Pauper peregrinus
Para ir para o céu, precisamos de três virtudes teológicas: fé, esperança e caridade. Para convivermos bem com o próximo, porém, qualidades mais básicas bastam: simpatia, doçura, decência e honestidade básicas. Porém, como vemos o próximo e não vemos o céu, as pessoas facilmente imaginam que essas qualidades mais básicas são “o que realmente conta”. Partindo desse pensamento, basta um pequeno salto para supor que todo mundo que não seja um completo canalha provavelmente acabará indo para o céu.
Esse tipo de pensamento é a morte da evangelização. Se nosso irmão não católico, e mesmo não cristão, provavelmente está bem do jeito que está, por que se dar ao trabalho de tentar trazê-lo para a Igreja? Não será melhor deixá-lo em paz, uma vez que, tornando-se católico, terá de crer, fazer e evitar uma série de coisas que até então desconhecia? Por essa lógica, seria cruel levar-lhe a luz!
Obviamente, esse pensamento é ilógico. A verdade nos liberta e o erro nos aprisiona. O Evangelho não é um fardo do qual queremos poupar o próximo; é a graça de Deus e vida eterna. Jesus Cristo não é apenas mais um entre outros, nem mesmo um “caminho privilegiado”, como disse recentemente certo bispo americano: Ele é o caminho para o Pai, e não podemos atravessar esse caminho sem O conhecer.
Infelizmente, o indiferentismo, apesar de ter sido condenado em termos muito severos por vários papas do século XIX, infiltrou-se na Igreja Católica no século XX e tornou-se intelectualmente respeitável. Um dos que reagiram com força contra ele foi o padre jesuíta, Leonard Feeney (1897-1978). Sua história é bem conhecida: insistindo na interpretação literal do axioma “fora da Igreja não há salvação”, ele se tornou um bem sucedido capelão para estudantes na Universidade de Harvard. Pais protestantes estavam irritados ao ver seus filhos convertendo-se a Roma. O Cardeal Cushing, Arcebispo de Boston, sentiu que o Pe. Feeney e seus seguidores estavam se expressando de modo muito enfático e solicitou uma carta do Santo Ofício acerca do caso.
A carta chegou no dia 8 de Agosto de 1949. Ela demonstrava espanto com os ensinamentos do Padre Feeney e explicava que, em certas circunstâncias, uma pessoa poderia fazer parte da Igreja Católica por um “desejo implícito” de pertencer a ela. O próprio Padre Feeney foi convocado a Roma. Antes de ir perguntou, de modo bastante razoável, se estava sendo convocado para um julgamento e, em caso afirmativo, por qual crime seria julgado. Finalmente, em 1953, recebeu sua resposta: um decreto de excomunhão. Ele foi condenado não por faltar contra a fé, mas por recusar as convocações de Roma. Frank Sheed, amigo do padre excomungado e fundador da publicação Sheed & Ward, chegaria a comentar: “O Pe. Feeney foi silenciado, mas não recebeu sua resposta”.
Essa história um tanto trágica transformou-se em farsa em novembro de 1972. Um bispo, enviado da Santa Sé, veio ver o padre, já velho e doente, para buscar sua reconciliação. Alguém sugeriu que o Pe. Feeney e sua comunidade cantasse o Credo Atanasiano. Trata-se do credo que começa com as palavras: “Quem desejar ser salvo, precisa, antes de tudo, ter a Fé Católica”. Quando terminaram o cântico, foi-lhe dito que finalmente se reconciliara com a Igreja. Ele morreu no dia 30 de janeiro de 1977.
É difícil não simpatizar com Leonard Feeney. Nenhum protestante jamais se converteu ao ouvir que poderia perfeitamente estar em ignorância invencível. É dever dos padres explicar aos homens a mensagem divina na sua totalidade, o que inclui o dever de crer nessa mensagem e de entrar na Igreja Católica se quiserem salvar suas almas. “Renunciamos coisas que a vergonha manda ocultar”, dizia São Paulo, “[não] adulterando a palavra de Deus”.
Há, porém, três questões distintas que não podem ser confundidas, embora o sejam com frequência, até por alguns teólogos: (1) É possível salvar-se sem o batismo de água? (2) É possível salvar-se sem ser católico, ou ao menos sem a intenção explícita de se tornar? (3) É possível salvar-se sem a crença explícita em Cristo? No que segue, responderei às perguntas, deixando as posições do Padre Feeney sobre cada uma dessas questões a seus biógrafos.
