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Os mártires irlandeses no século XVII

Matthew Brutton

[Nota da Permanência] Recomendamos a leitura do artigo “Os Mártires irlandeses do Século XVI”, do mesmo autor, traduzido e publicado na Revista Permanência 271.

 

A perseguição que se iniciou no reinado de Henrique VIII na Inglaterra se estendeu pela Irlanda e continuou até o século XVIII. Neste estudo, o leitor deve levar em consideração um aspecto particular da história da Irlanda: enquanto, em outros países, as autoridades e a população, ou aderiam todos ao protestantismo, ou permaneciam todos católicos, a Irlanda enfrentava a difícil posição de ser governada por estrangeiros cismáticos e heréticos, enquanto o povo permanecia católico. Assim, os irlandeses sofreram uma intensa perseguição que buscava abalar a perseverança na fé que São Patrício, no século V, lhes havia transmitido. Todos os meios foram empregados, desde restrições legais até brutalidades físicas, mas os Irlandeses deram mostras de um heroísmo exemplar.

Após um breve resumo histórico, apresentaremos os principais mártires da primeira metade do século XVII. Em seguida, deter-nos-emos mais particularmente no período em que o puritanismo (um ramo do calvinismo) tomou o poder, e veremos os mais importantes mártires tanto dessa época quanto da época seguinte.

A Irlanda do século XVII

No início do século XVII, a Irlanda mais uma vez estava em guerra contra a Inglaterra. Uma dessas guerras trouxe numerosas vitórias para os irlandeses; no entanto, o resultado final foi a derrota da Irlanda, e o exílio dos líderes e de muitas famílias nobres. Seguiu-se então uma época de dominação completa e tirânica dos ingleses sobre os irlandeses. Uma das primeiras medidas do governo Inglês foi a expulsão de milhares de católicos de suas terras, principalmente do norte da Irlanda, e o estímulo à vinda de colonos protestantes, ingleses ou escoceses, a quem se deram essas terras. Os protestantes permanecem no norte do país até os dias de hoje1.

Enquanto continuavam as perseguições contra os católicos, iniciou-se uma nova rebelião irlandesa, em 1642, com a particularidade de que, desta vez, a Igreja é que a organizava. O Papa a apoiou e chegou a enviar o núncio João Batista Rinuccini, arcebispo de Fermo. Infelizmente, a insurreição foi derrotada.

Após o assassinato do rei Carlos I, em 1649, instaurou-se um novo governo na Inglaterra, controlado pelos protestantes puritanos, cujo líder era Oliver Cromwell. Juntamente com seus companheiros, Cromwell nutria um intenso ódio contra os católicos irlandeses. Perseguiu-os, até 1660, numa das mais terríveis perseguições da história da Igreja.

Carlos II, filho de Carlos I, subiu então ao trono. Durante os reinados de Carlos II, Jaime II e Maria II, as perseguições continuaram e a lista de mártires aumentou. O último foi o Fr. Gerald Fitzgibbon O.P., em 1691. A partir de então, as perseguições físicas cessaram; no entanto, ainda vigoravam as leis severas contra o clero e os católicos.

 

Os primeiros mártires

Dom Cornelius O’Devany

O primeiro mártir que apresentamos é Cornelius O’Devany, bispo da diocese de Down e Connor. Originário do norte da Irlanda, tornou-se franciscano aos vinte anos e foi designado bispo aos quarenta e nove, por Gregório XIII, em 1582. Capturaram-no em 1611 e o julgaram em Dublin sob falsos pretextos, sofrendo denúncias de testemunhas perjuras. Ao final, seus adversários lhe acabaram revelando as verdadeiras intenções e disseram que lhe poupariam a vida se abandonasse a religião católica e abraçasse o anglicanismo. A estas palavras, ergueu a voz e chamou todos os cristãos para testemunharem que ele preferia morrer em defesa da sua fé católica.

