brincadeira, pois davam a essa opinião uma justificativa em perfeita concordância com seus princípios. Frequentemente ocorre -- diziam eles -- de um homem ter vergonha de seus pecados; desse modo, ao pecar, o faz em segredo. Portanto, sempre é possível que venha a se arrepender e a cessar o pecado; por essa razão, o libertinismo é quase sempre oculto e temporário.

Ao contrário, o que é particularmente grave no estado de casamento, é que não se tem vergonha dele e que não se pensa em abandoná-lo, pois não se suspeita do mal que é praticado dentro dele. Isso explica a condescendência estranha que os “Perfeitos” demonstravam com as desordens de seus seguidores.

Eles mesmos faziam profissão de castidade perpétua, fugindo com horror da mínima ocasião de impureza; e, ainda assim, aceitavam as concubinas dos crentes na sua sociedade e as deixavam participar dos ritos mais sagrados, mesmo quando não tinham intenção de emendar suas vidas.

Os crentes mesmos não tinham problemas em manter suas amantes enquanto aceitavam o direcionamento dos "Perfeitos". Entre os crentes que, por volta de 1240, compareceram à pregação de Bertrand Marty em Montségur, podemos distinguir vários falsos casais: “Guillelma Calveta, amante de Pierre Vitalis, Willelmus Raimundi de Roqua e Arnauda, sua amante, Pierre Aura e Boneta e o amante de sua esposa, Raimunda, amante de Othon de Massabrac”

Essas concubinas e bastardos, que aparecem tão frequentemente nas assembleias cátaras, foram a causa desses hereges serem acusados da torpeza mais imunda. Dizia-se que suas rigorosas doutrinas eram apenas uma máscara, debaixo da qual os piores excessos estavam escondidos. Gauthier e Deschamps fazem eco dessas acusação quando apresentam os albigenses como um povo simples, de moral pacífica e não austera.

Por outro lado, é certo que as populações, com muita frequência, deixavam-se seduzir pela impressão de austeridade que os "Perfeitos" lhes transmitiam, e isso é mencionado por Aulard e Debidour, Rogie e Despiques quando falam da pura moral desses hereges.

É fácil resolver essa aparente contradição lembrando que havia dois tipos de albigenses: os crentes, que simpatizavam com as doutrinas cátaras e não estavam totalmente sob sua influência; e os "Perfeitos", que aderiam integralmente a ela e praticavam-na em suas prescrições.

Enquanto os crentes não tivessem recebido a iniciação completa, se fosse necessário, poderiam viver com uma mulher, porém fora do laço do casamento. Qualquer ato sexual era indubitavelmente mau, mas a coabitação poderia ser tolerada, jamais o casamento, pois, se acontecesse uma iniciação completa, seria mais fácil romper um laço ilegal.

 

Negação da família.

Desnecessário aprofundar-se nas consequências antissociais de tal doutrina. Ela visava, nada mais nada menos, que a supressão do elemento essencial de toda a sociedade, a família, ao tornar toda a humanidade numa vasta congregação religiosa sem recrutamento e sem futuro.

Embora aguardando o advento desse estado de coisas, que deveria emergir do triunfo das ideias cátaras, os "Perfeitos", gradativamente, quebraram, como resultado do progresso de seu apostolado, os laços familiares já formados.

Se quisessem ser salvo, antes de se submeter à lei de castidade rigorosa, o marido devia abandonar a esposa, a esposa, o marido, os pais deviam abandonar os filhos, fugindo de um lar que lhes inspirava apenas horror, pois a heresia lhes ensinava “que ninguém pode ser salvo mantendo-se em companhia de seu pai e de sua mãe”. E, portanto, toda moralidade doméstica desaparecia, juntamente com a família, que era sua raison d’être.

Esse ódio da família era, além disso, entre os albigenses, apenas uma forma particular de sua aversão a tudo que fosse estranho à sua seita. Eles se abstinham de relações com todos que não pensassem do mesmo modo que eles, exceto quando julgavam possível conquistá-los às suas doutrinas, e faziam as mesmas recomendações aos crentes.

No dia do exame de consciência ou apparelhamentum, que acontecia todo mês, exigiam dos crentes um relato severo das relações que haviam mantido com os infiéis. E isso é compreensível: eles só tinham como homem aquele que, como eles, havia se tornado, pelo consolamentum, um filho de Deus.

Quanto aos outros, que haviam permanecido no mundo mau, eles, de algum modo, pertenciam a outra raça e eram estranhos, para não dizer inimigos.

(Continua)

A cruzada albigense (parte II)

Esse texto foi extraído da obra apologética de Jean Guiraud, Histoire partiale, histoire vraie (Beauchesne Editions, 1912). Jean Guiraud desmantela, parte por parte, os falsos argumentos do anticlericalismo. O primeiro artigo resumiu os argumentos dos anticlericais e mostrou suas contradições. O segundo examina a doutrina dos albigenses.

 

Hostilidade com o Cristianismo

De suas doutrinas metafísicas e teológicas, [extraímos que] os albigenses praticavam uma moralidade em oposição formal à moralidade cristã, e Aulard e Debidour estão grosseiramente errados quando nos apresentam suas pretensões como sendo um desejo de “trazer de volta a moralidade cristã à pureza perfeita”; na realidade, suas ideias morais eram o oposto do ideal cristão, e nenhuma reconciliação era possível entre ambas.

Quaisquer que tenham sido as diferentes maneiras através das quais os cristãos tentaram colocar seus princípios em prática, porém, a teoria que a Igreja nos apresenta da vida, de seu valor e do objetivo em direção à qual ela deve se organizar podem ser resumidas em um pequeno conjunto de proposições.

Para a Igreja, a vida neste mundo não é nada além de um teste. Inclinado ao mal pelos maus instintos de sua natureza decaída, pelas seduções e fraquezas da carne e pelas tentações do demônio, o homem é chamado ao bem pela Lei Divina, pelas boas tendências que a queda original não conseguiu fazer desaparecerem completamente nele e, especialmente, pela assistência divina que pode ter ao pedi-la e que aumenta exponencialmente a força da vontade humana, sem destruir sua liberdade ou responsabilidade, e que chamamos de graça.

A perfeição consiste em superar os maus instintos da carne, para que o corpo permaneça o que deve ser, o servo da alma; em subordinar todos os movimentos da alma à caridade, isto é, ao amor de Deus, de tal modo que Deus seja tanto o começo, quanto o fim do homem, de suas energias, de suas ações.

Para isso, devemos aceitar as provações da vida com resignação, atravessando-as com coragem e fazendo de todas as circunstâncias na quais nos encontramos oportunidades de santificação e salvação. Quem, portanto, não vê que para o cristão a vida tem um valor infinito, pois ela lhe dá os meios de adquirir a santidade e a bem-aventurança eterna que é consequência dela? Quem não enxerga que, para o cristão, as ações mais vulgares adquirem uma nobreza sobrenatural quando, feitas por Deus, elas se tornam um reflexo da eternidade, “sub specie aeternitatis”?

 

Suas doutrinas teológicas e metafísicas

A ideia de vida que o albigense extraía de sua concepção de Deus e do universo era bastante diferente. Procedendo da crença no bem e no mal através de uma dupla criação, o homem era uma contradição viva: o corpo e a alma que o compunham jamais poderiam ser reconciliados.

Alegar a pretensão de harmonizar ambos era tão absurda quanto querer unir dois opostos: dia e noite, bem e mal, Deus e Satã. No corpo, a alma não era nada além de um prisioneiro, e seu tormento era tão grande quanto o das tristes pessoas que estivessem unidas aos corpos. Só poderia achar paz aquele que recuperasse sua vida espiritual, e só seria capaz de fazê-lo através da separação do corpo.

O divórcio desses dois elementos irreconciliáveis, isto é, a morte – a morte não apenas como algo que se tolera, mas adorada como uma bênção – era o primeiro passo em direção à felicidade. Tudo que a precedia era miséria e tirania. Esse mundo não era nada além de uma prisão, e as ações humanas eram deploráveis porque, praticadas por um corpo corrupto, carregavam consigo o estigma dessa corrupção.

 

Sua moral: Negação do casamento

A teoria albigense do casamento era a consequência lógica de sua ideia profundamente pessimista da vida. Se a vida, como ensinavam, era o maior mal, não bastava querer destruí-la em si mesmo através do suicídio ou do nirvana; também era necessário tomar precauções para não a comunicar a novos seres, que se tornavam partícipes na desgraça comum da humanidade, ao trazê-los à existência.

Além disso, quando os cátaros conferiam a iniciação do Consolamentum, eles faziam o neófito submeter-se a um voto de castidade perpétua. Os ministros albigenses repetiam, continuamente, que um homem pecava com sua mulher como pecaria com qualquer outra, o contrato e o sacramento do matrimônio sendo para eles apenas uma legalização e regularização da devassidão.

Na feroz intransigência de sua castidade, os puros do Século XIII encontraram a fórmula hoje adotada pelos apoiadores da livre união e do direito a todo prazer sexual: “Matrimonium est meretricium” – “o casamento é o concubinato legalizado”.

(Continua)

A cruzada albigense (parte I)

[Esse texto foi extraído da obra apologética Histoire partiale, histoire vraie por Jean Guiraud (Beauchesne Editions, 1912). Em uma época em que os livros-texto da Terceira República começavam a dar uma explicação parcial da História da Igreja e de tudo relacionado a ela, Jean Guiraud começou a desmantelar, um a um, os falsos argumentos do anticlericalismo.

Em sua obra Histoire partial, histoire vraie (História Parcial, História Verdadeira), ele dedicou um Capítulo a cada tema. Em cada Capítulo, ele começa citando vários trechos questionáveis de livros didáticos antes de refutá-los.]

 

Aulard et Debidour (Cours Supérieur, p. 91).

“A seita dos cátaros (ou puros)... condenou a corrupção e os excessos da Igreja e pretendia, enquanto simplificava o culto, trazer a moralidade cristã de volta a uma pureza perfeita... O Papa Inocêncio III ordenou uma cruzada contra eles em 1208 que durou mais de 20 anos e foi, apenas, uma grande roubalheira. Grandes cidades foram queimadas, populações inteiras foram massacradas, sem que nem mulheres, nem crianças fossem poupadas; todo o Sul da França foi pilhado, incendiado e manchado de sangue”

(Cours Moyen, p. 29)

“Os Albigenses, a população do Sul da França que não entendia a religião cristã da mesma maneira que os católicos, foram exterminados no Século XIII por vontade do Papa Inocêncio III”

(Récits familiers, p. 71)

“O clero havia se tornado muito corrupto, então parte das pessoas demandava que a Igreja fosse submetida a uma reforma, cujos apoiadores, muitos especialmente no Sul da França, eram geralmente chamados de albigenses... Os cruzados do Norte se comportaram com ferocidade; eles queimaram seus prisioneiros às centenas”

Brossolette (Cours Moyen, p. 22).

“Os albigenses não praticavam mais integralmente a religião católica... Béziers, Narbonne, Toulouse foram saqueadas”

Quatro imagens: 1. Os hereges do Sul escarnecendo de São Domingos; 2. O Conde de Toulouse fazendo penitência e apanhando dos Padres; 3. O saque de Béziers; 4. A caverna de Ombrives, onde os albigenses estavam aglomerados.

Devinat (Cours élémentaire, p. 58).

“Por chamado do Papa, que não conseguiu convertê-los, os cavaleiros do Norte da França atacaram os albigenses”

(Cours Moyen, p. 14).

“O Papa, primeiramente, enviou monges para pregarem, especialmente um monge espanhol chamado Domingos; mas os hereges... não se submeteram. Portanto, o Papa recorreu à espada”

Calvet (Cours Moyen, p. 42).

“Foi um assassinato horrível” p. 36 “Os habitantes do Languedoc tornaram-se suspeitos de heresia” (Cf. Cours préparatoire, p. 36)

(Cours élémentaire, p. 58). “No Sul da França, a Igreja não era amada; dizia-se que os Padres escondiam sua tonsura para não serem insultados... Os habitantes, de fato, eram hereges... O Papa Inocêncio III enviou um legado ao Conde de Toulouse, Raymond VI, para tentar trazê-lo de volta à fé. O legado foi assassinado... Indignado, o Papa pregou uma Cruzada.”

Gauthier et Deschamps (Cours Supérieur, p. 34).

“Os albigenses… pessoas simples, de costumes pacíficos, mas não austeros, que viviam fora da Igreja. Por chamado de Inocêncio III, milhares de saqueadores do Norte atacaram o lindo país dos troubadours... O chefe dos saqueadores, Simon de Montfort, como pagamento por seus serviços, recebeu do Papa as propriedades do infeliz Conde de Toulouse... Aqueles que resistiram foram torturados e, então, queimados vivos em um calabouço... Essa guerra monstruosa, injustificável, que destruiu a brilhante civilização do Sul... Unificou a França occitana e a França de oïl”

(Cours Moyen, p. 12). “Luís VIII cometeu o erro de participar na cruzada abominável”

Guiot et Mane (Cours Supérieur, p. 86).

“Os Albigenses, população feliz, pacificamente viciada em comerciar, que cultivou a poesia, a sonora e harmoniosa língua dos troubadours... Morte a eles!... Eles tinham ideias consideradas heréticas”

(Cours Moyen, p. 52).

“A prosperidade das cidades do Languedoc causaram inveja nos senhores do Norte; os habitantes do Sul foram acusados de heresia”

Rogie et Despiques (Cours Supérieur, p. 131)

“A doutrina dos Albigenses pretendia restaurar a pureza e a simplicidade dos costumes dos primeiros homens”

*

A Cruzada contra os albigenses é um dos grandes fatos históricos utilizados pelos livros-textos e historiadores “seculares” para acusar a Igreja de maneira severa. Para acentuar sua aversão, põem toda a responsabilidade na Santa Sé, enquanto, por outro lado, pintam um quadro idílico das crenças e costumes dos albigenses.

Antes de examinar a sinceridade dos argumentos que eles usaram em ambos os casos, é necessário fazer uma observação preliminar.

 

Contradições anticlericais sobre os albigenses

Primeiramente, salientemos que todos os nossos autores se contradizem tanto, que basta confrontarmos uns com os outros para tornar dúbias suas versões.

Se crermos em Aulard, Debidour, Rogie e Despiques, os albigenses pretendiam reformar a mores [os costumes] do clero. Austeros, enamorados da virtude e da santidade, estariam escandalizados pela vida relaxada mantida no Sul da França pela Igreja Católica e teriam pretendido remediá-la trazendo-a de volta às práticas puras do Cristianismo primitivo.

