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Vida de Santo Tomás de Aquino

“Assim como foi dito aos antigos egípcios em tempos de fome: ‘Ide a José’, para receberem dele abundância de trigo e nutrirem seus corpos, assim também hoje nós dizemos a todos que desejam a verdade: ‘Ide a Tomás, e pedi a ele que vos dê de sua abundância o alimento da doutrina substancial com a qual podeis nutrir vossas almas para a vida eterna.’” (Papa Pio XI – Encíclica Studiorum Ducem – 29 de Junho de 1923)

“Invoquei (o Senhor) e veio a mim o espírito da sabedoria. Preferia-a aos cetros e aos tronos, e julguei que as riquezas nada valiam em sua comparação.” (Sb 7, 7-8)

 

Introdução

O século XIII foi um período de extraordinária atividade intelectual, mas não foi isento de perigos. Na busca entusiasmada por conhecimento, os estudantes reuniam-se aos milhares nas grandes universidades, que apesar de serem escolas de fé, foram também muitas vezes escolas de infidelidade. Os filósofos da época deviam tudo a um único mestre, que fora um pagão. “Aristóteles”, diz Lacordaire, “foi tomado como representante da sabedoria, mas, infelizmente, ele e o Evangelho nem sempre concordam um com o outro”. E muitos, entrando no oceano inexplorado do pensamento sem nenhum guia, naufragaram sem esperança a sua religião. Grandes professores, que eram tidos como os “oráculos do dia”, nem sempre souberam resistir às seduções da vaidade, e algumas vezes buscaram o renome propondo audaciosas teorias em assuntos em que a especulação original era raramente amigável à fé.

Foi em meio à confusão dessas novas opiniões que Santo Tomás foi dado ao mundo para demarcar os limites da filosofia cristã e para integrar, em uma estrutura grande e completa, as matérias de teologia dogmática, moral e especulativa, que até então estavam separadas. Ao mesmo tempo, enriqueceu a liturgia da Igreja com algumas de suas mais belas devoções, e mostrou, em sua vida e em seu caráter, todas as virtudes que as graças de um santo produzem.

 

1. Nascimento e infância

Situada de um modo pitoresco no sul da Itália, no topo de um penhasco escarpado,  flanqueando o pico dos Apeninos e divisando as águas correntes de Melfi, lá estava em tempos medievais a fortaleza de Roccasecca. Ali nasceu Santo Tomás por volta do ano de 1225 – os autores não chegaram a um consenso acerca da data precisa – e devido ao condado vizinho de Aquino, ele recebeu seu sobrenome. 1 O conde, seu pai, era sobrinho do imperador Frederico Barba-Roxa, e pelo lado de sua mãe, era descendente dos barões normandos que haviam conquistado a Sicília dois séculos antes. A família Aquino arrogava-se de parentesco com São Gregório Magno e era ligada pelo sangue a São Luís de França e a São Fernando de Castela. A futura vocação e santidade do pequeno Tomás foram preditas à sua mãe, a condessa Teodora, por um santo eremita de nome Bonus, e quando ainda era uma criança, a Providência vigilante de Deus sobre ele já estava manifesta de uma maneira surpreendente: uma terrível trovoada rebentou no castelo, fulminando sua babá e sua irmã no mesmo quarto em que Santo Tomás dormia, ficando ele ileso. Essa circunstância explica o grande medo de trovão e relâmpago que diziam ter Santo Tomás durante toda a sua vida, e que o fazia freqüentemente se refugiar na igreja durante uma trovoada, a ponto de inclinar sua cabeça contra o tabernáculo para se colocar o mais próximo possível sob a proteção de Nosso Senhor. 2

Ave Maria foram as primeiras palavras que se ouviu pronunciar por seus lábios de bebê. Muito antes de aprender a ler, descobriu-se que um determinado livro era um meio infalível de enxugar suas lágrimas e suas mágoas infantis. Ele costumava se deleitar em manuseá-lo, passando suas páginas com uma gravidade pueril.

 

2. Educação Primária

Quando tinha apenas cinco anos de idade, Santo Tomás começou a ser educado pelos monges da famosa Abadia Beneditina do Monte Cassino, que ficava a poucas milhas de Roccasecca. Os monges descobriram que seu novo pupilo era uma criança grave e quieta, que amava passar a maior parte de seu tempo na igreja, e nunca estava sem um livro nas mãos. Ele tinha uma considerável influência sobre seus jovens colegas, aos quais estava sempre pronto a ajudar e a quem a doçura de sua disposição o fazia muito querido. Porém, importava-se pouco com os divertimentos da infância, e raramente participava deles. Um dia, quando o restante dos colegas brincava alegre pelos bosques, Santo Tomás se isolou em silenciosa meditação. O monge encarregado dos garotos indagou o motivo de suas reflexões, e ele, levantando a cabeça, disse: “Diga-me, mestre, o que é Deus?” Essa foi a pergunta mais repetida por ele, o que mostrava que toda a tendência de sua mente e de seu coração estava já voltada para o Céu.

Aos dez anos, tinha progredido tanto em seus estudos que seus pais resolveram enviá-lo, sob os cuidados de um tutor, à recentemente fundada Universidade de Nápoles. Antes, levaram-no para passar algumas semanas em companhia deles em outro castelo de sua propriedade, em Loreto – um local destinado depois a ser tão famoso como o lugar de repouso da Santa Casa de Nazaré. Na época, uma fome assolou a cidade, e Santo Tomás se deleitou em distribuir as abundantes esmolas que seus caridosos pais tinham reservado para os pobres. Ele levou sua liberalidade tão longe, que o mordomo do castelo reclamou ao seu pai. O conde então surpreendeu o menino enquanto ele se apressava para o portão e perguntou severamente o que estava escondendo embaixo da capa. Santo Tomás a desdobrou e deixou cair no chão não o alimento que carregava, mas uma profusão de flores adoráveis e docemente perfumadas.

Em sua chegada a Nápoles, os extraordinários talentos dos quais ele já havia dado provas a seus professores beneditinos tornaram-se mais e mais manifestos, ao mesmo tempo em que progredia rapidamente na ciência dos santos. Era continuamente tomado como modelo para seus colegas estudantes, o que feria muito sua humildade, mas a modéstia, a doçura, e a gentileza de seu caráter o preservaram da inveja, fazendo-o unanimemente querido. Ele afastava-se de todas as más ocasiões e devotava suas horas de lazer à oração e às boas obras.

