Jacques Heers
Estes homens, certamente, acreditavam em Deus, e não iam para o combate sem rezar e colocar-se sob a proteção de Cristo e da Virgem, e dos seus santos protetores. Eles queriam-se como milícia de Cristo. Suportavam pesadas penas e ganhavam batalhas contra inimigos bem mais numerosos, enquanto proclamavam que os anjos estavam a seu lado, mostrando-lhes o caminho e apoiando-lhes nos piores momentos. Mas não era uma “guerra santa”, uma “guerra de religiões”. Os cruzados não iam exterminar o islã ou converter os muçulmanos, pela boa razão de que, nessa época, ninguém ou quase ninguém tinha a mínima idéia desse islã. Nenhuma das narrações da primeira Cruzada, escritas por homens que estavam no local e não por compiladores, fala de muçulmanos ou de maometanos. Para eles, os inimigos são os sarracenos, à semelhança dos piratas mouros do Mediterrâneo, ou sobretudo os babilônios e assírios, os persas e os partos, ou outros povos “bárbaros” da Antiguidade. As crônicas referem-se à História antiga do Oriente.
Guerra da conquista? Nada disso. É verdadeiramente curioso continuar-se a falar desta Cruzada como se os cristãos tivessem a caçar povos aí instalados desde sempre. É esquecer que as terras da Palestina e da Síria, berços do cristianismo, estiveram durante séculos sob a autoridade dos imperadores de Constantinopla, focos notáveis da civilização cristã. Jerusalém, Antióquia e Alexandria foram sedes de patriarcas da Igreja de Cristo. É esquecer, além disso, que os imperadores de Constantinopla tinham, mais de cem anos antes dos cruzados, conduzido os seus exércitos à reconquista destes países: Alepo foi retomada em 962, Antioquia em 969 e João Tsimiscis (imperador de 969 a 975) só parou diante de Trípoli, após ter reconquistado Beirute. Os turcos, vindos de muito longe, expulsaram as guarnições imperiais, mas é bom lembrar que quando os francos, em 20 de outubro de 1097, se apresentaram de Antióquia, estes turcos eram donos da cidade havia apenas catorze anos. Em relação a Espanha dizemos Reconquista, mas em relação ao Oriente aceitamos que nos imponham a terminologia e a idéia de uma simples conquista, açambarcamento de terras nas quais outros viviam em seu pleno direito.
Intolerância? É preciso ser-se mau observador para acusar de intolerância os homens do passado, cristãos bem entendido, enquanto nós vivemos, aparentemente satisfeitos, num tempo em que todas as formas de escrita e de pensamento são submetidas a um controle cada vez mais severo. Certamente que se proclama a intolerância como detestável, mas dela só são acusados os homens livres que ousam manifestar as suas próprias convicções, e levam a insolência até à sua defesa contra-ataques odiosos. Os “intolerantes” são os dissidentes, apontados a dedo, agredidos, excluídos. Não são os guardiões estipendiados do templo, que não suportam a mínima resistência aos seus esquemas, nem a mínima crítica aos seus discursos sempre “conformes”, de um conformismo risível. Observemos a vida atual, antes de falar de tempos que não queremos sequer conhecer verdadeiramente e tentar compreender.
A Cruzada de 1095-1099 foi, primeiramente e antes de tudo uma aventura espiritual. Para pesquisar as origens e analisa-la, as teses materialistas visaram longe. Invocar a sede de conquista, ou a procura de novos espaços e a busca de especiarias, era de bom tom há cinqüenta anos, época em que o materialismo histórico era imposto nas universidades francesas. Os tempos, enfim, mudaram e sabemos que nenhuma destas afirmações pode ser seriamente defendida. Simples reflexões de bom senso deitam-nas a perder. Os camponeses dos anos mil eram, sem dúvida, mais numerosos que outrora. Freqüentemente, dividiam as suas heranças e procuravam novas terras de lavoura. Mas ir tão longe para isso, a idéia não se agüenta. Iniciava-se precisamente o arroteamento das grandes florestas da Germânia, da Europa central e do sudoeste francês. A secagem e beneficiação dos pântanos tinham apenas começado. Porque, então, afrontar tantas fadigas e tantos perigos, para se estabelecerem em terras longínquas, das quais se sabia, no dizer dos peregrinos que regressavam, serem áridas na maior parte, próprias para a vida pastoril semi-nômade, totalmente contrária à sua maneira de viver e de trabalhar? Negligenciar as terras próximas para ir tão longe, onde tudo teria de ser construído de novo ou reconstruído?