No sentido contrário, Gautier e Deschamps escrevem que os albigenses eram pessoas simples, de costumes pacíficos e não muito austeros. Qual a origem, portanto, da luta, e de quem é a responsabilidade? É da Igreja, que, por fanatismo, travou uma guerra contra homens pacíficos e indefesos, dizem Aulard e Debidour, Devinat, Gauthier e Deschamps.

Foram os senhores do Norte que, movidos por ganância, tomaram a defesa da ortodoxia como um pretexto e atiraram-se às populações cujas fortunas e terras eles cobiçavam, dizem Guiot e Mane.

E, quando a Igreja pregou a Cruzada contra os albigenses, qual era o motivo dela? Fanatismo, insinuam os autores mais “seculares” . Irritação por não conseguir converter o Sul, diz Devinat. O desejo de vingar o legado assassinado por ordem do Conde de Toulouse, diz Calvet.

Essas contradições nos provam que os problemas levantados pela Cruzada albigense foram múltiplos e complexos; a maioria dos historiadores só analisou um lado da questão. O amigo da verdade científica deve considerar todos.

Quando o fizer, perceberá que os fatos são mais complexos do que nossos historiadores simplórios geralmente pensam, e que as responsabilidades incumbem a várias pessoas em uma guerra que foi tanto religiosa quanto política, cujos combatentes haviam entrado em ação pelos motivos mais díspares: fé e ambição, o serviço de Deus e o amor da pilhagem, e que, finalmente, foi controlada tanto pelos chefes do feudalismo leigo, quanto pelos representantes da Igreja.

Culpar o Catolicismo por eventos que foram inspirados em política feudal, atos de crueldade e espoliação guiados por ganância e ambição seria supremamente injusto, especialmente se se mostrar que a Igreja protestou contra todos esses eventos e condenou esses atos. Portanto, é com as maiores precauções que devemos nos aproximar dessa delicada questão que envolveu a todos, libertando-nos de nossos preconceitos parciais e paixões, para deixar apenas os textos falarem.

Acerca das crenças e costumes dos albigenses os julgamentos proferidos pelos historiadores anti-católicos são os mais contraditórios.

Calvet nos diz que eles foram apenas “suspeitos de heresia”, Guiot e Mane que eles tinham “ideias consideradas heréticas”, e Brossolette “que eles não praticavam, integralmente, a religião católica.”

A conclusão que esses autores querem sugerir é que a repressão foi bárbara e odienta, pois foi covarde, e as nuances que distinguiam os albigenses dos católicos eram quase imperceptíveis.

Gauthier e Deschamps, ao contrário, nos dizem que os albigenses “permaneceram fora da Igreja”. Nessas duas afirmações, contraditórias ou, no mínimo, bastante diferentes umas das outras, aquela de Gauthier e Deschamps é a verdadeira.

Na realidade, a metafísica e a teologia dos cátaros divergia da metafísica e teologia católica. A Igreja ensina que Deus é um, os catáros, que havia dois deuses, o deus bom e o deus mau, ambos eternos, igualmente poderosos e em luta constante um contra o outro.

A Igreja diz que nosso mundo foi criado por Deus por seu amor, e que o homem recebeu a existência de seu Criador para o seu bem.

Os cátaros pregavam que a natureza e o homem são obras do deus mau, de quem são fantoches e vítimas, nas quais ele constantemente exerce sua maldade. Para os católicos, Cristo é Deus, vindo a este mundo para expiar o pecado original da humanidade através da obra da Redenção. Para os cátaros, era um eon (poder spiritual) ou uma emanação distante da divindade, que veio trazer ao homem o conhecimento das suas origens e, portanto, para o tirar, não por virtude ou pelo seu sangue, mas apenas por sua doutrina, da servidão miserável em que o homem vive. Portanto, por qualquer lado que olharmos, havia um antagonismo declarado entre Cristianismo e albigensianismo.

< continua >

A verdadeira face das cruzadas

Jacques Heers

Estes homens, certamente, acreditavam em Deus, e não iam para o combate sem rezar e colocar-se sob a proteção de Cristo e da Virgem, e dos seus santos protetores. Eles queriam-se como milícia de Cristo. Suportavam pesadas penas e ganhavam batalhas contra inimigos bem mais numerosos, enquanto proclamavam que os anjos estavam a seu lado, mostrando-lhes o caminho e apoiando-lhes nos piores momentos. Mas não era uma “guerra santa”, uma “guerra de religiões”. Os cruzados não iam exterminar o islã ou converter os muçulmanos, pela boa razão de que, nessa época, ninguém ou quase ninguém tinha a mínima idéia desse islã. Nenhuma das narrações da primeira Cruzada, escritas por homens que estavam no local e não por compiladores, fala de muçulmanos ou de maometanos. Para eles, os inimigos são os sarracenos, à semelhança dos piratas mouros do Mediterrâneo, ou sobretudo os babilônios e assírios, os persas e os partos, ou outros povos “bárbaros” da Antiguidade. As crônicas referem-se à História antiga do Oriente.

Guerra da conquista? Nada disso. É verdadeiramente curioso continuar-se a falar desta Cruzada como se os cristãos tivessem a caçar povos aí instalados desde sempre. É esquecer que as terras da Palestina e da Síria, berços do cristianismo, estiveram durante séculos sob a autoridade dos imperadores de Constantinopla, focos notáveis da civilização cristã. Jerusalém, Antióquia e Alexandria foram sedes de patriarcas da Igreja de Cristo. É esquecer, além disso, que os imperadores de Constantinopla tinham, mais de cem anos antes dos cruzados, conduzido os seus exércitos à reconquista destes países: Alepo foi retomada em 962, Antioquia em 969 e João Tsimiscis (imperador de 969 a 975) só parou diante de Trípoli, após ter reconquistado Beirute. Os turcos, vindos de muito longe, expulsaram as guarnições imperiais, mas é bom lembrar que quando os francos, em 20 de outubro de 1097, se apresentaram de Antióquia, estes turcos eram donos da cidade havia apenas catorze anos. Em relação a Espanha dizemos Reconquista, mas em relação ao Oriente aceitamos que nos imponham a terminologia e a idéia de uma simples conquista, açambarcamento de terras nas quais outros viviam em seu pleno direito.

 

Uma aventura espiritual

Intolerância? É preciso ser-se mau observador para acusar de intolerância os homens do passado, cristãos bem entendido, enquanto nós vivemos, aparentemente satisfeitos, num tempo em que todas as formas de escrita e de pensamento são submetidas a um controle cada vez mais severo. Certamente que se proclama a intolerância como detestável, mas dela só são acusados os homens livres que ousam manifestar as suas próprias convicções, e levam a insolência até à sua defesa contra-ataques odiosos. Os “intolerantes” são os dissidentes, apontados a dedo, agredidos, excluídos. Não são os guardiões estipendiados do templo, que não suportam a mínima resistência aos seus esquemas, nem a mínima crítica aos seus discursos sempre “conformes”, de um conformismo risível. Observemos a vida atual, antes de falar de tempos que não queremos sequer conhecer verdadeiramente e tentar compreender.

A Cruzada de 1095-1099 foi, primeiramente e antes de tudo uma aventura espiritual. Para pesquisar as origens e analisa-la, as teses materialistas visaram longe. Invocar a sede de conquista, ou a procura de novos espaços e a busca de especiarias, era de bom tom há cinqüenta anos, época em que o materialismo histórico era imposto nas universidades francesas. Os tempos, enfim, mudaram e sabemos que nenhuma destas afirmações pode ser seriamente defendida. Simples reflexões de bom senso deitam-nas a perder. Os camponeses dos anos mil eram, sem dúvida, mais numerosos que outrora. Freqüentemente, dividiam as suas heranças e procuravam novas terras de lavoura. Mas ir tão longe para isso, a idéia não se agüenta. Iniciava-se precisamente o arroteamento das grandes florestas da Germânia, da Europa central e do sudoeste francês. A secagem e beneficiação dos pântanos tinham apenas começado. Porque, então, afrontar tantas fadigas e tantos perigos, para se estabelecerem em terras longínquas, das quais se sabia, no dizer dos peregrinos que regressavam, serem áridas na maior parte, próprias para a vida pastoril semi-nômade, totalmente contrária à sua maneira de viver e de trabalhar? Negligenciar as terras próximas para ir tão longe, onde tudo teria de ser construído de novo ou reconstruído?

Ainda se lê, num ou noutro manual de ensino, que os “grandes mercadores” italianos foram os instigadores desta Cruzada, com o fim de trazer do Oriente as especiarias a preço mais baixo. Mas é falso: genoveses, venezianos e pisanos não participaram nas primeiras expedições; intervieram mais tarde, como guerreiros, com os seus cavalos e as suas máquinas de guerra, e não como mercadores. A Terra Santa não era muito de seu interesse. Estabelecidos em Constantinopla, onde beneficiavam-se de privilégios fiscais, e no Cairo, onde os negociantes se alojavam nos fondouks, já se encontravam no verdadeiro coração dos grandes tráficos do Oriente. A costa da Síria e da Palestina não ofereciam, nem de longe, os mesmos recursos; à margem das rotas das grandes caravanas, estes países não possuíam, então, nem culturas exóticas (cana-de-açúcar, algodão) nem manufatura de artigos de luxo. Para terminar, face a Constantinopla, a Damasco, Bagdá e Cairo, Jerusalém fazia, neste particular, figura de aldeia.

 

Historiadores sectários

Grandes senhores, apressados na fundação de principados sem vastos territórios e em cidades de sonho? São imagens forjadas de fio a pavio, para ilustrar a tese de historiadores sectários, entretidos a maldizer o cristianismo e o feudalismo. Os chefes dos cruzados, os das primeiras levas e os que se seguiam com reforços, não eram de nenhuma maneira cavaleiros andantes, filhos segundos ou excluídos da grei, à procura de pousada, obrigados a correr a louca aventura. Godofredo de Bulhões, duque da Baixa-Lorena, era senhor de bons feudos e castelos, no meio de ricas terras. Raimundo de Saint-Gilles, conde de Tolosa, sem contestação o mais ativo dos “barões”, o que reuniu maior número de homens de armas e gastou maiores somas, era, depois do rei, o mais poderoso príncipe do reino, nunca contestado ou ameaçado. A sua partida privou-o de uma magnífica herança, e morreu na Terra Santa antes de ter podido conquistar Trípoli.

A Cruzada, em 1095, respondia ao desejo dos fiéis de ver o túmulo de Cristo e aí rezar. É certo que as crônicas da época falam de “francos” e de “cristãos”, sempre qualificando-os como “peregrinos”. Os homens reuniam-se e armavam-se porque sabiam que os peregrinos que iam à Palestina o faziam com risco de vida, suportando duras humilhações e pesadas taxas que aumentavam a cada ano. A peregrinação foi, desde o princípio, o centro de todas as preocupações e iniciativas e os cruzados, na sua maioria, só queriam libertar a cidade santa, visitar os lugares de Cristo, da Virgem e dos Apóstolos, rezar e regressar à casa. Com Godofredo de Bulhões ficou apenas um punhado de cavaleiros. A construção de praças fortes, e a defesa do reino latino de Jerusalém contra os ataques dos egípcios ou dos turcos, só foi possível pela chegada de novos peregrinos, que participavam nos combates e nos trabalhos e depois partiam.

 

Peregrinos nas Cruzadas

Mais que uma Cruzada, correto seria, já para 1096-1099, dizer as Cruzadas, expedições que reuniram gente de diferentes origens, que não partiram juntas nem seguiram os mesmos caminhos. Falar de cristãos “de todo o Ocidente” respondendo ao apelo de Urbano II, é mera figura de estilo. A Cruzada foi pregada pelo Papa apenas em algumas partes do reino de França, principalmente em Auvergne e no Languedoc, mas não em Paris nem na Ile-de-France. A pregação não se estendeu a Alemanha e ao Norte da Itália, dada a querela existente entre o Papa e o imperador germânico, que apoiava ainda um anti-papa cismático. Além das quatro Cruzadas promovidas pelas pregações do Papa, dos legados e dos bispos (exércitos dos lorenos, dos normandos de Normandia e dos normandos do Sul da Itália, chefiados por Raimundo Saint-Gilles) deve mencionar-se uma outra Cruzada, dita da “gente humilde”. Esta foi fruto de pregações menos controladas, feitas por eremitas e monges errantes, por vezes em ruptura com o pregão das Cruzadas, que invocavam o Apocalipse e clamavam o extermínio dos impuros. Tal levou essa pobre gente, lançada numa longa e miserável caminhada, obrigada a comprar víveres por alto preço, à invasão das cidades, principalmente na Renânia, e a massacrar os seus burgueses, judeus ou não, denunciados como culpados. Tudo isto apesar da intervenção dos bispos locais, que tentavam protege-los.

Os exércitos dos “barões” são mal conhecidos e fazemos deles, geralmente, uma idéia errada. De fato, falar de “exércitos” é já um erro, porque faz pensar em tropas de homens aguerridos, armados e prontos para o combate. Os textos mostram coisa diferente: consideráveis multidões de pobres sem quaisquer meios, sem armas e sem experiência, freqüentemente acompanhados pelas suas mulheres e filhos, conduzidos e protegidos por uma milícia de cavaleiros pouco numerosa. Todos os testemunhos são concordes e os próprios historiadores muçulmanos, mais tarde, o reconhecem: não se tratava de verdadeiros exércitos, mas, realmente, de multidões heteróclitas. Eram milhares, talvez várias dezenas de milhares, de peregrinos expostos a todas as adversidades, à fome e às doenças. Conduzi-los, esperar e organizar a sua reunião antes de empreender a caminhada, reabastece-los de água e víveres, todas estas responsabilidades pesaram na condução desta multidão, aventurada para tão longe dos locais da partida.

Esta gente sofreu, no decurso dos meses e dos anos, de fome e de sede, de expectativa e de miséria. Na tarde da vitória, Jerusalém conquistada, invadiram as casas, pilharam tudo que encontraram, massacraram os habitantes. Hoje, a História retém esses massacres para cobrir de vergonha toda a empresa e tornar responsável (ora, pois!) a Igreja. Quer-se uma vez mais que peça perdão, e arrependida, confesse a sua culpa? Insistir deste modo, isolando o acontecimento, é falsear o debate, porque estes massacres são atrozes, revoltam os nossos sentimentos, mas são, todavia, vulgares nessa época... como em muitas outras. Deu-lhes origem a guerra de cerco, exarcebando as paixões e os ódios entre inimigos que se observavam e injuriavam durante muito tempo. Pode-se citar, no decorrer dos séculos, um grande número de cidades conquistadas pela força e que ficaram indenes? Menos de um ano antes dos cruzados, em 26 de agosto de 1098, os muçulmanos egípcios assenhorearam-se da mesma cidade de Jerusalém e massacraram todos os turcos, assim como uma grande parte dos habitantes seus aliados ou cúmplices.

