Matthew Brutton
[Nota da Permanência] Recomendamos a leitura do artigo “Os Mártires irlandeses do Século XVI”, do mesmo autor, traduzido e publicado na Revista Permanência 271.
A perseguição que se iniciou no reinado de Henrique VIII na Inglaterra se estendeu pela Irlanda e continuou até o século XVIII. Neste estudo, o leitor deve levar em consideração um aspecto particular da história da Irlanda: enquanto, em outros países, as autoridades e a população, ou aderiam todos ao protestantismo, ou permaneciam todos católicos, a Irlanda enfrentava a difícil posição de ser governada por estrangeiros cismáticos e heréticos, enquanto o povo permanecia católico. Assim, os irlandeses sofreram uma intensa perseguição que buscava abalar a perseverança na fé que São Patrício, no século V, lhes havia transmitido. Todos os meios foram empregados, desde restrições legais até brutalidades físicas, mas os Irlandeses deram mostras de um heroísmo exemplar.
Após um breve resumo histórico, apresentaremos os principais mártires da primeira metade do século XVII. Em seguida, deter-nos-emos mais particularmente no período em que o puritanismo (um ramo do calvinismo) tomou o poder, e veremos os mais importantes mártires tanto dessa época quanto da época seguinte.
A Irlanda do século XVII
No início do século XVII, a Irlanda mais uma vez estava em guerra contra a Inglaterra. Uma dessas guerras trouxe numerosas vitórias para os irlandeses; no entanto, o resultado final foi a derrota da Irlanda, e o exílio dos líderes e de muitas famílias nobres. Seguiu-se então uma época de dominação completa e tirânica dos ingleses sobre os irlandeses. Uma das primeiras medidas do governo Inglês foi a expulsão de milhares de católicos de suas terras, principalmente do norte da Irlanda, e o estímulo à vinda de colonos protestantes, ingleses ou escoceses, a quem se deram essas terras. Os protestantes permanecem no norte do país até os dias de hoje.
Enquanto continuavam as perseguições contra os católicos, iniciou-se uma nova rebelião irlandesa, em 1642, com a particularidade de que, desta vez, a Igreja é que a organizava. O Papa a apoiou e chegou a enviar o núncio João Batista Rinuccini, arcebispo de Fermo. Infelizmente, a insurreição foi derrotada.
Após o assassinato do rei Carlos I, em 1649, instaurou-se um novo governo na Inglaterra, controlado pelos protestantes puritanos, cujo líder era Oliver Cromwell. Juntamente com seus companheiros, Cromwell nutria um intenso ódio contra os católicos irlandeses. Perseguiu-os, até 1660, numa das mais terríveis perseguições da história da Igreja.
Carlos II, filho de Carlos I, subiu então ao trono. Durante os reinados de Carlos II, Jaime II e Maria II, as perseguições continuaram e a lista de mártires aumentou. O último foi o Fr. Gerald Fitzgibbon O.P., em 1691. A partir de então, as perseguições físicas cessaram; no entanto, ainda vigoravam as leis severas contra o clero e os católicos.
Os primeiros mártires
Dom Cornelius O’Devany
O primeiro mártir que apresentamos é Cornelius O’Devany, bispo da diocese de Down e Connor. Originário do norte da Irlanda, tornou-se franciscano aos vinte anos e foi designado bispo aos quarenta e nove, por Gregório XIII, em 1582. Capturaram-no em 1611 e o julgaram em Dublin sob falsos pretextos, sofrendo denúncias de testemunhas perjuras. Ao final, seus adversários lhe acabaram revelando as verdadeiras intenções e disseram que lhe poupariam a vida se abandonasse a religião católica e abraçasse o anglicanismo. A estas palavras, ergueu a voz e chamou todos os cristãos para testemunharem que ele preferia morrer em defesa da sua fé católica.
De volta à prisão, passou o tempo meditando e rezando, até o dia da execução, em 1º de fevereiro, na festa de Santa Brígida, patrona da Irlanda. Quando o conduziam à morte, junto com outro padre, Patrick O’Lochran, disse a este último: “Venha, meu caro companheiro, nobre soldado de Cristo, imitemos o máximo possível a morte daquele que levaram ao patíbulo como um cordeiro ao abatedouro”. Em seguida, inclinando-se e beijando a trave posta sobre o cavalo que o carregava, montou e percorreu as ruas até o cadafalso. No percurso, a multidão de católicos invadia as ruas e, de joelhos, pedia-lhe a bênção, o que causou grande indignação do representante do rei.
Quando o bispo chegou ao local onde estava montado o cadafalso, pediu ao algoz que executasse seu companheiro antes dele, pois temia que ele, vendo-o morto, perdesse a coragem. O carrasco lhe recusou a graça, mas Patrick O’Lochran tranqüilizou o prelado.
No momento em que Dom Cornelius se aproximou do cadafalso, os gritos da multidão se intensificaram. Por três vezes rezou: primeiro, pela multidão presente; segundo, pela cidade de Dublin e por todos os católicos do reino, para que servissem a Deus fiel e piedosamente; finalmente, rezou pela conversão dos heréticos. No instante em que o enforcaram, a multidão lançou um grito de angústia. Houve em seguida um profundo silêncio.
Morto, o rosto ainda lhe brilhava. Os algozes lhe cortaram a cabeça, retiraram as entranhas e deitaram fogo nelas. Ele foi enterrado junto com o outro padre na igreja de São Tiago de Kilmainham.
Pe. Peter O’Higgin O.P.
Até 1649, contam-se pelo menos cento e nove mártires, cujos arquivos ainda existem. Entre eles, há um arcebispo, três bispos, dezessete franciscanos, nove dominicanos, três jesuítas, três cistercienses e três carmelitas.
Entre esses, destacamos o Pe. Peter O’Higgin. Ele era prior do convento de Nass, no sudoeste de Dublin e foi preso pelos heréticos. Um mensageiro, vindo em nome do Vice-Rei, assegurou-lhe que o libertariam caso abandonasse a religião católica. O padre contentou-se em responder:
Estou hoje a ponto de ser conduzido ao patíbulo e todo mundo sabe muito bem que a natureza humana não aceita a morte voluntariamente. Não estou cansado da vida a ponto de querer antecipar a morte, a não ser que a necessidade me obrigue. O Vice-Rei dignou-se enviar-me uma promessa escrita de próprio punho, pela qual me concede a escolha livre e total entre a vida e a morte, para que, por amor à vida, eu abandone minha religião.
