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Category: mártiresConteúdo sindicalizado

Os mártires irlandeses do século XVI

Matthew Bruton

O martírio dos católicos irlandeses estende-se por um período de mais de 150 anos. Neste modesto estudo, trataremos dos martírios do século XVI. Nesse lapso de tempo, mais de 300 irlandeses deram a vida em nome da fé. O governo de Londres derramou indiscriminadamente o sangue dos mártires, dentre os quais se contam oito bispos e arcebispos, incluídos os dois bispos da principal sé episcopal da Irlanda. Os métodos de tortura eram crudelíssimos, como bem veremos. Porém, examinamos antes de tudo o contexto político e religioso.

Em 1533, Henrique VIII da Inglaterra se casou em segredo, como se sabe, com Ana Bolena, tanto assim que, naquela ocasião, ele foi intimado a comparecer diante do Tribunal Romano para que respondesse à queixa da rainha Catarina. Catorze meses depois, o papa Clemente VII declarava a validade do casamento dele com a rainha Catarina e pronunciava sentença que o excomungaria, caso não obedecesse ao decreto. O rei já se decidira a rejeitar a autoridade papal, tomando neste sentido a iniciativa de aprovar várias leis no parlamento. A Irlanda, então, era alvo das reivindicações da coroa inglesa, apesar de esta na verdade controlar apenas a região limítrofe da capital, Dublin.

Na segunda metade do século XVI, aconteceram numerosas revoltas, dentre as quais algumas foram de tal vulto que chamaram a atenção e o apoio dos papas da época: a revolta da família Geraldine em 1546, a de Shaun O’Neill em 1561, a do Deão de Desmond em 1579 e enfim, a mais bem-sucedida de todas, a de Hugh O’Neill no começo de 1595.

Após Henrique três soberanos governaram a Inglaterra; foram eles Eduardo VI (1547-1553), Maria Tudor, filha de Henrique VIII (1553-1558), e Elizabeth Iª (1558-1603). Eduardo e Maria continuaram ambos a política de Henrique VIII, que era atacar a religião católica. Maria reconduziu o país à religião verdadeira, mas por pouco tempo1.

A primeira ação legal que Henrique VIII tentou empreender, a fim de implantar a nova religião na Irlanda, ocorreu em 1º de maio de 1537, quando o parlamento da Irlanda, sediado em Dublin, aprovou uma lei que incluía o seguinte parágrafo:

§ 5. O rei, seus herdeiros ou sucessores, reis de Inglaterra e senhores de Irlanda, serão admitidos e reconhecidos nesta terra como os únicos chefes supremos de toda a Igreja da Irlanda.

Na sessão seguinte, proclamou-se:

§ 1. Qualquer pessoa que por escrito, pregação, ensino ou ato semelhante, sustentar a autoridade e a jurisdição dos bispos de Roma ou de seus mandatários, incorrerá para cada delito na pena de praemunire.

§ 4. Os titulares de ofícios, laicos ou eclesiásticos, a partir de agora renegarão com juramento o bispo de Roma e sua jurisdição, e reconhecerão o rei como o único chefe supremo da Igreja de Inglaterra e de Irlanda.

§ 6. Qualquer pessoa, requisitada a prestar o sobredito juramento e recusando-se obstinadamente a fazê-lo, será punida de morte, além de sofrer as demais penas previstas em caso de alta traição.

O nosso primeiro mártir foi um padre chamado John Travers, da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, doutor em teologia, que escrevera em anonimato um tratado célebre, cujo título era: Da Autoridade do Romano Pontífice, em que provava claramente que a primazia de Henrique VIII era pura ficção. Os delegados do rei o prenderam e custodiaram na torre de Londres durante quatro meses. Submetido à tortura, mas sempre intransigente, foi declarado culpado de alta traição. Em 20 de julho de 1535, com as mãos amarradas para trás e a corda ao pescoço, conduziram-no até o lugar da execução, que ficava sobre uma grade. Quando alcançou o alto da escada que o levava até ao patíbulo, ele exortou à assistência, de todo o coração, a fim de que rezasse com ardor a Deus – refúgio dos pecadores – para a conversão e salvação do Rei e de todos os heréticos que o seguiam.

Em seguida, bradou:

Não foi por um crime, caros cristãos, que me tiraram da Irlanda, a minha terra natal, mas sim porque professei a fé católica, com que me alimentei no seio maternal, a exemplo dos meus avós. Está próxima a hora da minha morte, que certamente me abrirá as portas da vida eterna. Declaro que sou padre da Igreja Católica e Apostólica, e foi com estes três dedos (mostrou três dedos da mão direita) que escrevi a obra sobre a autoridade do Romano Pontífice.

Após o pronunciamento, ao comando do oficial, ele foi enforcado, depois baixado ao solo, para que morresse esquartejado. Aconteceu então algo extraordinário: os verdugos arremessaram a mão direita e as entranhas dele ao fogo e, enquanto as outras partes se reduziam a cinzas, viram que os três dedos que mostrara sobre o cadafalso permaneciam na mesma posição em meio às chamas, e assim os encontraram inteiros e ilesos, como se nunca tivessem sido queimados. Eles ficaram intactos durante muito tempo após a morte do padre2.

Os próximos a sofrer o martírio foram os Trinitários de Adare, em Limerick, no sudoeste do país. Era Irmão Roberto o superior do convento. Quando se publicaram os decretos reais, ele os lera e, após reunir a comunidade que então contava com quarenta e dois membros, declarara que o rei era herege e cumpria não aquiescer com o crime. Causou ele uma tal impressão nos ouvintes que todos declararam que estavam prontos a perder a vida na defesa da fé católica. Ao saberem que o convento estava prestes a ser saqueado, eles distribuíram os bens aos pobres e esconderam os vasos sagrados e os ornamentos do altar. 

Quando os hereges chegaram, ofereceram altos cargos e benefícios ao Irmão Roberto, que os recusou, proclamando a sua devoção à fé católica. Nenhuma agressão, disse ele, afastá-los-ia, ele e a comunidade, dos princípios da verdade. Eles reconheciam tão-somente o Vigário de Cristo como Cabeça da Igreja; e no que respeitava ao Rei da Inglaterra, não o consideravam sequer membro da Santíssima Igreja, mas Chefe da Sinagoga de Satanás.

Assim que terminou o discurso, um oficial herético puxou a espada e de um só golpe separou a cabeça e o corpo do santo homem. Os outros membros da comunidade foram presos, alguns morreram em decorrência dos ferimentos, ao passo que outros foram assassinados ou enforcados em segredo3.

Enquanto isso, acontecia uma reunião dos diretores da ordem na casa principal dos Trinitários em Dublin, com a finalidade de discutir as medidas a serem tomadas ante o iminente perigo. Eles declararam que o rei era um manifesto herege e, depositando as esperanças na Santíssima Trindade, resolveram-se a dar a vida em prol da verdade. Mal terminara a conferência quando chegaram as notícias do que acabava de ocorrer em Adare. Irmão Teobaldo, o antigo Provincial, exclamara: “A Santíssima Trindade abençoou a nossa ordem com um bom começo, assegurando-nos assim que a graça há-de acompanhar-nos até o fim”.

Pouco tempo depois, os delegados reais chegaram a Dublin. O Provincial e o Irmão Teobaldo dirigiram-se ao povo; este último foi de imediato abatido, porque o consideravam artífice da resistência. Capturaram o Provincial e arrastaram-no pelas ruas; ele repetia aos berros a sua lealdade à fé católica. Os juízes advertiram os algozes para que cumprissem o dever e, por isso, com uma machadada puseram termo à vida do Provincial. Abriram-lhe as costelas e arrancaram-lhe o coração; já o corpo, arremessaram-no sobre um monte de estrume. Mas quando caiu a noite, os católicos vieram e resgataram os membros espalhados, a fim de enterrá-los. Os outros religiosos do convento conheceram destino semelhante. O triunfo desses gloriosos mártires aconteceu nos dias 25 e 26 de fevereiro de 1539.

Entre os demais soldados da fé mortos sob a tirania de Henrique VIII, há-de incluir-se os dezesseis franciscanos do condado de Monaghan, ao norte, e os cinqüenta cistercienses de Dublin – porém vejamos com mais detalhes o martírio do bispo de Limerick, Cornelius O’Neill. Era ele de ascendência nobre e de humildade e caridade notáveis. Exercera diferentes funções, dentre as quais a de Provincial da Ordem Trinitária. Quando o rei o consultou sobre o divorciar-se de sua legítima esposa, Cornelius ficou do lado da rainha. O rei irritou-se muitíssimo e prometeu vingança.