 

3. Junta-se aos Dominicanos          

A igreja dominicana em Nápoles tornou-se um de seus refúgios favoritos, e enquanto ele derramava sua alma em oração diante do altar, foram vistos mais de uma vez cintilantes raios de luz emitidos de seu semblante. Um santo frade chamado João de São Julião, que testemunhou o maravilhoso sinal, disse um dia ao pio jovem: “Deus vos deu à nossa Ordem.” Santo Tomás atirou-se aos seus joelhos, dizendo que há muito desejava ardentemente tomar o hábito, mas que temia ser indigno de tão grande graça. A comunidade, então, alegremente admitiu o jovem estudante, e quando ainda era praticamente um garoto, vestiu publicamente o hábito branco de São Domingos.

A novidade logo chegou aos ouvidos da condessa Teodora, sua mãe, que, reconhecendo no evento a realização da profecia do santo eremita, correu a Nápoles para felicitar o filho. Porém, Santo Tomás e os irmãos, ignorantes das disposições dela, ficaram muito alarmados com a ideia da iminente visita, e em observância às suas fervorosas súplicas, o noviço apressou-se ao Convento de Santa Sabina em Roma. Para lá sua mãe o seguiu, mas não pôde induzi-lo a consentir em uma entrevista. O superior da Ordem, João Germano, estava prestes a partir para Paris e resolveu levar Santo Tomás e outros três companheiros com ele, e assim deixaram Roma. Quando Teodora se viu assim frustrada, enfureceu-se contra os frades e enviou ordens a dois de seus filhos mais velhos, que estavam servindo no exército do imperador na Itália, para surpreender o irmão e trazê-lo de volta. 3 O pequeno grupo de frades foi alcançado e surpreendido enquanto tirava seu descanso do meio-dia às margens de uma fonte. Os rudes soldados tentaram rasgar o hábito de Santo Tomás, mas sua forte resistência os impeliu a desistirem do intento. Seus companheiros foram impedidos de seguir viagem, enquanto o jovem noviço foi levado de volta para junto de seus irados pais em Roccasecca.

 

4. Prisão e Fuga

A condessa estava determinada a jamais permitir que Santo Tomás fosse um dominicano. E seu pai, que alegremente aceitaria que ele assumisse o hábito beneditino – como um de seus tios, ele poderia chegar ao grau de Abade do Monte Cassino – estava igualmente determinado a não permitir que ele pertencesse à desprezível ordem mendicante que tinha abraçado. Lágrimas, ameaças e súplicas foram ineficazes para fazer abalar a resolução do santo, e ele foi aprisionado em uma das torres do castelo, onde teve de passar frio, fome, e todo tipo de privação. Suas duas irmãs, Marieta e Teodora, a quem ele era ternamente apegado, tentaram em vão com afetuosas carícias induzi-lo a ceder aos desejos da mãe, mas elas próprias se renderam a uma vida de perfeição, e ambas posteriormente morreram em odor de santidade, uma como abadessa beneditina, e a outra casada como condessa de São Severino. Através da intervenção delas, Santo Tomás conseguia obter livros e roupas de seus irmãos (dominicanos) em Nápoles. Durante seu cativeiro, que durou consideravelmente mais de um ano, ele conseguiu confiar à memória toda a Bíblia e os quatro livros das Sentenças, o compêndio teológico da época. 4 Diz-se que seus primeiros escritos pertencem a esse mesmo período.

Com a chegada de seus irmãos, a constância de Santo Tomás foi posta à prova de modo ainda mais terrível. Os dois jovens oficiais conceberam o projeto infernal de introduzir uma mulher de má reputação dentro de seu quarto. Mas, apanhando da lareira um ferrete em chamas, o santo furiosamente retirou-a de sua presença. Com o mesmo ferrete, ele então traçou uma cruz na parede e lançando-se de joelhos diante dela, suplicou a Deus para conceder-lhe a graça da castidade perpétua. Enquanto rezava, caiu em um êxtase durante o qual dois anjos lhe apareceram e o cingiram com uma corda miraculosa dizendo: “Viemos da parte de Deus para te revestir com o cinto da castidade perpétua. O Senhor ouviu tuas orações e aquilo que a fragilidade humana nunca poderá merecer é assegurado para ti pela irrevogável graça de Deus”. Os anjos o cingiram tão firmemente que ele soltou um involuntário grito de dor, fazendo com que alguns empregados viessem ao lugar. Porém, Santo Tomás manteve o segredo para si mesmo, revelando-o somente em leito de morte para seu confessor, o padre Reginaldo, declarando que a partir daquele dia, nunca tinha sido permitido ao espírito das trevas se aproximar dele. O cinto foi usado pelo santo até sua morte e ainda é preservado no Convento de Chieri, em Piemonte. 5

Nesse período, a família de Santo Tomás compreendeu que sua firmeza não seria vencida pela perseguição. A contragosto, reconhecerem que foram derrotados e consentiram em sua fuga. Assim como São Paulo, ele foi descido da torre em uma cesta, e os frades, como haviam combinado, esperavam-no embaixo. Eles levaram seu tesouro resgatado para Nápoles, onde foi imediatamente admitido ao ofício.

 

5. Seus Estudos em Colônia

Mais uma tentativa foi feita para abalar a constância de Santo Tomás, dessa vez através de um apelo ao papa, que o convocou a Roma. 6 Mas o santo advogou tão bem em sua própria causa que o Santo Padre se convenceu da realidade de sua vocação. Entretanto, para satisfazer a família dele, e assegurar em um posto importante os serviços de uma pessoa tão agraciada, o papa propôs fazê-lo abade do Monte Cassino mesmo sendo dominicano. Porém, Santo Tomás implorou tão fervorosamente para continuar sendo um simples religioso na ordem que escolhera que Sua Santidade concedeu e proibiu estritamente qualquer outra interferência em sua vocação.

Para afastá-lo de outros aborrecimentos, o superior geral da ordem levou Santo Tomás consigo para Colônia, onde se tornou discípulo de Santo Alberto Magno, o renomado professor dominicano. Quando Santo Tomás achou-se seguro dentro das paredes do convento, devotou-se com ardor à obra de sua santificação. Seu tempo era dividido entre oração e estudo, e sua humildade fez com que ele escondesse sua vasta inteligência, e mantivesse absoluto silêncio em todas as disputas escolásticas. Sua alta estatura e a imponência de sua figura levaram seus colegas a chamarem-no “o boi mudo da Sicília”. Um dos estudantes, jovem de boa índole e seu colega, oferecia-se para lhe explicar as lições diárias – oferecimento esse que o santo humilde e gratamente aceitava. Um dia, porém, o jovem professor se deparou com uma difícil passagem que interpretou erroneamente. Então, a caridade do santo e o amor à verdade triunfaram sobre sua humildade; pegando o livro, explicou a passagem com a máxima clareza e precisão. O colega, atônito, implorou para dali em diante ser ele o aluno, ao que Santo Tomás consentiu sob a condição de que mantivesse o sigilo. Pouco depois desse episódio, um artigo escrito pelo santo contendo uma solução magistral de uma complicadíssima questão caiu acidentalmente nas mãos de Santo Alberto. Admirado com o gênio que o artigo revelava, Santo Alberto no dia seguinte pôs o conhecimento de seu virtuoso discípulo a uma prova pública, e exclamou diante dos alunos reunidos: “Nós chamamos o irmão Tomás ‘o boi mudo da Sicília’, mas eu vos digo que um dia ele fará com que seus mugidos sejam ouvidos em todos os confins da terra!”