Pouco depois, no momento da execução, a mensagem do Vice-Rei foi-lhe novamente apresentada e ele a segurou, sorrindo. Os heréticos rejubilaram pensando que ele abandonaria sua religião, mas o padre subiu os degraus do patíbulo ainda mais alegre e à multidão dos católicos presentes disse:
Caros irmãos, membros da Santa Igreja Católica Romana. Desde que caí nas mãos destes heréticos aqui presentes, suportei a fome, os insultos e a prisão em lugares sombrios e repugnantes. Não sabia por que padecia tais penas e se iria receber a coroa do martírio; pois não é a pena, mas a causa dela que faz os mártires. O Deus Todo-Poderoso, que protege os inocentes e dispõe de todos com doçura, conduziu as coisas de modo que hoje eu fosse condenado por professar a religião católica, quando na verdade me acusam de crimes contra as leis deste reino. Eis a prova autêntica de minha inocência, uma carta assinada pelo Vice-Rei oferecendo-me a vida e ricas recompensas se eu abandonar a religião católica. Que Deus e os homens sejam testemunhas de que rejeito firmemente e sem hesitação tais ofertas e que voluntariamente e com alegria entro neste combate professando a fé.
Ele lançou a carta a um amigo e pediu ao algoz que procedesse à execução. Enfim, num profundo suspiro, disse: Deo gratias, e morreu.
A Irlanda durante o governo dos puritanos: o período mais negro da sua história
Desolação geral
Em 1641, de uma população de 1.466.000 habitantes, 1.240.000 eram católicos; em 1659, restavam apenas 420.000. Como em todo período de guerra, é difícil saber em detalhes o que acontece com as populações. Sabe-se, no entanto, que 60.000 irlandeses foram vendidos como escravos por Cromwell, 40.000 fugiram para o continente e 20.000 se refugiaram nas ilhas escocesas. Quanto aos outros, morreram à espada, de fome ou peste.
A fome na Irlanda não aconteceu por acaso, mas foi uma política deliberada dos governantes ingleses, que já havia sido experimentada durante o reinado de Elizabete I (1558 – 1603). Uma carta do vice-governador da Irlanda revelava: “O Sr. William Parsons aconselhou o governador a queimar o trigo e a matar cada homem, mulher ou criança”. A peste foi consequência da grande fome. Como declarou um membro do governo de Elizabete I: “tudo sucedeu para que os irlandeses acabassem devorando uns aos outros”.
O exemplo mais notável desse massacre legalizado foi uma lei de 1664, promulgada pelo parlamento inglês, que estipulava: “Não haverá misericórdia para um irlandês ou papista nascido na Irlanda”. Em um panfleto político da época, que convocava uma expedição militar contra os irlandeses, podia-se ler:
Rogo-vos que a expedição levante-se contra eles com um coração ardente de vingança e que vossas mãos estejam ávidas de sangue. Não temo dizer a todos que me leem: Bem-aventurados aqueles que os recompensarem como merecem, e maldito os negligentes em executar esta obra do Senhor! Maldito seja quem retiver a espada; sim, maldito quem não banhar a espada em sangue irlandês.
Os motivos desse ódio eram, sobretudo, de ordem religiosa. Um autor da época escreve:
Na verdade, por diversas vezes os magistrados (puritanos) assinalaram à burguesia católica que eles desejavam protegê-los, que todas as aflições cessariam se eles consentissem em renunciar ao Soberano Pontífice e, sobretudo, à missa .
O Dr. John Lynch, arquidiácono de Tuam, historiador da época e testemunha das atrocidades, descreve o estado da Irlanda ao final do período:
Invejamos frequentemente as condições de vida de outras nações europeias que vivem em paz umas com as outras. Cada um vive em sua própria vinha e sob a própria figueira, já nós estamos famintos e miseráveis; os colonos tomaram posse de nosso país e nos tornamos estrangeiros. Nas cidades européias, constroem-se majestosos monumentos que sobem aos céus; quanto a nós, nenhuma casa é construída e as que existiam hoje são ruínas. Nesses países, os lugares sagrados são ornados com zelo, enquanto os nossos são destruídos, profanados e utilizados como tribunais ou para fins sacrílegos.
Os filhos dos europeus recebem boa educação, que é proibida em nosso país. Lá, os clérigos são honrados, mas aqui, são prisioneiros, ou estão escondidos nas florestas, nos porões ou nos pântanos. A lei universal da Igreja isentou da escravidão quem professasse a religião católica, mas os súditos irlandeses são arrancados dos braços das esposas e filhos pelos abutres do Estado, e deportados e vendidos como escravos para as Índias. Assim, os filhos dos irlandeses se transformaram em presas, as mulheres são levadas, as cidades destruídas, e os vasos sagrados profanados; os próprios irlandeses se veem reprimidos pelas outras nações... O inimigo infligiu toda espécie de injúria sobre os irlandeses; não fomos poupados de nenhuma maldade ou sofrimento .
A perseguição de Oliver Cromwell
Como a Irlanda, que tanto contribuiu para a Igreja, caiu num estado de tanta aflição?
Como já dissemos, a guerra, que começou em 1642, terminou por volta de 1648 ou 1649. Nesta época, o partido dos puritanos adquiria cada vez mais poder. Em 30 de janeiro de 1649, esse partido executou Carlos I. Dois meses mais tarde, Oliver Cromwell tornou-se o comandante geral. Foi com esse título que chegou à Irlanda em 14 de agosto do mesmo ano, dizendo a seus soldados que os irlandeses “deveriam ser tratados como os cananeus do tempo de Josué”.