De volta à prisão, passou o tempo meditando e rezando, até o dia da execução, em 1º de fevereiro, na festa de Santa Brígida, patrona da Irlanda. Quando o conduziam à morte, junto com outro padre, Patrick O’Lochran, disse a este último: “Venha, meu caro companheiro, nobre soldado de Cristo, imitemos o máximo possível a morte daquele que levaram ao patíbulo como um cordeiro ao abatedouro”. Em seguida, inclinando-se e beijando a trave posta sobre o cavalo que o carregava, montou e percorreu as ruas até o cadafalso. No percurso, a multidão de católicos invadia as ruas e, de joelhos, pedia-lhe a bênção, o que causou grande indignação do representante do rei. 

Quando o bispo chegou ao local onde estava montado o cadafalso, pediu ao algoz que executasse seu companheiro antes dele, pois temia que ele, vendo-o morto, perdesse a coragem. O carrasco lhe recusou a graça, mas Patrick O’Lochran tranqüilizou o prelado.

No momento em que Dom Cornelius se aproximou do cadafalso, os gritos da multidão se intensificaram. Por três vezes rezou: primeiro, pela multidão presente; segundo, pela cidade de Dublin e por todos os católicos do reino, para que servissem a Deus fiel e piedosamente; finalmente, rezou pela conversão dos heréticos. No instante em que o enforcaram, a multidão lançou um grito de angústia. Houve em seguida um profundo silêncio.

Morto, o rosto ainda lhe brilhava. Os algozes lhe cortaram a cabeça, retiraram as entranhas e deitaram fogo nelas. Ele foi enterrado junto com o outro padre na igreja de São Tiago de Kilmainham2

 

Pe. Peter O’Higgin O.P.

Até 1649, contam-se pelo menos cento e nove mártires, cujos arquivos ainda existem. Entre eles, há um arcebispo, três bispos, dezessete franciscanos, nove dominicanos, três jesuítas, três cistercienses e três carmelitas. 

Entre esses, destacamos o Pe. Peter O’Higgin. Ele era prior do convento de Nass, no sudoeste de Dublin e foi preso pelos heréticos. Um mensageiro, vindo em nome do Vice-Rei, assegurou-lhe que o libertariam caso abandonasse a religião católica. O padre contentou-se em responder:

Estou hoje a ponto de ser conduzido ao patíbulo e todo mundo sabe muito bem que a natureza humana não aceita a morte voluntariamente. Não estou cansado da vida a ponto de querer antecipar a morte, a não ser que a necessidade me obrigue. O Vice-Rei dignou-se enviar-me uma promessa escrita de próprio punho, pela qual me concede a escolha livre e total entre a vida e a morte, para que, por amor à vida, eu abandone minha religião. 

Pouco depois, no momento da execução, a mensagem do Vice-Rei foi-lhe novamente apresentada e ele a segurou, sorrindo. Os heréticos rejubilaram pensando que ele abandonaria sua religião, mas o padre subiu os degraus do patíbulo ainda mais alegre e à multidão dos católicos presentes disse:

Caros irmãos, membros da Santa Igreja Católica Romana. Desde que caí nas mãos destes heréticos aqui presentes, suportei a fome, os insultos e a prisão em lugares sombrios e repugnantes. Não sabia por que padecia tais penas e se iria receber a coroa do martírio; pois não é a pena, mas a causa dela que faz os mártires. O Deus Todo-Poderoso, que protege os inocentes e dispõe de todos com doçura, conduziu as coisas de modo que hoje eu fosse condenado por professar a religião católica, quando na verdade me acusam de crimes contra as leis deste reino. Eis a prova autêntica de minha inocência, uma carta assinada pelo Vice-Rei oferecendo-me a vida e ricas recompensas se eu abandonar a religião católica. Que Deus e os homens sejam testemunhas de que rejeito firmemente e sem hesitação tais ofertas e que voluntariamente e com alegria entro neste combate professando a fé.

Ele lançou a carta a um amigo e pediu ao algoz que procedesse à execução. Enfim, num profundo suspiro, disse: Deo gratias, e morreu.

 

A Irlanda durante o governo dos puritanos: o período mais negro da sua história

Desolação geral

Em 1641, de uma população de 1.466.000 habitantes, 1.240.000 eram católicos; em 1659, restavam apenas 420.0003. Como em todo período de guerra, é difícil saber em detalhes o que acontece com as populações. Sabe-se, no entanto, que 60.000 irlandeses foram vendidos como escravos por Cromwell, 40.000 fugiram para o continente e 20.000 se refugiaram nas ilhas escocesas4. Quanto aos outros, morreram à espada, de fome ou peste.