Ao tomar conhecimento das ameaças, o bispo convocou a comunidade trinitária e a ela falou nestes termos: “Um mau começo destes não chegará a bom fim. O rei e o reino estão perdidos. A Igreja Católica está em perigo iminente e a heresia há-de ganhar terreno entre nós, a não ser que o poder de Deus nos proteja.” Aconselhara à comunidade a venda do monastério e a distribuição do preço da venda aos pobres; aconselhara também às demais ordens religiosas e ao clero secular sob a sua jurisdição a venda dos bens. Quando soube do assassinato dos religiosos de Adare, convocou toda a fraternidade e, entoando solenemente o Te Deum, implorou com ardor à Santíssima Trindade para que lhes desse a coragem e força de imitar os irmãos que lhes precederam no martírio.

Próximo à festa de São João, o bispo Cornelius pregou na catedral ante uma grande audiência. Ele fez uma exposição acerca das provas da fé católica e da legitimidade da autoridade do papa; declarou que as ordens do rei eram heréticas e que ele, seus conselheiros e quem o obedecesse estavam anatematizados. Os representantes do rei hesitaram em agredirem-no dentro da igreja, porém mais tarde, durante a noite, dirigiram-se até a casa do bispo. Eles foram recebidos e disseram que o bispo devia obediência ao rei sob pena de morte imediata. Lançando-se ao solo e elevando os olhos ao céu, exclamou Cornelius: “Senhor, hoje Vos ofereci o sacrifício incruento do Corpo de Jesus Cristo, meu Senhor. Acolhei agora o sacrifício da minha vida, em honra e glória de Vosso Nome.” E fitando uma imagem da Santíssima Virgem, orou: “Sancta Trinitas, unus Deus, miserere nobis”. Após o quê, o algoz, com um só golpe de espada, separou-lhe a cabeça e o corpo4. Em seguida, os representantes do rei capturaram os religiosos que estavam na casa e os mataram. No dia seguinte, os quarenta e seis religiosos restantes, que recusaram prestar juramento, também foram assassinados. Mais seis conventos da ordem, a exemplo dos já mencionados, demonstram idêntica fortaleza moral.

Saltemos alguns anos até o momento em que Elizabeth chega ao poder. Esse episódio funesto aconteceu em 17 de novembro de 1558. Ela envia o conde de Sussex como deputado à Irlanda, ordenando-lhe “regulamentar o culto a Deus, segundo o modelo do culto da Inglaterra, e editar as prescrições mais recentes.” Em 1560, indiferente às leis de Felipe e Maria, o parlamento irlandês declarou o que segue:

§ 8. Todos os arcebispos, bispos e demais ministros eclesiásticos e juízes temporais, bem como oficiais e pessoas que recebam estipêndio de sua Alteza neste reino, prestarão juramento e declararão que sua Majestade, seus herdeiros e sucessores, são os únicos governantes supremos do reino, em assuntos espirituais e temporais.

§ 12. Qualquer pessoa que por escrito, impresso, ensino, pregação, declaração, ato, com conhecimento de causa e premeditação, sustentar de moto próprio a autoridade e a jurisdição de qualquer príncipe estrangeiro, prelado, etc., e seus auxiliares, será, na primeira infração, despojado de todas as posses e bens, e, se as posses e bens não alcançarem o montante de 20£, será aprisionado por um ano sem possibilidade de liberdade sob fiança e perderá todas as benesses e dignidades; na segunda infração, incorrerá na pena de praemunire; na terceira infração, será punido de morte como em caso de alta traição.

O primeiro mártir do governo de Elizabeth foi, em 1569, um franciscano chamado Daniel O’Dullian, do convento de Youghal, ao sul5. Sob as ordens do senhor deputado, o capitão Dudal e suas tropas o levaram à Porta da Trindade, amarram-lhe as mãos às costas e, ligando aos seus pés grandes pedras, ergueram-no por cordas três vezes, do solo até ao alto da torre, e o deixaram lá certo tempo. Após padecer vários golpes e torturas, penduraram-no de ponta cabeça a um moinho próximo ao mosteiro. Assim pendurado não murmurou, antes repetia as orações como bom cristão, quer em voz alta, quer em voz baixa. Enfim, os soldados receberam ordens de usarem-no como alvo; para que os sofrimentos fossem mais longos e cruéis, os artilheiros não deveriam atingir a cabeça ou o coração mas, quanto lhes aprouvesse, qualquer outra parte o corpo. Depois que muitas balas já o haviam atingido, alguém, num ato de cruel piedade, carregou a espingarda com duas balas e a descarregou no coração do mártir. Ele morreu em 22 de abril.

Dermot O’Mulrony e dois irmãos da mesma ordem foram os próximos a sofrerem o martírio, em 1570, no condado de Tipperary6. Em 21 de março soldados ingleses sitiaram o convento, de tal modo que ninguém conseguiria escapar. Os três subiram ao campanário da igreja e suspenderam a escada. Os soldados atearam fogo, a fim de incendiar a torre da igreja; foi então que o santo homem, baixando a escada, desceu voluntariamente para salvar a igreja; ao apoiar o pé no primeiro degrau, benzeu-se e entoou o salmo Miserere. Os soldados, que não se comoveram com a cena, socaram-no e machuram-no até que finalmente lhe golperam a cabeça. Viu-se então uma coisa extraordinária: quando lhe cortaram a cabeça, não escorreu do corpo sequer uma gota de sangue. Ao presenciarem o fato, os soldados esquartejaram o corpo, mas o sangue mesmo assim não escorrera.

Antes de contar os padecimentos de um dos mais eminentes mártires irlandeses, o arcebispo Dermot O’Hurley, de Cashel, em 1584, mencionemos de passagem alguns dos mártires mais notáveis desse intervalo de quinze anos. O primeiro é o arcebispo de Cashel, Maurice Gibon. Ele morreu na prisão em Cork, em 6 de maio de 1578, após recusar-se de prestar juramento. Outro mártir é Hugh Lacy, bispo de Limerick. Henrique VIII foi o primeiro a prendê-lo, e depois Elizabeth, quando o bispo contava 60 anos, porque recusava-se a prestar juramento. Ele morreu em decorrência dos maus tratos, em 26 de março. Nesse mesmo ano, soldados ingleses mataram dois franciscanos no interior do mosteiro, que se situava no condado de Mayo; eram eles os irmãos Phelim O’Hara e Henry Delahyde; o primeiro mataram diante do altar-mor do mosteiro, após o haverem despido.

Nesse mesmo ano, muitos foram os bispos martirizados. Edmund Tanner, bispo de Cork, foi o primeiro, morrendo na prisão de Dublin, após padecer cruéis torturas. O segundo foi Patrick O’Hely, bispo de Mayo. Alguns minutos antes da morte, profetizou o falecimento do chefe do condado, que era um impiedoso perseguidor dos católicos. Três dias depois, uma doença acometeu o homem que, às portas da morte, declarou que a doença era um castigo de Deus, porque matara o bispo. O semblante do bispo e dos mártires conservava uma expressão de calma e contentamento, durante os catorze dias em que os corpos ficaram dependurados. De mais a mais, exalava dos corpos um perfume de odor agradável7.

Agora examinaremos a vida e o martírio do arcebispo de Cashel, Dermot O’Hurley8. Nascido em Limerick, onde o pai ganhava o pão como criador de gado, ele estudara teologia e direito canônico em Lovaina, onde obteve o doutorado nessas duas matérias. Quando o nomearam arcebispo de Cashel em 1581, empreendeu uma viagem até à Irlanda.

Ele aportou ao norte de Dublin e dirigiu-se a Slane, ao célebre condado de Meath. Ali residiu em segredo na casa do proprietário do lugar, cujo nome de família era Flaming. Ele não queria que o vissem em público, nem à mesa, nem em conversas com ninguém, porém aos poucos começara a participar das refeições e a falar com os membros da família. Aconteceu de um dia um dos membros do Conselho Privado (que reunia os conselheiros da rainha Elizabeth), chamado Robert Dillon, foi jantar com a família. Quando estavam sentados à mesa, a conversa tomou um rumo que deu azo a uma interessante discussão; durante o colóquio, algumas palavras do bispo revelaram erudição. Imediatamente Robert Dillon começou a desconfiar de que se tratava de um sacerdote católico disfarçado e contou o fato ao tesoureiro do condado. A família deu-se conta do ocorrido e recomendou ao arcebispo a fuga. Porém, mais tarde, os ingleses ameaçaram Flaming e o obrigaram a atrair o bispo. Assim, Flaming persuadiu o prelado a retornar a Dublin, para que pudesse provar a inocência. Lá então o interrogaram, mas como os ingleses não conseguissem provar nada contra ele, após diversos processos, em primeiro lugar trataram de torturá-lo, para enfim executá-lo.