A campanha militar durou perto de um ano. Cromwell sitiou e destruiu as cidades de Drogheda (norte de Dublin) e de Wexford (extremo sudeste da Irlanda). Exigiu então que, se os habitantes das outras principais cidades prezassem suas vidas, deveriam render-se e aceitar a seguinte condição: “Em cada local onde a autoridade do parlamento se estabelecesse, a missa não seria tolerada”. Sitiou, em seguida, diversas cidades do sul, entre as quais Waterford, New Ross, Cork, Kilkenny e Clonmel. Em 1651, as cidades de Limerick (sudoeste) e de Galway (oeste) caíram por sua vez sob o jugo de Cromwell.
Derrotadas, as tropas irlandesas deixaram o país. Os puritanos, já não encontrando nenhuma oposição militar, viram-se livres para decretar o primeiro édito de perseguição contra os católicos. Cromwell ordenou que todos os clérigos, seculares e regulares, deveriam, sob pena de traição, deixar o reino em vinte dias e, caso voltassem, sofreriam os confiscos e penas impostos ao tempo da rainha Elizabete, ou seja, seriam “enforcados, e ainda vivos seriam decapitados e esquartejados; as entranhas seriam retiradas e queimadas, e a cabeça exposta em praça pública”. Quem ousasse abrigar um clérigo estaria sujeito “ao confisco da propriedade e à morte imediata”.
Dr. William Burgatt, contemporâneo da perseguição, escreveu:
Em 1649, contavam-se vinte e sete bispos, dos quais quatro eram metropolitanos. Em cada catedral havia dignitários e cônegos: cada paróquia tinha seus párocos; contava-se também grande quantidade de outros padres e numerosos conventos. Mas quando Cromwell, com extrema crueldade, perseguiu o clero, todos foram dizimados. Mais de trezentos sacerdotes, dos quais três bispos, foram executados à espada ou enforcados. Mais de mil foram exilados, entre os quais se encontravam todos os outros bispos, exceto um, o bispo de Kilmore que, devido à idade e enfermidades, não pôde deixar a ilha. Desta forma, privaram a Irlanda de seus bispos, coisa nunca vista há muito séculos, desde que recebemos a luz da fé católica.
Não contentes, os puritanos confiscaram as propriedades da aristocracia irlandesa que permanecera na ilha. Todos os que não renunciaram à fé católica tiveram de entregar dois terços de suas terras. Pelo menos cinco milhões de hectares foram divididos entre os soldados puritanos; a uma grande parte da nobreza restou apenas vagar em busca de alimento, sendo obrigados inclusive a bater à porta das casas dos antigos locatários.
Decretaram-se ainda outras leis: quem não se dirigisse ao templo protestante no domingo deveria pagar uma multa de trinta pence; as crianças irlandesas foram declaradas propriedades da república, de forma que levaram muitas delas para que se instruíssem no protestantismo; além disso, todo irlandês que se distanciasse da região onde se registrara, por mais de uma milha (1,6 Km), sem passaporte, ou que participasse de alguma reunião, estava sujeito à pena de morte.
Os católicos foram excluídos das administrações públicas, a não ser que tivessem prestado o juramento de supremacia (juramento que definia a “Igreja da Inglaterra como autoridade suprema em domínio religioso”).
Em 1654, para impedir definitivamente que os irlandeses voltassem a se rebelar, os puritanos ordenaram que se deportassem os católicos para o oeste da ilha, onde as terras eram extremamente pobres, e que renunciassem a seus títulos de propriedade. Durante esse êxodo, milhares morreram de fome e enfermidades; alguns chegaram até mesmo a cometer suicídio. Instalaram-se guaritas de soldados a algumas milhas umas das outras, a pretexto de segurança, mas na verdade elas serviam de óbice para que os padres não se reunissem aos exilados.
Os puritanos então tentaram encontrar ingleses dispostos a ocupar as propriedades abandonadas, mas somente os mais pobres da sociedade aceitaram, pois as notícias dos horrores cometidos contra os irlandeses tinham chegado à Inglaterra.
Esses crimes hediondos não escaparam do castigo divino. Três meses depois de se estabeleceram na Irlanda, os 200.000 colonos sofreram uma invasão de vermes: as parasitas lhes infestaram os corpos, os cabelos, as barbas e os vestidos, enquanto nenhum irlandês foi atingido. Mais de 180.000 colonos morreram dessa epidemia e de outras doenças.
Finalmente, em 1666, houve um grande incêndio em Londres. Muitos londrinos interpretaram o acontecimento como um castigo do céu, em razão do tratamento infligido aos irlandeses.
Mártires numerosos
As perseguições suscitaram numerosos mártires, para a maior glória da Igreja. De 1649 a 1660, contam-se mais de oitenta e seis, dos quais dois eram bispos, dezessete dominicanos, e vinte e um franciscanos.
Dom Albert Terence O' Brien
Um dos mártires mais célebres foi o bispo Albert Terence O’Brien. Ele era o provincial dos dominicanos da Irlanda. Em 1644, Urbano VIII o nomeou bispo da diocese de Emly. Em 1651, a cidade de Limerick (sudoeste da Irlanda) foi sitiada pelos puritanos. Os habitantes lutaram corajosamente e demonstraram grande piedade e confiança em Deus. Os puritanos ofereceram 40.000 moedas de ouro ao bispo se ele deixasse a cidade e parasse de lutar ao lado dos fiéis, ao que ele recusou. Quando a cidade caiu, ele foi capturado, acorrentado e levado à praça pública. Caminhou com alegria até o patíbulo e, muito calmamente, volveu-se em direção a seus amigos católicos, que estavam aos prantos em meio à multidão, e disse-lhes:
Guardai firmemente a fé católica e seus mandamentos. Não murmureis contra o que a Providência de Deus permite, e assim salvareis as almas. Não choreis por mim, mas rezai sobretudo para que nesta última prova eu possa, pela constância e firmeza, obter o céu como recompensa .
Em seguida, invadido por um espírito profético, condenou a ferocidade dos heréticos, declarou que a vingança divina lhes puniria os crimes e anunciou ao algoz, Henri Ireton, grande perseguidor dos católicos, que ele estaria diante do tribunal do justo Juiz em oito dias. A profecia cumpriu-se ao pé da letra: no oitavo dia, atingido pela peste, Ireton morreu gritando: “Sangue! Sangue! Quero mais sangue!” Antes de morrer, teve uma visão do bispo mártir, que era tão palpável que ele desviou os olhos para não vê-lo.