A fome na Irlanda não aconteceu por acaso, mas foi uma política deliberada dos governantes ingleses, que já havia sido experimentada durante o reinado de Elizabete I (1558 – 1603). Uma carta do vice-governador da Irlanda revelava: “O Sr. William Parsons aconselhou o governador a queimar o trigo e a matar cada homem, mulher ou criança”. A peste foi consequência da grande fome. Como declarou um membro do governo de Elizabete I: “tudo sucedeu para que os irlandeses acabassem devorando uns aos outros5”.

O exemplo mais notável desse massacre legalizado foi uma lei de 1664, promulgada pelo parlamento inglês, que estipulava: “Não haverá misericórdia para um irlandês ou papista nascido na Irlanda6”. Em um panfleto político da época, que convocava uma expedição militar contra os irlandeses, podia-se ler: 

Rogo-vos que a expedição levante-se contra eles com um coração ardente de vingança e que vossas mãos estejam ávidas de sangue. Não temo dizer a todos que me leem: Bem-aventurados aqueles que os recompensarem como merecem, e maldito os negligentes em executar esta obra do Senhor! Maldito seja quem retiver a espada; sim, maldito quem não banhar a espada em sangue irlandês7.

Os motivos desse ódio eram, sobretudo, de ordem religiosa. Um autor da época escreve:

Na verdade, por diversas vezes os magistrados (puritanos) assinalaram à burguesia católica que eles desejavam protegê-los, que todas as aflições cessariam se eles consentissem em renunciar ao Soberano Pontífice e, sobretudo, à missa 8

O Dr. John Lynch, arquidiácono de Tuam, historiador da época e testemunha das atrocidades, descreve o estado da Irlanda ao final do período:

Invejamos frequentemente as condições de vida de outras nações europeias que vivem em paz umas com as outras. Cada um vive em sua própria vinha e sob a própria figueira, já nós estamos famintos e miseráveis; os colonos tomaram posse de nosso país e nos tornamos estrangeiros. Nas cidades européias, constroem-se majestosos monumentos que sobem aos céus; quanto a nós, nenhuma casa é construída e as que existiam hoje são ruínas. Nesses países, os lugares sagrados são ornados com zelo, enquanto os nossos são destruídos, profanados e utilizados como tribunais ou para fins sacrílegos.

Os filhos dos europeus recebem boa educação, que é proibida em nosso país. Lá, os clérigos são honrados, mas aqui, são prisioneiros, ou estão escondidos nas florestas, nos porões ou nos pântanos. A lei universal da Igreja isentou da escravidão quem professasse a religião católica, mas os súditos irlandeses são arrancados dos braços das esposas e filhos pelos abutres do Estado, e deportados e vendidos como escravos para as Índias. Assim, os filhos dos irlandeses se transformaram em presas, as mulheres são levadas, as cidades destruídas, e os vasos sagrados profanados; os próprios irlandeses se veem reprimidos pelas outras nações... O inimigo infligiu toda espécie de injúria sobre os irlandeses; não fomos poupados de nenhuma maldade ou sofrimento 9.

 

A perseguição de Oliver Cromwell

Como a Irlanda, que tanto contribuiu para a Igreja, caiu num estado de tanta aflição?

Como já dissemos, a guerra, que começou em 1642, terminou por volta de 1648 ou 1649. Nesta época, o partido dos puritanos adquiria cada vez mais poder. Em 30 de janeiro de 1649, esse partido executou Carlos I. Dois meses mais tarde, Oliver Cromwell tornou-se o comandante geral. Foi com esse título que chegou à Irlanda em 14 de agosto do mesmo ano, dizendo a seus soldados que os irlandeses “deveriam ser tratados como os cananeus do tempo de Josué”.