 

6. Seus Estudos em Paris

No verão de 1245, um ano depois da chegada de Santo Tomás a Colônia, o Capítulo Geral da Ordem Dominicana ordenou que Santo Alberto partisse para Paris para receber o título de doutor na universidade daquela cidade, e ele obteve permissão de levar o irmão Tomás como seu companheiro. Os dois santos partiram a pé, de cajado na mão, tendo como bagagem principal o breviário e a Bíblia, aos quais Santo Tomás juntou o livro das Sentenças.

Ao meio dia, eles paravam para descansar às margens de alguma fonte para comer o alimento que pediam pelo caminho. À noite, geralmente encontravam abrigo nos quartos de hóspedes de algum monastério. Desse modo, chegaram ao convento de São Tiago em Paris, onde Santo Tomás se tornou um modelo para toda a comunidade pelo seu espírito de oração, sua profunda humildade, perfeita obediência e caridade universal. Ele tentava imitar as virtudes que observava em seus irmãos e julgava-se totalmente indigno de viver em tão santa companhia. Nunca se ouviu dizer que ele pronunciasse alguma palavra frívola; quando falava, a beleza de seu divino discurso enchia de consolação espiritual todos os que o ouviam. Uma graça celestial irradiava de seu belo semblante, de modo que alguns diziam que bastava contemplá-lo para sentir dentro de si uma renovação de fervor.

Um jovem franciscano de nome Boaventura estava nessa época estudando em Paris. A ele, Santo Tomás liga-se numa amizade muito próxima. Os dois, que foram posteriormente honrados pela Igreja como os Doutores Seráfico e Angélico, tornaram-se muito caros um ao outro na terra assim como Jônatas e Davi, e depois de seus três anos de estudo, receberam juntos o título de Bacharel em Teologia em 1248.

 

7. Recebe o Título de Doutor

Em novembro daquele mesmo ano, Santo Alberto foi enviado de volta a Colônia acompanhado de Santo Tomás, que ensinava sob sua orientação. Os intelectuais não demoraram a descobrir que os dois professores dominicanos excediam todos os outros, e a nova escola em Colônia rapidamente encheu-se a ponto de transbordar. As aulas de Santo Tomás corroboravam completamente os cinco princípios de ensino que ele mesmo tinha estabelecido, a saber: clareza, brevidade, utilidade, doçura e maturidade. Ele possuía uma admirável graça de comunicar o conhecimento, de modo que se aprendia mais rapidamente com ele em poucos meses do que com outros em muitos anos.

Foi logo após o retorno a Colônia que Santo Tomás ascendeu ao sacerdócio; daquele momento em diante, ele parecia mais próximo de Deus do que nunca. Costumava passar muitas horas do dia e uma grande parte da noite na igreja. Enquanto oferecia o Santo Sacrifício, derramava abundantes lágrimas, e o ardor de sua devoção comunicava-se com aqueles que assistiam à Missa.

Após ensinar por quatro anos em Colônia, a Santo Tomás foi ordenado pelo Capítulo Geral que se preparasse para receber o título de doutor. Foi um golpe terrível para sua humildade, pois julgava-se sinceramente indigno de tal honraria. A caminho de Paris, para onde ele tinha de se dirigir, pregou na corte da Duquesa de Brabante, a pedido de quem escreveu um tratado cheio de sabedoria e moderação sobre o governo dos judeus. A partir de então, ele era constantemente consultado nos mais importantes assuntos de Estado, especialmente por São Luís de França, que era ternamente afeiçoado a ele. Santo Tomás chegou a Paris em 1252, e desde o primeiro momento seu sucesso no ensino foi tão grande que os vastos salões do convento de São Tiago não podiam conter seu público. A Universidade (de Paris) parabenizou a Ordem pela aquisição de tão grande tesouro e propôs garantir-lhe imediatamente a licença preliminar para doutorar-se, embora estivesse quase dez anos abaixo da idade requerida pelos estatutos.

Esta etapa, porém, foi atrasada por uma disputa entre os frades e os doutores seculares. A querela começou com a recusa dos primeiros em fazer um juramento para fechar suas escolas, e isso se acalorou com a publicação de um livro intitulado Os Perigos dos Últimos Tempos, no qual as novas Ordens mendicantes eram atacadas nos termos mais caluniosos e escandalosos. Essa obra, que veio da pena de um doutor parisiense chamado Guilherme de Saint-Amour, um homem violento e de opiniões heréticas, foi remetida por São Luís para ser julgada pelo papa. Santo Tomás e São Boaventura foram convocados pelo Tribunal Papal para atuarem como defensores dos regulares, e a pena de Santo Alberto Magno foi também requisitada. A eloqüência de Santo Tomás obteve a condenação do livro, salvou as ordens mendicantes da destruição, e pelos esforços em conjunto do papa e de São Luís, a Universidade foi obrigada a se render e readmitir os frades em suas cadeiras teológicas.

Em 23 de Outubro de 1257, os dois santos puderam doutorar-se. A humildade de Santo Tomás tinha sido tão atingida pela ideia dessa promoção que ele não conseguiu preparar o discurso preliminar até a véspera do dia em que seria proferido. Então, por inspiração divina, ele escolheu para seu texto as palavras do Salmo 103:13: “Regas os montes (do alto) das tuas moradas, com o fruto das tuas obras é saciada a terra” – palavras que em sua interpretação se referiam a Jesus Cristo, que como a cabeça dos homens e dos anjos, rega os espíritos celestes com glória, enquanto enche a Igreja Militante na terra com os frutos de suas obras através dos Sacramentos, que aplicam os méritos de sua sagrada Paixão às nossas almas. Porém, o evento deu a esse texto o caráter de profecia em relação à própria futura carreira do santo.