Fixaram a cabeça decapitada do bispo na ponta de uma estaca, no alto de um castelo, de onde por muito tempo viam-se pequenas gotas de sangue fresco caírem. A pele e a carne permaneceram intactas, sem dúvida um sinal da pureza virginal de sua vida.
São Vicente de Paulo e os católicos perseguidos da Irlanda
Antes de darmos continuidade à história dos mártires, ressaltemos a relação entre São Vicente de Paulo e a Irlanda. Este santo tinha uma afeição particular à Igreja perseguida da Irlanda. Contribuía sem cessar auxiliando os exilados e sobretudo os eclesiásticos que se refugiavam na França. Dava-lhes abrigo, paramentos e vestimentas. Como dizia um bispo irlandês, “Deus o suscitou neste tempo de perseguição para ser a salvação de nosso país”.
Naquela época, os religiosos de São Vicente de Paulo também estavam presentes na Irlanda, especialmente em Limerick, onde ajudavam os cidadãos nas necessidades espirituais e temporais. O texto a seguir é de uma carta que São Vicente escreveu ao superior da Ordem na Irlanda, incitando seus filhos missionários a defrontar os perigos que os ameaçavam:
Vós vos consagrastes a Deus, a fim de que, em meio aos perigos, permaneçam inquebrantáveis neste país, expondo-vos à morte para serem caridosos com o próximo... Vós agistes como verdadeiros filhos de nosso Pai adorável, a quem dou infinitas graças por ter produzido em vós esta caridade soberana, que é a perfeição de todas as virtudes. Rogo-lhe que vos cumuleis desta caridade até o final, de modo que, praticando-a sempre e em todo lugar, possais vertê-la no coração daqueles que a desejam.
Vendo que vossos companheiros têm boas disposições para ficar, apesar dos perigos da guerra e das calamidades, somos da opinião de que eles assim devem fazer. Como conhecer a intenção de Deus para eles? Certamente, Ele não concede tal disposição em vão. Meu Deus, como vossos julgamentos são insondáveis! Eis uma das missões mais frutuosas que já tivemos, talvez uma das mais necessárias, e Vós vos detendes misericordiosamente nesta cidade penitente, e fazeis cair vossa mão ainda mais pesada sobre ela, acrescentando-lhe às penúrias da guerra, as calamidades da peste. Mas tudo isso é feito para a colheita dos eleitos, para a colheita do bom trigo no celeiro eterno. Nós adoramos vossos caminhos, oh Senhor!
Quando a cidade de Limerick finalmente caiu nas mãos dos puritanos, os mártires deram testemunho da obra consumada por seu clero.
Thomas Stritch
Abelly, que acabamos de citar, relata ainda o martírio do chefe da cidade de Limerick, Thomas Strich.
Saindo de um retiro espiritual, ele recebeu as chaves da cidade, depositou-as diante da estátua da Santíssima Virgem rogando-Lhe que colocasse a cidade sob sua proteção, enquanto que em sua honra todos as corporações marchavam em procissão até a igreja. Ele pronunciou um discurso edificante diante de toda a assembleia, encorajando-a a permanecer inviolavelmente unida a Deus, à Igreja e ao Rei, aceitando oferecer a vida para uma tão justa causa.
Deus aceitou a oferta, e quando a cidade foi tomada, ele recebeu a coroa do martírio, juntamente com outros três companheiros com quem fizera o retiro espiritual. Todos os quatro caminharam para a morte não apenas com coragem mas também alegria. Antes da execução, dirigiram-se para a multidão e, comovendo até os heréticos, declararam diante do céu e da terra que davam as vidas pela propagação e defesa da fé católica. O exemplo heroico encorajou os outros católicos a permanecerem na fé e a enfrentarem as perseguições, antes de faltarem à fidelidade que deviam a Deus.
Quando São Vicente de Paulo soube da quantidade de mártires de Limerick, exclamou: “O sangue desses mártires não será esquecido diante de Deus, e cedo ou tarde produzirá uma colheita abundante de catolicidade”.
Foi exatamente o que aconteceu. No decorrer dos séculos XIX e XX, a Irlanda ofereceu um grande número de vocações para a Igreja (fato que Dom Lefebvre ressaltou quando a Irlanda recebeu pela primeira vez um padre da Fraternidade São Pio X).
Pe. James Wolf, O.P.
Outro mártir foi o padre James Wolf, da Ordem dos Pregadores, também originário de Limerick. Ausente no momento em que sitiavam a cidade, soube que os eclesiásticos da cidade tinham sido condenados à morte ou banidos. Voltou, então, secretamente, para administrar os sacramentos aos fiéis.
Os heréticos prenderam-no enquanto celebrava a missa. Em poucas horas o condenaram à morte e o conduziram ao local de execução. Professou a fé em público e exortou aos católicos que perseverassem na fé de seus pais. Aos pés do cadafalso, exclamou com alegria: “Fomos considerados cativos diante de Deus, dos anjos e dos homens; mas Deus assim o permite para sua glória e alegria dos anjos, apesar dos murmúrios dos homens”. Em seguida foi enforcado, e recebeu a recompensa eterna.
Dom Oliver Plunkett
É preciso finalmente mencionar Oliver Pluncket.
Ele fizera os estudos de teologia em Roma, onde passou quase vinte anos. Em 1669, foi nomeado arcebispo de Armagh, diocese do norte da Irlanda. Aí exerceu o ministério com muita perseverança e fidelidade, em condições muitas vezes difíceis.
Tendo repreendido alguns padres, estes o acusaram de preparar um complô para derrubar o poder dos protestantes na Irlanda. Prenderam-no então em 1679, na Inglaterra. Na prisão, rezava continuamente e jejuava três ou quatro vezes por semana. Em 1681, compareceu diante do tribunal e foi condenado, apesar da evidente falsidade das acusações.
O conde de Essex enviou uma petição a Carlos II na tentativa de obter a anistia do bispo, mas o rei respondeu-lhe: “Que o sangue dele caia sobre sua cabeça e não sobre a minha!”