Os carrascos imaginaram para ele uma crudelíssima forma de tortura. Puseram-lhe os pés e as penas em botas repletas de azeite, prenderam-lhe os pés no pelourinho e atiçaram fogo embaixo. O azeite, aquecido nas chamas, infiltrara-se na planta dos pés e nas pernas, excruciando-os de modo que pedaços de pele despegaram-se das carnes e porções de carne, dos ossos expostos. O calor das labaredas devorou o corpo do bispo, que não obstante exsudava suor frio. Muitas foram as vezes que gritava: “Jesus, Filho de Davi, tende piedade de mim”.

Certa tortura chegou a tal ponto que ao fim o bispo ficara imóvel. O torturador, com medo de o haver matado – o que seria exceder as ordens recebidas – buscou um médico para reanimá-lo. Depois de duas semanas, o bispo melhorou um pouco, após o que os ingleses intentaram diversos meios de convencê-lo a abandonar a fé; propuseram-lhe altos cargos, e até mesmo a sua irmã levaram para que o persuadisse a deixar a luta, mas não conseguiram nada. Como um novo governador estivesse prestes a assumir o cargo, o titular decidira que era melhor encerrar o assunto, procedendo à execução. Em 29 de junho de 1584, ele foi enforcado. Conta-se que muitos milagres aconteceram sobre a sua sepultura. 

As leis então vigentes ainda não eram satisfatórias aos olhos dos protestantes, por isso um édito do governo inglês declarou o seguinte:

A partir de agora, se um padre for descoberto, será ipso facto culpado de alta traição; por isso, seja ele em primeiro lugar enforcado, e então, depois de o baixarem ainda vivo ao solo, decapitado, estripado e queimado; seja a sua cabeça pendurada num poste e exposta em lugar público e freqüentado. Se alguém receber ou sustentar um padre, sejam os seus bens confiscados e a pessoa enforcada sem piedade.

Já no ano seguinte, sobreveio o martírio de Richard Creagh9, arcebispo da principal sé episcopal da Irlanda, Armagh. Oriundo de Limerick, ele se estabeleceu primeiro como comerciante mas pouco tempo depois se decidiu a abraçar o sacerdócio. Estudou em Lovaina e mais tarde retornou a sua terra natal para administrar os seus concidadãos. Deixou-os após algum tempo e foi morar em Roma, onde conheceu o Papa Pio V, que o nomeou arcebispo. Por duas vezes meteram-no em prisão, e por duas vezes conseguiu escapar.

A terceira vez foi a última. Conduzido a Londres, levantaram falsas acusações contra ele, inclusive um bispo apóstata. A reclusão foi longa e no mais das vezes dura. Apesar disso, aproveitou o tempo para ajudar os outros sacerdotes aprisionados, aconselhando-os à prática da virtude e instruindo-os em temas sagrados. Certa vez o diretor da prisão tentou persuadi-lo a escutar o sermão de um herege, e como recusasse, arrastaram-no à força. Mas assim que o pregador começou a atacar a fé católica, o arcebispo Creagh interrompeu-o para contraditá-lo. Depois de numerosas e vivazes trocas de palavras, finalmente reconduziram o arcebispo de volta à cela.

Os seus raptores chegaram à conclusão de que não poderiam convencê-lo a abjurar a fé, a despeito de todas as tentativas. Dessa forma, certo dia envenenaram um pedaço de queijo, que lhe deram a comer. Sem nenhum temor, ele o comeu de boa vontade mas logo notou o que lhe prepararam. Logrou chamar a tempo um padre na cela vizinha, fez a derradeira confissão e entregou o espírito em 14 de outubro.

Falta ainda mencionar o Padre Walter Fernan, que morreu em 12 de março de 1597. Levado pelos hereges a Dublin, foi preso e forçado a ficar de pé durante quarenta horas sem dormir. Então o flagelaram, esfregaram sal e vinagre nas feridas, e depois lhe perguntaram se queria prestar o juramento de supremacia. Respondeu o padre com firmeza que preferia morrer a prestar um juramento que mencionasse uma mulher na qualidade de chefe da Igreja, porquanto São Paulo dissesse que a mulher deveria permanecer em silêncio na igreja. Enquanto o estripavam, exclamava Pe. Fernan: “Senhor, eu encomendo a minha alma às Vossas mãos” e entregou o espírito a Deus.

 

Conclusão

Que é possível concluir deste pequeno estudo dos mártires irlandeses do séc. XVI? Antes de tudo, que os ingleses eram agressivos: eles não conheceram limites nem medidas, ante um povo que era católico, na tentativa de lhes extirpar a antiga religião. Eram permitidos todos os métodos de tortura e ataques contra igrejas. Nem a hierarquia da Igreja se respeitou, vide os bispos assassinados. Em segundo lugar, que todas as regiões do país, de norte a sul e de leste a oeste, foram atingidas. Enfim, que foi total o ataque contra a fé e a população da Irlanda. E a situação não melhorou com o passar dos anos. Apesar de tudo, o povo irlandês permaneceu católico e, tal qual aconteceu em outros países, a perseguição não extinguira a chama da fé mas ao contrário a alimentou.

 

Para quem queira aprofundar-se:

MURPHY S.J., Our Martyrs, Sealy, Bryers & Walker, 2010.

Myles O’REILLY B.A, Memorials of those who suffered for the catholic faith in Ireland in the 16th, 17th and 18th centuries, Burns, Oates & Co., 1868. 

 

Com a aprovação do autor - Tradução: Permanência

  1. 1. Para uma história geral da Irlanda consultar HAVERTY, Martin, The History of Ireland, Ancient and Modern, Dublin, 1860 e D’ALTON, Rev E. A., History of Ireland from the Earliest Times to the Present Day, 1907.
  2. 2. BRIDGEWATER John, Historia Ecclesiae Catholicae in Anglia adversus Calvino-papistas et Puritanos sub Elizabetha Regina 1583-1594
  3. 3. Vide MORAN, Cardinal Francis Patrick, History of the Catholic Archbishops of Dublin since the Reformation, Dublin, 1864, p. 23
  4. 4. MORAN, Cardinal Francis Patrick, Ibid, p 26
  5. 5. Vide MORAN, Cardinal Francis Patrick, Specilegium Ossoriense, Vol III, p. 41
  6. 6. BRUODIN, Rev. Pe. Anthony O.S.F., Propugnaculum Catholicae Veritas, Catalogus Martyrum Hibernorum pro defensione Catholicae fidei occisorum regnantibus Henrico VIII, Eduardo VI, Elizabetha, et Jacobo, Libraria Franciscana, Merchants Quaym Dublin, 1669, p. 454.
  7. 7. Bruodin, Rev. Pe. Anthony O.S.F., Ibid, p. 432.
  8. 8. Vide Rothe, David, Bispo de Ossory, Analecta Nova et Mira de Rebus Catholicorum in Hibernia pro fide et religione gestis., Colônia, 1616-1619, p. 423.
  9. 9. Roathe, David, Ibid, p. 465.

As mártires de Compiègne

O texto que se vai ler foi tirado do apêndice histórico da edição brasileira da obra de Gertrud von le Fort (A Última ao Cadafalso, trad. de Roberto Furquim, Quadrante, São Paulo, 1998), e tem por base o livro de Bruno de Jesus Maria, O.C.D, Le Sang du Carmel ou la véritable passion des seize carmelites de Compiègne, Plon, Paris, 1954 e o informe do Secretariatus pro monialibus, Curia Generalis O.C.D., As Bem-aventuradas mártires de Compiègne, Roma, S.d. As citações entre aspas, exceto quando é indicado o contrário, provêm dos manuscritos da Irmã Maria da Encarnação. 

 

Praça do Trono, 17 de Julho de 1794       

São cerca de oito horas da tarde. É verão e o céu ainda está claro. A multidão comprime-se em volta da guilhotina, erguida no centro da antiga Place du Thrône, atual Barrière de Vincennes. Junto dos degraus que conduzem ao cadafalso, o carrasco, Charles-Henri Sanson, espera respeitosamente de pé, flanqueado por dois ajudantes. Há quarenta anos vem prestando esse serviço ao governo, com inalterável resignação. O calor é opressivo, e em toda a praça reina um odor mefítico de sangue.

