Um Começo que Não Promete Grandes Coisas
Comecemos por um jogo falseado, ou melhor, pela realidade que se esconde sob aquela falsidade, ou ainda melhor, ou talvez irremediavelmente pior, comecemos pelo anúncio de trágicas conseqüências da falsificação tomada como critério de valor ou de verdade. E qual é essa falsificação? É o esquema, ou o jogo Esquerda-Direita.
A origem desse binômio, como ninguém ignora, foi a divisão das poltronas no parlamento francês. Os termos que definiam bancadas e índoles partidárias subiram para o céu das essências e passaram a designar certos arquétipos, ou, em linguagem mais aristotélica do que platônica, tornaram-se abstratos; mas ao mesmo tempo que perdiam densidade telúrica ganhavam estranhas energias. No princípio do século XX, com a explosão do “Affaire Dreyfus”, mais violenta do que a explosão de Krakatoa na Polinésia, os termos do binômio ganharam uma carga histórica imprevista. Mas é depois de 1930 que o jogo — falseado em suas regras — ganha um vigor que bem traduz o enfraquecimento da inteligência do século.
Numa primeira tentativa de definição dos termos em confronto, tomemos uma página de Maritain em “Le Paysan de la Garonne”, página esta exumada de um artigo opúsculo, “Lettre sur l’Independance” (Desclée Brouwer, 1935), e na qual o autor tem clara consciência da ambigüidade em que flutuam os termos empregados, mas nem por isso toma o partido de denunciar o falso utensílio mental.
Começa por dizer que “num primeiro sentido alguém é de direita ou de esquerda por uma disposição de temperamento”. Nesse sentido seria vão querer ser isto ou aquilo, já que nascemos ruivos, biliosos ou sanguíneos. O que se pode fazer, diz ainda Maritain corrigir seu temperamento para evitar as monstruosidades dos limites extremos: o puro cinismo da “direita” e o puro irrealismo da “esquerda”.
Aqui, evidentemente já se percebe que um do mais inteligentes filósofos do século caiu no erro de querer modelar matéria muito ingrata. Desde logo se levanta em nosso espírito uma idéia que merece reparo: se podemos corrigir os temperamentos para evitar as monstruosidades extremas, por que não corrigi-los desde logo no nível das monstruosidades medianas que certamente todos nós gostaríamos de evitar?
Além disso, nota-se no raciocínio do filósofo uma quebra de homogeneidade entre os conceitos definidos como temperamentos e cada um desses limites extremos que, de um lado, pertence à ordem moral (já que ninguém é cínico por temperamento), e do outro lado pertence à ordem intelectual.
Este pequeno tropeço poderia ser evitado se o autor considerasse o vigoroso, ou até o violento dualismo que caracteriza o jogo esquerda-direita, e que se coaduna mal com a caracterologia. Se quisermos caracterizar os homens por seus temperamentos, não há razão nenhuma para limitar a dois tipos essa espécie de variedade. Hipócrates foi mais pluralista do que o autor de “Humanisme Integral”, porque abriu a rosa dos quatro ventos para os humores predominantes e os conseqüentes temperamentos humanos: o sanguíneo, o fleumático, o melancólico e o colérico.
O dualismo do esquema já nos induz a procurar sua colocação no plano ético, ou mesmo no plano da cosmovisão, ou da ideologia, onde os termos esquerda e direita poderão significar tipos de personalidades marcadas por parâmetros morais e por concepções intelectuais.
Numa segunda tentativa, contra seus hábitos e seu gênio, o autor prefere a ilustração à definição e toma dois personagens representativos: Jean Jacques será o “puro homem de esquerda” que prefere “o que não é ao que é”, isto é o homem a quem repugna o “ser”; e para representar o puro homem de direita “que detesta a justiça e a caridade” (!!) o autor toma Goethe, não a pessoa de Goethe, é claro, mas a abstração ou hipóteses de pessoa que levasse às últimas conseqüências uma frase atribuída ao autor de Fausto, pela qual “ele preferia a ordem à justiça”.
Aqui estamos novamente fora do campo neutro da caracterologia: de um lado temos um monstro intelectual ou uma espécie hiperbólica de demência, e de outro lado um monstro moral, ou um demônio, porque só os demônios podem detestar justiça e caridade. Além disso não há homogeneidade entre os dois termos do binômio e portanto não há possibilidade de contraposição.