Os nossos historiadores moralistas, sempre prontos a descrever em detalhes os atos de crueldade atribuídos aos homens dos tempos “medievais”, aos seus senhores, seus padres e monges, dizem alguma vírgula do saque de Cápua, em 24 de julho de 1501, pelos exércitos do rei Luís XII? E do saque de Roma pelos huguenotes alemães, os espanhóis e as tropas do contestável de Bourbon, que em 1517 puseram a cidade a fogo e sangue? E não foi no decorrer de uma Cruzada, durante a “noite da Idade Média”, mas na época da “Renascença”, tempos ditos de luz, de liberdade e de progresso. 

 

(Traduzido pela Semper, revista da Fraternidade Sacerdotal São Pio X n° 41, Maio-Junho de 1999, Lisboa.)

As relações internacionais no Medievo

Tal como existia, a Idade Média corria o risco de nunca conhecer o caos e a decomposição. Nascida de um império arrasado e das vagas de invasões sucessivas, formado por povos diversos, cada um com seus costumes, seu ambiente, sua ordem social diferente, quando não eram opostas, e tendo também, quase todos, um senso muito vivo de castas, de sua superioridade de vencedores, ela deveria ter apresentado, e de fato, no seu início, apresentou, um inconcebível esfacelamento.

No entanto constata-se que essa Europa tão dividida, tão conturbada no seu nascimento, apresenta nos séculos XII e XIII um entendimento e uma união que jamais havia conhecido e que talvez não volte a conhecer ao longo dos séculos. Vemos na primeira Cruzada príncipes sacrificarem seus bens e seus interesses, esquecer suas disputas para tomarem juntos a Cruz – os mais diversos povos se reunirem numa só armada, a Europa toda se emocionar ao chamado de Urbano II, de Pedro Eremita e, mais tarde, de um São Bernardo ou de Foulques de Neuilly. Vemos monarcas preferindo a arbitragem à guerra, se inclinarem ao julgamento do Papa ou de um rei estrangeiro para acertar suas dissenções. Fato impressionante, essa Europa organizada; não é um império, não é uma federação. Ela é: a Cristandade.
 
É preciso reconhecer aqui o papel que teve a Igreja e o Papado na ordem européia. Ela foi, de fato, um fator essencial na unidade. Muitas vezes a diocese, a paróquia, se confundia com o domínio familiar, sendo na Alta Idade Média, época de decomposição, as células vivas a partir das quais se recompos a nação. As grandes datas que deviam, para sempre, marcar a Europa, são as da conversão de Clóvis e a coroação de Carlosmagno, a primeira assegurando ao ocidente a vitória da hierarquia e da doutrina católica sobre a heresia ariana, a segunda, realizada pelo Papa Estevão II, consagrando a doutrina dos dois gládios, o espiritual e o temporal, cuja união formará a base da Cristandade medieval.
 
É preciso levar em consideração, de modo mais geral, a influência do dogma católico que ensina que todos os filhos da Igreja são membros de um mesmo corpo, como lembram os versos de Rutebeuf:
 
Tous sont un corps en Jésus-Christ 
Dont je vous montre par l'écrit  
Que li uns est membre de l'autre  
Todos são um corpo em Jesus Cristo
E isso vos mostro por escrito
Que uns são membros dos outros.
 
A unidade doutrinária, tão viva na época, ajudava na união dos povos. Carlosmagno compreendeu tão bem isso que, para conquistar a Saxe enviou primeiro os missionários, antes dos exércitos, e não por ambição, mas por convicção. A história se repete no Império Germânico, na dinastia dos Othos.
 
Na prática a Cristandade pode se definir a «universalidade» dos príncipes e dos povos cristãos obedecendo a uma mesma doutrina, animados de uma mesma fé, e reconhecendo por isso um mesmo magistério espiritual.
 
Esta comunidade de fé traduzia-se por uma ordem européia que deixa tonto um cérebro moderno, tanto ela é complexa nas suas ramificações, grandiosa no seu conjunto. A paz na Idade Média foi exatamente, segundo a bela definição de santo Agostinho, a «tranqüilidade da ordem»1, desta ordem.
 
Um ponto central permanece fixo, o Papado, centro da vida espiritual. Mas seu relacionamento com os diferentes Estados é muito diversificado. Alguns estão ligados à Santa Sé por títulos especiais de dependência: tal é o caso do Império Romano-germânico, cujo chefe, apesar de não ser vassalo do Papa, como se acreditou, deve ser escolhido ou ao  menos confirmado por ele. Isso se explica se nos lembrarmos das circunstâncias que presidiram à sua fundação e a parte essencial que teve o Papado nisso. O Papa, aliás, só faz lhe conceder o título e julgar os casos possíveis de deposição.
 
Outros reinos são feudos da Santa Sé, porque pediram, em dado momento de sua história, a proteção dos Papas. Eles lhe entregaram solenemente suas coroas, como fez o rei da Hungria, ou pediram que o Papa autentificasse seus direitos, como fizeram os reis da Inglaterra, da Polônia ou de Aragão, para que o selo de São Pedro ratificasse e preservasse suas liberdades.
Outros, em fim, e neste número está a França, não têm nenhum laço  de dependência temporal com a Santa Sé, mas aceitam naturalmente suas decisões em matéria de consciência e se submetem também de boa vontade às suas determinações quanto árbitro.
 
Estas são as grandes linhas do edifício da Cristandade, como expôs Inocêncio III numa época onde ela já estava realizada, na prática, há muitos séculos. Ela baseia-se essencialmente num entendimento de ordem sobrenatural 2  entre os povos. Quando admiramos esta base sólida da paz medieval, não podemos deixar de achar pobre a nova base estabelecida pelos tratados de Westphalia (1648), que substitui a antiga harmonia pela frágil agulha de balança das nacionalidades.
 
Foi muito desprezado este tipo de relacionamento entre a Igreja e os Estados. Estamos habituados a ver na autoridade espiritual e na autoridade temporal dois poderes nitidamente distintos, e essa «intrusão» do Papa nos negócios dos príncipes foi vista como intolerável. Tudo se esclarece se nos colocarmos dentro da mentalidade da época: não é a Santa Sé que impõe seu poder aos príncipes e aos povos, mas estes príncipes e estes povos, católicos, recorrem naturalmente ao magistério espiritual, seja para fortalecer suas autoridades ou fazer respeitar seus direitos, seja para pedir o arbítrio imparcial para julgar suas disputas. Assim escreve Gregório X: «Si é dever daqueles que dirigem os Estados de proteger os direitos e a independência da Igreja, é também do dever dos que possuem o governo eclesiástico de tudo fazer para que os reis e os príncipes possuam a plenitude de sua autoridade». Os dois poderes, em vez de se ignorar e combater, se reforçam mutuamente.
 
O que pode trazer confusão é que, na Idade Média, era geral manifestar maior respeito pela autoridade religiosa que pela autoridade civil, de julgar uma superior à outra, segundo a célebre palavra de Inocêncio III, «como a alma é para o corpo, como o sol é para a lua»: hierarquia de valores que não acarretava necessariamente uma subordinação de fato.3
 
Além disso, não devemos esquecer que a Igreja, guardiã da fé, é também juiz no foro interno e depositária dos juramentos. Ninguém na Idade Média sonharia em contestar isso. Quando um escândalo público era cometido, ela tinha o direito e o dever de pronunciar uma sentença, de expulsar o culpado ou de absolver o arrependido. Ela faz apenas usar um magistério que lhe é universalmente reconhecido quando excomunga um Roberto o Piedoso ou um Raimundo de Tolosa. Igualmente quando, após conduta repreensível ou exageros de Philippe-Augusto ou do imperador Henrique IV, ela libera seus súditos do juramento de fidelidade, ela exerce apenas uma de suas funções soberanas, pois, na Idade Média, todo juramento toma Deus por testemunha, e em consequência a Igreja, que tem o poder de ligar e desligar.
 
Que tenha havido abusos da parte da Santa Sé como da  parte do poder temporal, é incontestável, a história das disputas entre o Papado e o Império comprova. Mas no conjunto pode-se dizer que esta tentativa audaciosa de unir os dois gládios, o espiritual e o temporal, pelo bem comum, foi um sucesso. Era garantia de paz e de  justiça, este poder moral que não se podia contrariar sem correr perigos bem determinados, entre os quais a perda de sua própria autoridade e da estima de seus súditos: enquanto Henrique II, rei da Inglaterra, luta contra Thomas Beckett, não se sabe qual dos dois vencerá; mas no dia que o rei decide se desfazer do prelado pelo assassinato, é ele o derrotado. A reprovação moral e as penas que lhe são aplicadas têm mais eficácia que a força material. Para um príncipe marcado com a interdição a vida não é mais tolerável: os sinos silenciosos quando o rei passa, seus súditos fugindo quando se  aproxima, tudo compõe uma atmosfera à qual, mesmo os temperamentos mais fortes, não resistem. Mesmo um Philippe-Augusto acaba se submetendo, quando nenhuma força material teria conseguido impedi-lo de deixar a infeliz Ingeburge gemendo na prisão.4
 
Durante a maior parte da Idade Média o direito de guerra privada é visto como inviolável pelo poder civil e pela mentalidade geral. Era portanto difícil manter a paz entre os barões e os Estados, e se não fosse a concepção da Cristandade, a Europa teria sido um enorme campo de batalha. Mas o sistema em vigor permitia  colocar uma série de obstáculos ao exercício da vingança privada. Antes de tudo, a lei feudal impedia que um vassalo que tivesse jurado fidelidade ao seu senhor o atacasse. Houve faltas neste sentido, é claro, mas o juramento de fidelidade estava longe de ser pura teoria ou simulação. Já vimos como o rei de França Luiz VII, que tinha ido ao socorro do conde Raimundo V, ameaçado por Henrique II da Inglaterra, na cidade de Tolosa, este último, apesar de ter forças muito superiores e certo da vitória, se retira, declarando que não pode sitiar um lugar onde se acha seu suzerano. Nesta ocasião o laço feudal tirou a França de um momento de grande perigo.
 
Por outro lado, o sistema feudal realiza uma série de arbítrios naturais: um vassalo pode fazer apelo, contra seu senhor, ao suzerano deste; o rei, à medida que sua autoridade se extende, exerce cada vez mais o papel de mediador; o Papa, enfim, é o árbitro supremo. Bastava a reputação de justiça ou de santidade de um grande personagem para que se fizesse apelo a ele; são vários os exemplos na história da França. Luiz VII é o  protetor de São Tomas Beckett e seu intermediário nos conflitos com Henrique II. São Luiz  se impõe diante da Cristandade quando publica o famoso Dit d'Amiens, que apaziguava  as disputas entre Henrique III da Inglaterra e seus barões.
 
Mas qualquer nobre podia, por vingança ou por ambição, invadir as terras de seu vizinho, e o poder central não era bastante poderoso para impor sempre sua justiça, sem falar das guerras possíveis entre os Estados. A Idade Média não procurou resolver o problema da guerra em geral, mas por suas soluções práticas e medidas aplicadas ao conjunto da Cristandade, ela restringiu o domínio da guerra, suas crueldades, e mesmo seu tempo. Assim, por leis precisas, edificou-se a Cristandade pacífica.
 
A primeira dessas medidas foi a Paz de Deus, instaurada desde o fim do século X 5: é a primeira distinção feita na história do mundo entre o fraco e o forte, entre o guerreiro e a população civil. Desde a data de 1023, o bispo de Beauvais faz jurar ao rei Roberto o Piedoso o juramento da Paz. Proibição de maltratar as mulheres, as crianças, os camponeses e os clérigos; as casas dos cultivadores são, como as igrejas, declaradas invioláveis. Reserva-se a guerra aos que têm equipamentos para o combate. Esta é a origem da distinção moderna entre objetivos militares e monumentos civis – noção totalmente ignorada do mundo pagão. Essa proibição não foi sempre respeitada, mas quem a transgredia sabia estar sujeito à penas seríssimas, tanto temporais como espirituais.
 
Depois vem a Trégua de Deus, inaugurada desde o início do século XI, ela também pelo imperador Henrique II, o rei da França Roberto o Piedoso, e o Papa Bento VIII. Os Concílios de Perpignan e de Elne, datando de 1041 e 1059 já a tinham renovado quando o Papa Urbano II, de passagem  por Clermont, em 1095, a define e proclama solenemente, durante o mesmo Concílio que esteve na origem das Cruzadas. A Trégua de Deus reduz a guerra na sua duração, como a Paz a reduzia no seu objeto: por ordem da Igreja, todo ato de guerra é proibido desde o primeiro domingo do Advento até a oitava da Epifania (Tempo do Natal), desde o primeiro domingo da Quaresma até a oitava da Ascensão, e no tempo que sobrava, da quarta-feira à noite até a segunda-feira de manhã. Podemos imaginar o que eram essas guerras fragmentadas, ciscadas, que não podiam durar mais de três dias seguidos? Havia, ainda aqui, os infratores, mas era seu o risco e o perigo, e também a vergonha. Quando Oto de Brunswick é posto em fuga, na Batalha de Bouvines, apesar de sua superioridade, pelo exército muito inferior de Philippe-Augusto, foi considerado como castigo àquele que ousara romper a Trégua e atacar num domingo.
 
Às vezes os príncipes cristãos tomam iniciativas que completam e ajudam as da Igreja. Philippe-Augusto, por exemplo, instituiu a Quarentena do rei, um intervalo de quarenta dias deve obrigatoriamente passar entre a ofensa feita, e devidamente reconhecida pelo ofendido, e a abertura de hostilidades. Sábia medida, que ajuda a refletir e a encontrar um acordo amigável. Este mesmo intervalo de quarenta dias é dado aos habitantes de uma cidade inimiga, para que voltem para suas casas e coloquem em segurança suas coisas quando estoura uma guerra. Não havia como se criar, na Idade Média, campos de concentração ou seqüestros.
 
Mas a grande glória da Idade Média foi de ter feito a educação do soldado, de ter transformado um brutamontes em cavaleiro. Aquele que lutava por amor das grandes proezas, da violência ou da pilhagem, virou o defensor dos fracos. Ela transformou sua brutalidade numa força útil, seu gosto pelo perigo em coragem consciente, sua turbulência em atividade fecunda; seu ardor ganhou vida e disciplina ao mesmo tempo. O soldado tem doravante um papel a cumprir, e os inimigos que ele é convidado a combater são, justamente, aqueles em quem subsiste o desejo pagão do massacre, de orgia e de pilhagem. A Ordem da Cavalaria foi a instituição medieval que mais se incrustou na lembrança, e é justo, pois nunca se teve concepção mais nobre do título de guerreiro.  Tal como a encontramos instituída desde o início do século XII, ela é realmente uma Ordem religiosa, e quase um sacramento. Ao contrário do que se costuma pensar, ela não é dada apenas para nobres: «Ninguém nasce cavaleiro», diz o provérbio. Camponeses, mesmo servos, a recebem, enquanto que muitos nobres não a recebem. Mas ser armado Cavaleiro é tornar-se nobre, e entre as máximas do tempo uma diz que «para se fazer nobre sem declarações deve-se ser cavaleiro».
 