Vindos da cidade, despontam os carroções. Hoje são dois, e vêm bastante cheios: ao todo, serão quarenta vítimas. Recebem-nas as exclamações e ameaças habituais, mas o barulho logo se abafa em murmúrios de espanto. Acontece que, entre os condenados, se vêem diversas mulheres de capa branca: são as dezesseis carmelitas do convento de Compiègne. Ao contrário dos seus companheiros de infortúnio, não deixam pender a cabeça nem choram ou gritam; trazem o rosto erguido, e a linha firme do corpo é sublinhada pelas mãos amarradas às costas. E cantam: aos ouvidos de todos, ressoam as notas esquecidas da Salve Rainha em latim e do Te Deum. Até para o mais empedernido dos basbaques presentes, é um espetáculo inaudito.

Quando os carroções param ao pé do cadafalso, o burburinho faz-se silêncio absoluto. Até essas mulheres histéricas, as chamadas "fúrias da guilhotina", que sempre estão na primeira fila dos espectadores, emudecem.

As primeiras a descer são as carmelitas. Uma delas, a priora, Madre Teresa de Santo Agostinho, aproxima-se do carrasco e pede-lhe que lhes conceda uns minutos para poderem renovar os seus votos e que a deixe ser a última a sofrer a execução, para que possa animar cada uma das suas filhas até o fim. Sanson, alma delicada, concorda de bom grado.

Todas juntas, cantam o Veni Creator Spiritus. A seguir, renovam os seus votos religiosos. Enquanto rezam, uma voz de mulher sussurra na multidão: "Essas boas almas, vejam se não parecem anjos! Pela minha fé, se essas mulheres não forem diretas ao paraíso, é porque o paraíso não existe!"

A priora recua até a base da escada. Tem nas mãos uma estatueta de cerâmica da Virgem Maria com o Menino Jesus ao colo. A primeira a ser chamada, a mais jovem de todas, é a noviça Constança. Ajoelha-se diante da Madre e pede-lhe a benção. Segundo uma testemunha, ter-se-ia também acusado nesse momento de não haver terminado o ofício do dia. Com um sorriso a Madre diz-lhe: "Vai, minha filha, confiança! Acabarás de rezá-lo no Céu"... e dá-lhe a beijar a imagem.

Contança sobe rapidamente os degraus, entoando o salmo Laudate Dominum omnes gentes, "Louvai o Senhor, todos os povos". "Ia alegre, como se se dirigisse para uma festa". O carrasco e seus ajudantes, com gesto profissional, dispõem-na debaixo da guilhotina. Ouve-se o golpe surdo do contrapeso, o ruído seco da lâmina que cai, o baque da cabeça recolhida num saco de couro. Sem solução de continuidade, o corpo é lançado ao carroção funerário.

Uma por uma, as freiras ajoelham-se diante da priora e pedem-lhe a benção e permissão para morrer. Cantam o hino iniciado por Constança. Quando chega a vez da Irmã de Jesus Crucificado, que tem 78 anos, os jovens ajudantes do carrasco têm de descer para ajudá-la a vencer os degraus. Ela diz-lhes afavelmente: "Meus amigos, eu vos perdôo de todo o coração, tal como desejo que Deus me perdoe".

Só falta a Madre. Com gesto simples e firme, beija a estatuinha e confia-a à primeira pessoa que tem ao lado. Tem 41 anos, um rosto expressivo, nem muito bonito nem feio; o porte é, mais do que altivo, descontraído. Os olhos castanhos, sofridos mas irradiando bondade, procuram os do pe. Lamarche, que as confessara no dia anterior na prisão e que se encontra entre a multidão. Como quem tem pressa em concluir uma tarefa urgente, sobe por sua vez os degraus.

Agora tudo terminou. Pode-se cortar o silêncio como se fosse um queijo. Muitos dos assistentes choram baixinho. Anos mais tarde, encontrar-se-ão — registrados em cartas pessoais, diários íntimos e memoriais — os ecos da emoção que experimentaram e dos efeitos que ela lhes causou: muitos sentiram a necessidade de mudar de vida, de retomar a prática dos sacramentos, um ou outro de ingressar num convento... Um deles, um menino que presenciara a cena das janelas de um prédio situado em frente da guilhotina, guardou dela uma impressão tão profunda que, anos mais tarde, quando fazia o serviço militar, carregava sempre consigo as obras de Santa Teresa de Ávila e acabou por fazer-se sacerdote. "O amor vence sempre", costumava dizer a Madre priora; "o amor vence tudo".

Os corpos foram levados às pressas para o antigo convento dos agostinianos do Faubourg de Picpus. Lá foram lançados na fossa comum e cobertos de cal viva. Hoje há ali um gramado cercado de ciprestes, com uma simples cruz de ferro. É um lugar de silêncio e oração.

[...]

Céu de Chumbo [4 anos antes]

A 13 de fevereiro de 1790, a Assembléia suprimia, de uma penada, todas as Congregações religiosas que não estivessem dedicadas ao ensino e aos hospitais. É curioso ler, nas atas das sessões anteriores, os grandes argumentos em defesa dessa medida: os religiosos contemplativos já não exerciam, segundo os deputados, nenhuma função útil, uma vez que "as terras de cultivo já tinham sido desbravadas (!) e os pobres constituíam uma dívida pública que cabia à sociedade inteira resgatar". Por que então roubar à agricultura e à indústria, à economia nacional, todos esses braços que poderiam ser tão úteis se não tivessem permanentemente as mãos postas para orar? Nada mais lógico, pois, do que descartar dessas Ordens e atribuir aos seus membros alguma ocupação "proveitosa".

Evidentemente, as resoluções tomadas em Paris tardavam algum tempo a ser postas em prática na província. Assim, as carmelitas puderam ainda desfrutar de quase seis meses sem serem perturbadas. A secularização dos bens do clero estava já em pleno andamento, e fazia uns quinze dias que tinham tido a dolorosa notícia de que fora aprovada a Constituição Civil do Clero, quando os membros do Diretório local de Compiègne se apresentaram no convento, no dia 4 de agosto, de papel e pena na mão, a fim de fazer o inventário do mobiliário, títulos e papéis. Tudo parece ter corrido sem maiores incidentes; as relações ainda eram cordiais, uma vez que todos no vilarejo conheciam e queriam bem às carmelitas. Terminado o levantamento, o Diretório encarregou oficialmente as "cidadãs" residentes no convento, agora pertencente à municipalidade, de administrarem esses bens em nome do poder público.

No dia 5, porém, voltaram à carga, desta vez para perguntar a cada uma as religiosas se preferia permanecer ou abandonar o convento. Tratava-se ainda de uma dessas tarefas burocráticas desagradáveis, mas de que, enfim, era preciso desincumbir-se. O notário escrevinhava ansiosamente enquanto as religiosas compareciam uma por uma diante dos membros do Diretório para registrarem a sua resposta.

O inventário dessas declarações, unânimes na sua completa fidelidade, é todo um testemunho. A anciã Irmã de Jesus Crucificado afirmou que, "carmelita há cinqüenta e seis anos, a única coisa que quereria, por tudo no mundo, seria dispor ainda do mesmo número de anos para consagrá-los ao Senhor"; a Irmã Eufrásia, beligerante, exprimiu "a firme decisão de conservar o seu hábito, mesmo que tivesse de conquistar essa felicidade ao preço do seu sangue"; a Madre Croissy declarou com nobreza que "assumira os seus compromissos para a vida inteira, e era com pressa que agarrava essa ocasião de renová-los"; a analfabeta Irmã São Francisco Xavier respondeu belamente que "uma esposa bem-nascida permanece unida ao seu esposo, e nada neste mundo seria capaz de fazê-la abandonar o seu divino esposo, Nosso Senhor Jesus Cristo"; e assim, todas e cada uma.

No entanto, e não há nada mais natural, um certo nervosismo tomou conta da comunidade. "Coragem, animava-as a priora, nada de temores pusilânimes, que seriam uma ofensa ao poder e à bondade de um Pai em cujo seio devemos lançar-nos com a mais terna e a mais firme confiança".