Detenhamo-nos um pouco na frase atribuída a Goethe e freqüentemente utilizada para estigmatizar os conservadores, os tranqüilos, os bons pais de família com o mediano egoísmo que constitui o “niveau de l’humanité”, como dizia Péguy. Esses homens, a acreditarmos no binômio que reaparece na página 236 de “Le Paysan de la Garonne”, preferem a ordem à justiça.
Que sentido terá essa frase? Receamos que não tenha sentido nenhum. Rigorosamente, “formaliter loquendo”, não há ordem social sem justiça, nem justiça sem ordem. As duas coisas pedem integração e não oposição, e opção. A frase só recupera a mínima dignidade verbal a que aspira qualquer proposição se admitirmos que os termos confrontados, ordem e justiça, são tomados equivocamente, ou pelo menos com certa frouxidão. Assim, um dado homem é de direita porque prefere “o que ele chama de ordem” à justiça, ou prefere apegar-se ao “que ele chama de ordem” ao que ele mesmo sabe que é justiça. Mas esse mesmo homem acusado de ser de direita, nesses termos, poderia dizer que ele prefere “o que sabe ser ordem” ao que você, de esquerda, chama de justiça. E não se diga, depressa demais, que é só a idéia de ordem que se presta à equivocidade, enquanto a idéia de justiça, com refulgente nitidez, se impõe a gregos e troianos. Creio que, se promovêssemos um inquérito sobre o uso equívoco dos dois termos nos tempos que correm, a equivocidade do termo justiça ganharia por dois corpos da equivocidade do termo ordem. Estamos evidentemente em pleno delírio se insistirmos em dar algum valor de utensílio mental a frases que contrapõem dois termos equívocos, e se admitirmos que o valor de tais fórmulas depende do teor de equivocidade de cada termo. O que até aqui já vimos nos inclina a concordar com Jules Monnerot que chama de “solecismos políticos fundamentais” o conjunto de fórmulas postas debaixo do título genérico Esquerda-Direita.
Quando Maritain emprega em “Le Paysan” o mesmo binômio “ordem-justiça” duas vezes, para caracterizar a direita e a esquerda, podemos imaginar a presença do fantasma de Maurras, e de outros fantasmas menores, nas zonas obscuras de sua memória. Nas paredes da “Action Française” o termo “ordem” tinha sonoridades de clarim ou de trovões do Sinai. Mas Charles Maurras não era tão cartesiano ou tão positivista como o pintam: nos dias de mais ardorosa paixão política, nos momentos em que o jornal mais precisava de seus golpes de soldado, ou nas horas em que a “vermine rongeait la France” e em que os inimigos mais mereciam o que Jean Madiran, com certa impiedade, chamou de psitacismo de Maurras, jamais deixou de ser poeta o último soldado francês. Certa ocasião em que os amigos reunidos na “Action Française”, em conversa animada, passaram da notícia do dia à Grécia de Eurípedes, houve quem dissesse que o rei Créonte representava a “ordem”, e com surpresa geral Maurras caiu a fundo sobre o infeliz: Não! Não! Quem representava a “ordem” era “Antígona”.
Nos tempos modernos a delirante equivocidade do termo “justiça” produziu variadíssima flora onde poderíamos colher os mais variados ramalhetes antiespirituais. Para começo de conversa, não deixa de ser divertida a simplicidade com que os “intelectuais” de esquerda concedem ao comunismo intenções de justiça. Poderíamos dizer aqui, sem nenhum malabarismo, em termos menos equívocos do que as frases aplicadas a Maurras ou a Garrigou-Lagrange, que são os esquerdistas que preferem a ordem-estrutura à justiça-virtude. E com esse equacionamento teríamos no comunismo a extrema direita!
Exemplo ainda mais delirante da variedade de sentidos atribuídos ao termo “justiça” nos é hoje proporcionado por um arcebispo católico que encoraja os terroristas, os seqüestradores, os assassinos de reféns, apontando-os como heróis que lutam pela implantação da “justiça”. Essas afirmações ditas “corajosas” apesar da absoluta inexistência de qualquer risco, a não ser o de um tropeço nos palcos apinhados de fotógrafos e operadores de TV, podem ser discutidas em vários planos. Certamente não acham lugar nenhum no edifício da sabedoria católica; certamente não se inscreverão no patrimônio da glória das civilizações; certamente destoam de todos os códigos penais desde Hamurabi até nossos dias; mas o que é indiscutível é que com aquelas afirmações o arcebispo tem todos os títulos para merecer a gloriosa qualificação de extrema esquerda.