A campanha militar durou perto de um ano. Cromwell sitiou e destruiu as cidades de Drogheda (norte de Dublin) e de Wexford (extremo sudeste da Irlanda). Exigiu então que, se os habitantes das outras principais cidades prezassem suas vidas, deveriam render-se e aceitar a seguinte condição: “Em cada local onde a autoridade do parlamento se estabelecesse, a missa não seria tolerada”. Sitiou, em seguida, diversas cidades do sul, entre as quais Waterford, New Ross, Cork, Kilkenny e Clonmel. Em 1651, as cidades de Limerick (sudoeste) e de Galway (oeste) caíram por sua vez sob o jugo de Cromwell.

Derrotadas, as tropas irlandesas deixaram o país. Os puritanos, já não encontrando nenhuma oposição militar, viram-se livres para decretar o primeiro édito de perseguição contra os católicos. Cromwell ordenou que todos os clérigos, seculares e regulares, deveriam, sob pena de traição, deixar o reino em vinte dias e, caso voltassem, sofreriam os confiscos e penas impostos ao tempo da rainha Elizabete, ou seja, seriam “enforcados, e ainda vivos seriam decapitados e esquartejados; as entranhas seriam retiradas e queimadas, e a cabeça exposta em praça pública”. Quem ousasse abrigar um clérigo estaria sujeito “ao confisco da propriedade e à morte imediata”. 

Dr. William Burgatt, contemporâneo da perseguição, escreveu:

Em 1649, contavam-se vinte e sete bispos, dos quais quatro eram metropolitanos. Em cada catedral havia dignitários e cônegos: cada paróquia tinha seus párocos; contava-se também grande quantidade de outros padres e numerosos conventos. Mas quando Cromwell, com extrema crueldade, perseguiu o clero, todos foram dizimados. Mais de trezentos sacerdotes, dos quais três bispos, foram executados à espada ou enforcados. Mais de mil foram exilados, entre os quais se encontravam todos os outros bispos, exceto um, o bispo de Kilmore que, devido à idade e enfermidades, não pôde deixar a ilha. Desta forma, privaram a Irlanda de seus bispos, coisa nunca vista há muito séculos, desde que recebemos a luz da fé católica. 

Não contentes, os puritanos confiscaram as propriedades da aristocracia irlandesa que permanecera na ilha. Todos os que não renunciaram à fé católica tiveram de entregar dois terços de suas terras. Pelo menos cinco milhões de hectares foram divididos entre os soldados puritanos; a uma grande parte da nobreza restou apenas vagar em busca de alimento, sendo obrigados inclusive a bater à porta das casas dos antigos locatários.

Decretaram-se ainda outras leis: quem não se dirigisse ao templo protestante no domingo deveria pagar uma multa de trinta pence; as crianças irlandesas foram declaradas propriedades da república, de forma que levaram muitas delas para que se instruíssem no protestantismo; além disso, todo irlandês que se distanciasse da região onde se registrara, por mais de uma milha (1,6 Km), sem passaporte, ou que participasse de alguma reunião, estava sujeito à pena de morte.

Os católicos foram excluídos das administrações públicas, a não ser que tivessem prestado o juramento de supremacia (juramento que definia a “Igreja da Inglaterra como autoridade suprema em domínio religioso”).

Em 1654, para impedir definitivamente que os irlandeses voltassem a se rebelar, os puritanos ordenaram que se deportassem os católicos para o oeste da ilha, onde as terras eram extremamente pobres, e que renunciassem a seus títulos de propriedade. Durante esse êxodo, milhares morreram de fome e enfermidades; alguns chegaram até mesmo a cometer suicídio. Instalaram-se guaritas de soldados a algumas milhas umas das outras, a pretexto de segurança, mas na verdade elas serviam de óbice para que os padres não se reunissem aos exilados.

Os puritanos então tentaram encontrar ingleses dispostos a ocupar as propriedades abandonadas, mas somente os mais pobres da sociedade aceitaram, pois as notícias dos horrores cometidos contra os irlandeses tinham chegado à Inglaterra.

Esses crimes hediondos não escaparam do castigo divino. Três meses depois de se estabeleceram na Irlanda, os 200.000 colonos sofreram uma invasão de vermes: as parasitas lhes infestaram os corpos, os cabelos, as barbas e os vestidos, enquanto nenhum irlandês foi atingido. Mais de 180.000 colonos morreram dessa epidemia e de outras doenças. 