Ainda se lê, num ou noutro manual de ensino, que os “grandes mercadores” italianos foram os instigadores desta Cruzada, com o fim de trazer do Oriente as especiarias a preço mais baixo. Mas é falso: genoveses, venezianos e pisanos não participaram nas primeiras expedições; intervieram mais tarde, como guerreiros, com os seus cavalos e as suas máquinas de guerra, e não como mercadores. A Terra Santa não era muito de seu interesse. Estabelecidos em Constantinopla, onde beneficiavam-se de privilégios fiscais, e no Cairo, onde os negociantes se alojavam nos fondouks, já se encontravam no verdadeiro coração dos grandes tráficos do Oriente. A costa da Síria e da Palestina não ofereciam, nem de longe, os mesmos recursos; à margem das rotas das grandes caravanas, estes países não possuíam, então, nem culturas exóticas (cana-de-açúcar, algodão) nem manufatura de artigos de luxo. Para terminar, face a Constantinopla, a Damasco, Bagdá e Cairo, Jerusalém fazia, neste particular, figura de aldeia.
Grandes senhores, apressados na fundação de principados sem vastos territórios e em cidades de sonho? São imagens forjadas de fio a pavio, para ilustrar a tese de historiadores sectários, entretidos a maldizer o cristianismo e o feudalismo. Os chefes dos cruzados, os das primeiras levas e os que se seguiam com reforços, não eram de nenhuma maneira cavaleiros andantes, filhos segundos ou excluídos da grei, à procura de pousada, obrigados a correr a louca aventura. Godofredo de Bulhões, duque da Baixa-Lorena, era senhor de bons feudos e castelos, no meio de ricas terras. Raimundo de Saint-Gilles, conde de Tolosa, sem contestação o mais ativo dos “barões”, o que reuniu maior número de homens de armas e gastou maiores somas, era, depois do rei, o mais poderoso príncipe do reino, nunca contestado ou ameaçado. A sua partida privou-o de uma magnífica herança, e morreu na Terra Santa antes de ter podido conquistar Trípoli.
A Cruzada, em 1095, respondia ao desejo dos fiéis de ver o túmulo de Cristo e aí rezar. É certo que as crônicas da época falam de “francos” e de “cristãos”, sempre qualificando-os como “peregrinos”. Os homens reuniam-se e armavam-se porque sabiam que os peregrinos que iam à Palestina o faziam com risco de vida, suportando duras humilhações e pesadas taxas que aumentavam a cada ano. A peregrinação foi, desde o princípio, o centro de todas as preocupações e iniciativas e os cruzados, na sua maioria, só queriam libertar a cidade santa, visitar os lugares de Cristo, da Virgem e dos Apóstolos, rezar e regressar à casa. Com Godofredo de Bulhões ficou apenas um punhado de cavaleiros. A construção de praças fortes, e a defesa do reino latino de Jerusalém contra os ataques dos egípcios ou dos turcos, só foi possível pela chegada de novos peregrinos, que participavam nos combates e nos trabalhos e depois partiam.