Os Vários Binômios do Jogo Esquerda-Direita
Os resultados colhidos com a tentativa de explicar o binômio Esquerda- Direita com o binômio Justiça-Ordem já bastam para nos indicar que a contraposição procurada nesse jogo é mais complexa e envolve maior número de categorias contrapostas. Tentemos esboçar um quadro dos vários binômios que o jogo Esquerda-Direita, promovido e ativado pelos “intelectuais” deste nosso glorioso século, nos recomenda. Ei-lo:
ESQUERDA DIREITA
Igualdade Aristocracia
Liberdade Autoridade
Anarquia Hierarquia
República Monarquia
Democracia Autocracia
Anarquia Ditadura
Revolução Tradição
Internacionalismo Nacionalismo
Justiça Ordem
Justiça social Segurança nacional
Virtudes revolucionárias Virtudes militares
Ação social Ação política
Reformismo Conservantismo
Comunismo Reação anticomunista
etc. etc.
Vê-se logo que não há correspondência bi-unívoca entre os termos “E” e os termos “D”. Assim com já opusemos “ordem” e “justiça”, poderíamos agora contrapor sem menos infelicidade:
ESQUERDA DIREITA
Anarquia Ordem
Revolução Ordem
Igualitarismo Ordem
Liberalismo Ordem
etc. etc.
A primeira coisa notar nesses vários binômios é a variedade de espécies. Creio que são três as espécies possíveis.
Em primeiro lugar temos os binômios formados de termos opcionais, válidos ambos, e ambos moralmente aceitáveis. Exemplo:
República — Monarquia
Em segundo lugar temos os binômios formados de termos complementares, aparentemente opostos. Exemplos:
Justiça — Ordem
Ação social — Ação política
Justiça social — Segurança nacional
E finalmente temos os binômios formados por termos realmente opostos e antagônicos. Exemplos:
Anarquia — Ordem
Comunismo — Regime de dignidade da pessoa humana
Liberalismo — Princípio da autoridade
No primeiro caso, o dos termos opcionais, podemos e devemos escolher um deles conforme as exigências de uma dada conjuntura apreciada por nosso sistema de convicções. Em princípio, é moralmente neutra esta ou aquela forma de governo que não contrarie a lei natural. O calor de nossas convicções poderá, acidentalmente, valorizar demais a república ou a monarquia, poderá até chegar a excessos de radicalização, como chegaram os monarquistas da “Action Française”. Posso entretanto admitir que Maurras, Bernanos e outros, por uma acuidade especial, empírica, para o caso concreto da lamentável experiência francesa do princípio do século, tivessem razão no paralelismo que estabeleciam entre república (ou democracia) e anarquia. Posso até admira-los sem necessidade de retocar minhas pacatas e assentadas convicções republicanas. Mesmo nos casos em que nenhum preceito moral determine uma escolha e a correlata recusa, resta ainda a margem para a ponderação de qual das duas soluções será melhor em relação aos mil e um vasos capilares do caso concreto. A experiência da história mostra que os homens são capazes de se empenhar com o mais afogueado fervor nos desempates onde não há nenhuma indicação nítida de princípios morais. Talvez para compensar a insegurança ou a obscuridade da percepção dos contingentes, criamos em nós uma ênfase calorosa que muitas vezes mais se destina ao uso interno do que ao proselitismo exterior.
Mas deixemos essas digressões e voltemos ao nosso esquema E-D.
No segundo caso estão os termos em falso antagonismo que pedem complementação. É curiosa a tendência com que o jogo E-D, que Monnerot chama de “solecismo político”, tem de introduzir antagonismos falsos e desconhecer a necessidade de conjunção dos opostos; coisa que prova a tendência de tal jogo à inimizade. No caso lembramos o binômio justiça e ordem que, pelo senso comum, antes de grandes especulações, pede complementação aos gritos. Veremos no tópico seguinte um eloqüente exemplo do mau funcionamento do jogo E-D, que mais parece ter sido inventado para confundir do que para aclarar as idéias.
No terceiro caso estarão os verdadeiros antagonismos que, a rigor, constituem o assunto da imensa polêmica interna de nosso fim de civilização, de que tentamos fazer em todo este livro, uma condensação. Mais adiante, no tópico que se refere ao revolucionarismo, voltaremos a considerar este assunto na pauta especial do jogo esquerda-direita; mas antes disso precisamos desenvolver um pouco mais as conseqüências desse jogo falso e falseador em que tantos “intelectuais” se deixaram envolver.