Em nome de todos os Carmelos franceses, a priora do mosteiro de Grenelle enviou por esses dias um Memorial à Assembléia Nacional, assinado também pelas prioras dos outros três Carmelos de Paris. "As riquezas das Carmelitas", diz o texto, "nunca foram objeto de cobiça. A nossa fortuna consiste nessa pobreza evangélica que, mesmo depois de quitadas todas as dívidas para com a sociedade, ainda assim encontra meios para ajudar os necessitados e socorrer a pátria e em todas as circunstâncias nos torna felizes com as privações que passamos. A liberdade mais completa preside aos nossos votos; a igualdade mais perfeita reina nas nossas casas; entre nós, não há ricas nem nobres [...]. No mundo, comprazem-se em publicar que os mosteiros só encerram vítimas que se vão consumindo lentamente pelos seus sofrimentos; mas nós declaramos diante de Deus que, se há na terra autêntica felicidade, nós desfrutamos dela [...]. Depois de terdes proclamado com tanta solenidade que o homem é livre, querereis obrigar-nos a pensar que já não o somos?"

Mas essas palavras, belas e nobres, caíam em ouvidos ensurdecidos pela algazarra da rua e dos debates parlamentares. Os representantes da Liberdade continuarão a apertar, volta sobre volta, o torniquete com que pretendiam estrangular aqueles que cometiam o horroroso crime de orar e de oferecer-se em sacrifício por eles. "Ó Liberdade, quantos crimes se cometem agora em teu nome!", teria suspirado Mme. Roland — aliás em parte "eminência parda" na elaboração dessas leis — quando a corraça que a levava à guilhotina passou diante de uma estátua da "deusa".

No dia 11 de Janeiro de 1791, os oficiais municipais voltaram a apresentar-se no convento para acompanhar e supervisionar as eleições da priora e da ecônoma; "Mme Lidoine" — já não era politicamente correto usar o nome de religiosa, Madre Teresa de Santo Agostinho — foi reeleita por unanimidade e "Mme. Croissy", Madre Henriqueta de Jesus, foi eleita ecônoma. A seguir, fixaram-lhes uma pensão no valor de 7425 libras anuais, aproximadamente meio salário mínimo por cabeça.

No mês seguinte, começaram os preparativos para a instalação local da Igreja constitucional. O bispo de Beauvais, diocese a que pertencia Compiègne, foi obrigado a retirar-se; tratava-se do ancião mons. de Rochefoucauld, homem de grande santidade, que em setembro deste ano estaria entre os Mártires do Carmo de Paris, por puro ódio à santidade, pois já não exercia qualquer função pastoral. Substituiu-o o antigo pároco de Cergy, Jean-Baptiste Massieu, eleito bispo constitucional.

Passou-se mais de um ano em angustiosa expectativa, sob um aguaceiro contínuo de más notícias que não cessavam de piorar. "O bispo [juramentado] é o maior objeto das nossas angústias; não temos intenção de reconhecê-lo. Cada dia nos traz uma calamidade nova; estamos, como a senhora, oprimidas sob o peso da cruz e da dor" [Carta de uma religiosa de Sentis à Madre Teresa de Santo Agostinho]. O breve com que o Papa condenou a Constituição Civil foi muito mal recebido em Paris. Por toda a parte, só se ouvia falar de desordens, tumultos, violências contra os católicos fiéis.

Sob um céu carregado, sem perspectivas de melhora, as carmelitas de Compiègne esmeravam-se na sua vida de entrega e sacrifício. Ofereciam as suas penitências, a Missa, a oração. O pe. Courouble, que se recusou a prestar o juramento, continuava ainda a atendê-las regularmente com a maior discrição possível.

 

O Sacrifício

 Na Páscoa de 1792, enquanto lêem no recreio umas crônicas antigas do convento, deparam com o relato de um sonho que tivera uma antiga freira, falecida lá pelos idos de 1720. Contava ela que, nesse sonho, vira a comunidade inteira subir ao Céu: "Vi a glória que as religiosas deste convento terão ali. E vi também o Cordeiro de Deus imolado pelos pecados do mundo; os seus olhos dirigiam-se para nós cheios de ternura". Durante algum tempo, este passa a ser o tema mais freqüente das suas conversas. Teria Deus preparado para elas a glória do martírio? Que alegria se pudessem ir todas juntas para o Céu!

Nessa época, a priora sofre pesadamente com as responsabilidades que o seu cargo lhe impõe em circunstâncias tão dolorosas. Que fazer? Que decisão tomas? A sua saúde ressente-se. No entanto, se chegar a vergar sob o peso, não quebra. Ainda encontra energias suficientes no seu interior para compor uns versos que refletem bem a sua disposição combativa.

 

Ici-bas notre partage

Est la croix, l'adversité,

Mais elles nous sont le gage

D'une hereuse eternité [...]

Armons-nous donc de courage

Comme de braves soldats

Le grand Roi qui nous engage

A bravé bien de combats. [...]

Aqui em baixo, a nossa parte

É a cruz, a adversidade

Mas são elas o penhor

Da feliz eternidade [...]

Armemo-nos pois de coragem

Como bravos soldados.

O grande Rei que nos recruta

Já enfrentou muitos combates...

 

Nessa época, um sacerdote cujo nome desconhecemos — porque já era demasiado perigoso assinar as cartas — toma a seu cargo a direção espiritual da comunidade. Alguns supõe tratar-se do pe. Lamarche, que acompanhará as carmelitas até ao pé do cadafalso. Seja como for, é um homem de intensa vida interior, que conduz a priora e as suas filhas pelo caminho do abandono nas mãos de Deus: "Consolai-vos, minha filha, consolai-vos: é o próprio Pai das misericórdias quem usa desta linguagem para convosco; já não tenhais medo, amai-O acima de todas as outras coisas, entregai o vosso coração ao Deus que o inflama [...] Nunca mais essa tristeza que abate, nunca mais esse medo que enfraquece, numa mais essas dúvidas, essas ansiedades que esgotam; Amor divino, só Vós, sim, só Vós sereis o grande, o único objeto dos meus desejos" [carta do diretor desconhecido à priora, 11/05/1792]

Mas a triste situação da Igreja e da Nação pesam sobre a Madre. "Ó minhas irmãs em Cristo!", exclama ela diante de todas, "ajudai-me a pedir esta graça ao Senhor. É com este fim que Ele nos reuniu aqui, esta é a nossa vocação, esta a nossa tarefa": expiar o pecado que domina o mundo, abrir essas trevas à graça de Deus. Por fim, entre junho e agosto de 1792, a priora conta às irmãs que "ao fazer a sua meditação, tinha-lhe vindo ao pensamento fazer um ato de consagração mediante o qual a comunidade se ofereceria em holocausto para aplacar a cólera divina, e para que fosse concedida à Igreja e ao Estado essa paz que o seu Filho amado tinha vindo trazer ao mundo". Quando lhes lê essas palavras, todas concordam e prometem unir-se a ela.

Apenas as duas mais velhas, a Irmã de Jesus Crucificado e a Irmã Carlota da Ressurreição, ambas com 76 anos na ocasião, não conseguem deixar de exprimir o horror que experimentam ante a idéia de terminarem os seus dias na guilhotina. "Minhas queridas irmãs", responde-lhes a priora, "não pretendo impor-vos a obrigação de pronunciar este ato, e crede que teria evitado até falar-vos dele se tivesse previsto o efeito que a sua leitura produziria em vós. Meu pensamento dirigia-se inteiramente para os motivos que levaram a nossa santa Madre (Teresa de Jesus) a fundar a sua Reforma: fazer cessar os males que afligiam a Igreja e o Estado do reino de França. Se esta Santa teve tanto zelo em orar por uma pátria que não era a sua, com quanto maior razão não devemos fazê-lo nós, tratando-se do nosso próprio reino?" As duas retiram-se para a cela, de onde não voltam a sair durante todo aquele dia; mas à noite vêm procurar a Madre, comovidas e humilhadas, e pedem-lhe que lhes permita reparar o "escândalo" que causaram e tomar parte também nesse ato de consagração.

A inspiração da priora era quase profética: poucos dias depois, a 2 de setembro, inicia-se o período negro dos massacres e perseguições, enquanto saraivam os decretos raivosos da Assembléia. Suprimem-se também as Ordens dedicadas ao ensino e aos hospitais, e, diante disso, as autoridades de Compiègne fariam má figura se continuassem a tolerar por mais tempo um convento de freiras contemplativas. O Comitê de Vigilância Revolucionária local vem avisá-las de que terão de deixar a clausura.

No dia 14 de setembro, festa da Exaltação da Santa Cruz, as religiosas deixam o convento, vestidas de roupas civis. Distribuem-se em quatro grupos, acolhidos em casas de família relativamente próximas umas das outras, no bairro de Saint-Antoine. Antes de despedir-se, comentam entre si "que o Senhor, por meio desse sacrifício que lhes exigia ou permitia nessa data, haveria de enriquecê-las com uma porção mais forte de sua Cruz".