No dia 1º de julho, em Tyburn, o bispo foi enforcado. Eis suas últimas palavras:
“Mostrei suficientemente, acredito eu, que sou inocente desse complô ou conspiração, e gostaria agora, se for possível, de me desculpar dos crimes cometidos contra os mandamentos da Majestade Divina, que por tantas vezes transgredi, e dos quais me arrependo de todo o coração. Se ainda vivesse mil anos, fá-lo-ia com a firme resolução e a forte intenção, por vossa santa graça, oh Deus, de nunca mais vos ofender. Suplico a vossa Majestade Divina, pelos méritos do Cristo, e a intercessão de sua bem-aventurada Mãe e de todos os anjos e santos, que perdoe meus pecados e me alcance o repouso eterno.
Recitou em seguida o salmo Miserere Mei e outras orações fervorosas. Depois de enforcado, as entranhas e o coração foram retirados e lançados ao fogo. A cabeça ainda se conserva em Drogheda, ao norte de Dublin.
Conclusão
A Inglaterra não manifestou arrependimento nem mostrou sinal de conversão. Ao contrário, ainda durante muitos anos continuou a perseguir os católicos, tanto irlandeses quanto ingleses.
Os acontecimentos do século XVII na Irlanda e seus inumeráveis mártires, dos quais só apresentamos aqui algumas figuras, são um exemplo e um encorajamento em nosso próprio combate pela proteção da fé. A perseverança dos irlandeses e os numerosos milagres que acompanharam as perseguições sofridas ajudam-nos a permanecer firmes na certeza de que Deus jamais abandona aqueles que continuam fiéis a Ele.
(tradução: Permanência - com autorização do autor)
Matthew Bruton
O martírio dos católicos irlandeses estende-se por um período de mais de 150 anos. Neste modesto estudo, trataremos dos martírios do século XVI. Nesse lapso de tempo, mais de 300 irlandeses deram a vida em nome da fé. O governo de Londres derramou indiscriminadamente o sangue dos mártires, dentre os quais se contam oito bispos e arcebispos, incluídos os dois bispos da principal sé episcopal da Irlanda. Os métodos de tortura eram crudelíssimos, como bem veremos. Porém, examinamos antes de tudo o contexto político e religioso.
Em 1533, Henrique VIII da Inglaterra se casou em segredo, como se sabe, com Ana Bolena, tanto assim que, naquela ocasião, ele foi intimado a comparecer diante do Tribunal Romano para que respondesse à queixa da rainha Catarina. Catorze meses depois, o papa Clemente VII declarava a validade do casamento dele com a rainha Catarina e pronunciava sentença que o excomungaria, caso não obedecesse ao decreto. O rei já se decidira a rejeitar a autoridade papal, tomando neste sentido a iniciativa de aprovar várias leis no parlamento. A Irlanda, então, era alvo das reivindicações da coroa inglesa, apesar de esta na verdade controlar apenas a região limítrofe da capital, Dublin.
Na segunda metade do século XVI, aconteceram numerosas revoltas, dentre as quais algumas foram de tal vulto que chamaram a atenção e o apoio dos papas da época: a revolta da família Geraldine em 1546, a de Shaun O’Neill em 1561, a do Deão de Desmond em 1579 e enfim, a mais bem-sucedida de todas, a de Hugh O’Neill no começo de 1595.
Após Henrique três soberanos governaram a Inglaterra; foram eles Eduardo VI (1547-1553), Maria Tudor, filha de Henrique VIII (1553-1558), e Elizabeth Iª (1558-1603). Eduardo e Maria continuaram ambos a política de Henrique VIII, que era atacar a religião católica. Maria reconduziu o país à religião verdadeira, mas por pouco tempo.
A primeira ação legal que Henrique VIII tentou empreender, a fim de implantar a nova religião na Irlanda, ocorreu em 1º de maio de 1537, quando o parlamento da Irlanda, sediado em Dublin, aprovou uma lei que incluía o seguinte parágrafo:
§ 5. O rei, seus herdeiros ou sucessores, reis de Inglaterra e senhores de Irlanda, serão admitidos e reconhecidos nesta terra como os únicos chefes supremos de toda a Igreja da Irlanda.
Na sessão seguinte, proclamou-se:
§ 1. Qualquer pessoa que por escrito, pregação, ensino ou ato semelhante, sustentar a autoridade e a jurisdição dos bispos de Roma ou de seus mandatários, incorrerá para cada delito na pena de praemunire.
§ 4. Os titulares de ofícios, laicos ou eclesiásticos, a partir de agora renegarão com juramento o bispo de Roma e sua jurisdição, e reconhecerão o rei como o único chefe supremo da Igreja de Inglaterra e de Irlanda.
§ 6. Qualquer pessoa, requisitada a prestar o sobredito juramento e recusando-se obstinadamente a fazê-lo, será punida de morte, além de sofrer as demais penas previstas em caso de alta traição.
O nosso primeiro mártir foi um padre chamado John Travers, da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, doutor em teologia, que escrevera em anonimato um tratado célebre, cujo título era: Da Autoridade do Romano Pontífice, em que provava claramente que a primazia de Henrique VIII era pura ficção. Os delegados do rei o prenderam e custodiaram na torre de Londres durante quatro meses. Submetido à tortura, mas sempre intransigente, foi declarado culpado de alta traição. Em 20 de julho de 1535, com as mãos amarradas para trás e a corda ao pescoço, conduziram-no até o lugar da execução, que ficava sobre uma grade. Quando alcançou o alto da escada que o levava até ao patíbulo, ele exortou à assistência, de todo o coração, a fim de que rezasse com ardor a Deus – refúgio dos pecadores – para a conversão e salvação do Rei e de todos os heréticos que o seguiam.
Em seguida, bradou:
Não foi por um crime, caros cristãos, que me tiraram da Irlanda, a minha terra natal, mas sim porque professei a fé católica, com que me alimentei no seio maternal, a exemplo dos meus avós. Está próxima a hora da minha morte, que certamente me abrirá as portas da vida eterna. Declaro que sou padre da Igreja Católica e Apostólica, e foi com estes três dedos (mostrou três dedos da mão direita) que escrevi a obra sobre a autoridade do Romano Pontífice.