Do futuro cavaleiro são exigidas qualidades especiais, traduzidas no simbolismo das cerimônias que lhe conferem o título. Deve ser piedoso, devoto à Igreja, respeitar suas leis: sua iniciação começa com uma noite de vigília, em oração, diante do altar sobre o qual descansa a espada que cingirá: é a vigília de armas, depois da qual, em sinal de pureza, toma um banho para assistir à Missa e comungar. Recebe então, solenemente, a espada e as esporas, e lhe lembram os deveres do seu ofício: ajudar o pobre e o fraco, respeitar a mulher, ser corajoso e generoso; sua divisa será «Vaillance et largesse», coragem e generosidade. Ele veste a armadura leve e recebe a espada sobre seu ombro: em nome de São Miguel e de São Jorge ele é feito cavaleiro.
 
Para bem cumprir seu dever ele deve ser ágil e bravo: a cerimônia prossegue então com uma série de provas físicas, verdadeiros testes para provar seu valor. Ele vai para a arena courir une quintaine, ou seja, derrubar um boneco atacando-o com o cavalo a galope, ou derrubar do cavalo os adversários que virão desafia-lo. O dia em que são feitos novos cavaleiros são dias de festa, onde cada um rivaliza em proezas, sob os olhos dos castelãs, da mesnie senhorial e da população concentrada em volta do terreno dos torneios. Agilidade e  vigor físico, bondade e generosidade, o cavaleiro representa um tipo de homem completo, onde a perfeição do corpo é acompanhada das mais atrativas virtudes: 
 
Tant est prud'homme si comme semble
Qui a ces deux choses ensemble: 
Valeur du corps et bonté d'âme.
O homem valente é o que aparece
Que duas coisas traz em conjunto
Do corpo o valor, da alma a bondade.
 
O que se espera dele não é, como no ideal da antigüidade, um equilíbrio, uma justa medida, mens sana in corpore sano, mas um máximo, onde ele é chamado a vencer a si mesmo, ser ao mesmo tempo o mais belo e o melhor pondo sua pessoa à serviço de outra. Esses romances onde os heróis da Távola Redonda partem incessantemente à procura de um feito maravilhoso traduz o ideal exaltante oferecido a quem possui a vocação das armas. Nada mais dinâmico, para usar uma expressão moderna, que o tipo do bom cavaleiro.
 
O título de cavaleiro pode ser perdido, assim como deve ser merecido: quem falta a seu dever é degradado publicamente, corta-se suas esporas de ouro junto ao tornozelo, em sinal de infâmia. «Honni soit hardement où il n'a gentillesse — Seja bem desprezado quem não tem honestidade», dizia-se significando que o puro valor guerreiro de nada valia sem a nobreza da alma.
 
Por isso a cavalaria foi a grande vibração da Idade Média, deixando na língua francesa a palavrachevaleresque, que traduz fielmente o conjunto de qualidades que arrancavam admiração. Basta percorrer a literatura, contemplar as obras de arte que nos deixaram, para vê-lo em toda parte, nos romances, nas poesias, nos quadros, nas esculturas, nas iluminuras dos manuscritos, este cavaleiro cuja bela estátua da catedral de Bamberg representa um perfeito modelo. Por outro lado, basta ler nossos cronistas para perceber que este tipo de homem não existiu apenas nos romances, e que a encarnação do perfeito cavaleiro, realizada sobre o trono de França na pessoa de São Luiz, teve nesta época uma multidão de outros exemplos.
 
Nessas condições, podemos representar como podia ser uma guerra medieval: estritamente localizada, ela se reduz muitas vezes a um simples passeio militar, a tomada de uma cidade ou de um castelo. Os meios de defesa são, nesta época, muito maiores que os meios de ataque: os muros, as fossas de uma fortaleza garantem a segurança dos sitiados; uma corrente esticada na entrada de um porto constitui uma segurança ao menos provisória. Para o ataque, usa-se quase que exclusivamente as armas de mão: a espada e a  lança. Se um belo corpo à corpo arranca exclamações admiradas dos cronistas, eles só manifestam desprezo pelas armas dos fracos que são o arco ou a besta, que diminuem o risco mas também os grandes feitos. Para sitiar um lugar usa-se catapultas de diversos tipos, trincheiras camufladas, ou ainda a demolição das muralhas pela base, mas conta-se principalmente com a fome e a duração do sítio para acabar com os resistentes. As fortalezas devem contar por isso com enormes provisões de cereais em suas vastas criptas, cuja lenda dos românticos transformou em jaulas para prisioneiros6, e procura-se sempre ter um poço ou cisterna no interior da praça. Quando uma máquina de guerra é por demais mortífera, a Igreja proíbe seu uso. A pólvora para canhões, conhecida desde o século XIII,  só começa a se espalhar quando a autoridade da Igreja não tem mais a mesma força e os princípios da Cristandade começam a se esfacelar. Enfim, como escreve Orderic  Vital, «pelo temor de Deus, por cavalaria, procurava-se aprisionar mais do que matar. Os guerreiros cristãos não tinham sede de derramar  sangue». É comum ver, no campo de batalha, o vencedor fazer graça ao derrotado que lhe grita um obrigado. Cita-se como exemplo a batalha de Andelys, empreendida por Luiz VI em 1119, na qual houve três mortos sobre novecentos combatentes.
 
Criticaram os princípios da Cristandade como prejudiciais ao patriotismo. Durante muito tempo acreditou-se que a idéia de pátria começou com Joana d'Arc (sec.XV). Mas tudo contradiz essa idéia. A expressão «France la douce – a doce França» encontra-se na Canção de Roland, e nunca se concebeu mais amorosa para qualificar nosso país. Os  poetas nunca deixaram de usa-la deste modo, como lemos em Andrieu contredit:
 
Des pays est douce France la fleur     
Doce França é a flor dos países
E no Roman de  Fauvel:
Le beau jardin de grâces plein  
Où Dieu, par spéciauté,   
Planta les lys de royauté...      
Et d'autres fleurs à grand plenté: 
Fleur de paix et fleur de justice,   
Fleur de foi e fleur de franchise,  
Fleur d'amour et fleur épanie    
De sens et de chevalerie...
C'est le jardin de douce France...  
Belo jardim de muita graça
Onde Deus especialmente
Plantou os lírios de realeza...
E outras flores também plantou:
Flor de paz e de justiça
Flor de fé, de sinceridade
Flor de amor, flor desabrochada
De sentimentos, de cavalaria...
É o jardim da doce França...
 
É impossível pensar em sua pátria com mais carinho. E se passamos a examinar os fatos, achamos, desde a longínqua data de 1124, a prova mais convincente da existência do sentimento nacional: trata-se dessa tentativa de invasão da França pelos exércitos do Imperador Henrique V, dirigidas contra nosso país pelas estradas seculares dos invasores, a nordeste da França, em direção de Reims. Assiste-se então a uma tomada de armas geral de todo o reino. Os barões mais turbulentos, como um Thibaut de Chartres, então em plena revolta, esquecem suas querelas para se agruparem sob o estandarte real, famosa flâmula rubra de franjas verdes que Luiz VI havia tomado sobre o altar de Saint-Denis. A tal ponto foi a mobilização que, diante desse exército de guerreiros surgido espontaneamente de todo o país, o imperador não ousou continuar e deu meia volta. A noção de pátria era bastante viva, já nesta época, para provocar uma coalizão geral, e através da diversidade e multiplicidade dos feudos, havia a consciência de fazer parte de um todo. Esta noção devia se afirmar novamente com brilho, um século mais tarde, na  batalha des Bouvines, e a explosão de alegria em Paris e em todo o reino, quando se anunciou a vitória real, é prova suficiente. O patriotismo, nesta época, apoia-se numa base sólida, o amor da terra, o apego ao solo, mas não deixa de se manifestar pela França inteira, pelo «jardin de douce France».
 
[Lumière du Moyen Age, Editions B. Grasset, Paris, 1944,cap. 6. Tradução PERMANÊNCIA]
  1. 1. [N. da P.] A definição não é de santo Agostinho, apesar deste santo doutor tê-la usado. Ela é de Aristóteles, 300 anos antes de Cristo.
  2. 2. [N. da P.] O autor usa o termo místico, mas hoje ele tem várias interpretações. Entenda-se por entendimento sobrenatural um relacionamento baseado na Caridade, estabelecido pelo amor de Deus, comum entre os povos católicos.
  3. 3. [N. da P.] Resumindo rapidamente a doutrina católica do dois gládios: A sociedade civil tem como finalidade o fim natural do homem que é a felicidade temporal, ou seja, bem estar, paz, prosperidade, etc. A sociedade religiosa tem como finalidade o fim sobrenatural do homem, seu fim último, a salvação eterna. As duas sociedades são independentes no seu campo próprio, mas como o fim último é superior ao fim natural, o poder civil não pode contrariar o fim eterno, havendo assim, naturalmente, subordinação do civil ao espiritual. O materialismo crescente, a partir da Renascença até nossos dias, levou a humanidade a separar as duas sociedades, (separação da Igreja e do Estado), recusando essa subordinação, subvertendo a ordem natural da vida social e criando o caos em que vivemos hoje. Mas essa doutrina não é particular à Idade Média.
  4. 4. [N. da P.] Depois de se casar com Ingeburge, irmã do rei da Dinamarca, em 1193, Philippe-Augusto a repudiou e a prendeu num mosteiro. A rainha apelou a Roma. Os legados papais enviados por Celestino III foram presos em Clairvaux. O rei casou-se com outra. Assim que foi eleito papa, Inocêncio III escreveu protestando: «A Santa Sé não pode deixar sem defesa as mulheres perseguidas. A dignidade real não o coloca acima dos deveres de um cristão». Não dando resultado, o Papa lançou a interdição sobre a França (14/1/1200). Depois de tentar anulá-la, o rei acaba capitulando e se submetendo no Concílio de Soissons.
  5. 5. O Concílio de Charroux, em 989, lança o anátema contra quem entrar por força numa igreja para roubar, contra quem roubar os bens de um camponês ou dos pobres, suas ovelhas, bois ou burros. (nota do autor).
  6. 6. O engano é ainda mais surpreendente pelo fato de que, ainda hoje, em alguns países como a Algéria, usa-se esse  tipo de reserva de grãos, porões com um buraco circular no alto pelo qual se descia um  cesto para recolher os grãos. (nota do autor).

O ensino na Idade Média

Como em todas as épocas, a criança da Idade Média vai à escola. Em geral, à escola da paróquia ou do mosteiro próximo. Com efeito, todas as igrejas possuem uma escola. O Concílio do Latrão, em 1179, torna essa obra obrigatória, e é comum ainda hoje, na Inglaterra, país mais conservador que o nosso, encontrar reunidas igreja, escola e cemitério. Acontecia também do ensino ser assegurado por fundações senhoriais. Rosny, vilarejo das margens do Sena, tinha, desde o início do século XIII, uma escola fundada em 1200 pelo senhor local, Guy V Mauvoisin. Às vezes trata-se também de escolas simplesmente privadas: os habitantes de uma propriedade se associam para pagar um mestre encarregado do ensino das crianças. Um pequeno texto engraçado nos conservou a petição de alguns pais pedindo a dispensa de um professor que, não tendo conquistado o respeito de seus alunos, chega a ser por eles espetado com os estiletes, com os quais se escrevia em tabuinhas cobertas de cêra – eum pugiunt grafionibus.

 
Mas os privilegiados são, evidentemente, os que podem freqüentar as escolas episcopais ou monásticas, ou ainda as capitulares, pois os capítulos das catedrais estavam também submetidos à obrigação de ensinar, pelo mesmo Concílio do Latrão 1. Algumas delas adquirem, na Idade Média, um brilho particular, como a de Chartres, de Lyon, ou de Le Mans, onde os alunos ensinavam tragédias antigas; a de Lisieux, onde, no início do século XII, o próprio bispo gostava de vir ensinar; a de Cambrai, da qual um texto citado pelo erudito Pithou nos faz saber que foram estabelecidas para o bem do povo na gerência de seus negócios temporais.
 
As escolas monásticas tiveram, talvez, mais fama ainda, e os nomes de  Bec, de Fleury-sur-Loire, onde foi educado o rei Roberto o Piedoso, de Saint-Géraud d'Aurillac, onde Gerbert aprendeu os primeiros rudimentos das ciências que iria elevar a tão alta perfeição, vêm naturalmente à lembrança, como ainda a de Marmoutier, perto de Tours,  de Saint-Bénigne, de Dijon, etc. Em Paris encontra-se, desde o século XII, três séries de estabelecimentos escolares: a Escola Notre-Dame, ou grupo de escolas do bispado, cujo cantor da scola assume a direção para as classes menores e o chanceler do bispado para as classes avançadas; as escolas das abadias como Sainte-Geneviève, Saint-Victor ou Saint-Germain des Prés; e as instituições particulares abertas por mestres que obtiveram licença para ensinar, como Abelardo.
 
A criança era admitida com sete ou oito anos, prolongando-se os estudos preparatórios para a Universidade por cerca de dez anos, como hoje. São os dados registrados pelo Pe. Gilles Muisit. Os meninos estudavam separados das meninas que, em geral, tinham escolas à parte, em menor número, talvez, mas onde os estudos eram, em muitos casos, de nível elevado. A abadia de Argenteuil, onde foi educada Heloisa, ensinava às meninas as Sagradas Escrituras, letras, medicina e até cirurgia, sem falar no grego e hebreu ensinados aí por Abelardo. Em geral, as pequenas escolas davam a seus alunos noções de gramática, aritmética, geometria, música, teologia, que lhes permitia alcançar os estudos universitários. Parece também que algumas davam também algum estudo técnico. A Histoire Literaire cita, por exemplo, a escola de Vassor, na dioceses de Metz, onde, além de aprender as Sagradas Escrituras e as letras, trabalhava-se o ouro, a prata e o cobre2. Os mestres eram quase sempre ajudados pelos mais velhos e pelos melhores alunos, como acontece ainda hoje no «ensino mútuo»:  
 
C'étoit ce belle chose de plenté d'écoliers:  
Ils manoient ensemble par loges, par soliers,   
Enfants de riches hommes et enfants de toiliers  
Como era bonito todos aqueles escolares
Juntos em suas classes, nas salas
 Filhos de ricos com filhos de pobres
 
Quem escreve isso é Gilles le Muisit, em suas lembranças de infância; de fato, nesta época, as crianças de todas as «classes» da sociedade eram instruídas juntas, como mostra a célebre história de Carlos Magno castigando os filhos dos barões que eram preguiçosos, ao contrário dos filhos de servos e dos pobres. A única distinção estabelecida era no custo do ensino, sendo ele gratuito para os pobres e pago para os ricos. A isenção de taxa de estudo podia prolongar-se por toda a duração da época escolar, incluindo o acesso ao mestrado, como mostra o Concílio do Latrão, já citado, que proibia aos dirigentes das escolas de «exigir dos candidatos ao professorado remuneração para conceder a licença».
 