A Estranha Cegueira dos “Intelectuais” no Jogo E-D
Os adversários de Mussolini eram os homens do nascente “front Populaire” e mais um grande número de católicos. Quanto à direita, quanto aos conservadores e reacionários, quanto ao partido nacionalista, quanto àqueles que chamei “guardiães da cidade” — esses se levantaram como um só homem contra a Sociedade das Nações, contra o direito internacional, contra o tratados assinados pela França, e apoiaram a agressão italiana.
Ao pé da página, arrependido de ter escrito “como um só homem”, Y.S. admite algumas raras exceções. Não sabemos se em algum lugar definiu o que entende por “homem de direita” e agora nos diz que essa espécie de homem comportou-se da maneira acima descrita, ou se é precisamente nesse comportamento que devemos ver uma definição de “homem de direita”. Na verdade, em cada texto onde aparece esse tipo baixado do arquétipo tem-se a penosa impressão da mesma recorrência: “Aqueles homens que chamo de direita (e que todos nós sabemos como são feitos) comportaram-se como homens de direita”.
Não consigo ver no mesmo saco, com o mesmo cheiro e mesmo gosto os reacionários, os conservadores e os fascistas que apoiaram o feito de Mussolini “avec un enthusiasme fievreux”. Se queremos definir os homens “de direita” como os defensores da “ordem”, da “tradição” e da autoridade, ou como os homens apegados à segurança pessoal e ao seu padrão de vida, não vejo como equiparar esse tipo de homem com os inquietos e efervescentes fascistas, descendentes de Sorel e de d’Annunzio, que só se propunham viver na constante exaltação dos valores da vida, realçados pelo constante perigo.
Ora, por uma dessas aberrações culturais de nosso bravo século, é justamente esse exaltado, quase diria que desordeiro ou esse aventureiro por sede e fome de vida, que será apontado como extrema-direita. Reciprocamente, não haverá para os homens ditos de esquerda, melhor título do que antifascista.
Em seu “opus magnus”, traduzido em várias línguas, J.Monnerot descreve muito lucidamente “as variáveis e constantes do fascismo” (pg.589). E na página 593 diz:
O fascismo, para contornar a carência de uma oligarquia política em posse de um estado, promove uma elite sobressalente, aparentemente improvisada, e toma emprestado os processos subversivos do adversário principal, o comunismo, com o qual está sempre num processo de osmose: muitos homens em pouco meses passam de um para outro desses supostos extremos. (...) O fascismo é característico de uma sociedade predominantemente industrial de mobilidade social fraca. E deriva o caráter revolucionário (rápido e violento) dos fatos de circulação das elites que constitui. Os liberais e os marxistas propagaram ou deixaram propagar a idéia de que o “parti” fascista é um partido conservador, um partido de direita (sic). Convém proceder à constatação contrária.
Voltemos ao livro de Yves Simon na página 85, onde o autor se refere ao motim de 6 de Fevereiro de 1934, que deixou vinte e dois mortos na noite gelada da Praça da Concórdia. Diz Yves Simon que a situação parecia favorável ao restabelecimento do “fascismo” em França. Essa afirmação soa-me como um irrealismo de delírio, ou como de alguém que me explicasse as guerras do Peloponeso em termos direita-esquerda, e me dissesse que os espartanos eram homens “de direita”. Mas o mais bizarro é o que diz depois:
Teria sido vantajoso conseguir que os católicos marchassem “como um só homem” (grifo meu) em favor de um golpe de estado projetado (?) contra as liberdades democráticas, e era possível esperar que se realizasse facilmente a unanimidade católica, já que se oferecia uma oportunidade de comer o maçom, como no tempo do “Affaire Dreyfus”. Mas alguns católicos tinham compreendido que o prazer de comer o pedreiro- livre não devia sobrepujar o bem comum da pátria. Um manifesto, “Pelo Bem Comum”, assinado por 52 escritores católicos...
Não, digo eu: assinado por 52 “intelectuais” católicos.
...bastou para demonstrar que a França cristã não permitiria que sua causa de identificasse com o fascismo.
E aí está, nessas poucas palavras de um honrado filósofo tomista transmudado em “intelectual” assinador de manifestos, um dos mais fantásticos exemplos do irrealismo político, ideológico e histórico a que se deixaram levar os intelectuais que viveram numa perpétua “journée des dupes”.