Mas as vexações não param por aí. Exige-se delas que prestem o novo juramento de fidelidade à Revolução, chamado de "liberde, igualdade": "Juro que serei fiel à Nação e manterei a liberdade, a igualdade ou morrerei em sua defesa". Embora lhes repugnasse mais pelo contexto do que pela fórmula, submetem-se a essa imposição a conselho do superior, o pe. Rigaud. Durante o seu processo em Paris, o promotor público Fouquier-Tinville acusá-la-ia de não o terem prestado. O mais provável é que, ao tomarem conhecimento de que a Sagrada Congregação encarregada dos assuntos franceses tinha considerado ilícito também esse juramento, a 1o. de abril de 1794, elas se tenham retratado publicamente; Maria da Encarnaçào afirma ter visto, em 1795, o texto da retratação com as assinaturas das freiras.

É impressionante observar que, nessas circunstâncias em que teriam todos os motivos para ceder ao desânimo, essas mulheres souberam manter-se fiéis à Regra da sua Ordem. Como as casas eram próximas e costumava haver, nos vilarejos, portas de comunicação entre os jardins, podiam reunir-se de tempos a tempos sem dar muito nas vistas. "O profundo consenso que havia entre todas as irmãs fazia com que nenhuma delas se desviasse das suas obrigações; podia-se dizer que praticavam a obediência com toda a exatidão do convento".

A Madre Teresa de Santo Agostinho levou consigo as duas freiras mais velhas, a Irmã conversa Santa Marta, adoentada, e a mais velha das duas porteiras, Therèse Soiron. A fim de preparar e fortalecer as suas filhas, pedia-lhes com muito tato que rezassem todos os dias o oferecimento de suas vidas que ela lhes tinha posto por escrito. Era cada vez mais difícil conseguir quem lhes celebrasse a Santa Missa, pois em novembro o capelão, o pe. Courouble, foi denunciado como contestatário por dez "cidadãos ativos" da cidade e condenado ao exílio, na Bélgica. Mas elas mantiveram absoluta regularidade na recitação do Ofício e nas horas de oração.

"Não estamos nem em tempo nem em lugar de satisfações -- escrevia a priora à Irmã Teresa do Coração de Maria, que se encontrava em um dos outros grupos; renunciar a elas para sempre e não ater-nos senão à ajuda caritativa do próximo por amor a Deus, a quem devemos sempre ver em tudo, este deve ser o nosso exercício diário [...] Bendigo de todo o coração a resoluçào que tomamos de pôr mais ordem no nosso horário, do qual tivemos necessariamente de afastar-nos nestes últimos tempos, e certamente sem que isso desgostasse Aquele cujos desígnios sempre adoráveis e santos permitiram as tristes circunstâncias que levaram a esta desordem. [...] Na medida do possível, renovemos pois o recolhimento, a oração, o silêncio nas mesmas horas em que costumávamos observá-los, e igualmente as leituras (do Ofício divino). Muitas pessoas não duvidam de que continuamos a observar esses exercícios, e comovem-me os cuidados que têm para não nos perturbarem [...] Façamos, pois, tudo o que é possível, enquanto pudermos e sem o menor escrúpulo, já que a nossa situação atual comporta exceções que um coração reto deve reconhecer, mas das quais um coração fiel não abusa. [...] No coração de Jesus encontrareis o de uma terna mãe" [Carta da priora à Irmã Teresa do Coração de Maria, 1/10/1792]

Foram vinte e um meses desse "petit-martyre", desse "pequeno martírio" oculto. Esperar por uma ameaça que não se sabe bem qual será, sem prazos nem esperanças de alívio, numa situação de provisoriedade que se prolonga indefinidamente... não é pequena tortura. Em contrapartida, contavam com a fidelidade de muitos católicos, e os membros da confraria do escapulário do Carmo visitavam-nas com freqüência.

Enquanto isso, as autoridades de Compiègne dançavam segundo a música de Paris, estimuladas pela presença de dois "representantes do povo em missão", membros da Convenção, Em Paris caçavam-se os "fanáticos"? Pois, em Compiègne, também o fariam! O clube jacobino, transformado em Sociedade dos Amigos da República e presidido por um certo Bertrand Quinquet, elaborará zelosamente uma lista de 64 suspeitos e os deixará à disposição de 36 "cidadãos patriotas". Em Paris fechavam-se as igrejas e celebrava-se o culto da Razão? Compiègne não lhe ficaria atrás! A 16 de maio, o Comitê diretivo local pode permitir-se um ufano relatório das suas atividades descristianizadoras, adornado com as mais belas flores da retórica revolucionária-burocrático-servil-aduladora:

"Cidadãos representantes [...] vós vos queixais de que o fanatismo se agita nesta comuna, e exigis de nós uma prestação de conts das medidas que tomamos para reprimir a audácia daqueles que, sob pretexto da liberdade de Cultos, teriam ousado fomentar agitações e estimular movimentos.

"Eis as contas que podemos prestar-vos, e estas contas são sinceras e verdadeiras. Fundadas nos fatos, elas vos provarão que Compiègne não deve ser confundida com certas comunas dos arredores, que ainda não estão à altura dos princípios revolucionários.

"Desde o mês de vendimiário (setembro-outubro de 1793), os fanáticos desta comuna foram presos e recluídos.

"No começo de brumário (meados de outubro), as ex-igrejas foram fechadas e todas as futilidades do fanatismo queimadas.

"Durante esse mesmo mês, o templo principal da localidade foi solenemente dedicado à Razão.

"Desde então, em todos os décadis (décimos dias), ao som do sino da Casa Comunal, os cidadãos reúnem-se nesse templo e a li escutam com satisfação discursos de moral, sermões patrióticos, a leitura dos decretos etc etc [...]

"Aqui, Cidadãos representantes, o fanatismo foi esmagado, triturado, aniquilado. Cortamos a última cabeça desta temível desordem e não permitiremos que esse monstro abominável renasça das cinzas [...] Viva a República: Viva a Convenção: Viva a Montanha!".

Infelizmente, a vigilante Sociedade dos Amigos da República não parece ter compartilhado as opiniões da administração. Num informe datado de pouco antes, do dia "3 de floreal do ano II" (22 de abril de 1794), Bertrand Quinquet queixava-se diretamente ao Comitê Geral de Segurança de Paris: "Os dias chamados de páscoa no estilo fanático são os do furor da superstição [...] Com viva dor, sou obrigado a informá-los de que, nestes dois últimos décadis (20 dias), a chama da Razão se apaga e a lâmpada da superstição se reanima. Não tenho senão a voz da representação, e faltam-me os meios repressivos; se não me ajudardes com as vossas ordens, o espírito público evaporar-se-á pouco a pouco".

 

"Marchemos para a Conquista"

Em junho de 1794, com a suspensão de todas as garantias individuais previstas na Constituição, o Terror chegou ao seu paroxismo. Em Compiègne, o Comitê, inquieto e precisando urgentemente "mostrar serviço", lembrou-se de que havia nos seus arquivos uma denúncia contra as carmelitas porque "continuavam a viver em comunidade; mantinham-se ainda submetidas ao regime fanático do seu claustro; podia haver entre elas e os fanáticos de Paris uma correspondência criminosa; e suspeitava-se que celebravam entre elas reuniões dirigidas pelo fanatismo". Bem a tempo!

Em março de 1794, a Irmã Maria da Encarnação viajara a Paris. Na sexta-feira, 13 de junho, a instâncias do Pe. Rigaud, também a Madre priora teve de dirigir-se à capital para visitar a sua mãe, já anciã, que tinha enviuvado tempos atrás e precisava da assinatura da filha para liquidar a sucessão do marido. Ao voltar de diligência para Compiègne, no entardecer do dia 21 de junho, foi recebida por algumas das suas filhas, que a informaram de que naquele mesmo dia o Comitê viera revistar as casas em que moravam e estava apreendendo tudo o que encontrava.

No dia seguinte, continuou a busca e apreensão. Encontrou-se em poder das irmãs amplo material "subversivo", que seria exaustivamente listado na infinita papelada burocrática em que se envolveu este episódio burlesco e sangrento. À tarde, as religiosas receberam voz de prisão e foram levadas ao antigo convento da Visitação de Santa Maria. Na ala vizinha, estavam presas as beneditinas inglesas de Cambrai, detidas desde outubro de 1793 por serem estrangeirais; estas freiras contribuiriam mais tarde para difundir a fama de santidade das carmelitas.