Aliás, na Idade Média, quase não há diferenças na educação das crianças de diversas condições. O filho de qualquer pequeno vassalo são educados na sede senhorial com os filhos do suserano; os dos ricos burgueses passam pelo mesmo aprendizado que os do último artesão, se pretendem assumir um dia a loja paterna. É por isso, sem dúvida, que se multiplicam os exemplos de grandes personagens saídos de famílias humildes: Suger, que governou a França durante a Cruzada de Luiz VII, é filho de servo; Maurice de Sully, bispo de Paris que fez  construir Notre-Dame, era nascido de um mendigo; São Pedro Damião, em sua infância, cuidava de porcos, e uma das mais brilhantes luzes da ciência medieval, Gerbert d'Aurillac, também era pastor; o Papa Urbano VI era filho de um pequeno sapateiro de Troyes, e  Gregório VII, o grande Papa da Idade Média, filho de um pastor de cabras.
 
Por outro lado, muitos dos grandes senhores foram letrados e tiveram educação como a dos clérigos: Roberto o Piedoso compunha  hinos e seqüências latinas; Guillaume IX, príncipe da Aquitania, foi o primeiro trovador conhecido; Ricardo Coração de Leão nos deixou poemas, como também os senhores de Ussel, de Baux, e muitos outros. Isso sem falar dos casos excepcionais, como o do rei de Espanha, Alfonso X, o Astrônomo, que escreveu poesias, obras de Direito, estabeleceu progresso notável nas ciências astronômicas da época, redigindo suas Tábuas Alfonsianas, deixando também vasta crônica sobre as origens da História da Espanha e uma compilação de Direito Canônico e de Direito Romano que formaram o primeiro Código de Direito de seu país.
 
Os alunos mais capazes seguem, naturalmente, para a Universidade. Eles a escolhem segundo sua especialidade. Em Montpellier, medicina: desde 1181, Guilheme VII, senhor da cidade, conferiu a qualquer pessoa, de qualquer lugar que viesse, a liberdade de ensinar esta arte, desde que apresentasse garantias de seu saber. Orléans se especializou em Direito Canônico, como Bolonha em Direito Romano. Mas já então, nada se comparava com Paris, onde o ensino das artes liberais e da teologia atraía estudantes de todos os lugares: Alemanha, Itália, Inglaterra, e até da Dinamarca e Noruega.
 
Estas Universidades são invenções eclesiásticas, como que a continuação das escolas episcopais, com a diferença que elas dependerão diretamente do Papa, e não do bispo local. A bula Parens Scientiarum de Gregório IX, pode ser considerada como a ata de fundação da Universidade medieval, com seus regulamentos estabelecidos em 1215 pelo cardeal legado Robert de Courçon, agindo em nome de Inocêncio III, e que reconhecem aos mestres e estudantes o direito de associação. Criada pelo papado, a Universidade tem características inteiramente eclesiásticas:  os professores pertencem todos à Igreja, e as duas grandes Ordens religiosas que a iluminam no século XIII, Franciscanos e Dominicanos, conhecerão aí grandes glórias, com um São Boaventura e um São Tomás de Aquino.
 
Todos os alunos  são chamados clérigos, mesmo quando não se destinam ao sacerdócio, e alguns recebem a tonsura. Mas isso não significa que só se ensinava a teologia, pois os programas incluem todas as grandes disciplinas científicas e filosóficas, gramática, dialética, além da música e geometria.
 
Esta «universidade» de mestres e alunos forma uma sociedade autônoma. Philippe-Augusto, desde 1200, retira seus membros da jurisdição civil – o que quer dizer, dos próprios tribunais reais. Mestres, alunos e mesmo domésticos da Universidade ficam submetidos aos tribunais eclesiásticos, o que é considerado como privilégio e consagra a autonomia desta corporação de elite. Mestres e estudantes ficam assim isentos de obrigações para com o poder central; eles próprios administram a Universidade, tomam em comum as decisões e gerenciam a caixa, sem nenhuma intromissão do Estado. Esta é a característica fundamental da Universidade medieval e certamente a que mais a distingue da atual.
 
Esta liberdade favorece, entre as diversas cidades, uma concorrência difícil de se imaginar hoje. Durante anos, os mestres de Direito Canônico de Orléans disputam com os de Paris para conquistar seus alunos. Os registros da Faculdade de Decreto, publicados na Coleção de Documentos Inéditos, estão cheios de queixas contra os estudantes parisienses que vão à Orléans para colar grau, pois os exames eram mais fáceis. Ameaças, expulsões, processos, de nada adiantam, e as brigas prolongam-se sem fim. Concorrência também de professores, uns muito estimados, outros menos; teses discutidas apaixonadamente, com os estudantes formando facções que chegam até a greves. A Universidade, muito mais do que em nossos dias, era, na Idade Média, um mundo agitado.
 
E um mundo cosmopolita: as quatro «nações» que dividem os clérigos parisienses mostram isso claramente: havia os picards, os ingleses, os alemães e os franceses. Os estudantes vindos de cada um desses lugares eram então bastante numerosos para formar um grupo autônomo, com representantes e atividades próprias. Encontram-se também nos registros nomes italianos, dinamarqueses, húngaros e outros. Os professores que ensinam vêm, também, de todas as partes do mundo: Siger de Brabant, Jean de Salisbury têm nomes significativos. Santo Alberto Magno vem da Renânia, São Tomás de Aquino e São Boaventura, da Itália. Não há neste tempo obstáculos à troca de idéias, e julga-se um mestre apenas pela extensão de seu saber. Este mundo tão variado possui uma língua comum, a única falada na Universidade: o latim. Sem o latim ela seria uma Torre de Babel. O uso do latim facilita as relações, permite as comunicações entre os mestres de um lado ao outro da Europa, dissipa de antemão qualquer confusão de expressão, protegendo assim a unidade de pensamento. Os problemas que apaixonam os filósofos são os mesmos, em Paris, em Edimburgo, em Oxford, em Colônia ou em Pádua, apesar de cada um desses centros e cada personalidade imprimir seu caráter próprio. Tomás de Aquino, vindo da Itália, termina, em Paris, de clarificar e consolidar uma doutrina cujas bases estabelecera nas aulas de Alberto Magno, em Colônia. A Sorbonne do século XIII nada tem de fechada. Gilles le Muisit resume assim a vida dos estudantes:
 
Clercs viennent à études de toutes nations 
Et en hiver s'assemblent par plusieurs légions.
On leur lit et ils oient pour leur instruction;
En été s'en retraient moult en leurs régions, 
De todas as nações chegam os clérigos estudantes
Que se reúnem no inverno em várias legiões
Lêem e eles escutam para sua instrução
E no verão se retiram para suas regiões
 
De fato, o vai-vem é contínuo. Eles partem para a Universidade que escolheram, voltam para casa nas férias, viajam para assistir as lições de um mestre de renome ou estudar uma matéria numa cidade nela especializada. Já mencionamos as «fugas» dos candidatos aos exames de Direito Canônico para Orleans; isto se repete constantemente e, às vezes, entre cidades muito distantes. Estudantes e professores são habituados às grandes viagens: a cavalo e mesmo a pé, percorrem léguas e léguas, dormindo em granjas ou em hospedarias. Com os peregrinos e os comerciantes, são os que mais contribuem para a extraordinária animação que reina nas estradas na Idade Média, só reencontradas no século do automóvel, ou melhor, depois da aparição dos esportes ao ar livre. O mundo letrado era então um mundo itinerante. Era a tal ponto que, para alguns, o movimento passa a ser uma necessidade, uma mania: encontramos hoje, no Quartier Latin, estes velhos estudantes boêmios que nunca conseguiram voltar à vida normal nem usar os estudos, dos quais carregam o peso durante anos. Na Idade Média, esta espécie de  indivíduo corria as estradas: era o clérigo vagabundo ou goliard, tipo bem medieval, inseparável do «clima» da época: entregue às tabernas e às mulheres, vai de um cabaré ao outro, procurando comida e principalmente um bom copo de vinho; frequenta os lugares ruins, conserva restos de saber, que usa para causar a admiração dos simples, para quem recita versos de Horácio ou pedaços das canções de gesta; inicia, levado pelos encontros ocasionais, discussões de teologia, e acaba se perdendo na multidão de trovadores, de vadios e vagabundos, quando não é enforcado por algum crime. Suas canções se espalharam pela Europa, e o mundo estudantil conhece ainda algumas destas canções:
 
Meum est propositum in taberna mori,
Vinum sit appositum morientis ori,
Ut dicant cum venerint angelorum chori:
Deus sit propitius huic potatori!
O que quero é na taberna morrer
Com o vinho derramado na minha boca
Para que digam quando vier ao côro dos anjos
Deus seja propício a este beberão!
 
A Igreja precisou intervir várias vezes contra estes clerici vagi que promoviam farras e preguiças no mundo estudantil. Mas eles eram exceções. No conjunto, o estudante do século XIII não tinha uma vida muito diferente do atual. Foram conservadas e publicadas cartas endereçadas aos pais ou a amigos 3  que revelam as mesmas preocupações que hoje em dia, ou quase: os estudos, os pedidos de dinheiro e alimentação, as provas. O estudante rico morava na cidade com seu valete; os de condição mais modesta ia em pensão na casa dos burgueses do bairro de Sainte Geneviève, e pediam isenção de toda ou de parte das taxas de inscrição da Faculdade: encontramos muitas vezes, na margem dos registros uma menção indicando que este ou aquele não pagou a inscrição, ou que pagou só a metade, propter inopiam, por causa da pobreza. O estudante sem recursos faz pequenos trabalhos para viver: é copista ou encadernador nas livrarias que têm suas lojas na rua das Escolas ou na rua Saint Jacques 4. Além disso, ele pode ter suas refeições e moradia pagas nos colégios estabelecidos. O primeiro que existiu foi criado no Hotel-Dieu (hospital) de Paris por um burguês de Londres que, retornando de uma peregrinação na Terra Santa, no fim do século XII, teve a idéia de  fazer esta obra pia, favorecendo o aprendizado das pessoas modestas: ele deixou uma fundação 5 perpétua com encargo de alojar e alimentar de graça dezoito estudantes pobres que recebiam como única incumbência velar os mortos do hospital, cada um em seu turno, e carregar a cruz processional e a água benta nos enterros. Um pouco depois, funda-se o colégio Saint Honoré, o de São Tomás do Louvre, e muitos outros. Pouco a pouco, formou-se o hábito de se organizar nestes colégios sessões de estudo em conjunto, como nos seminários alemães ou os «grupos de estudo» que funcionam nas nossas Faculdades de alguns anos para cá. Os mestres passaram a vir dar algumas aulas, alguns até se estabeleceram aí, e aos poucos os colégios foram mais freqüentados que as próprias Universidades, como foi o caso do colégio da Sorbonne. No conjunto, havia um sistema de bolsas, não oficialmente organizado, mas de uso corrente, que lembrava a nossa Escola Normal Superior,  sem a prova de admissão, ou ainda, ao que se pratica nas Universidades inglesas, onde o estudante bolsista recebe gratuitamente, não apenas a instrução, mas ainda casa, comida e, às vezes, as roupas.
 
O ensino é feito em latim e se divide em dois cursos: o trivium ou artes liberais (gramática, retórica e lógica) e o quadrivium ou ciências (aritmética, geometria, música e astronomia), o que, com as três faculdades de teologia, direito e medicina, forma o ciclo de conhecimentos. Como  método é utilizado principalmente o comentário: é lido um texto, os Etymologies de Isidoro de Sevilha, asSentenças de Pedro Lombardo, um tratado de Aristóteles ou de Sêneca, segundo a matéria ensinada, e esse texto é analisado com todos os comentários que podem ser feitos, do ponto de vista gramatical, jurídico, filosófico, lingüístico, etc. Um ensinamento sobretudo oral, dando larga parte à discussão, com as Questiones disputate, questões na ordem do dia, tratadas e discutidas pelos candidatos à licença, diante de um auditório de mestres e alunos, que muitas vezes deram origem a tratados completos de teologia ou filosofia, ou ainda certas Glosas célebres, postas  por escrito, que eram também comentadas e explicadas durante os cursos. As  teses sustentadas pelos candidatos ao doutorado não eram simples exposições escritas, mas verdadeiramente teses, emitidas e sustentadas diante de todo um anfiteatro de doutores e mestres, onde qualquer assistente podia tomar a palavra e apresentar suas objeções.
 
Como se vê, este ensino é apresentado de forma sintética, cada curso tendo um lugar próprio em relação ao conjunto, onde ele adquire  seu valor real, correspondente a sua importância para o pensamento humano. Por exemplo, hoje em dia existe equivalência entre uma licença de filosofia e a licença de  espanhol ou de inglês, apesar de haver muita diferença na formação desses dois tipos de disciplina. Na Idade Média pode-se ser mestre em filosofia, teologia ou direito – ou mestre ès-arts, o que implica o estudo do conjunto ou do essencial do conhecimento relativo ao homem, o triviumrepresentando as ciências do espírito, e o  quadrivium as do corpo e dos números que o regem. Toda a série de estudos, portanto, procura transmitir uma cultura geral, e só se especializa ao sair da Faculdade. Isso explica o caráter enciclopédico de sábios e letrados da época: um Roger Bacon, um Jean de Salisbury, um Alberto Magno, possuíam realmente todo o conhecimento da época e podiam se entregar sem medo, em rodízio, aos assuntos os mais diversos, sem medo de digressões, pois sua visão de base é uma visão de conjunto.
 