O que realmente aconteceu em 6 de Fevereiro de 1934 foi o seguinte: a exaltação de umas cabeças quentes (algumas das quais pagaram com a vida esse delírio), ativada com o escândalo Stavisky, ofereceu uma oportunidade realíssima que logo se concretizou no “Front Populaire”, que é nem mais nem menos, o começo da derrota da França de 1940. E é o próprio Yves Simon, santo Deus!, quem nos diz das nuvens estas palavras verdadeiramente aladas, embora num sentido um pouco afastado do que lhe dá Rapsodo:
Mas o mais importante dos resultados políticos imediatos do 6 de Fevereiro foi a formação do “Front Populaire”. Antes dessa jornada trágica, o perigo fascista nunca tinha sido levado a sério.
Em 6 de Fevereiro as ligas fascistas se mostraram capazes de tentar um golpe de estado, e até de efetiva-lo. Em presença de uma ameaça tão clara, todas as forças antifascistas de França compreenderam que era tempo de cessar suas dissensões e de realizar a unidade de ação que as forças antifascistas da Alemanha não conseguiram.
É espantoso o ilogismo de Yves Simon, que nos fala como se a França, que teve a felicidade de reunir as forças antifascistas, tivesse invadido e vencido a pobre Alemanha, que não conseguira a mesma salutar união.
Na realidade — realidade espessa, áspera, pegajosa e vagamente fétida, realidade que escapa sempre à percepção dos intelectuais católicos de esquerda — o que aconteceu foi o seguinte: capitalizando, como de costume, a exaltação (fascista?) de 6 de Fevereiro, os socialistas e comunistas se coligaram para a desgraça da França e do mundo com o apoio dos 52 ingênuos que julgavam salvar a França no momento exato em que contribuíram para abrir as comportas da torrente revolucionária, e assim liberar o monstro que tem a singularidade de se nutrir de fantasmas, de esquemas irreais e de categorias de delírio.
Um notável filósofo tomista não consegue ver o óbvio, o fulgurante, porque usa uma álgebra política com sinal negativo (—) diante do parêntese que encerra os fatos. Tudo muda de sinal, e o filósofo gaba a sagacidade de uma França idealmente vencedora em face da parvoíce de uma Alemanha idealmente derrotada. E quando cai em si e esbarra na grossa e dura notícia do dia, então “bon sang de bon sang!”, sente-se obrigado a procurar nos socavões da História quem desarmou a França e quem a precipitou na catástrofe de 40.
Quem Desarmou a França?
O mesmo filósofo confessa seu estupor diante do resultado que vê em 40 e 41, quando relembra os trunfos que a França tinha poucos anos atrás, e perdeu.
...A França tinha ainda sobre a Alemanha uma esmagadora superioridade militar. Tinha aliados poderosos e fiéis, possuía instrumentos jurídicos necessários para tornar impossível o rearmamento alemão. Bastava-lhe “querer”. A menor resistência francesa encontraria poderosos apoios na Alemanha. Para que o nazismo tivesse a mínima chance de impor à Europa e ao mundo sua “nova ordem”, era preciso que a vontade do povo francês fosse tomada de estupor. Esta tarefa parecia irrealizável (...). Os acontecimentos provaram que era possível enfraquecer a resistência moral dos franceses até conseguir que abandonassem uma por uma todas as garantias de segurança que os tratados lhes haviam dado.
Perguntemos: de que quadrantes vieram as correntes que enfraqueceram a resistência moral dos franceses?
Na página seguinte o próprio Yves Simon, abrindo um parêntese para formular um lema de filosofia política, deixa entrever a dialética interna da tragédia da França. A França morrera de “sinistra mielóide aguda”. Eis o que diz o filósofo, agora em tom especulativo e teorizante:
É inevitável, e até certo ponto normal, que as pessoas que mais se interessam pela segurança nacional sejam as que menos se interessam pelo progresso social, e reciprocamente. (...) Esta divisão de trabalho não resulta apenas de uma diferença de temperamentos: é fundada num conflito real entre os fins perseguidos.