Após o pronunciamento, ao comando do oficial, ele foi enforcado, depois baixado ao solo, para que morresse esquartejado. Aconteceu então algo extraordinário: os verdugos arremessaram a mão direita e as entranhas dele ao fogo e, enquanto as outras partes se reduziam a cinzas, viram que os três dedos que mostrara sobre o cadafalso permaneciam na mesma posição em meio às chamas, e assim os encontraram inteiros e ilesos, como se nunca tivessem sido queimados. Eles ficaram intactos durante muito tempo após a morte do padre.
Os próximos a sofrer o martírio foram os Trinitários de Adare, em Limerick, no sudoeste do país. Era Irmão Roberto o superior do convento. Quando se publicaram os decretos reais, ele os lera e, após reunir a comunidade que então contava com quarenta e dois membros, declarara que o rei era herege e cumpria não aquiescer com o crime. Causou ele uma tal impressão nos ouvintes que todos declararam que estavam prontos a perder a vida na defesa da fé católica. Ao saberem que o convento estava prestes a ser saqueado, eles distribuíram os bens aos pobres e esconderam os vasos sagrados e os ornamentos do altar.
Quando os hereges chegaram, ofereceram altos cargos e benefícios ao Irmão Roberto, que os recusou, proclamando a sua devoção à fé católica. Nenhuma agressão, disse ele, afastá-los-ia, ele e a comunidade, dos princípios da verdade. Eles reconheciam tão-somente o Vigário de Cristo como Cabeça da Igreja; e no que respeitava ao Rei da Inglaterra, não o consideravam sequer membro da Santíssima Igreja, mas Chefe da Sinagoga de Satanás.
Assim que terminou o discurso, um oficial herético puxou a espada e de um só golpe separou a cabeça e o corpo do santo homem. Os outros membros da comunidade foram presos, alguns morreram em decorrência dos ferimentos, ao passo que outros foram assassinados ou enforcados em segredo.
Enquanto isso, acontecia uma reunião dos diretores da ordem na casa principal dos Trinitários em Dublin, com a finalidade de discutir as medidas a serem tomadas ante o iminente perigo. Eles declararam que o rei era um manifesto herege e, depositando as esperanças na Santíssima Trindade, resolveram-se a dar a vida em prol da verdade. Mal terminara a conferência quando chegaram as notícias do que acabava de ocorrer em Adare. Irmão Teobaldo, o antigo Provincial, exclamara: “A Santíssima Trindade abençoou a nossa ordem com um bom começo, assegurando-nos assim que a graça há-de acompanhar-nos até o fim”.
Pouco tempo depois, os delegados reais chegaram a Dublin. O Provincial e o Irmão Teobaldo dirigiram-se ao povo; este último foi de imediato abatido, porque o consideravam artífice da resistência. Capturaram o Provincial e arrastaram-no pelas ruas; ele repetia aos berros a sua lealdade à fé católica. Os juízes advertiram os algozes para que cumprissem o dever e, por isso, com uma machadada puseram termo à vida do Provincial. Abriram-lhe as costelas e arrancaram-lhe o coração; já o corpo, arremessaram-no sobre um monte de estrume. Mas quando caiu a noite, os católicos vieram e resgataram os membros espalhados, a fim de enterrá-los. Os outros religiosos do convento conheceram destino semelhante. O triunfo desses gloriosos mártires aconteceu nos dias 25 e 26 de fevereiro de 1539.
Entre os demais soldados da fé mortos sob a tirania de Henrique VIII, há-de incluir-se os dezesseis franciscanos do condado de Monaghan, ao norte, e os cinqüenta cistercienses de Dublin – porém vejamos com mais detalhes o martírio do bispo de Limerick, Cornelius O’Neill. Era ele de ascendência nobre e de humildade e caridade notáveis. Exercera diferentes funções, dentre as quais a de Provincial da Ordem Trinitária. Quando o rei o consultou sobre o divorciar-se de sua legítima esposa, Cornelius ficou do lado da rainha. O rei irritou-se muitíssimo e prometeu vingança.
Ao tomar conhecimento das ameaças, o bispo convocou a comunidade trinitária e a ela falou nestes termos: “Um mau começo destes não chegará a bom fim. O rei e o reino estão perdidos. A Igreja Católica está em perigo iminente e a heresia há-de ganhar terreno entre nós, a não ser que o poder de Deus nos proteja.” Aconselhara à comunidade a venda do monastério e a distribuição do preço da venda aos pobres; aconselhara também às demais ordens religiosas e ao clero secular sob a sua jurisdição a venda dos bens. Quando soube do assassinato dos religiosos de Adare, convocou toda a fraternidade e, entoando solenemente o Te Deum, implorou com ardor à Santíssima Trindade para que lhes desse a coragem e força de imitar os irmãos que lhes precederam no martírio.
Próximo à festa de São João, o bispo Cornelius pregou na catedral ante uma grande audiência. Ele fez uma exposição acerca das provas da fé católica e da legitimidade da autoridade do papa; declarou que as ordens do rei eram heréticas e que ele, seus conselheiros e quem o obedecesse estavam anatematizados. Os representantes do rei hesitaram em agredirem-no dentro da igreja, porém mais tarde, durante a noite, dirigiram-se até a casa do bispo. Eles foram recebidos e disseram que o bispo devia obediência ao rei sob pena de morte imediata. Lançando-se ao solo e elevando os olhos ao céu, exclamou Cornelius: “Senhor, hoje Vos ofereci o sacrifício incruento do Corpo de Jesus Cristo, meu Senhor. Acolhei agora o sacrifício da minha vida, em honra e glória de Vosso Nome.” E fitando uma imagem da Santíssima Virgem, orou: “Sancta Trinitas, unus Deus, miserere nobis”. Após o quê, o algoz, com um só golpe de espada, separou-lhe a cabeça e o corpo. Em seguida, os representantes do rei capturaram os religiosos que estavam na casa e os mataram. No dia seguinte, os quarenta e seis religiosos restantes, que recusaram prestar juramento, também foram assassinados. Mais seis conventos da ordem, a exemplo dos já mencionados, demonstram idêntica fortaleza moral.