1. Deixando de lado o caso especial do martírio, que os Padres da Igreja exaltam por seu poder de remover o pecado, podemos dizer que há provas para crer no “batismo de desejo” na Igreja primitiva, mas que ninguém considerava isso um ponto de fé. Os dois Padres mais citados nesse tema são Santo Agostinho e Santo Ambrósio. O Imperador Valentiniano II, que havia bravamente resistido às demandas de senadores pagãos para restaurar sua antiga religião, queria ser batizado, mas morreu violentamente enquanto ainda era catecúmeno. Santo Ambrósio falou, em um panegírico funeral, que ele havia sido lavado por seu desejo, assim como os mártires o são pelo sangue. Ainda assim, o mesmo santo afirma, em outro lugar, ao menos como regra geral, que, embora os catecúmenos já possam crer no poder da Cruz, seus pecados não são lavados sem a água batismal.
Santo Agostinho, em uma obra sobre o batismo, diz que, após refletir sobre o tema, parece-lhe que a fé e a conversão do coração podem suprir o batismo se alguma crise repentina impede que o sacramento seja ministrado antes da morte. Ainda assim, ele, como Santo Ambrósio, também afirma a regra geral de que, por mais avançado que esteja um catecúmeno, não estará livre do peso de seus pecados sem o batismo. Ele não retratou nenhuma das opiniões no fim de sua vida, no livro que escreveu para corrigir erros que haviam sido cometidos em sua extensa obra.
Essa posição nuançada veio a ser adotada no Ocidente de forma geral. São Bernardo, no Século XII, surpreendeu-se ao ouvir pessoas negando peremptoriamente a possibilidade de salvação dos catecúmenos, e Santo Tomás de Aquino concorda com ele. Ainda assim, esse “batismo de desejo”, aparentemente, não é mencionado pelos padres orientais, e sua existência não foi definida pela Igreja. Os católicos estão livres para crer que Deus, de alguma forma, garantirá que todos aqueles predestinados serão lavados nas águas batismais antes de morrerem; mas não podem alegar que isso faça parte da fé.
2. Todos esses santos, porém, referiam-se a católicos catecúmenos. É possível encontrar, em seus escritos, algo que indique que as pessoas batizadas em corpos não católicos podem ser salvas? Dificilmente. Santo Agostinho chega a mencionar de passagem que devemos pensar de modo muito diferente sobre aqueles que cresceram em tais corpos do que aqueles que abandonaram a Igreja para se juntar ou fundá-los. Mas o que devemos pensar deles? Se pessoas nascidas dentro desses grupos são validamente batizadas e recebem os ensinamentos corretos acerca da Trindade ou da Encarnação, e, especialmente, se têm os sacramentos da confissão e da Santa Eucaristia para ajudá-los a obedecer os mandamentos, não podemos excluir a possibilidade de que ao menos alguns deles estejam em estado de graça, e, portanto, que suas almas, embora não seus corpos, estejam na Igreja. Eles seriam como soldados irregulares, combatendo do lado correto, porém sem saber quem são seus comandantes.
3. Quando, porém, se trata daqueles que não conhecem Cristo, não podemos ter sequer essa esperança incerta. Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho não tem a vida. Não podemos nos tornar amigos de Deus, salvo ao aceitar Sua oferta de perdão. Antes da Sexta-Feira Santa, a humanidade foi convidada a aceitar a redenção que viria um dia. Desde a Sexta-Feira Santa, a humanidade é convidada a aceitar a redenção que já chegou: mas ninguém pode fazer isso sem ter ouvido sobre o Redentor. Como poderão crer nAquele de quem não ouviram, indaga São Paulo. Até mesmo o Papa João Paulo II, apesar de seus encontros transviados em Assis, declarou em seu ensinamento oficial: “A distinção entre a fé teológica e o tipo de crença das outras religiões deve ser mantida com firmeza” (Dominus Iesus, 17). E, como o Concílio de Trento ensina, ecoando São Paulo, a fé teológica é necessária para que o homem seja justificado e agrade a Deus.
Ainda assim, essas pessoas, sendo detentoras do Espírito Santo, responderão, mais cedo ou mais tarde, à pregação da Igreja, de Quem Ele é a alma. O que é mais uma razão para que os pastores da Igreja os convidem de volta ao lar! É impossível aprovar o costume moderno de padres e bispos católicos de pregar a grupos de não católicos e não fazer esse convite.
Fora da Igreja, não há salvação. Os teólogos podem oferecer explicações aqui ou ali sobre essas gloriosas palavras. Mas os pregadores, como Noé, deveriam simplesmente convidar os homens a entrar nela antes que seja tarde demais.
(The Angelus, Maio 2022)