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Lei-Ming-Yuan

Gustavo Corção

 

Nesses dias andei pela China. Mais precisamente e graças ao livro de Chanoine Jacques Leclercq (Vie du Père Lebbe — Casterman, 1955), fiz na minha poltrona uma viagem no espaço e no tempo, e andei pela China de quarenta anos atrás, tentando acompanhar, como me permitissem as pernas da imaginação a incrível, a fabulosa trajetória do personagem meteórico que no Ocidente se chamou Vicente Lebbe, e que milhões de chineses, com amor e veneração chamaram Lei-Ming-Yuan, que quer dizer trovão-que-canta-ao-longe.

Vicente Lebbe foi padre lazarista e missionário da China. Sua grande originalidade consistiu em levar a sério, alegremente, o fato de ser lazarista e o fato de ser missionário. Mas a sua suprema originalidade consistiu em levar a sério a China. Foi sempre o que Chesterton chamava “um super-vivo”. Direto como um pássaro, autêntico como uma flor, ágil como um gato, o Pe. Lebbe, em quarenta anos de lutas, de contrariedades, de perseguições, de trabalhos, de perigos nas viagens e nas guerras, guardou intacto o fogo que nos retratos se vê brilhar, com invencível alegria, nos seus olhos de menino.

Foi aos onze anos no colégio da Bélgica que sua alma, num pulo, tomou a resolução definitiva. Tinham-lhe indicado a leitura da vida do bem-aventurado Jean Gabriel Perboyre, lazarista, morto na China em 1840 como testemunha de Cristo. Terminada a leitura, o menino exclamou: “serei lazarista, e missionário na China”. Doze anos mais tarde, vencendo uma série de preconceitos e de hábitos eclesiásticos, e graças ao inesperado apoio de um velho bispo, embarca, ainda seminarista, para o país dos seus sonhos. Durante a viagem vai aprendendo o chinês. Chegará a falar tão bem o idioma, e a conhecer tão intimamente os costumes e os hábitos chineses que mais tarde só saberão pelas feições que ele é um estrangeiro. Coisa que aliás o magoava. “Não olhem para o meu nariz, mas para o coração que é chinês”.

Em outubro de 1901 ordena-se padre e escreve à família anunciando que agora é padre chinês da Igreja na China. E nos cartões de sua ordenação imprime o conselho de Paulo a Timóteo: “Tu vero labora...”

Outra coisa a ser tomada ao pé da letra. E do mesmo apóstolo dos gentios tira o Pe. Lebbe as diretrizes da ação missionária. “Sim, sendo livre fiz-me escravo a fim de ganhar o maior número. Fui judeu como os judeus para ganhar os judeus, com os sujeitos à lei, eu que não estou sujeito à lei, sujeitei-me a fim de ganhar os que estão sujeitos à lei; e com aqueles que estão sem lei, como estivesse eu sem lei, embora esteja submetido à lei de Deus e ao Cristo, tornei-me sem lei para ganhar os que estão sem lei. Fiz-me fraco para com os fracos ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos a fim de salvar a todos...” (1Cor 9, 20-22)

Mas logo ao desembarcar Vicente Lebbe começa a descobrir com assombro que os missionários europeus não parecem muito apegados ao exemplo paulino. Descia a escada do navio, lépido e esperançoso, quando ouviu um padre mais velho dizer-lhe que entregasse a mala a um coolie. Um missionário não devia carregar a própria mala.... Mais tarde, em Na-Kia-Chwang, onde seria ordenado, observa que os padres chineses não comem à mesa dos europeus. E em tudo o mais, o que é chinês é desprezível e subalterno para a superior raça branca que fazia o favor de trazer a civilização e o Evangelho.

Vicente Lebbe, via com seus próprios olhos, que nesse tempo sofriam longa e cruel enfermidade, via, concretizado, brutalmente corporificado, espessamente realizado, o secular equívoco de uma civilização fundada no orgulho e no direito da força. E com maior tristeza esbarrava com o equívoco ainda mais grave: o da vinculação que insidiosamente se estabelecera entre os estatutos dessa civilização e os costumes dos homens da Igreja. Sob o falacioso pretexto de coordenação de esforços para a prática do bem, tantas vezes invocado pelos que aspiram ao conforto de uma religião oficializada, os padres missionários franceses se comportavam como meros funcionários a serviço dos superiores interesses do Protetorado. Provavelmente julgavam que essa subordinação era vantajosa para a pregação do Evangelho, e que outra não era a doutrina relativa às autoridades constituídas e à união da Igreja com o Estado. E assim a Cruz de Cristo chegava aos chineses acompanhada da bandeira francesa, e às vezes protegida pelos canhões. Custa a entender que alguém escolhesse a espinhosa vocação missionária sem nela incluir uma fraterna ternura pelos povos a que se levava o Evangelho. Custa a crer que não lhes ocorresse a ideia da transcendência da Igreja, ou até a ideia mais chã de que, para um chinês, pode haver uma dignidade e um brio de ser chinês. Mas é com essas coisas dificilmente críveis que se desenrolou, através dos séculos, a história trágica da Igreja. A grande, a permanente tentação é a da vinculação da Igreja, aos quadros temporais, é a da recusa da transcendência de sua vocação.

