Skip to content

O cristianismo que não morrerá

Gustavo Corção

As reflexões que no artigo de quinta-feira andamos fazendo, despertadas pela releitura de uma página de Chesterton, levam-nos à conclusão de que haverá arrefecimento do cristianismo todas as vezes que os homens se afligirem, se envergonharem ou se cansarem de o sentir tão incôngruo em relação ao curso da história, e daí tirarem a intenção de afeiçoá-lo àquele andamento.

A crise de nossos dias, a mais ampla e profunda de toda a história da Igreja, começou por um propósito de aggiornamento. O cristianismo estava envelhecido, a Igreja esclerosada, e o bravo mundo moderno passou a interessar-se prodigiosamente por sua renovação. Reformas... reformas... reformas... O pastor anglicano John Robinson, que andou por aqui a fazer conferências, escreveu um volume inteiro para explicar que hoje, na era espacial, não é possível ter a mesma idéia de Deus “fora de nós” tida e mantida pelos antigos. Eis o que diz na tradução portuguesa esse tipo bem representativo de nossa época: “Enquanto não tinham sido explorados, ou era possível explorar (por meio de radiotelescópios, se não com foguetões) os últimos recantos do Cosmos, ainda se podia localizar Deus mentalmente nalguma terra incógnita. Mas agora parece não haver lugar para Ele, não apenas na estalagem, mas em parte alguma do universo: é que já não há lugares vazios.”

É difícil, em tão poucas linhas, dizer mais densa coleção de asneiras sobre a presença de Deus que, para esse notável anglicano, ao que se vê, sempre esteve no limbo das primeiras imagens infantis. O reverendo (que o Prof. Cândido Mendes Almeida importou quando por aqui é abundantíssimo o similar nacional), fascinado por leituras de vulgarizações, e esquecido da presença de Deus em todas as coisas como causa primeira, e como sustentador de todas as existências, pensa que o homem já explorou todos os recantos do universo!

O leitor encontrará no livro Progresso e Progressismo, AGIR, p. 130, e seguintes, considerações mais desenvolvidas sobre o autor anglicano e sua obra Honest to God que foi best-seller em vários idiomas.

No momento quero deter a atenção do leitor diante deste bonzo “a atualidade” que tem mais adoradores do que todos os Budas do oriente. Passou pelos seminários, pelas salas de capítulo, pelos claustros mais serenos e austeros um frenesi de atualização, um furor indecente de se prosternarem todos diante de um Hoje tornado suprema divindade. Ninguém percebe, nem tenta demonstrar as vantagens da substituição de tais fórmulas por tais outras. Não são mais claras, não são mais belas, mas são reformadas e nisto consiste sua suprema nobreza.

***

Há mil maneiras de tentar banalizar o cristianismo. A mais ampla mas também mais humilde e mais triste é aquela produzida pelo fato de não sermos santos, ou de serem tão poucos os que realizam desde já, aqui e agora, ao menos em algumas cintilações, a maravilhosa e permanente novidade que é Cristo Jesus; mas a mais espessamente estúpida é aquela que, não vendo a supernal, a transcendental Novidade, quer submeter o cristianismo à tirânica frivolidade das pequeninas coisas novas com que o homem tece e borda sua frágil atualidade que já nasce em processo de envelhecimento.

Nunca se falou com tanto garbo no “mundo moderno” e em suas terríveis exigências, mas ninguém se dá ao cuidado de especificar essa modernidade, nem ao cuidado de esconder suas espetaculares misérias. Ninguém, evidentemente, contestará que os veículos hoje são muito mais rápidos do que o cavalo de Carlos Magno, ou o burrico que São Bernardo montou para ir aonde o chamavam, e onde confundiria o bom mas trêfego Abelardo. Eu não preciso fazer malabarismos de imaginação para rever a figura do Santo abade de Claraval, e para imaginar as santas cogitações com que se preparava para defender a Sagrada Doutrina enquanto o bom burrico o ia levando no mesmo doce ritmo com que um outro irmão burro mil anos atrás levara ao Egito, Nossa Senhora e o Menino Jesus. O que preciso fazer esforço para imaginar é o quadro atualizado de um São Bernardo a sair de seu mosteiro, num Fusca a 120 quilômetros por hora. Não digo que seja impossível. Metafisicamente é possível que um grande santo de hoje dirija um carro; mas tudo parece contraindicar que esse veículo possa proporcionar ao hipotético santo o mesmo lazer para a meditação, como também tudo leva a crer que a velocidade do veículo não possa modificar o bom fundamento da argumentação que venceria Abelardo.

Curioso progresso! O que hoje se vê todos os dias são revoadas de Abelardos, e de sub-Abelardos, que a mil quilômetros por hora atravessam os oceanos para se reunirem em congressos, sínodos, conferências, onde serão propostas mil pequenas e efêmeras renovações por dia. E é com esse frenético ativismo que querem atualizar o Cristianismo; e é com essa submissão ao século que querem vitalizá-lo. Depressa se desencantam de correr e voar, e então, para reduzir o Cristianismo a um puro humanismo, resolvem anunciar a morte de Deus.

Mas o menino Jesus, no mesmo ritmo lento de outrora, continua a nascer virginalmente todas as manhãs nas almas submissas, e continua a ressuscitar triunfalmente todas as manhãs para deixar em nós o anúncio de nossa própria ressurreição. E nisto pomos todo o fervor de nossa Fé: passarão os impérios, as máquinas do mundo, mas esse cristianismo sempre pequenino, manso, único e eterno não passará.

(O Globo, 14/8/71)

AdaptiveThemes