Depois das sessões de trabalho na Faculdade ou no Colégio, o estudante medieval é um esportista, capaz de percorrer etapas de várias léguas e também – os anais da época se lamentam disso com freqüência – de manejar a espada. As vezes estouram rixas nessa população agitada, nas proximidades de Sainte Geneviève ou de Saint-Germain-des-Prés, e foi por saber usar muito bem sua arma que François Villon 6 teve que deixar Paris. Os exercícios físicos lhes são tão familiares quanto as bibliotecas e, mais ainda que em outros corpos de ofícios 7, sua vida é repleta de festas e diversões que alegram o Quartier Latin. Sem falar da Festa dos Loucos e da Festa dos Bobos, que são ocasiões excepcionais, toda recepção de doutorado era seguida de cerimônias cômicas em paródias, onde mesmo os graves mestres de Sorbonne tomavam parte. Ambrósio de Cambrai, que foi chanceler da Faculdade de Direito Canônico, representou seu papel e nos deixou a narração nos Anais detalhados que escreveu. Um ser assim formado estava pronto para a ação como para a reflexão, o que sem dúvida explica como nessa época as personalidades se adaptavam às situações as mais diversas, conseguindo bom resultado: prelados combatentes, como Guillaume des Barres ou Guérin de Senlis, na Batalha de Bouvines, juristas capazes de organizar a defesa de um castelo, como Jean d'Ibelin, senhor de Beyrouth, mercadores exploradores, ascetas construtores, etc.
 
Aliás, a Universidade foi o grande orgulho da Idade Média; os  Papas elogiam este «rio de ciência que, por seus múltiplos afluentes, banham e fecundam o terreno da Igreja universal»; assinala-se com satisfação que, em Paris, é tal o número de estudantes que ultrapassa o de habitantes 8. Todos são indulgentes para com eles, apesar de suas «irreverências» e brincadeiras, que às vezes incomodam os burgueses; eles gozam a simpatia geral. Algumas cenas de suas vidas foram esculpidas no portal Saint Etienne, de Notre-Dame de Paris: ei-los lendo e estudando, quando uma mulher vem lhes perturbar a leitura e, para a punir, é amarrada no pelourinho por ordem da autoridade. Os reis dão o exemplo dessa maneira de tratar os estudantes, como acontece com Philippe-Augusto que, após a vitória de Bouvines, envia um de seus mensageiros anunciar a vitória, em primeiro lugar, aos estudantes de Paris9.
 
Tudo o que é relativo ao saber era, assim, reverenciado, na Idade Média. «A deshonneur meurt à bon droit qui n'aime livre – quem não ama os livros morre na desonra», dizia um provérbio 10; e basta olhar os textos para encontrar as provas de  que todo amor pela ciência era encorajado e alimentado.  Citemos, entre outras, a criação, em 1215, de uma cadeira de teologia, em Paris, especial para permitir aos padres da diocese de aperfeiçoar e completar seus estudos, o que mostra a preocupação em manter um alto grau de instrução, mesmo no clero mais humilde. O prud'homme, este tipo de homem completo que foi o ideal do século XIII, devia necessariamente ser letrado:
 
Pour rimer, pour versifier,  
Pour une lettre bien dicter,
Si métier fut, pour bien écrire 
Et en parchemin et en cire,
Pour une chanson controuver11
Para rimar e versificar,
Para uma carta bem ditar,
E precisando escrever
No pergaminho ou na cêra,
Para compor uma canção
 
Diante disso, podemos nos perguntar se o povo era tão ignorante, na Idade Média, como se acredita em geral; ele tinha ao seu alcance, incontestavelmente, os meios para se instruir, e a pobreza não era um obstáculo, visto que as aulas podiam ser inteiramente grátis, da escola do vilarejo, ou melhor, da paróquia, até a Universidade. E ele aproveitava-se disso, pois são numerosos os exemplos de pessoas humildes que viraram grandes clérigos.
 
Quer isso dizer que a instrução era tão generalizada quanto hoje? Parece claro que, neste ponto, houve um malentendido: assimilou-se, mais ou menos, cultura a alfabetização. Para nós, um iletrado é fatalmente, um ignorante. Ora, o número de iletrados era, sem dúvida, maior na Idade Média do que em nossa época12.  Mas, seria justo esse ponto de vista? Pode-se fazer do conhecimento do alfabeto o critério da cultura? Do fato da educação ser sobretudo visual, pode-se concluir que o homem só se educa pela visão?
 
Num capítulo dos Estatutos Municipais da cidade de Marselha, datado do século XIII, estão enumeradas as qualidades de um bom advogado, e lê-se: litteratus vel non litteratus – que seja letrado ou não. Isso é importante: pode-se, então, ser um bom advogado e não saber nem ler nem escrever –  conhecer o costume, o direito romano, o manejo da linguagem, e ignorar o alfabeto. Essa noção é difícil de ser imaginada para nós, mas é capital para se compreender a Idade Média: a instrução é feita mais pelo ouvido que pela leitura 13.  Por mais importância que se dê aos livros ou aos escritos, estes têm lugar secundário; o papel principal cabe à palavra, ao verbo. E isso acontece em todos os setores da vida: atualmente, qualquer funcionário escreve relatórios; na Idade Média, eles se aconselhavam e deliberavam. Uma tese não era uma obra impressa, mas uma discussão; um negócio fechado não era uma assinatura firmada ao pé de um escrito, mas a tradição manual (de um objeto simbólico, como um naco de  terra na compra de um terreno) ou o engajamento verbal. Governar é se informar, pesquisar... e enviar os arautos «gritarem» as decisões tomadas.
 
Um elemento essencial da vida medieval foi a pregação. Pregar, nesta época, não era discursar em monólogos com termos pré escolhidos, diante de um auditório silencioso e cativado. Pregava-se em toda parte, não apenas nas igrejas, mas também nos mercados, nas feiras, nos cruzamentos das estradas – pregações vivas, cheias de fogo e de fuga. O pregador se dirigia ao auditório, respondia suas perguntas, admitia suas contradições, seus rumores, suas apóstrofes. Um sermão agia sobre a população, podia provocar, na hora, uma Cruzada,  propagar uma heresia, causar uma revolta. O papel didático dos clérigos era imenso: eram eles que ensinavam aos fiéis sua história e suas lendas, sua ciência e sua fé. Eles que anunciavam os grandes acontecimentos, que transmitiram, de um canto ao outro da Europa a tomada de Jerusalém ou a perda de  Saint Jean d'Acre. Eles que aconselhavam a uns e guiavam os outros, mesmo nos negócios profanos. Hoje, os que faltam de memória visual, mais automática, necessitando menos do raciocínio que a memória auditiva, têm dificuldades nos estudos e na vida. Na Idade Média não era assim, recebia-se a instrução escutando, e a palavra era de ouro.
 
Coisa curiosa, nossa época assiste à volta da  importância do verbo e o reaparecimento desse elemento auditivo que se perdera. Podemos pensar que o rádio terá, para as gerações que virão, o papel que teve outrora a pregação; desejamos, ao menos, que ele seja equivalente, no que toca a educação do povo.
 
É na  Idade Média que podemos ver realizado o termo «cultura latente». Todos, na época, têm um conhecimento, pelo menos corrente, do latim falado, e canta o gregoriano, o que supõe, senão a ciência, ao menos o uso da acentuação. Todos possuem uma cultura mitológica e legendária; ora, as fábulas e os contos falam mais sobre a história da humanidade e sua natureza que boa parte das ciências inscritas nos programas oficiais das escolas. Nos romances de ofícios publicados por Thomas Deloney, vemos os tecelãos citarem em suas canções Ulisses e Penélope, Ariana e Teseu. Se chamaram os vitrais de «Bíblia dos iletrados», foi porque os ignorantes reconheciam aí histórias que lhes eram familiares, realizando com toda simplicidade este trabalho de interpretação que tanto atrapalha nossos arqueólogos!
 
Além disso, havia os conhecimentos técnicos que eram assimilados durante os anos de aprendizado. Nem arte, nem ofício, eram improvisados: era preciso, para exercê-los bem, que eles se tornassem como que uma segunda natureza; era assim, sem dúvida, que tantos artistas locais, para sempre perdidos no anonimato, puderam adquirir esta destreza que aparece em obras como o Devoto Cristo, de Perpignan, ou a  Crucifixão, de Venasque. Pode-se chamar de ignorante um homem que conhece tudo de sua arte, por mais humilde que seja? E devemos considerar que, a estes conhecimentos do ofício vêm se juntar diversas tradições: o Compost des Bergiers, que uma feliz curiosidade permitiu ser redescoberto, há pouco tempo, nos oferece um exemplo dessas pequenas Sumas do saber tradicional: astronomia, medicina, botânica, meteorologia, que podia ser adquiridos dentro de cada ofício, variando de um para outro, e que constituía a base de uma cultura certamente mais vasta e mais adaptada às necessidades locais do que poderíamos  crer.
 
 
[Lumière du Moyen Age, Editions B. Grasset, Paris, 1944, cap. 8. Tradução PERMANÊNCIA]

 

  1. 1. «Em cada diocese, escreve Luchaire, além das escolas rurais ou paroquiais que já existiam... os capítulos  e os principais mosteiros tinham suas escolas, seus professores e alunos». (La Société Française au temps de Philippe-Auguste, p.68).
  2. 2. L.VII, cap.29, citado por J.Guiraud, Histoire partiale, histoire vraie, p.348.
  3. 3. Cf. Haskins, The life of medieval students as illustrated by their letters, in Americain historical review, III (1892), nº 2.
  4. 4. [N. da P.] Essas duas ruas existem ainda hoje e ficam próximas da famosa igreja de Saint Nicolas du Chardonet, conquistada pelos tradicionalistas em 1977, ainda hoje um comovente reduto da verdadeira fé. 
  5. 5. [N. da P.] Chama-se uma fundação um valor destinado a ser aplicado para  que os juros sejam usados em determinadas obras. A Igreja aceita fundação de missas: um valor ou bem é doado, sendo estabelecido certo número de missas anuais nas intenções.
  6. 6. [N. da P.] François Villon (1431-1489) - Poeta francês de vida agitada, mas considerado por muitos como principal responsável  pela formação da língua francesa. 
  7. 7. Assinalemos que a Idade Média não conhece distância entre os ofícios manuais e as profissões liberais. Os termos mostram bem isso: chama-se mestre tanto o tecelão que terminou seu aprendizado quanto o estudante de teologia que obteve a licença.
  8. 8. A afirmação não pode ser seguida ao pé da letra, mas não deixa de ser interessante saber que, na época, a população de Paris somava quarenta mil habitantes.
  9. 9. Com a experiência que já temos da vida medieval e do espírito dos seus homens, podemos compreender que nada havia de demagogia nesta atitude do rei.
  10. 10. Renart, Prov. franç., II, 99.
  11. 11. Citado pela Histoire littéraire, t.XX.
  12. 12. Apesar de serem menos do que se costuma dizer, pois a maioria das testemunhas que aparecem nos atos de tabelião sabem assinar, sendo um exemplo, entre outros, o de Joana d'Arc, pequena camponesa que, no entanto, sabia escrever.
  13. 13. [N. da P.] É interessante saber que, nos mosteiros beneditinos, ainda hoje têm muita importância as reuniões da comunidade, ou de parte da comunidade, para o que se chama de «conferência»: o abade, ou o mestre de noviços, fala aos monges, os quais, imperceptivelmente, vão assimilando as verdades e os costumes do mestre.

Organização social na Idade Média

...estes tempos que se chamam obscuros
(Miguel de Unamuno)
 
Durante muito tempo pensou-se que para se explicar a sociedade medieval bastava usar a divisão clássica em três ordens: clero, nobreza e terceiro estado. É o que ensinam ainda os livros de história: três categorias de indivíduos, bem definidas, tendo cada uma suas atribuições próprias, separadas nitidamente das outras. Nada mais afastado da realidade histórica! Essa divisão em três classes pode ser aplicada ao Antigo Regime, nos séculos XVII e XVIII, onde, de fato, os diferentes níveis da sociedade formavam ordens distintas, onde as prerrogativas e relações davam conta do mecanismo da vida. Mas seria superficial aplicar esta divisão à Idade Média: ela explica os grupos, a repartição, a distribuição de forças, mas não revela nada sobre as origens, sobre a mola, a estrutura profunda da sociedade. Pelo que aparece nos textos jurídicos, literários e outros, a sociedade medieval é uma hierarquia, com uma ordem determinada, mas esta ordem não é aquilo que se imaginou, e antes de mais nada, ela é bem mais diversa. Nos atos notariais vemos freqüentemente um senhor de um condado, um pároco, servirem de testemunha em transações entre vilões, e a mesnie de um barão – ou seja, seus próximos, seus familiares – inclui tanto servos e monges quanto altas personalidades. As atribuições destas classes são também estreitamente ligadas: a maioria dos bispos também são senhores; ora, muitos deles saíram do povo humilde. Um burguês que compra uma terra nobre, em certas regiões, passa a ser nobre. Basta abandonar os livros de história para mergulhar nos documentos, e esta noção de «três classes da sociedade» mostra-se fictícia e sumária.

A mulher sem alma

 

Régine Pernoud

 

Em 1975, “ano internacional da mulher”, o ritmo de referências à Idade Média tornou-se estonteante; a imagem da Idade Média, dos tempos obscuros de onde se emerge, como a Verdade de um poço, impunha-se a todos os espíritos e fornecia um tema básico para os discursos, colóquios, simpósios e seminários de todos os tipos. Como eu mencionasse, um dia, em sociedade, o nome de Eleonora de Aquitânia, obtive logo aprovações entusiásticas: “Que personagem admirável! — exclamou um dos presentes. Numa época em que as mulheres só pensavam em ter filhos...”. Eu lhe fiz uma observação sobre o fato de que Eleonora parecia haver pensado assim pois teve dez e, considerando sua personalidade, isto não poderia ter ocorrido por simples advertência. O entusiasmo tornou-se um pouco menor.

 

A situação da mulher, na França medieval, é na atualidade assunto mais ou menos novo: poucos estudos sérios lhe foram consagrados, pode-se mesmo dizer que se os poderia contar pelos dedos. A sociedade Jean Bodin, cujos trabalhos são tão notáveis, editou em 1959-1962 dois grossos volumes (respectivamente 346 e 770 páginas) sobre a mulher. Todas as civilizações são sucessivamente examinadas. A mulher é estudada na sociedade do Sião, ou de acordo com os vários direitos cuneiformes, ou no Direito malikité-magrebino, mas, para o nosso Ocidente medieval, não se contam mais do que dez páginas relativas ao Direito canônico, outras dez ao período que vai do século XIII ao fim do século XVII, um estudo consagrado aos tempos clássicos até o Código Civil, um outro, a monarquia Franca, e trabalhos mais pormenorizados sobre a Itália, a Bélgica e a Inglaterra, na Idade Média. E eis tudo. O período feudal é completamente esquecido.