Comentando a recente e vergonhosa história do colonialismo na China, o cônego Leclercq diz sem rebuços:

“Foi a França que interveio a favor das missões e obteve em 1846 um edito de tolerância. Desse dia em diante os missionários tornaram-se clientes da França. Já a guerra do ópio se assinalava por vantagens concedidas às missões. Toda a história das relações entre a China e o Ocidente será doravante marcada pela predominância da força (...). As missões se prendem nessa engrenagem (...). A confusão entre a religião cristã e a política europeia se torna inextrincável. Os missionários aproveitam a força da Europa, e armazenam os ódios...

Mas a maior parte dos missionários não vê nisso algum mal. Bons europeus eles acreditam ingenuamente na superioridade de tudo que é europeu (...). Juntava-se a isto o nacionalismo, produto do século XIX. A França tinha assumido o protetorado das missões, aliás sem ouvir a Santa Sé.

A maior parte dos missionários eram franceses e sentiam-se inclinados a favorecer a política expansionista de seu país, tudo fazendo para que vingasse na China, o amor pela França e o conhecimento da língua francesa, e ao mesmo tempo, o amor pelo Cristo e o conhecimento da religião”.

Mas adiante o cônego Leclercq não hesita em dizer: “Depois de tudo o que dissemos, o que espanta é que ainda existam cristãos na China, e que ainda se observem conversões, e até que muitos cristãos chineses tenham um fervor que raramente se encontra na Europa”.

Ora, é nesse enorme mundo tão maltratado pela chamada civilização cristã, é nesse imenso mundo de expectativas decepcionadas que desembarca em 1901, um pobre magricela, doente, quase cego, com a ideia de ser chinês entre os chineses, para ganhar os chineses. Com paciência fremente, com benignidade candente, com obediência sobrenatural em grau heroico, o Pe. Lebbe começa a mais espantosa vida de que já ouvi falar. Dia a dia realiza uma entrega, uma doação, um desgaste que nos deixa atônitos. “Le Père Lebbe se despense! ” ... diz simplesmente o cônego Leclercq. Seria melhor, talvez, dizer, que o Pe. Lebbe se queima, se incendeia, e corre a China incendiando e queimando.

Seria ainda melhor, talvez, dizer que ele se gasta numa combustão mais profunda, como o urânio nos reatores nucleares, para frisar a colossal desproporção entre a energia que produz e a magra energia que a alimenta. Lendo essa vida espantosa, percorrendo nas páginas do livro a progressão geométrica dos feitos, chegamos a pensar que o conhecido e austero tratadista de Direito Natural perdeu a noção da medida, ou perdeu a razão. Quando, porém, se considera o nome e o veredito que merece o autor, então... então vêm-nos a impressão arrebatadora de uma divina loucura. Dir-se-ia que o Pe. Lebbe foi designado para compensar sozinho, com a única força da Graça entre tantos espinhos na carne, o himalaia de erros, de omissões, de tolices, de burrices, de perversidades semiconscientes e de crueldades voluntárias de quatro séculos de civilização. Dir-se-ia que Deus deixou o Pe. Lebbe aprender depressa o chinês, e providenciou quem lhe desse uma velha bicicleta, para que ele assim armado, com sua magreza e sua pobreza, pagasse a dívida atrasada, a dívida terrível contraída pelas grandes nações do mundo ocidental; para que ele sozinho com a força da Graça, devolvesse às missões a comprometida transcendência, e à civilização colonizadora a perdida dignidade; para que ele, com seu rabinho e seu longo cachimbo, neutralizasse de algum misterioso e insondável modo o horror da guerra do ópio, só comparável em hediondez aos horrores produzidos pelos regimes autoritários.

Toda a obra do Pe. Lebbe na China, de que tentaremos dar um esboço em outro artigo, girou em torno da universalidade da Igreja e do direito dos chineses formarem sua Igreja. Sua ideia fixa, que viu realizada através de um milhão de dificuldades, era a de ver constituído o episcopado chinês. Os prudentes mandavam informações contrárias a Roma. Ameaçavam com o cisma. Gabavam a vantagem do paternalismo, mas o Pe. Lebbe teve a alegria, no fim da vida, de ver sagrados seis bispos chineses, seis bispos escolhidos por ele, nomeados com um pedaço de lápis que ele depois guardou como relíquia.

Vê-se em tudo o que nos conta o cônego Leclercq que a vida do Pe. Lebbe tem o mais autêntico e clássico espírito paulino, e ao mesmo tempo a melhor marca da atualidade.

Como São Paulo, o Pe. Lebbe combate, com as santas armas da paciência e da obediência, os privilegiados que se julgam donos dos evangelhos.

Como São Paulo, choca-se com os corações circuncisos que tem desprezo pelos gentios, ou que, na melhor das hipóteses, vê nos chineses alguma coisa a ser cuidada, do alto, com benevolente paternalismo. E as cenas que o cônego Leclercq descreve no seu livro, a cada instante nos transportam para os séculos da Igreja-Mártir, ou para os claros dias dos Atos dos Apóstolos. Com uma pequena diferença apenas. Aqueles que todos os dias, com um só coração se reuniam no templo, e partindo o pão com júbilo e simplicidade, louvavam a Deus, e cujo número o Senhor cada dia aumentava por onde passava o Pe. Lebbe, eram um pouco diferentes dos que cercavam Pedro e Paulo: tinham os olhos oblíquos e pele dourada...   

 

 

(Diário de Notícias, 06/10/1957)

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