Saltemos alguns anos até o momento em que Elizabeth chega ao poder. Esse episódio funesto aconteceu em 17 de novembro de 1558. Ela envia o conde de Sussex como deputado à Irlanda, ordenando-lhe “regulamentar o culto a Deus, segundo o modelo do culto da Inglaterra, e editar as prescrições mais recentes.” Em 1560, indiferente às leis de Felipe e Maria, o parlamento irlandês declarou o que segue:
§ 8. Todos os arcebispos, bispos e demais ministros eclesiásticos e juízes temporais, bem como oficiais e pessoas que recebam estipêndio de sua Alteza neste reino, prestarão juramento e declararão que sua Majestade, seus herdeiros e sucessores, são os únicos governantes supremos do reino, em assuntos espirituais e temporais.
§ 12. Qualquer pessoa que por escrito, impresso, ensino, pregação, declaração, ato, com conhecimento de causa e premeditação, sustentar de moto próprio a autoridade e a jurisdição de qualquer príncipe estrangeiro, prelado, etc., e seus auxiliares, será, na primeira infração, despojado de todas as posses e bens, e, se as posses e bens não alcançarem o montante de 20£, será aprisionado por um ano sem possibilidade de liberdade sob fiança e perderá todas as benesses e dignidades; na segunda infração, incorrerá na pena de praemunire; na terceira infração, será punido de morte como em caso de alta traição.
O primeiro mártir do governo de Elizabeth foi, em 1569, um franciscano chamado Daniel O’Dullian, do convento de Youghal, ao sul. Sob as ordens do senhor deputado, o capitão Dudal e suas tropas o levaram à Porta da Trindade, amarram-lhe as mãos às costas e, ligando aos seus pés grandes pedras, ergueram-no por cordas três vezes, do solo até ao alto da torre, e o deixaram lá certo tempo. Após padecer vários golpes e torturas, penduraram-no de ponta cabeça a um moinho próximo ao mosteiro. Assim pendurado não murmurou, antes repetia as orações como bom cristão, quer em voz alta, quer em voz baixa. Enfim, os soldados receberam ordens de usarem-no como alvo; para que os sofrimentos fossem mais longos e cruéis, os artilheiros não deveriam atingir a cabeça ou o coração mas, quanto lhes aprouvesse, qualquer outra parte o corpo. Depois que muitas balas já o haviam atingido, alguém, num ato de cruel piedade, carregou a espingarda com duas balas e a descarregou no coração do mártir. Ele morreu em 22 de abril.
Dermot O’Mulrony e dois irmãos da mesma ordem foram os próximos a sofrerem o martírio, em 1570, no condado de Tipperary. Em 21 de março soldados ingleses sitiaram o convento, de tal modo que ninguém conseguiria escapar. Os três subiram ao campanário da igreja e suspenderam a escada. Os soldados atearam fogo, a fim de incendiar a torre da igreja; foi então que o santo homem, baixando a escada, desceu voluntariamente para salvar a igreja; ao apoiar o pé no primeiro degrau, benzeu-se e entoou o salmo Miserere. Os soldados, que não se comoveram com a cena, socaram-no e machuram-no até que finalmente lhe golperam a cabeça. Viu-se então uma coisa extraordinária: quando lhe cortaram a cabeça, não escorreu do corpo sequer uma gota de sangue. Ao presenciarem o fato, os soldados esquartejaram o corpo, mas o sangue mesmo assim não escorrera.
Antes de contar os padecimentos de um dos mais eminentes mártires irlandeses, o arcebispo Dermot O’Hurley, de Cashel, em 1584, mencionemos de passagem alguns dos mártires mais notáveis desse intervalo de quinze anos. O primeiro é o arcebispo de Cashel, Maurice Gibon. Ele morreu na prisão em Cork, em 6 de maio de 1578, após recusar-se de prestar juramento. Outro mártir é Hugh Lacy, bispo de Limerick. Henrique VIII foi o primeiro a prendê-lo, e depois Elizabeth, quando o bispo contava 60 anos, porque recusava-se a prestar juramento. Ele morreu em decorrência dos maus tratos, em 26 de março. Nesse mesmo ano, soldados ingleses mataram dois franciscanos no interior do mosteiro, que se situava no condado de Mayo; eram eles os irmãos Phelim O’Hara e Henry Delahyde; o primeiro mataram diante do altar-mor do mosteiro, após o haverem despido.
Nesse mesmo ano, muitos foram os bispos martirizados. Edmund Tanner, bispo de Cork, foi o primeiro, morrendo na prisão de Dublin, após padecer cruéis torturas. O segundo foi Patrick O’Hely, bispo de Mayo. Alguns minutos antes da morte, profetizou o falecimento do chefe do condado, que era um impiedoso perseguidor dos católicos. Três dias depois, uma doença acometeu o homem que, às portas da morte, declarou que a doença era um castigo de Deus, porque matara o bispo. O semblante do bispo e dos mártires conservava uma expressão de calma e contentamento, durante os catorze dias em que os corpos ficaram dependurados. De mais a mais, exalava dos corpos um perfume de odor agradável.
Agora examinaremos a vida e o martírio do arcebispo de Cashel, Dermot O’Hurley. Nascido em Limerick, onde o pai ganhava o pão como criador de gado, ele estudara teologia e direito canônico em Lovaina, onde obteve o doutorado nessas duas matérias. Quando o nomearam arcebispo de Cashel em 1581, empreendeu uma viagem até à Irlanda.