Mais que uma Cruzada, correto seria, já para 1096-1099, dizer as Cruzadas, expedições que reuniram gente de diferentes origens, que não partiram juntas nem seguiram os mesmos caminhos. Falar de cristãos “de todo o Ocidente” respondendo ao apelo de Urbano II, é mera figura de estilo. A Cruzada foi pregada pelo Papa apenas em algumas partes do reino de França, principalmente em Auvergne e no Languedoc, mas não em Paris nem na Ile-de-France. A pregação não se estendeu a Alemanha e ao Norte da Itália, dada a querela existente entre o Papa e o imperador germânico, que apoiava ainda um anti-papa cismático. Além das quatro Cruzadas promovidas pelas pregações do Papa, dos legados e dos bispos (exércitos dos lorenos, dos normandos de Normandia e dos normandos do Sul da Itália, chefiados por Raimundo Saint-Gilles) deve mencionar-se uma outra Cruzada, dita da “gente humilde”. Esta foi fruto de pregações menos controladas, feitas por eremitas e monges errantes, por vezes em ruptura com o pregão das Cruzadas, que invocavam o Apocalipse e clamavam o extermínio dos impuros. Tal levou essa pobre gente, lançada numa longa e miserável caminhada, obrigada a comprar víveres por alto preço, à invasão das cidades, principalmente na Renânia, e a massacrar os seus burgueses, judeus ou não, denunciados como culpados. Tudo isto apesar da intervenção dos bispos locais, que tentavam protege-los.
Os exércitos dos “barões” são mal conhecidos e fazemos deles, geralmente, uma idéia errada. De fato, falar de “exércitos” é já um erro, porque faz pensar em tropas de homens aguerridos, armados e prontos para o combate. Os textos mostram coisa diferente: consideráveis multidões de pobres sem quaisquer meios, sem armas e sem experiência, freqüentemente acompanhados pelas suas mulheres e filhos, conduzidos e protegidos por uma milícia de cavaleiros pouco numerosa. Todos os testemunhos são concordes e os próprios historiadores muçulmanos, mais tarde, o reconhecem: não se tratava de verdadeiros exércitos, mas, realmente, de multidões heteróclitas. Eram milhares, talvez várias dezenas de milhares, de peregrinos expostos a todas as adversidades, à fome e às doenças. Conduzi-los, esperar e organizar a sua reunião antes de empreender a caminhada, reabastece-los de água e víveres, todas estas responsabilidades pesaram na condução desta multidão, aventurada para tão longe dos locais da partida.
Esta gente sofreu, no decurso dos meses e dos anos, de fome e de sede, de expectativa e de miséria. Na tarde da vitória, Jerusalém conquistada, invadiram as casas, pilharam tudo que encontraram, massacraram os habitantes. Hoje, a História retém esses massacres para cobrir de vergonha toda a empresa e tornar responsável (ora, pois!) a Igreja. Quer-se uma vez mais que peça perdão, e arrependida, confesse a sua culpa? Insistir deste modo, isolando o acontecimento, é falsear o debate, porque estes massacres são atrozes, revoltam os nossos sentimentos, mas são, todavia, vulgares nessa época... como em muitas outras. Deu-lhes origem a guerra de cerco, exarcebando as paixões e os ódios entre inimigos que se observavam e injuriavam durante muito tempo. Pode-se citar, no decorrer dos séculos, um grande número de cidades conquistadas pela força e que ficaram indenes? Menos de um ano antes dos cruzados, em 26 de agosto de 1098, os muçulmanos egípcios assenhorearam-se da mesma cidade de Jerusalém e massacraram todos os turcos, assim como uma grande parte dos habitantes seus aliados ou cúmplices.
Os nossos historiadores moralistas, sempre prontos a descrever em detalhes os atos de crueldade atribuídos aos homens dos tempos “medievais”, aos seus senhores, seus padres e monges, dizem alguma vírgula do saque de Cápua, em 24 de julho de 1501, pelos exércitos do rei Luís XII? E do saque de Roma pelos huguenotes alemães, os espanhóis e as tropas do contestável de Bourbon, que em 1517 puseram a cidade a fogo e sangue? E não foi no decorrer de uma Cruzada, durante a “noite da Idade Média”, mas na época da “Renascença”, tempos ditos de luz, de liberdade e de progresso.
(Traduzido pela Semper, revista da Fraternidade Sacerdotal São Pio X n° 41, Maio-Junho de 1999, Lisboa.)