 

8. O Trabalho em Sua Ordem e na Igreja

Em 1259, Santo Tomás foi incumbido, juntamente com Santo Alberto Magno e outros homens doutos da Ordem, de elaborar regras para regular os estudos dos irmãos. Um ou dois anos depois, ele foi convocado à Itália para ensinar nas escolas ligadas à Corte Papal. Como essas escolas seguiam o papa de lugar em lugar, muitas das grandes cidades da Itália e muitos conventos de sua ordem desfrutaram por um tempo o privilégio dos ensinamentos do santo. 7

Após ter ficado por um período em Roma, em 1269 foi novamente indicado para ensinar em Paris. Os doutores da Universidade referiram a ele uma controvérsia que tinha se levantado sobre as espécies sacramentais na Sagrada Eucaristia. Depois de uma longa e fervorosa oração, o santo expôs por escrito sua opinião sobre o assunto, colocou o manuscrito aos pés do crucifixo no altar do Santíssimo Sacramento e rezou: “Senhor Jesus, que estais verdadeiramente presente e fazeis maravilhas neste adorável Sacramento, rogo-Vos que me concedais que, se o que escrevi for verdadeiro, Vós me habiliteis a ensiná-lo; mas que se houver algo contrário à Fé, Vós me impeçais de prosseguir em declará-lo.” Então, os outros frades, que estavam assistindo, contemplaram o próprio Nosso Senhor descendo e posicionando-se sobre o manuscrito, e ouviram de Seus Divinos lábios estas palavras: “Tomás, tu escreveste bem sobre o Sacramento de Meu Corpo.” O santo imediatamente entrou em êxtase, o que fez com que ele levitasse um cúbito do chão.

Em 1271, Santo Tomás retornou à Itália e começou a ensinar em Roma. Durante a Semana Santa daquele ano, ele pregou em São Pedro sobre a Paixão de Nosso Senhor, e aqueles que o escutaram na Sexta-Feira Santa foram levados às lágrimas e não cessaram de chorar até o Domingo de Páscoa, quando seu sermão Pascal encheu a todos de júbilo. Naquele dia, enquanto ele descia do púlpito, uma pobre mulher, doente há muito tempo, e sem esperanças de cura, beijou a barra de seu manto e ficou imediatamente curada. Nesse ínterim, as Universidades de Paris e de Nápoles estavam competindo entre si para obter a posse do grande Doutor. Nápoles levou a melhor, e o santo a premiou até o final do verão de 1272 com os últimos atos de seu trabalho como professor.

Durante todos esses ativos anos de ensino, a pena de Santo Tomás trabalhou infatigavelmente, enriquecendo as escolas e a Igreja com inestimáveis tratados que encheram muitos volumes. Dentro do estreito limite destas páginas, é impossível fazer mais do que citar alguns de seus mais importantes escritos. Ele comentou as obras de Aristóteles e livrou o texto do filósofo pagão de tudo o que era contrário às verdades da Fé. Ao mesmo tempo, adotou os termos da filosofia de Aristóteles como a classificação mais científica das ideias humanas e assim, estabeleceu um sistema completo de filosofia Cristã. Sua Suma Contra os Gentios (Summa Contra Gentiles) foi escrita a pedido de São Raimundo de Pennaforte, o terceiro Superior da Ordem, para combater as falsas doutrinas filosóficas introduzidas pelos sarracenos na Espanha e que estavam penetrando nas universidades da Europa. Nessa obra, Santo Tomás demonstra a verdade da Religião revelada e prova de modo triunfal que a Cristandade não pode ser contrária à sã razão. O Santo Doutor escreveu tratados sobre o Pai Nosso, a Ave Maria e o Credo8, comentários sobre as várias partes da Sagrada Escritura, e respostas a diversas questões propostas a ele para que as solucionasse. O Papa Urbano IV encarregou-o da tarefa de reunir todas as mais belas passagens dos escritos dos Padres da Igreja sobre os Evangelhos, e o resultado foi sua Catena Aurea, ou A Corrente de Ouro, que é inteiramente composta de citações, e escrita em grande parte de memória. Como viajava de convento em convento, o santo lia as obras dos Padres, uma aqui, outra ali, e sua maravilhosa memória fez com que ele guardasse e transcrevesse as passagens tendo em mente cada assunto. A mais famosa de suas obras é sua Suma Teológica (Summa Theologica), na qual ele trabalhou, nos intervalos entre o ensino e a pregação, pelos últimos nove anos de sua vida, mas que não viveu o suficiente para terminar.

Desse trabalho é dito que o Papa João XXII afirmou que Santo Tomás havia feito tantos milagres quanto a Suma continha artigos, e seu valor é talvez mais bem atestado pelo ódio com o qual ela sempre foi considerada pelos hereges. Em 1520, Lutero fê-la ser queimada em público na praça de Wittenberg, e outro dos chamados reformadores, Martin Bucer, exclamou: “Suprimi Tomás e eu destruirei a Igreja!” “Um desejo vão”, observa Leão XIII, “mas não um vão testemunho.” No Concílio de Trento, apenas três obras de referência foram colocadas na mesa do salão de reunião. Eram elas: as Sagradas Escrituras, os Atos Pontificais e a Suma de Santo Tomás. Foi por causa da Suma que o Catecismo do Concílio de Trento foi escrito por três padres dominicanos e outros teólogos. 

 

9. A Festa de Corpus Christi

A obra de Santo Tomás mais amada e venerada pelos fiéis talvez seja a participação que teve na instituição da Festa de Corpus Christi. Quando ele apresentou ao Papa Urbano IV a primeira parte de sua Catena Aurea, por volta de 1263, o Pontífice maravilhado quis, em sinal de gratidão, elevá-lo ao episcopado. Porém, Santo Tomás atirou-se-lhe aos pés e implorou ao Santo Padre que lhe concedesse como única recompensa pelo seu trabalho que a Festa do Santíssimo Sacramento, já estabelecida na Alemanha e nos Países Baixos pelas orações da Bem-aventurada Santa Juliana e pela influência do cardeal dominicano Hugo de São Cher, fosse estendida para a Igreja Universal. O papa alegremente consentiu e ordenou que Santo Tomás escrevesse o ofício da festa. Nesse ofício, cada responsório nas Matinas é composto de duas frases, uma retirada do Antigo Testamento e outra do Novo, que assim são feitas para darem um único testemunho ao grande mistério central da Fé Católica. Seus hinos Verbum Supernum e Pange Lingua nos são familiares, especialmente suas últimas estrofes, O Salutaris e Tantum Ergo, sempre cantados na Bênção, e desde a infância nossos corações são tocados de emoção enquanto caminhamos nas procissões do Santíssimo Sacramento pela força do Lauda Sion.

Antes de apresentar seu ofício ao papa, Santo Tomás o colocou diante do sacrário, e o milagre anteriormente ocorrido em Paris repetiu-se: as palavras de aprovação procederam dos lábios de um crucifixo ainda venerado em Orvieto. Um testemunho semelhante da aprovação divina foi concedido ao santo em Nápoles, e foi visto por um dos frades. Nessa ocasião, também Nosso Senhor falou com ele de um crucifixo, que é preservado na Igreja de São Domingos Maior, dizendo: “Tu escreveste bem de Mim, Tomás. Que recompensa terás?” Ao que o Santo fervorosamente respondeu: “Nenhuma além de Vós, ó Senhor!”