 

É igualmente inútil procurar nesta obra um estudo sobre a mulher nas sociedades célticas, onde, estamos certos, ela tinha um papel contrastante com o confinamento a que estava sujeita nas sociedades do tipo clássico greco-romano. No que se refere aos celtas, para os historiadores de nossa época, o homem e a mulher se encontravam num pé de igualdade completa, tanto que não se ressalta nunca nem um nem outro. Aos celtas, de uma vez por todas, foi recusado o direito de existir.

 

No entanto, impõe-se uma imagem, à qual já tive ocasião de me referir.1.Não é, em realidade, surpreendente pensar que nos tempos feudais a rainha é coroada como o rei, geralmente em Reims, às vezes em outra catedral do domínio real (em Sens, como Margarida de Provence), mas sempre pelas mãos do arcebispo de Reims? Dito de outra forma, atribuía-se à coroação da rainha tanto valor quanto à do rei. Ora, a última rainha a ser coroada foi Maria de Medicis; ela o foi, aliás, tardiamente, em 1610, na véspera do assassinato de seu marido, Henrique IV; a cerimônia ocorreu em Paris, segundo um costume consagrado nos séculos anteriores (atingir Reims representava então um feito militar por causa das guerras anglo-francesas). E, além disso, desde os tempos medievais (o termo é tomado aqui em oposição a tempos feudais), a coroação da rainha tinha-se tornado menos importante que a do rei; numa época em que a guerra se alastrava pela França de forma endêmica (a famosa Guerra dos Cem Anos), as necessidades militares começaram a ter primazia entre todas as preocupações, por ser o rei, antes de tudo, o “chefe da guerra”. Tanto assim é que, no século XVII, a rainha desaparece literalmente da cena em proveito da favorita. Basta lembrar qual foi o destino de Maria Teresa ou o de Maria Leszcynska para se convencer. E quando a última rainha quis retomar uma parte deste poder, lhe foi dada ocasião de se arrepender, pois ela se chamava Maria Antonieta (é justo lembrar que a última favorita, a Du Barry, reuniu-se à última rainha no cadafalso).

 

Esta rápida visão do papel das rainhas dá idéia bem exata do que se passou com as mulheres; o lugar que elas ocuparam na sociedade; a influência que exerceram seguiu, exatamente, um traçado paralelo. Enquanto uma Eleonora de Aquitânia, uma Branca de Castela dominam realmente seus séculos, exercem poder sem contestação no caso de ausência do rei, doente ou morto, e têm suas chancelarias, suas alfândegas, seus campos de atividade pessoal (que poderia ser reivindicado como um fecundo exemplo para os movimentos feministas de nosso tempo), a mulher, nos tempos clássicos, foi relegada a um segundo plano; exerce influência só na clandestinidade e se encontra notoriamente excluída de toda função política ou administrativa. Ela é mesmo tida como incapaz de reinar, de suceder no feudo ou no domínio, principalmente nos países latinos e, finalmente, em nosso Código, de exercer qualquer direito sobre seus bens pessoais.

 

É, como sempre, na História do Direito que se deve procurar os fatos e seu significado, ou seja, a razão desta decadência que se transformou, com o século XIX, no desaparecimento total do papel da mulher, principalmente na França. Sua influência diminui paralelamente à ascensão do Direito romano nos estudos jurídicos, depois nas instituições e, por fim, nos costumes. É um apagar progressivo do qual se pode seguir as principais etapas, pelo menos na França, muito bem.

 

Curiosamente a primeira disposição que afasta a mulher da sucessão ao trono foi tomada por Filipe, o Belo. É verdade que este rei estava sob a influência dos legisladores meridionais, que tinham literalmente invadido a corte de França, o começo do século XIV, e que, representantes típicos da burguesia das cidades notadamente das do Sul mais voltadas para o comércio, redescobriram o Direito romano com uma verdadeira avidez intelectual.

 

Esse Direito concebido por militares, funcionários, comerciantes, conferia aos proprietários o jus utendi et abutendi, o direito de usar e abusar, em completa contradição com o Direito consuetudinário de então, mas eminentemente favorável aos que detinham riquezas, principalmente móveis. Àqueles, com razão, esta legislação parecia infinitamente superior aos costumes existentes para assegurar e garantir bens, tráficos e negócios. O Direito romano do qual vemos renascer a influência na Itália, em Bolonha principalmente, foi a grande tentação do período medieval; ele foi estudado com entusiasmo não só pela burguesia das cidades, mas, também, por todos os que viam nele um instrumento de centralização e de autoridade. Ele se ressente, com efeito, de suas origens imperialistas e, por que não dizer, colonialistas. Ele é o Direito, por excelência, dos que querem firmar uma autoridade central estatizada. Também é reivindicado, adotado, estendido para as potências que procuravam, então, a centralização: pelo imperador, primeiro, depois pelo Papa. Em meados do século XIII, o imperador Frederico II, cujas tendências eram as de um monarca, fez deste tipo de direito a lei comum dos países germânicos. A universidade que ele funda em Nápoles — a única que os súditos do imperador estavam daí em diante autorizados a freqüentar — ministra o estudo do Direito romano, tão bem que esse Direito regeu as instituições e os costumes dos países germânicos numa época em que o Ocidente não o admitia ainda.2. Apenas ao longo do século XVII é que o estudo do Direito romano, precisamente, porque era o Direito imperial, será admitido na Universidade de Paris. É verdade que, muito antes, era ensinado em Toulouse, e que, favorecido pela admiração exagerada que se sente, no século XVI, pela Antiguidade, tinha começado a impregnar os hábitos e a modificar profundamente os costumes e as mentalidades, na própria França.

 

Ora, o Direito romano não é favorável à mulher, nem tampouco à criança. É um direito monárquico, que só admite um fim. É o direito do pater familias, pai, proprietário e, em sua casa, grande-sacerdote, chefe da família com poderes sagrados, sem limites no que concerne a seus filhos; tem sobre eles direito de vida e de morte — e da mesma forma sobre sua mulher, apesar das limitações, tardiamente introduzidas sob o Baixo Império.

 

Apoiando-se no Direito romano é que juristas como Dumoulin, por seus tratados e seus ensinamentos, contribuem, por sua vez, para estender o poder do Estado centralizado e também — o que nos interessa aqui — para restringir a liberdade da mulher e da sua capacidade de ação, principalmente no casamento. A influência deste direito será tão forte que, no século XVI, a maioridade, que era aos doze anos para as meninas e quatorze para os rapazes, na maior parte dos costumes, vai ser transferida para a mesma idade fixada em Roma, isto é, vinte e cinco anos (em Roma, a maioridade não importava muito, pois o poder do pai sobre os filhos perdurava durante toda a vida). Era uma nítida regressão sobre o Direito consuetudinário, que permitia à criança adquirir, muito jovem, uma verdadeira autonomia, sem que, por isso, a solidariedade da família lhe fosse negada. Nesta estrutura, o pai tinha autoridade de gerente, não de proprietário: ele não tinha o poder de deserdar seu filho mais velho e era o costume que, nas famílias nobres ou de homens comuns, regulava a devolução dos bens, em um sentido que mostra claramente o poder que a mulher conservava sobre o que lhe pertencia: no caso de um casal morrer sem herdeiros diretos, os bens provenientes do pai iam para a família paterna, mas os provenientes da mãe voltavam para a família materna, segundo o adágio bem conhecido do Direito consuetudinário: paterna paternis, materna maternis.

 

No século XVII já se constata uma profunda evolução neste ponto de vista: os filhos, considerados como menores até vinte e cinco anos, continuam sob a autoridade do pai e a característica de propriedade tendente a tornar-se monopólio do pai não faz mais do que se firmar. O Código de Napoleão dá o último retoque a este dispositivo e dá um sentido imperativo às tendências que começaram a se firmar desde o fim da época medieval. Lembremos que apenas no fim do século XVII a mulher toma obrigatoriamente o nome do marido; e, também, que é somente com o Concílio de Trento, portanto na segunda metade do século XVI, que o consentimento dos pais torna-se necessário para o casamento de adolescentes; tanto quanto se tornou indispensável a sanção da Igreja. Ao velho adágio dos tempos anteriores:

 

Beber, comer, dormir juntos

Fazem o casamento, me parece

 

junta-se:

 

Mas é preciso passar pela Igreja.

 

Não nos esqueceremos de destacar aqui o número de uniões devidamente arranjadas pela família nos tempos feudais: os exemplos são abundantes realmente, moças e rapazes, noivos desde o berço, prometidos um ao outro. Também não faltou quem quisesse argumentar com o fato de que as mulheres não eram livres na época; o que é fácil de retrucar, pois que, deste ponto de vista, rapazes e moças se encontravam em pé de igualdade rigorosa, porque se dispõe do futuro esposo absolutamente do mesmo modo que da futura esposa. Deste modo, é incontestável que ocorria, então, o que ainda hoje acontece em dois terços do mundo, isto é, que as uniões, em sua grande maioria, eram arranjadas pelas famílias. E nas famílias nobres, especialmente as reais, essas disposições faziam, de algum modo, parte das responsabilidades de nascimento, porque um casamento entre dois herdeiros de feudo ou de reinos era considerado como o melhor meio de selar um tratado de paz, assegurar amizade recíproca e, também, de garantir para o futuro uma herança vultosa.

 

Uma força lutou contra estas uniões impostas, e esta foi a Igreja; ela multiplicou, no Direito canônico, as causas de nulidade, reclamou sem cessar a liberdade para os que se unem, um com relação ao outro e, com freqüência, mostrou-se bastante indulgente ao tolerar, na realidade, a ruptura de laços impostos — muito mais nesta época do que mais tarde, notemos. O resultado é a constatação que provém da simples evidência de que o progresso da livre escolha do esposo acompanhou em toda parte o progresso da difusão do Cristianismo. Hoje, em países cristãos, esta liberdade, tão justamente reclamada, é reconhecida pelas leis, enquanto que, nos países muçulmanos ou nos países do Extremo Oriente, esta liberdade, que nos parece essencial, não existe ou só recentemente foi concedida.3

 

Isto nos leva a discutir o slogan: “Igreja hostil à mulher”. Não nos demoraremos em questionar a afirmação acima, o que exigiria um volume à parte; não iremos mais discutir as tolices evidentes4 que foram proferidas sobre o assunto. “Não foi senão no século XV que a Igreja admitiu que a mulher tinha alma”, afirmava candidamente, um dia no rádio, não sei que romancista certamente cheio de boas intenções, mas cuja informação apresentava algumas lacunas! Assim, durante séculos, batizou-se, confessou-se e ministrou-se a Eucaristia a seres sem alma! Neste caso, por que não aos animais? É estranho que os primeiros mártires honrados como santos tenham sido mulheres e não homens. Santa Agnes, Santa Cecília, Santa Ágata e tantas outras. É verdadeiramente triste que Santa Blandina ou Santa Genoveva tenham sido desprovidas de uma alma imortal. É surpreendente que uma das mais antigas pinturas das catacumbas (no cemitério de Priscille) representasse, precisamente, a Virgem com o Menino, bem designado pela estrela e pelo profeta Isaías. Enfim, em quem acreditar, nos que reprovam na Igreja medieval justamente o culto da Virgem Maria, ou naqueles que julgam que a Virgem Maria era, então, considerada como uma criatura sem alma?

 

Sem nos demorarmos, portanto, nestas tolices, recordaremos aqui que algumas mulheres (que nada designavam particularmente, pela família ou pelo nascimento, pois que vinham, como diríamos atualmente, de todas as camadas sociais, como, por exemplo, a pastora de Nanterre) usufruíram na Igreja, e justamente por sua função na Igreja, de um extraordinário poder na Idade Média. Certas abadessas eram senhoras feudais cujo poder era respeitado do mesmo modo que o de outros senhores; algumas usavam o báculo como os bispos; administravam, muitas vezes, vastos territórios com cidades e paróquias... Um exemplo, entre mil outros: no meio do século XII, cartulários nos permitem seguir a formação do mosteiro de Paraclet, cuja superiora é Heloisa; basta percorre-los para constatar que a vida de uma abadessa, na época, comporta todo um aspecto administrativo: as doações que se acumulam, que permitiam perceber ora o dízimo de um vinhedo, ora o direito às taxas sobre o feno e o trigo, aqui o direito de usufruir uma granja, e lá o direito de pastagem na floresta... Sua atividade é, também, a de um usufruidor, ou seja, a de um senhor. Quer dizer que, a par de suas funções religiosas, algumas mulheres exerciam, mesmo na vida laica, um poder que muitos homens invejariam no presente.

 

Por outro lado, constata-se que as religiosas desta época — sobre as quais, digamos de passagem, ainda nos faltam estudos sérios — são na maioria mulheres extremamente instruídas, que poderiam rivalizar, em sabedoria, com os monges mais letrados do tempo. A própria Heloísa conhece e ensina às monjas o grego e o hebraico. É de uma abadia de mulheres, a de Gandersheim, que provém um manuscrito do século X contendo seis comédias, em prosa rimada, imitação de Terêncio, e que são atribuídas à famosa abadessa Hrostsvitha, da qual, há muito tempo, conhecemos a influência sobre o desenvolvimento literário nos países germânicos. Estas comédias, provavelmente representadas pelas religiosas, são, do ponto de vista da história dramática, consideradas como prova de uma tradição escolar que terá contribuído para o desenvolvimento do teatro na Idade Média. Digamos, de passagem, que muitos mosteiros de homens e de mulheres ministravam instrução às crianças da região.

 

É surpreendente, também, constatar que a mais conhecida enciclopédia do século XII é da autoria de uma religiosa, a abadessa Herrade de Landsberg. É a famosa Hortus deliciarum (Jardim das delícias) na qual os eruditos retiravam os ensinamentos mais corretos sobre o avanço das técnicas, em sua época. Poder-se-ia dizer o mesmo das obras da celebre Hildegarde de Bingen. Enfim, uma outra religiosa, Gertrude de Helfa, no século XIII, conta-nos como se sentiu feliz ao passar de estado de gramaticista ao de teóloga, isto é, depois de ter percorrido o ciclo de estudos preparatórios ela galgara o ciclo superior, como se fazia na Universidade. O que prova que, ainda no século XIII, os conventos de mulheres permaneciam sendo o que sempre foram desde São Jerônimo, que instituiu o primeiro dentre eles, a comunidade de Belém: lugares de oração, mas, também, de ciência religiosa, de exegese, de erudição; estuda-se a Escritura Sagrada, considerada como a base de todo conhecimento e, também, os elementos de saber religioso e profano. As religiosas são moças instruídas; portanto, entrar para o convento é o caminho normal para as que querem desenvolver seus conhecimentos além do nível comum. O que parece extraordinário em Heloísa é que, em sua juventude, não sendo religiosa e não desejando claramente entrar para o convento, procurava, todavia, estudos muito áridos, ao invés de se contentar com a vida mais frívola, mais despreocupada, de uma jovem desejando “viver no século”. A carta que Pedro, o Venerável lhe enviou o diz expressamente.