Ora, não há nenhum conflito real entre as duas perfeições exigidas por qualquer corpo político que, em vez de antagônicas e inconciliáveis, são complementares. Os alunos de nossa Escola Superior de Guerra sabem, há mais de vinte anos, que o conceito de “segurança nacional” inclui necessariamente o cuidado da interna justiça social. Por outro lado, não haverá boa estrutura de justiça social onde faltar o sentimento e a virtude do patriotismo e, principalmente onde, para os operários, o sentimento de classe prevalecer sobre o sentimento pátrio. Yves Simon fez a clivagem entre os dois termos mais conjuntos do que opostos, porque se deixou levar pelo jogo E-D, que conduz invariavelmente a esses antagonismos por razões profundas que mais adiante veremos.
O que é curioso, no caso, é o fato de tão ilustre filósofo não desconfiar de que, com este pseudo-lema de filosofia política, ele tem a resposta para o enigma do estupor que paralisou a vontade francesa. Disse Yves Simon que à França “bastava-lhe querer”. Mas num corpo político, como Yves Simon sabe melhor do que nós, o “querer” se diz mais diretamente e mais propriamente dos que governam. Ora, o governo que acaba de “salvar” a França de um “golpe fascista” em 1934, é um governo de pura esquerda. Cabia-lhe querer a salvação nacional, em face do ameaçador e febril rearmamento alemão; mas, por uma congênita impotência proclamada por seus próprios mandarins, há entre as esquerdas e a segurança nacional um real conflito, e um invencível antagonismo.
Por aí se vê que, na sua própria lógica — se lógica há nesse jogo de binários que mais se presta para computadores do que para filosofia — Yves Simon cooperou com outros 51 “intelectuais” franceses para unir as forças antifascistas, isto é, para entregar a França àqueles “que não podem querer salvá-la”. O resultado é conhecido.
Como porém Yves Simon faz uma inexata referência a Henri Massis (de quem estava separado pelo oceano, pela guerra e pela condenação da “Action Française”), valho-me aqui do próprio Massis para trazer mais um esclarecimento sobre quem foi ou quais foram os homens que desarmaram a França desde 1934. É na revista Esprit de Abril de 1935 que encontramos esse esclarecimento impressionante, diria até inacreditável.
É o próprio fundador da revista, Emmanuel Mounier que, sob o título “Corrida Armamentista”, apresenta uma “Carta da Alemanha” de seu correspondente em Berlim. Na sua introdução, Mounier declara que, diante da aproximação da tempestade, “sentiríamos um intolerável mal-estar se não levássemos este testemunho, diante da mentira universal”. Eis aqui o testemunho:
Há, sem dúvida na Alemanha, quem queira a guerra e muitos que a preparam pacientemente. Pode-se entretanto afirmar, sem otimismo ridículo, que os alemães em massa aclamam o Führer porque ele lhes devolveu o sentimento de honra (!!!) e porque “soube impor ao universo as mais legítimas exigências da segurança e da igualdade jurídica do povo alemão”. Releiam a proclamação do governo. Nem uma ameaça ao estrangeiro, nenhum apelo ao imperialismo, à expansão, à desforra. Hitler não invoca, em todo o caso, nenhum conceito obscuro e se coloca resolutamente “no plano do direito puro”. (!!!)
As exclamações são nossas. O enviado de Emmanuel Mounier, fundador da revista Esprit (1932) e universalmente apontado como uma das colunas do neocatolicismo progressista, insiste em proclamar a sinceridade de Adolf Hitler, que chama de Führer: “E por que recusar sempre o crédito à boa fé humana?” E assim, patético, roçando o sublime, o expoente do catolicismo francês de esquerda de 1935, continua:
Quem nos dará um novo São Luís que, enfrentando o mundo, e confiando na justiça de Deus acima de tudo, ousasse abrir crédito à paz e, diante do rearmamento alemão, respondesse sempre com a única arma eficaz, isto é, com o desarmamento integral e sem restrições. (...et sans arriére pensée).
(...)
E, se preciso fosse, se um dia, em conseqüência de tal gesto, ou pela simples conseqüência aritmética de seu maltusianismo, a França (que nada tem de eterno) viesse a desaparecer da face da terra, quem, sim quem não preferiria essa responsabilidade à mais direta cumplicidade no crime de direito comum que seria uma nova guerra?
Nesse meio tempo, Robert Brasillach vai também a Berlim, entusiasma-se com as manifestações nazistas, impressiona-se com a figura insignificante e “triste” de Adolf Hitler e volta à França convencido de que aos franceses é que competia exaltação. “Et pourquoi pas nous?”
No jornal “L’Action Française”, Charles Maurras não se cansou de gritar: “Armons! Armons!”