Também devemos à pena de Santo Tomás o Adoro Te, algumas belas devoções antes e depois da Santa Comunhão, e muitas outras orações sólidas em doutrina e belas em expressão. É tradição dizer que ele compôs a tão famosa “Alma de Cristo, Santificai-me” (Anima Christi), que era a oração favorita de Santo Inácio e que foi introduzida por ele em seu livro Exercícios Espirituais, embora deixando de fora a amável súplica “Luz da Sagrada Face de Jesus, brilhai sobre mim”, que é encontrada nas formas mais antigas da oração. Essa súplica ocorre na versão de Anima Christi encontrada em um antigo livro de orações chamado Horas York, onde se afirma ter sido indulgenciada pelo Papa João XXII quando ele a recitou após a elevação na Missa. Esse livro de orações foi publicado em 1517, quatro anos antes da conversão de Santo Inácio.

 

10. Traços Pessoais

Santo Tomás era alto e forte, de cabeça fina e sólida, fronte elevada, traços refinados e belos, olhos grandes e brandos que irradiavam benevolência. Suas maneiras eram singularmente encantadoras e graciosas, e suas prodigiosas faculdades mentais eram acompanhadas de uma inocente simplicidade de caráter, que juntamente com a pureza de sua doutrina renderam-lhe o título de “Anjo das Escolas”. Embora estivesse muito acima dos outros por sua enorme inteligência, ele era o mais doce e o mais caridoso dos mestres e dos padres, sempre pronto a curvar-se diante da capacidade dos mais jovens e dos mais estultos de seus colegas. Independentemente da importância dos afazeres nos quais estava engajado, sua cela estava sempre aberta para seus irmãos todas as vezes que queriam falar com ele, e alegremente deixava a mais exaustiva ocupação para dar-lhes sua inteira atenção. Ele os ouvia em suas dificuldades, explicava suas dúvidas e confortava-os em suas aflições. Nada que dizia respeito a seus irmãos era banal aos seus olhos, e ele nunca se mostrou cansado de suas interrupções, nem de suas inconveniências. Em troca, seus irmãos lhe davam a mais terna afeição: Doctor noster (Nosso Doutor) era como eles amavam chamá-lo, e a sinceridade de sua amizade era largamente provada pela amarga tristeza de todos quando ele se ausentava.

Muito depois de sua morte, aqueles que o tinham conhecido nunca falavam dele sem lágrimas, tão ternamente o amavam. Verdadeiro filho de São Domingos, cuidou apenas de falar de Deus ou com Deus, e não conseguia entender como um religioso poderia interessar-se por outro assunto. Se a conversa mudava para outros temas, ele cessava de participar e confessava para seus colegas que o surpreendia que um religioso pudesse pensar em outra coisa que não fosse Deus. Também era completamente incompreensível para ele o fato de alguém em estado de pecado mortal conseguir comer, dormir, ou alegrar-se. Quando os seculares vinham buscar conselho e consolação, ele lhes dava ouvidos de boa vontade, e após tirar suas dúvidas e consolá-los em suas dores, nunca deixava de contar-lhes alguma pia história ou falar-lhes algumas palavras edificantes, e em seguida dispensava-os, ficando eles com os corações ardendo de júbilo espiritual e amor divino.

Podemos imaginar Santo Tomás desfrutando da simples distração de subir e descer o claustro de seu convento, ocasionalmente levado por seus irmãos para tomar ar fresco no jardim, mas certamente logo sendo encontrado em algum canto isolado, absorto em pensamentos. Dessas distrações, são contadas algumas anedotas, como a que no-lo mostra jantando com São Luís e de repente esmurrando a mesa, exclamando: “Há um argumento conclusivo contra os maniqueus!” Seus colegas gentilmente esforçaram-se para lembrá-lo da presença real, enquanto o amável rei imediatamente convocou um secretário para anotar o convincente argumento que se apresentava à mente de seu santo hóspede.

De volta a Nápoles, o cardeal legado e o arcebispo de Cápua vieram visitar Santo Tomás. Ele, por sua vez, foi recebê-los no claustro, mas no caminho, ficou tão absorto na solução de uma dificuldade teológica que, quando chegou, tinha se esquecido dos afazeres e dos visitantes, e ficou como alguém que está sonhando. O arcebispo, que tinha anteriormente sido seu aluno, assegurou ao cardeal que aqueles devaneios eram muito familiares para todos aqueles que conheciam os hábitos do santo. Essas distrações às vezes faziam-no insensível à dor, como quando uma vela queimou sua mão enquanto ele permanecia absorto, inconsciente do fato.

A vida austera de Santo Tomás e seus incessantes trabalhos aumentaram a delicadeza natural de sua constituição, e fizeram com que ele freqüentemente caísse doente. Contudo, isso não pareceu tê-lo feito desistir de seu trabalho de composição. Cirurgias eram mal feitas no século XIII, e sua extrema sensibilidade fizeram com que as operações lhe fossem ainda mais terríveis. Em uma ocasião, quando se viu obrigado a passar por uma cauterização, implorou ao enfermeiro para avisá-lo quando os cirurgiões viessem. Quando se deitou em seu leito, imediatamente entrou em êxtase, permanecendo imóvel enquanto sua carne era queimada com ferros em brasa.

Suas roupas eram sempre as mais pobres do convento e seu amor pela santa pobreza era tão grande que sua Summa Contra Gentiles foi escrita no verso de cartas antigas e em pedaços de papel. Em vão os soberanos pontífices insistiram que ele aceitasse o arcebispado de Nápoles e outras honras eclesiásticas juntamente com amplos rendimentos. Nada pôde abalar sua determinação de viver e morrer como um simples religioso, e eles foram obrigados a retirar suas propostas, não querendo afligir alguém tão caro para eles. Ele, que era o oráculo de seu tempo, amava pregar aos pobres e aos humildes, e é sabido que eles sempre o ouviam alegremente e com muito fruto para suas almas. Ele era cheio de compaixão pelas suas necessidades e fazia-lhes o donativo de suas próprias roupas para vesti-los.