O cativeiro foi duríssimo: um pouco de pão tresamanhecido, impossível de comer, e de água em péssimas condições para as que estavam doentes, como a Irmã Carlota e a Madre Henriqueta. Uma ex-meretriz cuidava delas mediante pagamento. Foram mantidas incomunicadas, e a abadessa das beneditinas só pôde trocar umas poucas palavras com as carmelitas em duas ocasiões durante esse período, que durou pouco menos de três semanas.

Já no terceiro dia (25), o Comitê de Vigilância enviou a Paris o expediente em que as irmãs eram acusadas de atividades contra-revolucionárias. Acrescentaram também uma carta ao Comitê de Salvação Pública: "Fazia já muito tempo que suspeitávamos que as antigas religiosas carmelitas desta comuna, embora alojadas em diversas casas, ainda viviam em comunidade, submetidas às regras do seu antigo convento. As nossas suspeitas não foram vãs, pois, no decorrer de diversas visitas rigorosas que lhes foram feitas, descobrimos uma correspondência a mais criminosa possível. Não somente impediam o progresso do espírito público, recebendo nas suas casas pessoas que admitiam numa confraria chamada do escapulário (do Carmo), mas ainda continuavam a desejar, elas próprias, a contra-revolução. [...] Podereis julgar vós mesmos a partir dos documentos que vos enviamos".

e segue a lista do corpus delicti: um retrato do "tirano" (era uma dessas imagens impressas em série do rei, já decapitado a essas alturas, e representado na forma tradicional, debaixo do Espírito Santo e entre os corações de Jesus e de Maria), inúmeras cartas que "transpiravam fanatismo" (a familiares e parentes, e sobretudo as do diretor espiritual), e, horror dos horrores!, uns versinhos sarcásticos em que se dizia que "o frio acabará por comer os insetos e toda a espécie de jacobinos" [*]... Eis tudo.

No dia 10 de julho, o Comitê Geral de Segurança de Paris mandou que se enviassem as carmelitas, "culpadas e acusadas de cumplicidade diante do tribunal revolucionário", à Conciergerie de Paris, a parte medieval do antigo Palácio de Justiça, que servia de prisão. No dia 12, três membros do Comitê de Compiègne apresentaram-se na Visitação, intimando-as a partir imediatamente. Como as carretas destinadas ao transporte já tinham chegado, não lhes permitiram nem tomar uma refeição nem lavar as suas roupas, e aparentemente foi nesse momento que voltaram a vestir os seus hábitos religiosos ou, pelo menos, as capas brancas. Enquanto subiam, com as mãos amarradas às costas, "um grande número de mulheres, a quem a comunidade tinha ajudado de mil maneiras, as insultava, agitando os braços e gritando: "Está muito bem! Acabem com elas, com essas bocas inúteis! Bravo, muito bem!".

O cortejo, escoltado por um gendarme e dez dragões da cavalaria, só se deteve em Senlis, no meio da noite, para troca de cavalos e rendição da guarda. Chegaram a Paris no domingo, 13 de julho, por volta das três ou quatro da tarde. No pátio da Conciergerie, fizeram-nas descer aos empurrões, pois continuavam a ter as mãos atadas. A Irmã Carlota da Ressurreição que, aos seus 78 anos, só podia andar de muletas, foi simplesmente lançada para fora da carroça. Depois de uns minutos de imobilidade, conseguiu levantar-se, som o rosto todo ensangüentado, e disse aos guardas: "Creiam-me, não lhes guardo rancor por isso. pelo contrário, agradeço-lhes que não me tenham matado, porque se tivesse morrido às vossas mãos, não teria a dita e a glória de chegar ao martírio".

"A Conciergerie não se assemelhava em nada às restantes prisões de Paris", escreve o historiador Gustave Lenôtre. "Ali não se vive, apenas se passa. Ali se desafiam os juízes, os verdugos, a morte; já nada intimida. É um tumulto contínuo, um estado febril, uma agitação perpétua; os recém-chegados cruzam-se, nos corredores, com os que saem para o cadafalso.

"No setor das mulheres, há mais calma, mas nem por isso se deixa de rondar a morte. O local é infecto; um labirinto de corredores tortuosos; uma grade sólida a cada vinte passos; escadas de pedra subindo em caracol por entre a espessura das paredes; abóbadas em ogiva; e, por todo o lado, camas, enxergões de palha lançados sobre as pedras. Nada de refeitório: apenas umas mesas toscas aqui e ali".

Foi nesse "depósito de cadáveres" que as carmelitas passaram quatro dias à espera do julgamento. Um companheiro de prisão, o católico Blot, que exercia diversos pequenos ofícios e por isso dispunha de uma certa liberdade de ir e vir dentro do prédio, conta que as ouvia rezar os ofícios todas as noites, por volta das duas da manhã. Foi ele também que conseguiu passar um pedaço de papel e um pouco de carvão à irmã Luísa de Jesus, na véspera da festa de Nossa Senhora do Carmo. A religiosa usou-os para escrever um comovente plágio da Marselhesa, hino da revolução:

  

Entreguemo-nos à alegria

que o dia da glória chegou.

Longe de nós toda a covardia

ao vermos o estandarte que chegou.

Preparemo-nos para a vitória,

marchemos todas para a conquista

sob as bandeiras de um Deus moribundo...

 

No dia 17 de julho, às nove da manhã, foram conduzidas à Sala da Liberdade, onde deviam ser julgadas juntamente com outros 19 acusados de diversas procedências. O Tribunal Revolucionário compunha-se de três juízes e nove jurados. O promotor público, significativamente chamado "acusador", era Fouquier-Tinville, célebre pela sua eficiência em obter condenações à morte, pois atuava em diversos processos simultâneos nas Salas da Liberdade e da Igualdade. Quando chegasse o momento de as acusadas se defenderem, Tinville se ausentaria para a sala ao lado: afinal de contas, tudo não passava mesmo de uma simples pantomima. A ata da acusação e da condenação eram pré-impressas, e o escrivão não costumava dar-se a grandes trabalhos para corrigir o que lá constava; aliás, não se ouviu nenhuma testemunha nem nenhum advogado. Em suma, é como diz o provérbio: "A hipocrisia é o tributo que o vício presta à virtude".

"Comenta-se — escreve a Irmã Maria da Encarnação — que quando as nossas madres foram introduzidas no Tribunal, a Irmã Maria Henriqueta (da Providência) Pelras, ao ouvir que o acusador público lhes chamava de fanáticas, disse-lhe: "Poderia dizer-nos, cidadão, que entendeis por essa palavra, fanático?" O promotor, irritado, respondeu-lhe com uma torrente de insultos. A nossa irmã, nem um pouco desconcertada, disse-lhe num tom digno e firme: "Cidadão, é vosso dever responder e dizer-nos o que entendeis pela palavra fanático". "Entendo por essa palavra — respondeu Fouquier-Tinville — o vosso apego a crenças pueris, às vossas sórdidas práticas religiosas". A Irmã Henriqueta, depois de lhe ter agradecido, voltou-se para a Madre priora: "Minha querida Madre e minhas irmãs, acabais de ouvir o acusador. Felicitemo-nos, alegremo-nos com a alegria do Senhor por morrermos pela causa da nossa santa religião, da nossa fé, da nossa confiança na santa Igreja Católica e Romana".

O longo e tedioso libelo de acusação repetia o que já conhecemos. Terminava assim: "Quanto às ex-religiosas carmelitas Lidoine, Touret etc., constituem tão somente um conjunto de rebeldes sediciosas, que alimentam nos seus corações o desejo e a esperança criminosas de ver o povo francês posto novamente a ferros sob o jugo dos seus tiranos e submetido à escravidão dos padres sanguinários e impostores."

Pelo visto, o regime da liberdade de consciência não tolerava nem "desejos" nem "esperanças", mesmo que fossem apenas "alimentadas nos corações".

Passou-se à "defesa", isto é, ao interrogatório das acusadas pelo presidente do Tribunal Revolucionário. A líder das "rebeldes sediciosas sedentas de sangue" ainda procurou assumir sozinha a responsabilidade por todos os pontos de que eram acusadas e livrar as suas irmãs.

— Sois acusadas de ter escondido no vosso convento armas para os emigrados — disparou o presidente do tribunal.

A priora tirou um crucifixo que trazia sobre o peito:

— Estas são as únicas armas que tivemos na nossa casa, e nunca poderei provar que tenhamos tido outras.