Mas em 1944, quando a França resolver punir seus “traidores”, os colaboradores de Esprit e os comunistas estarão com a balança e o gládio; Maurras, o último soldado da França, será condenado à prisão perpétua com mais de 80 anos; Robert Brasillach será fuzilado como “colaboracionista”... Mais adiante voltaremos a falar na “Épuration”. No momento queremos frisar a cegueira de honestos intelectuais católicos que se deixaram envolver no jogo E-D e perderam a rudimentar capacidade de ver um palmo adiante do nariz.
Ainda a Cegueira dos “Intelectuais” Católicos Franceses Envolvidos no Jogo E-D
Voltemos a “Le Paysan de la Garonne” e retomemos, na página 45, a tentativa que faz Maritain de definir o binário tipológico, agora ilustrado alegoricamente por dois arquétipos, os “Carneiros de Panurge” e os “Grandes Ruminantes da Santa Aliança”. Não vejo nessas figuras nenhuma ajuda à imaginação, e muito menos à inteligência, e por isso volto à denominação “esquerda” e “direita”, que ao menos tem a vantagem da concisão. Vejamos agora o que nos diz Maritain além do que já disse em páginas antigas, atrás comentadas.
Note-se de início, que as denominações alegóricas se aplicam declaradamente aos extremismos de direita e de esquerda. Maritain demonstra visível mal-estar diante de um e de outro, sem dizer qual dos dois mais detesta. Mas logo abaixo, lemos esta quase declaração de simpatia, derivada de uma caracterização que vale a pena analisar: “Os moutons (extremistas de esquerda) fazem geralmente triste figura em matéria filosófica ou teológica, mas em compensação, em matéria política e social, seu instinto os empurra na direção da boa doutrina, que a seguir eles estragarão ora mais, ora menos”.
Com os “extremistas de direita” dá-se o contrário; e Maritain acrescenta “que se sente menos longe dos primeiros quando se trata das coisas de César, e menos longe dos segundos (hélas) quando se trata de coisas de Deus”. Consideremos antes de mais nada a tonalidade, a configuração geral da dialética desta passagem revelada por esse curioso “hélas” encaixado entre parênteses. A página como está escrita, nos autoriza a concluir que afastam mais de Maritain as discordâncias nas coisas temporais do que as discordâncias nas coisas religiosas. Ou, se quiserem, que mais o aproximam e o atraem as concordâncias nas coisas de César do que as concordâncias nas coisas de Deus.
Mas nós todos sabemos, abundantemente, por todos os livros que escreveu e por muitas coisas da vida que viveu, que esta conclusão seria falsa, não porque estejamos a raciocinar mal, mas porque sabemos que é o próprio Maritain que se compromete no uso de um esquema infeliz, ou melhor, de um esquema que foi posto em circulação para confundir os espíritos.
A lógica se restabelece quando no “helás!” descobrimos uma espécie de sinal remissivo que mais adiante, na hora de definir o “integrismo”, nos traz o esclarecimento dessa página. O termo “helás!”, encaixado como um muxoxo nessa comparação de esquerda e direita, já nos deixa entrever que Maritain atribui algo de falso — um apego aos interesses ou à segurança — à ortodoxia das “direitas”. Mas então quebra-se o esquema, rompe-se o falso equilíbrio entre duas detestações, e o que sobra é uma inadmissível simpatia, nas coisas de César, voltada para as esquerdas; e numa razoabilíssima simpatia, nas coisas de Deus, reservada para uma outra amostragem humana da qual não se possa dizer “helás!”.
Concentremos agora nossa atenção para esta fantástica proposição: “Os extremistas de esquerda são medíocres filósofos ou teólogos, MAS EM MATÉRIA POLÍTICA O INSTINTO OS EMPURRA NA DIREÇÃO DA BOA DOUTRINA”. Ao pé da página temos esta citação de Claude Trtesmontant: “A esquerda católica, em França, tem entranhas evangélicas, mas não tem cabeça teológica”.
E aí estão duas afirmações paralelas, colocadas na mesma ambiência e ambas inclinadas para as esquerdas... Dirá o leitor: “Para as coisas da terra!”. Sim, mas acontece que são somente essas que interessam aos extremistas de esquerda. Quando Mounier mais tarde disser: “Com os comunistas nos negócios da terra, e com minha fé católica nos negócios do céu”, ninguém duvidará um só instante de uma coisa deslumbrantemente óbvia: os comunistas não se aborrecerão com as reservas que Mounier lhes fará para as coisas do céu. O importante, para os comunistas, é “que Mounier marche; et il a marché”.