 

11. Sua Humildade e Mansidão

A humildade sempre foi a virtude característica de Santo Tomás. Ele percebia tão perfeitamente a grandeza de Deus e sua própria insignificância que em um momento de intimidade, ele disse a um amigo: “Graças sejam dadas a Deus! Nunca meu conhecimento, meu título de doutor, nem nenhum dos meus atos acadêmicos despertaram em mim um único movimento de vanglória sequer. Se algum movimento tiver sido despertado, a razão instantaneamente o reprimiu”. Da humildade brotava a extrema modéstia na expressão de sua opinião. Nunca, no calor de um debate ou em qualquer outra ocasião, se soube que ele tenha perdido a imperturbável serenidade de temperamento, ou que tenha dito alguma palavra que pudesse ferir os sentimentos de alguém, e ele suportou os mais incisivos insultos com uma calma igualmente imperturbável. Sua vida é cheia de exemplos de seu espírito de humildade e obediência religiosa. Uma vez, ainda como um jovem religioso, quando estava lendo no refeitório de Paris, o corretor oficial lhe pediu para pronunciar uma palavra de um modo evidentemente incorreto. Santo Tomás obedeceu e pronunciou a quantidade errada. 9 Quando lhe perguntaram como ele consentiu em um engano tão óbvio, ele respondeu: “Pouco importa se uma sílaba seja longa ou breve, mas muito importa que se pratique a humildade e a obediência”. Anos mais tarde, quando o santo estava ensinando em Bolonha, um irmão leigo obteve a licença do prior para tomar como companheiro o primeiro irmão religioso que encontrasse livre. Vendo Santo Tomás, que era um estranho para ele, subindo e descendo no claustro, foi em direção a ele dizendo que o prior queria que ele o acompanhasse pela cidade, onde tinha negócios a realizar. O santo, embora coxeando e estando perfeitamente consciente de que o leigo estava enganado, imediatamente obedeceu ao chamado e foi mancando pela cidade atrás de seu companheiro, que de vez em quando reclamava de sua lentidão. Quando o leigo descobriu seu engano, desculpou-se copiosamente, mas o santo respondeu: “Não se incomode, meu caro irmão. Eu sou o culpado. Apenas sinto muito de não ter podido ser mais útil”. Para aqueles que perguntaram o porquê de ele não ter explicado o engano, ele deu esta preciosa resposta: “A obediência é a perfeição da vida religiosa; por ela, o homem se submete ao seu próximo por amor a Deus, como Deus fez-se a si mesmo obediente aos homens para a salvação deles”.

A Santo Tomás, custava-lhe acreditar que os outros pudessem ser maus. Sempre achava que todos eram melhores que ele, mas quando era provada uma falta e não havia possibilidade de dúvida, chorava como se ele mesmo a tivesse cometido, e seu zelo exigia que a falta fosse severamente corrigida, de acordo com o que dizia Santo Agostinho: “com caridade para com o pecador, mas com ódio ao pecado”.

Certa vez, um dos irmãos o pressionou a dizer qual a maior graça que já tinha recebido de Deus – com exceção da Graça Santificante. Após alguns minutos de reflexão, ele respondeu: “Penso que ter entendido tudo o quanto tenho lido”. Ele lembrava-se de tudo que ouvia apenas uma vez, de modo que sua memória era como uma biblioteca muito bem abastecida. Freqüentemente, escrevia e ditava ao mesmo tempo assuntos distintos a três ou quatro secretários, e nunca perdia o fio dos argumentos.

 

12. Sua Vida Diária e suas Devoções

Algumas informações sobre o modo como Santo Tomás passava seus dias foram preservadas. Depois do tempo absolutamente necessário de sono, ele levantava durante a noite e descia à igreja para rezar, retornando à cela pouco antes de os sinos tocarem para as Matinas, de modo que sua vigília passasse despercebida. Então descia novamente para o Ofício com a comunidade, sempre prolongando sua oração até a aurora. Após se preparar para a penitência, a Confissão e a meditação, ele celebrava a primeira Missa, e em ação de graças ouvia outra Missa na qual sempre servia. Compôs orações para todas as suas ações diárias, algumas das quais ainda são preservadas. Na Elevação, era seu costume repetir as palavras “Vós, ó Cristo, sois o Rei da Glória” com os últimos versos do Te Deum. Embora licitamente dispensado de comparecer ao coral devido aos seus trabalhos de ensino e escrita e às numerosas visitas dos que procuravam sua orientação, ele assistia com os irmãos todas as horas do Ofício Divino, e sempre derramava lágrimas de devoção.

Quando seus exercícios matinais terminavam, ele dava suas aulas de Teologia ou sobre as Sagradas Escrituras, e depois voltava para sua cela para escrever e ditar até a hora do jantar. Comia uma vez por dia apenas, e não se importava com o que era servido. Na verdade, no refeitório, ficava tão absorto em oração e em pensamentos que não percebia as coisas externas, tanto que mudavam seu prato, ou retiravam sua comida e ele não se dava conta. Depois do jantar, conversava um pouco com os irmãos, e em seguida reanimava sua alma com uma pequena leitura espiritual, sendo as Conferências de Cassiano seu livro favorito10. Após um pequeno repouso, retomava seus trabalhos, e terminava o dia cantando no coral o Salve Regina nas Completas.

O Doutor Angélico era cheio de devoções singelas a Nossa Senhora. Seu confessor, o padre Reginaldo, declarou que Santo Tomás nunca havia pedido algo através da Virgem Maria que não tivesse obtido, e o próprio santo atribuía especialmente à sua intercessão a graça de viver e morrer na Ordem Dominicana, conforme seu sincero desejo. Durante toda uma Quaresma, ele pregou sobre as palavras “Ave Maria”, e as mesmas amadas palavras podem ser encontradas repetidas vezes nas margens de seu próprio manuscrito da Suma Contra os Gentios, recentemente descoberto na Itália. Em seu leito de morte ele confidenciou ao padre Reginaldo que Nossa Senhora tinha lhe aparecido diversas vezes e lhe assegurou do bom estado de sua alma, e da solidez de sua doutrina. Os santos Apóstolos São Pedro e São Paulo também o favoreceram com suas visitas e lhe explicaram difíceis passagens da Sagrada Escritura. As epístolas de São Paulo eram suas matérias favoritas de meditação, e ele costumava recomendá-las aos outros para o mesmo propósito. Tinha uma devoção especial a Santo Agostinho, e a partir das obras desse santo Doutor, compôs o Ofício próprio, ainda em uso na Ordem Dominicana. Santo Tomás costumava usar em volta do pescoço uma relíquia da virgem e mártir Santa Inês, da qual fez uso certa vez para curar o padre Reginaldo de uma febre que o atacou em uma viagem a Nápoles, e é dito que a partir daquele momento, o Santo Doutor resolveu celebrar a festa de Santa Inês com solenidade especial e – com um caráter natural que demonstrava compaixão humana – servir um jantar melhor no refeitório naquele dia.

