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"Acaso eram eles mais pecadores do que vós?"

-- E logo nas vésperas de Natal! Murmurou a meu lado alguém. O jornal escancarava a notícia: TERREMOTO EM MANÁGUA. E os mortos e feridos já empilhados em cifras, amortalhados para as estatísticas. Na família reunida para a noite feliz houve um silêncio e passou um frêmito, como na história da Morte da Máscara Vermelha, de Edgard Poe. Cada um de nós sentia a presença da Intrusa, que não fora convidada, e que não era da família porque família se define por casamentos e nascimentos, e não por falecimentos. A Intrusa, que rejeitamos com o instinto e com a Fé, estava ali a nos espionar. Ou a trazer algum recado?

Em menos de um mês tivemos cortada, esmagada contra um poste, uma vida maravilhosamente bela e generosa que saíra de casa para fazer compras, isto é, para amamentar a família enorme. No dia seguinte, na mesma rua, quase na mesma hora, outra vida em flor era pisada pelo mesmo e mais mortífero dos inventos de que se gabam os homens, e com que sonham os moços. Há estatísticas que provam e dão ao fato brutal a auréola dos algarismos: acima das guerras, das calamidades, e de qualquer doença, o mais mortífero engenho é esse lustroso brinquedo de quatro rodas com que os homens de nosso tempo graduam as importâncias sociais.

Nesta mesma quinzena ou vintena desaba o supermercado que ainda fizera o favor de avisar a catástrofe com uma miniatura de terremoto. Em vão. Os homens deste século de ida à Lua estão seguros de si a multiplicar as torres de Babel. Nesse entretempo, aqui e ali, pingam da estratosfera aviões maravilhosamente modernos, com suas máquinas perfeitas, seus passageiros muito cônscios do século XX e suas aeromoças sequestradas pela necessidade para o serviço do otimismo universal.

A intrusa está ali a querer também seu presente de Natal, e nós a sentimos dentro de nós, mal escondida. De vez em quando, como feto de cinco meses, ela se mexe dentro de nós, e nossa atenção, fugazmente desviada do circo e da máquina do mundo, enverga-se sobre si mesma e ausculta-se. Passou? Passou. Ela se encolhe e a atenção abre as janelas para o variado e divertido espetáculo do fim do ano. Os orgulhosos vivos, sem se sentirem grávidos da própria mortal fragilidade, passam a pé, ou nos automóveis, todos com a mesma fundamental convicção: o chão é o chão, sólido, constante, antigo, eterno. A terra é a terra, regaço de rochas com que se pode contar, e em que nem precisamos pensar. Ela está ali “Elle est lá”, dizia Claudel pensando naquela que estava “stabat” ao pé da cruz. Mas nós somos filhos de duas mães, uma que nos quer inteiros, e outra que nos quer dilacerados...

Passou? Passou. E a atenção abre as janelas. Mas desta vez é da própria janela, como um mau hálito, que entra o bafo da morte de um supermercado inteiro. Ele estava pousado sobre o chão, firmado na terra, e de repente a terra mesma o rejeita, o enjeita. E agora, Santo Deus! é uma cidade que se agita numa dança macabra em cima de um chão enlouquecido. Trinta mil mortos. Duzentos mil feridos. E logo os elementos que o homem julgara domesticados entram na conjuração: a água inunda, o fogo cresta, o ar sufoca, e a terra mastiga os seus filhos. Como retornar agora o ritmo do “otimismo” que hoje no mundo católico é uma virtude teologal? É só fechar a janela, dobrar o jornal, e recomeçar a festa do príncipe Próspero. Vem-me à lembrança o que escrevi em Dois Amores, Duas Cidades (vol. II, pág. 297): “Foi nos princípios do século XVIII que surgiu a filosofia e o vocábulo “otimismo”. Todo o ocidente, inebriado de iluminismo, e da convicção de viver no Grand Siècle, num curioso e sinistro paradoxo, diminuía o homem e aumentava a confiança no homem, acinzentava os horizontes e sorria para nesgas de um azul imaginário. Foi o terremoto de Lisboa em 1755 que soou na Europa como um despertador. Voltaire esfrega os olhos e começa a desconfiar que sonhou.

Em Candide, Cacambo pergunta o que é otimismo. – Helás! Diz Candide, c´est la rage de soutenir que tout est bien quand tout est mal.1

Aquele terremoto foi efetivamente mais do que uma catástrofe física, foi um escândalo cultural que vinha mostrar “em pleno século XVIII” que o homem é apenas homem, e apenas um pouco mais forte do que as moscas. Aliás, em caso de terremoto, torna-se até mais fraco, porque as moscas dependem menos da firmeza do chão.

Mais perto de nós, em 1936, outra crise de otimismo correu o mundo e a França, em noitadas de prazer com o Front Populaire, descarregava no humor trágico toda sua insouciance e cantava, à beira dos abismos: “Tout va três bien Madame la Marquise”.

Agora, nesta cômica “era pós-conciliar”, ou “era espacial”, ou “era da imagem” ou “era do já era”, novo ataque de estupidez entra na história com as cores rosadas do otimismo. Vemos com pavor acumularem-se as provas de soberba do homem que pomposamente e pedantemente recusa o senhorio de Deus.

Será tudo isto um castigo de Deus? – perguntou-me uma filha.

Não pertenço ao grupo espiritual dos que imediatamente, horrorizados, repeliriam a idéia de um castigo divino; mas no caso prefiro pensar no terrível mistério da permissão divina, e decididamente prefiro ouvir a lição que Jesus nos deixou para tais casos. Quando chegaram diversos com a horrorosa notícia das violências praticadas por soldados romanos contra os galileus, cujo sangue Pilatos assim misturava ao do sacrifício que faziam (Lc 13, 1). Jesus – para desespero dos atuais teólogos da Revolução – sem dar nenhuma resposta ao aspecto do odioso abuso imperialista, sem parecer sequer ter ouvido este aspecto do acontecimento, dá aos recém-vindos uma resposta desconcertante que vai diretamente ao centro da questão, isto é, daquilo em razão de que se encarnou por obra do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem e padecerá sob Pôncio Pilatos, por nós homens, e para nossa salvação.

Nesta vigília de Natal pareceu-me ouvir o Menino Jesus repetir: -- Acaso eram as vítimas de Manágua mais pecadores do que vós? Digo-vos eu que não. Acaso eram mais pecadores do que vós os dezoito esmagados na queda da torre de Siloé? (...) Digo-vos que não e que, se não fizerdes penitência, todos perecereis...” E em outros textos: “Vigiai e orai porque não sabeis a hora.”

(O Globo, 28/12/1972)

  1. 1. Ai de mim! É a raiva de sustentar que tudo vai bem quando tudo vai mal. (N. da P.)
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