Finalmente, em 1666, houve um grande incêndio em Londres. Muitos londrinos interpretaram o acontecimento como um castigo do céu, em razão do tratamento infligido aos irlandeses.

 

Mártires numerosos

As perseguições suscitaram numerosos mártires, para a maior glória da Igreja. De 1649 a 1660, contam-se mais de oitenta e seis, dos quais dois eram bispos, dezessete dominicanos, e vinte e um franciscanos.

 

Dom Albert Terence O' Brien

Um dos mártires mais célebres foi o bispo Albert Terence O’Brien. Ele era o provincial dos dominicanos da Irlanda. Em 1644, Urbano VIII o nomeou bispo da diocese de Emly. Em 1651, a cidade de Limerick (sudoeste da Irlanda) foi sitiada pelos puritanos. Os habitantes lutaram corajosamente e demonstraram grande piedade e confiança em Deus. Os puritanos ofereceram 40.000 moedas de ouro ao bispo se ele deixasse a cidade e parasse de lutar ao lado dos fiéis, ao que ele recusou. Quando a cidade caiu, ele foi capturado, acorrentado e levado à praça pública. Caminhou com alegria até o patíbulo e, muito calmamente, volveu-se em direção a seus amigos católicos, que estavam aos prantos em meio à multidão, e disse-lhes:

Guardai firmemente a fé católica e seus mandamentos. Não murmureis contra o que a Providência de Deus permite, e assim salvareis as almas. Não choreis por mim, mas rezai sobretudo para que nesta última prova eu possa, pela constância e firmeza, obter o céu como recompensa 10.

Em seguida, invadido por um espírito profético, condenou a ferocidade dos heréticos, declarou que a vingança divina lhes puniria os crimes e anunciou ao algoz, Henri Ireton, grande perseguidor dos católicos, que ele estaria diante do tribunal do justo Juiz em oito dias. A profecia cumpriu-se ao pé da letra: no oitavo dia, atingido pela peste, Ireton morreu gritando: “Sangue! Sangue! Quero mais sangue!” Antes de morrer, teve uma visão do bispo mártir, que era tão palpável que ele desviou os olhos para não vê-lo11.

Fixaram a cabeça decapitada do bispo na ponta de uma estaca, no alto de um castelo, de onde por muito tempo viam-se pequenas gotas de sangue fresco caírem. A pele e a carne permaneceram intactas, sem dúvida um sinal da pureza virginal de sua vida. 

 

São Vicente de Paulo e os católicos perseguidos da Irlanda

Antes de darmos continuidade à história dos mártires, ressaltemos a relação entre São Vicente de Paulo e a Irlanda. Este santo tinha uma afeição particular à Igreja perseguida da Irlanda. Contribuía sem cessar auxiliando os exilados e sobretudo os eclesiásticos que se refugiavam na França. Dava-lhes abrigo, paramentos e vestimentas. Como dizia um bispo irlandês, “Deus o suscitou neste tempo de perseguição para ser a salvação de nosso país12”. 

Naquela época, os religiosos de São Vicente de Paulo também estavam presentes na Irlanda, especialmente em Limerick, onde ajudavam os cidadãos nas necessidades espirituais e temporais. O texto a seguir é de uma carta que São Vicente escreveu ao superior da Ordem na Irlanda, incitando seus filhos missionários a defrontar os perigos que os ameaçavam:

Vós vos consagrastes a Deus, a fim de que, em meio aos perigos, permaneçam inquebrantáveis neste país, expondo-vos à morte para serem caridosos com o próximo... Vós agistes como verdadeiros filhos de nosso Pai adorável, a quem dou infinitas graças por ter produzido em vós esta caridade soberana, que é a perfeição de todas as virtudes. Rogo-lhe que vos cumuleis desta caridade até o final, de modo que, praticando-a sempre e em todo lugar, possais vertê-la no coração daqueles que a desejam. 