“Seu admirável conhecimento”, dizia o padre Reginaldo, “era devido muito menos ao seu gênio do que à eficácia de sua oração. Antes de estudar, entrar em uma discussão, ler, escrever ou ditar, ele sempre se entregou à oração. Rezava com lágrimas para obter de Deus o conhecimento de seus mistérios, e uma luz abundante era concedida a sua mente”. Se ele encontrava alguma dificuldade, juntava jejum e penitência à sua oração, e todas as dúvidas eram esclarecidas. Certa vez, São Boaventura, vindo visitá-lo, viu um anjo auxiliando-o em seus trabalhos.

Entre suas notáveis palavras, pode ser mencionada a resposta que ele deu à irmã quando ela lhe perguntou o que deveria fazer para se tornar santa. “Velle”, respondeu ele – i.e., “Querer”. Ao lhe perguntarem quais eram os sinais de perfeição da alma, ele respondeu: “Se eu visse um homem afeiçoado a conversas frívolas, desejoso de honra e relutante em ser desprezado, eu não acreditaria que fosse perfeito, ainda que o visse obrar milagres”.

 

13. Sua Morte

Na festa de São Nicolau, no dia 6 de Dezembro de 1273, Santo Tomás estava rezando a Missa na capela do santo no convento de Nápoles, quando recebeu uma revelação que o mudou de tal maneira, que a partir daquele momento, não pôde mais nem escrever, nem ditar. Pouco depois, em resposta às prementes súplicas do padre Reginaldo, ele disse: “Chegou o termo de meus labores. Depois de tudo o que me foi revelado, tudo o que escrevi até hoje me parece apenas palha. Espero na misericórdia de Deus que o fim de minha vida possa em breve seguir o termo de meus trabalhos.”

Sofria de uma doença quando recebeu um chamado do papa para comparecer ao Concílio Geral convocado em Lião para a reunião das Igrejas Grega e Latina. 11 O santo, portanto, partiu de Nápoles, acompanhado do irmão Reginaldo e alguns outros frades em 28 de Janeiro de 1274. No caminho, piorou muito. “Se Nosso Senhor estiver prestes a me visitar”, disse aos companheiros, “é melhor que Ele me encontre em uma casa religiosa do que em meio aos seculares”.

Como não estava próximo de nenhum convento dominicano, rendeu-se ao premente convite de alguns colegas cistercienses e deixou que o levassem para a Abadia de Fossa Nova. Chegando lá, foi direto para a igreja adorar o Santíssimo Sacramento, e em seguida, ao passar pelo claustro, exclamou: “Aqui é o lugar do meu repouso eterno!” Foi instalado na cela do próprio abade e esperou com a mais extrema caridade. Os próprios monges foram cortar lenha para lhe acender uma fogueira. Ao vê-los trazendo aquela carga para sua cela, o santo gritou: “Por qual razão devem os servos de Deus servir a um homem como eu, trazendo de longe tão pesados fardos?”

Em observância às diligentes súplicas dos cistercienses, ele começou a explicá-los o Cântico dos Cânticos, mas não viveu para completar sua exposição. Como se aproximasse seu fim, ele, com muitas lágrimas, fez uma confissão geral de toda sua vida ao padre Reginaldo, e então pediu para deitar-se sobre cinzas no chão quando lhe foi trazido o Santo Viático. Ao contemplar o Santíssimo Sacramento, colocou-se de joelhos e disse em clara e distinta voz, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto: “Recebo-Vos, ó preço da redenção da minha alma; recebo-Vos, ó viático da peregrinação de minha alma, por amor de quem eu tenho estudado, observado, trabalhado, pregado e ensinado. Escrevi muito, e freqüentemente discuti os mistérios de Vossa lei, ó meu Deus. Vós sabeis que não desejei ensinar nada salvo o que aprendi de Vós. Se o que escrevi for verdadeiro, aceitai-o como uma homenagem à Vossa infinita majestade; se for falso, perdoai minha ignorância. Consagro-Vos tudo o que já fiz e submeto tudo ao julgamento infalível de Vossa Santa Igreja Romana, em cuja obediência estou prestes a partir desta vida”.

Pouco antes de receber a Sagrada Hóstia, pronunciou sua jaculatória favorita: “Vós, ó Cristo, sois o Rei da glória, Vós sois o Filho Eterno do Pai”. Após receber o Santo Viático, ele fez fervorosos atos de fé e amor nas palavras de seu belíssimo Adoro te. No dia seguinte, ao receber a Extrema Unção, respondia calmamente todas as orações, enquanto as vozes dos assistentes eram atravancadas por soluços. Tentou confortar seus irmãos, que estavam inconsoláveis com a perda que se aproximava, e muito agradeceu aos cistercienses por sua caridade. Um deles lhe perguntou qual era a melhor maneira de viver sem ofender a Deus. “Esteja certo”, respondeu o santo, “que aquele que caminha na presença de Deus e está sempre pronto a dar a Ele contas de seus atos nunca se separará Dele pelo pecado”. Essas foram suas últimas palavras. Logo em seguida, entrou em agonia e expirou tranqüilamente em 7 de março de 1274, não tendo ainda completado cinqüenta anos.

No mesmo dia, Santo Alberto, então em Colônia, rompeu em lágrimas na presença de toda a comunidade e exclamou: “Irmão Tomás de Aquino, meu filho em Cristo, que foi a luz da Igreja, está morto! Deus revelou-mo.”

Em Nápoles, também, agradou a Deus tornar conhecida a morte do santo de uma maneira milagrosa. Um dos frades, enquanto rezava na igreja, entrou em um êxtase no qual pareceu contemplar o Santo Doutor ensinando nas escolas, rodeado de uma grande multidão de discípulos. São Paulo Apóstolo também apareceu acompanhado de muitos santos, e Santo Tomás perguntou-lhe se tinha interpretado suas Epístolas corretamente. “Sim”, respondeu o Apóstolo, “até onde alguém ainda na terra pode entendê-las. Mas vem comigo; eu te conduzirei a um lugar onde terás um conhecimento ainda mais claro de todas as coisas”. O Apóstolo, então, pareceu tocar o manto de Santo Tomás e levá-lo, e o frade que contemplara a visão surpreendeu a comunidade ao gritar três vezes em alta voz: “Ai de nós! Ai de nós! Nosso Doutor está sendo levado de nós!”

 

14. Honras Após Sua Morte

O funeral de Santo Tomás foi realizado na Abadia com grande solenidade. Padre Reginaldo fez um breve discurso, freqüentemente interrompido por seus próprios soluços e pelos de seus ouvintes. Ele declarou que, tendo sido por muitos anos o confessor de Santo Tomás, podia solenemente atestar que o Santo Doutor nunca tinha perdido sua inocência batismal, e tinha morrido tão puro e livre de mácula como uma criança de cinco anos de idade. Ele então revelou alguns favores particulares que Santo Tomás lhe tinha proibido revelar durante sua vida.