— Mantivestes correspondência com os emigrados e fazíeis chegar-lhes dinheiro.

— As cartas que recebemos eram do capelão da nossa casa, condenado pelas vossas leis à deportação. Essas cartas não contêm senão conselhos espirituais. Além disso, se essas cartas constituem um delito para vós, esse delito recai unicamente sobre mim, e de forma nenhuma sobre a comunidade, à qual a nossa Regra proíbe qualquer tipo de correspondência, mesmo com os parentes mais próximos, sem permissão da superiora. Sou, portanto, a única a quem deveis aplicar a pena: as minhas irmãs são inocentes.

— Elas são tuas cúmplices.

— Se elas são minhas cúmplices, de que podeis acusar as nossas duas porteiras?

— De que? Não são elas mandadas tuas para levar as cartas ao correio?

— Mas, se elas ignoravam o conteúdo das cartas e não sabiam para onde eram enviadas? Além do mais, a sua condição de assalariadas obrigava-as a fazer o que lhe mandavam.

— Cala-te!d Era dever delas prevenir a Nação.

E assim por diante. Finalmente, o júri delibera durante uns minutos e manda ler a ata de condenação:

"Estão convictas de se terem feito Inimigas do Povo e de terem conspirado contra a sua soberania, a saber: [após os nomes de cinco outras pessoas, com os motivos de condenação, enumeram-se os das religiosas:] as senhoritas Croisy, Trézelle, Hanisset, Lidoine, Pellerat, Thouret, Piedcourt, Brideau, Brard, Chrétien, Dufou, Roussel, Vézotal, Meunier, Catherine Soiron, Therèse Soiron [**], todas religiosas carmelitas, por realizarem reuniões e conciliábulos contra-revolucionários, manterem correspondências fana'ticas, conservarem escritos liberticidas; [seguem-se os nomes de outros nove condenados]. O Tribunal, depois de ter ouvido o Acusador Público no que diz respeito à aplicação da lei, condena à pena de morte todos os acima mencionados. [...] Esta sentença será executada no prazo de vinte e quatro horas na praça pública desta cidade, chamada Barrière de Vincennes".

Eram 17 horas. A terrível pressão de um dia inteiro passado sob tensão, as esperas intermináveis em corredores e ante-salas, o calor abafado e opressivo, sem um momento para tomar alguma coisa, tudo isso pareceu cair-lhes das costas, substituído pela cristalina certeza das decisões definitivas. As dezesseis — conta Maria da Encarnação — escutaram a leitura da sentença "com serenidade e alegria nos seus corações". Somente Therèse Soiron teve um desfalecimento, e a Madre pediu um copo de água para reanimá-la.

A Madre — mãe — lembrou-se de vender a um dos carcereiros um velho abrigo de uma delas e, com esse dinheiro, conseguiu que trouxessem uma chicara de chocolate quente para cada uma.

Despediram-se do seu amigo Blot "com os rostos radiantes de alegria". Ao ver que chorava, disseram-lhe: "Que vos acontece, querido senhor, para chorardes assim? Deveríeis antes sentir-vos feliz por ver-nos chegar ao termo dos nossos males. Rezai muito por nós ao Senhor e à Santíssima Virgem, para que Eles se dignem assistir-nos nestes últimos momentos da nossa vida; e nós prometemos orar por vós assim que tivermos a alegria de chegar ao céu."

Num canto do pátio, a Madre cuida de preparar as suas irmãs para a guilhotina, não seja que os carrascos tenham de fazê-lo: tira-lhes a touca que cobre a cabeça, deixando o pescoço exposto, e puxa-lhes as vestes para trás. Blot ainda insiste em abraçá-las uma por uma enquanto sobem, com as mãos atadas às costas, às duas carretas que devem conduzi-las a Vincennes, junto com os outros 24 condenados nesse dia. Por volta das dezoito horas, os carroções saem com grande estrépito pelos portões do pátio, rumo à Praça do Trono.

 

   

 [*] "Le froid mangera les insectes, des jacobins toutes les sectes", etc. Esses versos estavam incluídos numa carta dirigida à Irmã Eufrásia por um certo Mulot de la Menardière, um tipo originalíssimo que participara inicialmente de umas manifestações anticatólicas, mas acabara por converter-se. Suspeito de ser um sacerdote refratário, foi processado e executado junto com as carmelitas. No início, revoltou-se contra Deus, mas, já no carroção que os conduzia a todos a Paris, a priora Lidoine acalmou-o e preparou-o para bem morrer.

 

[**] Como se vê, vários nomes estão errados por faltas ortográficas do notário.

O Genocídio da Armênia

 

Às portas do século XX, o mundo viu renascer as hostilidades do islamismo contra a religião e a civilização cristã. Por ocasião da Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano lançou-se furioso contra a população da Armênia, num episódio hoje largamente considerado como Genocídio, o primeiro do século XX. Deportações, destruições de igrejas, conversões forçadas ao islamismo e o sistemático massacre de homens, mulheres e crianças, foram marcas do holocausto armênio, cujo número de vítimas se estima em mais de um milhão.

O dominicano Jacques Rhétoré, missionário, vivia em Mossul, atual Iraque, quando foi deportado para a província de Mardin, na Armênia. Lá, em companhia de outros religiosos, testemunhou a coragem e a paciência de um povo perseguido por sua fé.

O texto a seguir é um capítulo do seu livro de memórias “Les Chrétiens Aux Bêtes”, Les Éditions Du Cerf, 2005.  

 

Revista Permanência nº 265

Março 14, 2012 escrito por Dom Lourenço

Depois do grande sucesso do número de relançamento (264)
está chegando o número da Quaresma (265)

 

São 180 páginas. Elas vem recheadas de muitos artigos importantes, seguindo as pegadas deixadas pela irmã mais velha.

Como nossos leitores já sabem, dividimos os quatro números anuais por quatro tempos litúrgicos. Após o número de Natal, que trazia o selo azul, lançamos agora o número da Quaresma, com o selo roxo, mas que na verdade abrange também a Páscoa, visto corresponder aos meses de abril-maio-junho.

Continuando a denúncia das perseguições contra os católicos, apresentamos agora um artigo do americano Robert Spencer sobre a atual perseguição religiosa no mundo islâmico. O sangue católico continua a regar o solo da terra.

Em meu artigo Por que a Rússia? procuro, a partir da impressionante história da Rússia católica, novas razões para a escolha de Nossa Senhora em consagrar a Rússia ao seu Imaculado Coração, .

Garrigou-Lagrange é novamente nosso convidado para uma aula de teologia, em O Dever da Reparação. Aliás, a rubrica Espiritualidade é a mais rica desse número, tendo ainda a primeira parte do trabalho do Pe. José Maria Mestre, do Seminário da Fraternidade S. Pio X na Argentina, sobre o Sermão da Última Ceia. São Leonardo de Porto Maurício nos apresenta uma profunda meditação para a Via Sacra. Santo Tomás de Aquino continua seus comentários sobre os salmos, dessa vez com o impressionante Salmo 2, que fala sobre as nações que abandonam a Nosso Senhor.

Damos as boas vindas ao Pe. Luiz Cláudio Camargo, Prior da Fraternidade São Pio X em Santa Maria, RS, ele que é uma vocação sacerdotal saída da nossa Permanência. O seu artigo Media Vita dá o tom da espiritualidade de penitência do tempo quaresmal.

Não podemos deixar de assinalar o artigo Lições de Abismo, de Gustavo Corção, onde o nosso fundador analisa de modo apaixonado e lírico as forças interiores que o levaram a escrever seu premiado romance. Trata-se de uma página maior da literatura brasileira que oferecemos aos nossos leitores.

Outra prata da casa aparece na reedição do artigo de Antônio Hernandez, que nos honrou com sua amizade e com seus altos conhecimentos de música, até sua morte em 1997. Ainda falaremos mais desse extraordinário crítico musical.

E nosso número fecha com duas recensões: A Ilusão Liberal, do grande Louis Veuillot, editado pela própria Permanência, e Sete Mentiras sobre a Igreja Católica, de Diane Moczar, que marca o lançamento de uma nova editora católica no Brasil: a Editorial Castela, fundada pelo nosso colaborador Gabriel Galeffi Barreiro.

Eis-nos reunidos novamente. Temos diante de nós três meses de ricas leituras, isso sem contar a surpresa que estamos preparando, um livro extraordinário, requintado e saboroso que devemos lançar dentro de algumas semanas.

Boa leitura para todos.

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