Vendo que vossos companheiros têm boas disposições para ficar, apesar dos perigos da guerra e das calamidades, somos da opinião de que eles assim devem fazer. Como conhecer a intenção de Deus para eles? Certamente, Ele não concede tal disposição em vão. Meu Deus, como vossos julgamentos são insondáveis! Eis uma das missões mais frutuosas que já tivemos, talvez uma das mais necessárias, e Vós vos detendes misericordiosamente nesta cidade penitente, e fazeis cair vossa mão ainda mais pesada sobre ela, acrescentando-lhe às penúrias da guerra, as calamidades da peste. Mas tudo isso é feito para a colheita dos eleitos, para a colheita do bom trigo no celeiro eterno. Nós adoramos vossos caminhos, oh Senhor13

Quando a cidade de Limerick finalmente caiu nas mãos dos puritanos, os mártires deram testemunho da obra consumada por seu clero. 

 

Thomas Stritch

Abelly, que acabamos de citar, relata ainda o martírio do chefe da cidade de Limerick, Thomas Strich.

Saindo de um retiro espiritual, ele recebeu as chaves da cidade, depositou-as diante da estátua da Santíssima Virgem rogando-Lhe que colocasse a cidade sob sua proteção, enquanto que em sua honra todos as corporações marchavam em procissão até a igreja. Ele pronunciou um discurso edificante diante de toda a assembleia, encorajando-a a permanecer inviolavelmente unida a Deus, à Igreja e ao Rei, aceitando oferecer a vida para uma tão justa causa.

Deus aceitou a oferta, e quando a cidade foi tomada, ele recebeu a coroa do martírio, juntamente com outros três companheiros com quem fizera o retiro espiritual. Todos os quatro caminharam para a morte não apenas com coragem mas também alegria. Antes da execução, dirigiram-se para a multidão e, comovendo até os heréticos, declararam diante do céu e da terra que davam as vidas pela propagação e defesa da fé católica. O exemplo heroico encorajou os outros católicos a permanecerem na fé e a enfrentarem as perseguições, antes de faltarem à fidelidade que deviam a Deus14

Quando São Vicente de Paulo soube da quantidade de mártires de Limerick, exclamou: “O sangue desses mártires não será esquecido diante de Deus, e cedo ou tarde produzirá uma colheita abundante de catolicidade”.

Foi exatamente o que aconteceu. No decorrer dos séculos XIX e XX, a Irlanda ofereceu um grande número de vocações para a Igreja (fato que Dom Lefebvre ressaltou quando a Irlanda recebeu pela primeira vez um padre da Fraternidade São Pio X15).

 

Pe. James Wolf, O.P.

Outro mártir foi o padre James Wolf, da Ordem dos Pregadores, também originário de Limerick. Ausente no momento em que sitiavam a cidade, soube que os eclesiásticos da cidade tinham sido condenados à morte ou banidos. Voltou, então, secretamente, para administrar os sacramentos aos fiéis.

Os heréticos prenderam-no enquanto celebrava a missa. Em poucas horas o condenaram à morte e o conduziram ao local de execução. Professou a fé em público e exortou aos católicos que perseverassem na fé de seus pais. Aos pés do cadafalso, exclamou com alegria: “Fomos considerados cativos diante de Deus, dos anjos e dos homens; mas Deus assim o permite para sua glória e alegria dos anjos, apesar dos murmúrios dos homens”. Em seguida foi enforcado, e recebeu a recompensa eterna16

 

Dom Oliver Plunkett

É preciso finalmente mencionar Oliver Pluncket.

Ele fizera os estudos de teologia em Roma, onde passou quase vinte anos. Em 1669, foi nomeado arcebispo de Armagh, diocese do norte da Irlanda. Aí exerceu o ministério com muita perseverança e fidelidade, em condições muitas vezes difíceis.

Tendo repreendido alguns padres, estes o acusaram de preparar um complô para derrubar o poder dos protestantes na Irlanda. Prenderam-no então em 1679, na Inglaterra. Na prisão, rezava continuamente e jejuava três ou quatro vezes por semana. Em 1681, compareceu diante do tribunal e foi condenado, apesar da evidente falsidade das acusações.