Muitas revelações da glória do santo deram-se após sua morte, das quais a que se segue talvez seja uma das mais interessantes: um fervoroso discípulo seu orou ardentemente para que pudesse saber qual a categoria a que seu amado mestre tinha sido elevado em glória. Um dia, enquanto fazia suas preces usuais diante do altar de Nossa Senhora, dois veneráveis personagens cercados de uma maravilhosa luz pararam de repente diante dele. Um deles estava vestido como um bispo; o outro usava o hábito de um frade pregador, mas estava resplandecente com pedras preciosas. Em sua cabeça estava uma coroa de ouro e diamantes, de seu pescoço pendiam duas correntes, uma de ouro, outra de prata, e uma joia na forma de um sol brilhava sobre seu peito, vertendo raios de luz por toda parte. “Deus ouviu tua oração”, disse o primeiro personagem. “Eu sou Agostinho, Doutor da Igreja, enviado para te comunicar a glória de Tomás, que reina comigo e que iluminou a Igreja com seu conhecimento. Isso é representado pelas pedras preciosas com as quais ele está coberto. Isto que brilha em seu peito significa a reta intenção com a qual ele defendeu a Fé; as outras simbolizam os livros e escritos que ele compôs. Tomas é igual a mim em glória, mas excedeu-me pela auréola da virgindade.”

Santo Tomás foi canonizado pelo papa João XXII em 1323 na cidade de Avignon. Apenas em 1367 os dominicanos conseguiram obter a posse de seu corpo, que foi levado para o convento de Toulouse, onde foi recebido com todas as demonstrações de honra. Uma festividade anual foi realizada pela ordem em 28 de janeiro, em memória dessa transladação, que foi acompanhada de muitos milagres. Porém, em 1923 foi suprimida em favor da nova festa do Patrocínio de Santo Tomás, em 13 de novembro. Valiosas relíquias do santo foram dadas a vários conventos da ordem. Na época da Revolução Francesa, os restos mortais do santo foram removidos para a cripta da igreja de São Saturnino em Toulouse, onde ainda repousam.

Em 1567, São Pio V conferiu a Santo Tomás o título de Doutor da Igreja, sendo conhecido como “o Doutor Angélico” devido à sua inocência e sua inteligência. Na carta encíclica Aeterni Patris (1879), o Papa Leão XIII instou a restauração do ensinamento de Santo Tomás em todas as escolas, e por um Breve apostólico (1880), o mesmo Pontífice nomeou Santo Tomás de Aquino como Patrono de todas as universidades, academias, colégios e escolas católicos. Para o louvor de seus predecessores, o Papa Pio XI adicionou o toque final ao declarar que o Doutor Angélico merecia o esplêndido título de “Doutor Universal da Igreja” (29 de junho de 1923).

“Assim como foi dito aos antigos egípcios em tempos de fome: ‘Ide a José’ para receberem dele abundância de trigo e nutrirem seus corpos, assim também hoje nós dizemos a todos que desejam a verdade: ‘Ide a Tomás, e pedi a ele que vos dê de sua abundância o alimento da doutrina substancial com a qual podeis nutrir vossas almas para a vida eterna.’” (Da encíclica Studiorum Ducem do Papa Pio IX, 29 de Junho de 1923)

O dia da festa tradicional de Santo Tomás de Aquino é 7 de março.

 

***

 

Oremos:

Ó Deus, que ilustrais a Igreja com a admirável ciência do bem-aventurado Tomás, Vosso Confessor e Doutor, e a fecundais com a santidade de suas virtudes, concedei-nos a graça de compreender o que ele ensinou e de fielmente imitar o que ele fez. Por nosso Senhor Jesus Cristo12.

R/ Amém.

 

(St. Thomas Aquinas, Saint Benedict Press, LLC 2009)

  1. 1. [N. da T.] O Condado de Aquino pertencera à família de Santo Tomás até o ano de 1137.
  2. 2. Por isso, a devoção popular a Santo Tomás o coloca como padroeiro contra trovoadas e morte repentina. São bentas cruzes contra relâmpagos, trazendo de um lado a imagem do Santo e do outro, uma inscrição em latim que ele deixou escrita na parede de uma caverna em Anagni, onde ele mais de uma vez se refugiou durante as trovoadas. Esta é uma tradução da inscrição: “A Cruz para mim é a certeza da salvação. A Cruz é o que eu sempre adoro. A Cruz do Senhor está comigo. A Cruz é meu refúgio.”
  3. 3. [N. da T.] O imperador era Frederico II da Germânia, neto de Frederico I e primo de Santo Tomás, que governou o Sacro Império Romano-Germânico entre os anos de 1220 e 1250.
  4. 4. [N. da T.] Os Quatro Livros das Sentenças (Libri Quattuor Sententiarum), escrito do bispo e teólogo Pedro Lombardo, são uma compilação de textos bíblicos e sentenças de Padres da Igreja e outros pensadores que expõe de maneira detalhada toda a teologia cristã da época. Santo Tomás escreveu um comentário a essa obra – Scriptum super sententiis.
  5. 5. No século XVI, foi estabelecida uma confraria chamada “Milícia Angélica”, para obter através da intercessão de Santo Tomás de Aquino a virtude da castidade. Essa confraria foi enriquecida com muitas indulgências.
  6. 6. [N. da T] Corria o ano de 1244, e o papa era Inocêncio IV.
  7. 7. [N. da T.] O papa a essa época era Alexandre IV.
  8. 8. [N. do E.] A Editora Permanência promoveu a digitação integral da Suma Teológica, bem como traduziu e publicou os Sermões sobre o Pai Nosso e a Ave Maria, sobre o Credo e sobre os Dez Mandamentos. Com exceção deste último, estão todos no nosso site: www.permanencia.org.br
  9. 9. [N. do E.] Quantidade de uma vogal ou de uma silaba é a maior ou menor duração de sua pronúncia. Em latim, a pronúncia da vogal ou sílaba longa dura o dobro da pronúncia da vogal ou silaba breve.
  10. 10. [N. da T.] São João Cassiano (360-435) foi teólogo e monge, ordenado diácono por São João Crisóstomo, de quem se tornou amigo e defensor quando este foi perseguido pela imperatriz Eudóxia e levado a exílio. São Bento recomendou a leitura de suas Conferências a todos os monges.
  11. 11. [N. da T.] Esse Concílio, o Segundo Concílio de Lion, foi convocado em março de 1272 e reunido nessa cidade dois anos depois, em 1274, pelo Papa Gregório X.
  12. 12. [N. do E.] Oração retirada do Missal de Gaspar Lefebvre.
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