Ele aportou ao norte de Dublin e dirigiu-se a Slane, ao célebre condado de Meath. Ali residiu em segredo na casa do proprietário do lugar, cujo nome de família era Flaming. Ele não queria que o vissem em público, nem à mesa, nem em conversas com ninguém, porém aos poucos começara a participar das refeições e a falar com os membros da família. Aconteceu de um dia um dos membros do Conselho Privado (que reunia os conselheiros da rainha Elizabeth), chamado Robert Dillon, foi jantar com a família. Quando estavam sentados à mesa, a conversa tomou um rumo que deu azo a uma interessante discussão; durante o colóquio, algumas palavras do bispo revelaram erudição. Imediatamente Robert Dillon começou a desconfiar de que se tratava de um sacerdote católico disfarçado e contou o fato ao tesoureiro do condado. A família deu-se conta do ocorrido e recomendou ao arcebispo a fuga. Porém, mais tarde, os ingleses ameaçaram Flaming e o obrigaram a atrair o bispo. Assim, Flaming persuadiu o prelado a retornar a Dublin, para que pudesse provar a inocência. Lá então o interrogaram, mas como os ingleses não conseguissem provar nada contra ele, após diversos processos, em primeiro lugar trataram de torturá-lo, para enfim executá-lo.
Os carrascos imaginaram para ele uma crudelíssima forma de tortura. Puseram-lhe os pés e as penas em botas repletas de azeite, prenderam-lhe os pés no pelourinho e atiçaram fogo embaixo. O azeite, aquecido nas chamas, infiltrara-se na planta dos pés e nas pernas, excruciando-os de modo que pedaços de pele despegaram-se das carnes e porções de carne, dos ossos expostos. O calor das labaredas devorou o corpo do bispo, que não obstante exsudava suor frio. Muitas foram as vezes que gritava: “Jesus, Filho de Davi, tende piedade de mim”.
Certa tortura chegou a tal ponto que ao fim o bispo ficara imóvel. O torturador, com medo de o haver matado – o que seria exceder as ordens recebidas – buscou um médico para reanimá-lo. Depois de duas semanas, o bispo melhorou um pouco, após o que os ingleses intentaram diversos meios de convencê-lo a abandonar a fé; propuseram-lhe altos cargos, e até mesmo a sua irmã levaram para que o persuadisse a deixar a luta, mas não conseguiram nada. Como um novo governador estivesse prestes a assumir o cargo, o titular decidira que era melhor encerrar o assunto, procedendo à execução. Em 29 de junho de 1584, ele foi enforcado. Conta-se que muitos milagres aconteceram sobre a sua sepultura.
As leis então vigentes ainda não eram satisfatórias aos olhos dos protestantes, por isso um édito do governo inglês declarou o seguinte:
A partir de agora, se um padre for descoberto, será ipso facto culpado de alta traição; por isso, seja ele em primeiro lugar enforcado, e então, depois de o baixarem ainda vivo ao solo, decapitado, estripado e queimado; seja a sua cabeça pendurada num poste e exposta em lugar público e freqüentado. Se alguém receber ou sustentar um padre, sejam os seus bens confiscados e a pessoa enforcada sem piedade.
Já no ano seguinte, sobreveio o martírio de Richard Creagh, arcebispo da principal sé episcopal da Irlanda, Armagh. Oriundo de Limerick, ele se estabeleceu primeiro como comerciante mas pouco tempo depois se decidiu a abraçar o sacerdócio. Estudou em Lovaina e mais tarde retornou a sua terra natal para administrar os seus concidadãos. Deixou-os após algum tempo e foi morar em Roma, onde conheceu o Papa Pio V, que o nomeou arcebispo. Por duas vezes meteram-no em prisão, e por duas vezes conseguiu escapar.
A terceira vez foi a última. Conduzido a Londres, levantaram falsas acusações contra ele, inclusive um bispo apóstata. A reclusão foi longa e no mais das vezes dura. Apesar disso, aproveitou o tempo para ajudar os outros sacerdotes aprisionados, aconselhando-os à prática da virtude e instruindo-os em temas sagrados. Certa vez o diretor da prisão tentou persuadi-lo a escutar o sermão de um herege, e como recusasse, arrastaram-no à força. Mas assim que o pregador começou a atacar a fé católica, o arcebispo Creagh interrompeu-o para contraditá-lo. Depois de numerosas e vivazes trocas de palavras, finalmente reconduziram o arcebispo de volta à cela.
Os seus raptores chegaram à conclusão de que não poderiam convencê-lo a abjurar a fé, a despeito de todas as tentativas. Dessa forma, certo dia envenenaram um pedaço de queijo, que lhe deram a comer. Sem nenhum temor, ele o comeu de boa vontade mas logo notou o que lhe prepararam. Logrou chamar a tempo um padre na cela vizinha, fez a derradeira confissão e entregou o espírito em 14 de outubro.
Falta ainda mencionar o Padre Walter Fernan, que morreu em 12 de março de 1597. Levado pelos hereges a Dublin, foi preso e forçado a ficar de pé durante quarenta horas sem dormir. Então o flagelaram, esfregaram sal e vinagre nas feridas, e depois lhe perguntaram se queria prestar o juramento de supremacia. Respondeu o padre com firmeza que preferia morrer a prestar um juramento que mencionasse uma mulher na qualidade de chefe da Igreja, porquanto São Paulo dissesse que a mulher deveria permanecer em silêncio na igreja. Enquanto o estripavam, exclamava Pe. Fernan: “Senhor, eu encomendo a minha alma às Vossas mãos” e entregou o espírito a Deus.
Conclusão
Que é possível concluir deste pequeno estudo dos mártires irlandeses do séc. XVI? Antes de tudo, que os ingleses eram agressivos: eles não conheceram limites nem medidas, ante um povo que era católico, na tentativa de lhes extirpar a antiga religião. Eram permitidos todos os métodos de tortura e ataques contra igrejas. Nem a hierarquia da Igreja se respeitou, vide os bispos assassinados. Em segundo lugar, que todas as regiões do país, de norte a sul e de leste a oeste, foram atingidas. Enfim, que foi total o ataque contra a fé e a população da Irlanda. E a situação não melhorou com o passar dos anos. Apesar de tudo, o povo irlandês permaneceu católico e, tal qual aconteceu em outros países, a perseguição não extinguira a chama da fé mas ao contrário a alimentou.
Para quem queira aprofundar-se:
MURPHY S.J., Our Martyrs, Sealy, Bryers & Walker, 2010.
Myles O’REILLY B.A, Memorials of those who suffered for the catholic faith in Ireland in the 16th, 17th and 18th centuries, Burns, Oates & Co., 1868.
Com a aprovação do autor - Tradução: Permanência