O conde de Essex enviou uma petição a Carlos II na tentativa de obter a anistia do bispo, mas o rei respondeu-lhe: “Que o sangue dele caia sobre sua cabeça e não sobre a minha!”

No dia 1º de julho, em Tyburn, o bispo foi enforcado. Eis suas últimas palavras: 

“Mostrei suficientemente, acredito eu, que sou inocente desse complô ou conspiração, e gostaria agora, se for possível, de me desculpar dos crimes cometidos contra os mandamentos da Majestade Divina, que por tantas vezes transgredi, e dos quais me arrependo de todo o coração. Se ainda vivesse mil anos, fá-lo-ia com a firme resolução e a forte intenção, por vossa santa graça, oh Deus, de nunca mais vos ofender. Suplico a vossa Majestade Divina, pelos méritos do Cristo, e a intercessão de sua bem-aventurada Mãe e de todos os anjos e santos, que perdoe meus pecados e me alcance o repouso eterno17.

Recitou em seguida o salmo Miserere Mei e outras orações fervorosas. Depois de enforcado, as entranhas e o coração foram retirados e lançados ao fogo. A cabeça ainda se conserva em Drogheda, ao norte de Dublin.

 

Conclusão

A Inglaterra não manifestou arrependimento nem mostrou sinal de conversão. Ao contrário, ainda durante muitos anos continuou a perseguir os católicos, tanto irlandeses quanto ingleses.

Os acontecimentos do século XVII na Irlanda e seus inumeráveis mártires, dos quais só apresentamos aqui algumas figuras, são um exemplo e um encorajamento em nosso próprio combate pela proteção da fé. A perseverança dos irlandeses e os numerosos milagres que acompanharam as perseguições sofridas ajudam-nos a permanecer firmes na certeza de que Deus jamais abandona aqueles que continuam fiéis a Ele. 

(tradução: Permanência - com autorização do autor)

  1. 1. [N. da T.] O norte da ilha é hoje a Irlanda do Norte, país integrante do Reino Unido, e é protestante, ao contrário da República da Irlanda, que compreende todo o resto da ilha, é independente e católica.
  2. 2. ROTHE, David. Analecta Nova et Mira de Rebus Catholicorum in Hibernia pro fide et religione gesti, Colônia, 1616-1619, p. 456 e Historiae Catholicae Iberniae, pág. 298. Disponível em www.archive.org .
  3. 3. Catholic World, vol. VIII, 1869, pág. 849.
  4. 4. Ibid.
  5. 5. Dominicus de Rosario O’ DALY, A History of the Geraldines, 1655, vol. II, pág. 350.
  6. 6. Pe. Francis Patrick MORAN, Historical sketch of the persecutions suffered by the Catholics of Ireland under the rule of Cromwell and the Puritans, 1862, pág. 3.
  7. 7. H. DE CHAVANNES DE LA GIRAUDIÈRE et HUILLARD, L’Irlande, son origine, son histoire et sa situation présente, 1867, Bréholles, pág. 148. Um livro francês, em geral considerado bom, mas que carece de um julgamento acertado sobre as revoluções irlandesas do final do século XVIII (ancestrais do moderno I.R.A e do Sinn Fein), que receberam auxílio do Diretório da França e exibiam em suas bandeiras a divisa “Liberty or Death” (Liberdade ou Morte, emprestada da França).
  8. 8. MS. Status Rei Cath. in Hibernia hoc anno 1654, no Colégio Irlandês de Roma.
  9. 9. Historical sketch…, pág. 120.
  10. 10. MURPHY S.J., Our Martyrs, 2010, pág. 338.
  11. 11. Duffy’s Hibernian Magazine, volume V, Jan-Jun 1864, pág. 259, disponível em Google books.
  12. 12. Historical Sketch…, pág. 52.
  13. 13. ABELLY, Vie de saint Vincent, pág. 212.
  14. 14. Ibid, págs. 218-219.
  15. 15. História da FSSPX pelo Pe. Ramon ANGLES (www.sspx.org/sspx_faqs/a_short_history_of_the_sspx-part-3.html).
  16. 16. Our Martyrs, pág. 345.
  17. 17. Our Martyrs, pág. 346
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