 

Mas há algo mais surpreendente. Se quisermos fazer uma idéia exata do lugar ocupado pela mulher na Igreja dos tempos feudais, é preciso perguntarmo-nos o que se diria, em nosso século XX, de conventos de homens colocados sob a direção de uma mulher. Um projeto deste gênero teria, em nosso tempo, alguma possibilidade de se realizar? E, no entanto, isto foi realizado com pleno sucesso, e sem provocar o menor escândalo, na Igreja por Robert d’Arbrissel, em Fontevrault, nos primeiros anos do século XII. Tendo resolvido fixar a incrível multidão de homens e mulheres que se arrastava atrás dele — porque ele foi um dos maiores pregadores de todos os tempos —, Robert d’Abrissel decidiu fundar dois conventos, um de homens, outro de mulheres;5 entre eles se elevava a Igreja, único lugar em que monges e monjas podiam se encontrar. Ora, este mosteiro duplo foi colocado sob a autoridade, não de um abade, mas de uma abadessa. Esta, por vontade do fundador, devia ser viúva, tendo tido a experiência do casamento. Para completar, digamos que a primeira abadessa que presidiu os destinos da Ordem de Fontevrault, Petronila de Chemillé, tinha 22 anos. Não acreditamos que, mesmo nos dias de hoje, semelhante audácia tivesse a menor oportunidade de ser considerada ao menos uma única vez.

 

Se se examinam os fatos, uma conclusão se impõe: durante todo o período feudal, o lugar da mulher na igreja apresentou algumas diferenças daquele ocupado pelo homem (e em que medida não seria esta uma prova de sabedoria: levar em conta que o homem e a mulher são duas criaturas equivalentes, mas diferentes?), mas este foi um lugar eminente, que simboliza, por outro lado, perfeitamente o culto, insigne também, prestado à Virgem entre todos os santos. E é pouco surpreendente que a época termine por uma figura de mulher: a de Joana D’Arc, que, seja dito de passagem, não poderia, jamais, nos séculos seguintes, obter a audiência e suscitar a confiança que conseguiu, afinal.

 

É surpreendente, também, observar a rigidez que se produziu ao redor da mulher no extremo fim do século XIII. É por uma medida bastante significativa que, em 1298, o Papa Bonifácio VII decide para as monjas (cartuxas, cistercienses) a clausura total e rigorosa que elas conheceram a partir daí. Em seguida, não se admitirá mais que a religiosa se misture com o mundo. Não se tolerarão mais estas leigas consagradas, que foram as penitentes, no século XIII, que levavam uma vida igual a todos, mas que se consagravam por um voto religioso. No século XVII, principalmente, veremos as religiosas da Visitação, destinadas, por sua fundadora, a se misturarem com a vida quotidiana, obrigadas a se conformar com a mesma clausura das carmelitas; tanto que São Vicente de Paulo, para permitir às Irmãs de Caridade prestar serviço aos pobres, tratar dos doentes e cuidar das famílias necessitadas, evitará tratá-las como religiosas e de fazê-las proferir os votos: seu destino foi, então, de Visitadoras. Não se poderia mais conceber que uma mulher tendo decidido consagrar sua vida a Deus não fosse enclausurada; enquanto que, nas novas ordens criadas para os homens, por exemplo os Jesuítas, estes permaneciam no mundo.

 

Basta dizer que o status da mulher na Igreja é exatamente o mesmo que na sociedade civil e que tudo o que lhe conferia alguma autonomia, alguma independência, alguma instrução, lhe foi, pouco a pouco, retirado depois da Idade Média. Ora, como ao mesmo tempo a universidade — que admite apenas os homens — tenta concentrar o saber e o ensino, os conventos deixam, de modo gradativo, de ser os centros de estudo que tinham sido anteriormente; digamos que eles param, também, e muito rapidamente, de ser centros de oração.

 

A mulher se encontra, portanto, excluída da vida eclesiástica, como da vida intelectual. O movimento se precipita quando, no começo do século XVI, o rei de França mantém nas mãos a nomeação de abadessas e abades. O melhor exemplo continua sendo a Ordem de Fontevrault, que se torna um asilo para as velhas amantes do rei. Asilo onde se leva daí em diante uma vida cada vez menos edificante, porque a clausura tão rigorosa não demora a sofrer grandes alterações, confessadas ou não. Se algumas ordens, como a do Carmelo ou de Santa Clara, guardam sua pureza graças a reformas, a maior parte dos mosteiros de mulheres, no fim do Antigo Regime, é de casas de recolhimento onde as filhas caçulas de grandes famílias recebem muitas visitas e onde se jogam cartas e outros “jogos proibidos”, até tarde da noite.

 

Faltaria falar das mulheres que não eram nem grandes damas nem abadessas, nem mesmo monjas: camponesas ou citadinas, mães de família ou trabalhadoras. Inútil dizer que, para ser corretamente tratada, a questão reclamaria muitos volumes e, também, que exigiria trabalhos preliminares, que não foram feitos. Seria indispensável pesquisar não somente as coleções sobre os costumes ou os estatutos das cidades, mas, também, os cartulários, os documentos judiciários ou, ainda, os inquéritos ordenados por São Luís; 6 destacam-se aí, colhidos na vida quotidiana, mil pequenos pormenores colhidos ao acaso e sem ordem preconcebida, que nos mostram homens e mulheres através dos menores atos de suas existências: aqui a queixa de uma cabeleireira, ali a de uma salineira (comércio do sal), de uma moleira, da viúva de um agricultor, de uma castelã, da mulher de um cruzado, etc.

 

É por documentos deste gênero que se pode, peça por peça, reconstituir, como em um mosaico, a história real. Ela nos parece aí, é inútil dizer, muito diferente das canções de gesta, dos romances de cavalaria ou das fontes literárias que tão freqüentemente tomamos por fontes históricas!

 

O quadro que se delineia da reunião desses documentos nos apresenta mais de um traço surpreendente, pois vemos, por exemplo, mulheres votarem como homens em assembléias urbanas ou nas das comunas rurais. Freqüentemente, no divertimos em conferências ou palestras diversas, citando o caso de Gaillardine de Fréchou, que diante de um arrendamento proposto aos habitantes de Cauterets, nos Pirineus, pela Abadia de Saint-Savin, foi a única a votar não, quando todo o resto da população votou sim. O voto das mulheres nem sempre é expressamente mencionado, mas isto pode ser porque não se via necessidade em faze-lo. Quando os textos permitem diferenciar a origem dos votos, percebe-se que, em certas regiões, tão diferentes como as comunas bearnenses, certas cidades de Champanha, ou algumas cidades do leste como Pont-à-Mousson, ou ainda na Touraine, na ocasião dos Estados-Gerais de 1308, as mulheres são explicitamente citadas entre os votantes, sem que isto seja apresentado como um uso particular do local. Nos estatutos das cidades indica-se, em geral, que os votos são recolhidos na assembléia dos habitantes sem nenhuma especificação; às vezes, faz-se menção da idade, indicando, como em Aurillac, que o direito de voto é exercido com a idade de vinte anos, ou em Embrun, a partir de quatorze anos. Acrescentamos a isto que, como geralmente os votos se fazem por fogo, quer dizer, lar, lareira, por casa, de preferência a por indivíduo, é aquele que representa o “fogo”, portanto, o pai de família, que é chamado a representar os seus; se é o pai de família que é naturalmente seu chefe, fica bem claro que sua autoridade é a de um gerente e de um administrador, não a de um proprietário.

 

Nas atas de notários é muito freqüente ver uma mulher casada agir por si mesma, abrir, por exemplo, uma loja ou uma venda, e isto sem ser obrigada a apresentar uma autorização do marido. Enfim, os registros de impostos (nós diríamos, os registros de coletor), desde que foram conservados, como é o caso de Paris, no fim do século XIII, mostram multidão de mulheres exercendo funções: professora, médica, boticária, estucadora, tintureira, copista, miniaturista, encadernadora, etc.

 

Não é senão no fim do século XVI, por um decreto do Parlamento, datado de 1593, que a mulher será afastada explicitamente de toda a função no Estado. A influência crescente do Direito romano não tarda, então, a confinar a mulher no que foi sempre seu domínio privilegiado: os cuidados domésticos e a educação dos filhos. Até o momento em que isto, também lhe será retirado por lei, porque, destaquemos, com o Código de Napoleão ela já não é nem mesmo a senhora de seus próprios bens e desempenha, em sua casa, papel subalterno. Embora desde Montaigne até Jean-Jacques Rousseau sejam os homens que elaborem tratados sobre a educação, o primeiro, publicado na França foi de uma mulher, Dhuoda, que o elaborou (em versos latinos) por volta de 841-843, para uso de seus filhos. 7

 

Há alguns anos, certas discussões ocorridas a respeito da questão da autoridade paterna, na França, foram muito desconcertantes para o historiador da Idade Média; realmente, a idéia de que foi necessária uma lei para dar à mulher direito de olhar pela educação de seus filhos teria parecido paradoxal nos tempos feudais. A comunidade conjugal, pai e mãe, exercia conjuntamente, então, a função da educação e da proteção dos filhos, assim como, eventualmente, a administração de seus bens. É verdade que a família era concebida em um sentido mais amplo; esta educação causa infinitamente menos problemas, porque ela se faz no meio de um contexto vital, de uma comunidade familiar mais abrangente e mais diversificada do que hoje, pois não está reduzida à célula inicial pai-mãe-criança, mas comporta também os avós, colaterais, domésticos no sentido etimológico do termo. O que não impede que a criança tenha, eventualmente, sua personalidade jurídica distinta; assim, se ela herda bens próprios (legados, por exemplo, por um tio), estes são administrados pela comunidade familiar, que, em seguida, deverá prestar-lhe conta.

 

Poder-se-ia multiplicar assim os exemplos, com pormenores fornecidos pela história do Direito e dos costumes, atestando a degradação do lugar ocupado pela mulher entre os costumes feudais e o triunfo de uma legislação “à romana”, da qual nosso Código ainda está impregnado. Seria melhor que, na época em que os moralistas queriam ver “a mulher em casa”, fosse mais indicado inverter a proposição e exigir que o lar fosse da mulher.

 

A reação só chegou em nossos tempos. Entretanto, ela é, digamo-lo, muito decepcionante: tudo se passa como se a mulher, eufórica pela idéia de ter penetrado no mundo masculino, continuasse incapaz da força da imaginação suplementar, que lhe seria necessária, para levar a este mundo seu traço particular, precisamente aquele que faz falta à nossa sociedade. Basta-lhe imitar o homem, ser julgada capaz de exercer as mesmas funções, adotar os comportamentos e até os hábitos de vestir do seu parceiro, sem mesmo se questionar sobre o que é realmente contestável e o que deveria ser contestado. Seria o caso de se perguntar se ela não está movida por uma admiração inconsciente, o que podemos considerar excessivo, por um mundo masculino que ela acredita necessário e suficiente copiar com tanta exatidão quanto possível, seja perdendo ela própria sua identidade, ou negando antecipadamente sua originalidade.

 

Tais constatações levaram-nos bem longe do mundo feudal; elas podem, em todo o caso, levar ao desejo que este mundo feudal seja um pouco mais bem conhecido, dos que crêem, de boa fé, que a mulher “sai enfim da Idade Média”: elas têm muito que fazer para reencontrar o lugar que foi seu nos tempos da rainha Eleonora ou da rainha Branca...

 

 Idade Média: O Que Não Nos Ensinaram, Capítulo VI, Editora Agir, Rio de Janeiro 1978.

 

 



Notas:

 

 P. Riché, Dhuoda Manuel pour mon fils, Paris, Ed. du Cerf, 1975.

 

 

 



 

 

 

  1. 1. Histoire de la bourgeoisie, op. Cit., t. II, pp. 30-31.
  2. 2. [ Paradoxalmente, os países germânicos foram modelados pelo Direito romano, enquanto que, na França, embora desagrade aos que continuam presos ao mito de “raça latina”, os costumes eram formados por hábitos que acreditamos “germânicos” e que devíamos antes chamar “célticos”.
  3. 3. “A legislação muçulmana proíbe à mulher o que ela reivindica, atualmente, e que chama de seus direitos, o que não constitui senão uma agressão contra os direitos que foram conferidos apenas aos homens”. Assim se exprimia, em 1952, em uma publicação intitulada Al Mistri, o Xeque Hasanam Makhluf (ver La Documentation française, n° 2418, 31 de maio de 1952, p. 4).
  4. 4. Não pensamos que fosse necessário, quando da primeira edição deste livro, lembrar as origens desta ridícula afirmação. Mas acontece que, ouvindo-a recentemente (1989), este esclarecimento parece útil. Gregório de Tour, na sua Histoire des Francs (História dos Francos), cap. 91, conta que o Sínodo de Mâcon de 486, ao qual ele não assistiu — diga-se de passagem —, um dos prelados fez notar “que não se devia compreender as mulheres sob o nome dos homens”, dando à palavra homoo sentido restrito do latim vir. Acrescenta que, consultando a Sagrada Escritura, “os argumentos dos bispos o fizeram reconhecer” essa falsa interpretação, o que “fez cessar a discussão”. Mas os autores da Grande Enciclopédia do século XVIII iriam explorar este pequeno incidente (que sequer consta dos cânones do Concílio) para deixar crer que se recusava à mulher a natureza...
  5. 5. Houve, daí em diante, numerosas ordens duplas na época, principalmente nos países anglo-saxões e na Espanha.
  6. 6. Iniciativa sem precedente, e também sem futuro, que consistia em fazer supervisionar, pelo rei, sua própria administração, dirigindo-se diretamente aos administradores: o rei enviava aos lugares os pesquisadores, unicamente encarregados de recolher as palavras das pessoas sem importância, que tinham motivos de reclamar dos agentes reais, e reformar assim, no local, os abusos cometidos; em outras palavras, era o caminho eficaz que remediou os defeitos do estatismo.
  7. 7. . Riché, Dhuoda Manuel pour mon fils, Paris, Ed. du Cerf, 1975.

As Cruzadas

Poderíamos deixar de tratar este assunto, pois basta ler-se qualquer história imparcial para se ver como foram justas estas expedições bélicas, em que a sociedade cristã se apresenta com todo o brilho do seu heroísmo religioso; pelo que, com justo titulo se gloria a Igreja de ter sido a iniciadora delas.

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