Teilhard de Chardin também inventou um esquema : “O Deus para cima dos cristãos, e o Deus para a frente dos marxistas, eis o único Deus que doravante deveremos adorar em espírito e verdade”. E aqui Roger Garaudy foi obrigado a dizer “non possumus” porque admitia que o jesuíta se entretivesse com suas idéias alienantes de um Deus, mas não podia admitir que trouxesse essas idéias para a linha horizontal da colaboração católico-comunista.
Mas deixemos o alto da página, onde vemos que o termo “mouton” foi escolhido para designar o arquétipo de extremismo de esquerda. E agora, nas últimas linhas, relemos: os “moutons”, isto é, a extrema-esquerda não tem boa cabeça filosófica e teológica, “mas em matéria política e social o instinto os empurra na direção da boa doutrina”. Eliminando o termo “mouton” entre as duas proposições, e deixando de lado a inaptidão para especulações filosóficas e teológicas, temos esta proposição: “A extrema-esquerda pende por instinto para a boa doutrina”.
Desde logo notemos estes “solecismos”: se são inaptos para especulações filosóficas e teológicas, como? com que instrumento? por que via podem tender para a boa doutrina? Entenderíamos a proposição se ela dissesse: “Embora maus filósofos e teólogos, por instinto praticam atos e tomam posições práticas que se coadunam com a boa doutrina que só é perceptível para quem tem retina filosófica ou teológica”. Ou então “... por instinto tomam posições e fazem coisas que nós, filósofos e teólogos obedientes à Igreja, ou dotados de “habitus” especiais, reconhecemos como bons, segundo a boa doutrina”.
Corrige-se assim a forma, mas o conteúdo de tais proposições perece-nos dificilmente conciliável com o tomismo, com o cristianismo e, sobretudo, com os ensinamentos do Magistério.
Analisemos mais detidamente o conteúdo da página em questão. O termo “extremismo de esquerda” só pode significar, dentro do conjunto de várias e gradativas esquerdas, uma perfeição no gênero, um máximo, um ponto limite. Se admitirmos que o termo “esquerdas” designa uma coisa homogênea em todas as suas gradações, admitiremos “a fortiori” que as esquerdas medianas e tímidas já satisfazem a norma de pertinência do grupo. Ao contrário, se concluirmos que a denominação é equívoca, e não se refere à mesma coisa realizada em graus diversos de perfeição, deveremos renunciar a qualquer digressão que use o termo “esquerda”, ou então deveremos exigir uma definição para “esquerda” e outra para “extrema esquerda”.
No uso corrente, “extrema-esquerda” significa comunismo ou socialismo marxista, e nesse caso fica esquisitíssimo para um católico qualquer, e por mais forte razão para um filósofo tomista, dizer que “os comunistas tendem por instinto para a boa doutrina”. Estritamente, já que realiza a extrema perfeição do gênero, o comunismo só poderá tender para o esplendor de suas virtualidades.
Afrouxando um pouco o rigor lógico, concederíamos que o autor de “Le Paysan” queira apenas dizer que a “esquerda” (e não a extrema-esquerda) penda por instinto para a boa doutrina. Mas ainda assim estamos num impasse porque não vemos bem para que lado pende por instinto o possuidor das entranhas evangélicas. A nenhum de nós, evidentemente, ocorrerá a fantástica idéia se que os franceses “de gauche”, por instinto, ou pelos intestinos, tendem para posições sempre mais nitidamente anticomunistas. A história dos últimos 40 anos prova, ao contrário, que a coisa chamada “gauche catholique” precipitou-se, numa enxurrada catastrófica, na direção daquilo que nós aqui no Brasil, e em Portugal, chamamos comunismo. Será isso a “boa doutrina”? Estará nos comunistas realizada com maior perfeição o que Tresmontant chamou de “entrailles évangéliques”?
Achamos difícil imaginar que toda uma zona de cultura católica possa pronunciar discursos, escrever revistas e livros sobre o fenômeno designado “esquerda” sem ter presente no campo visual a brutalidade que ocupa a metade do mundo e que foi objeto de inúmeras advertências e condenações dos últimos Papas. Como explicar que em 1965 um dos filósofos católicos mais inteligentes do século tenha dito, contra a lógica contra a evidência dos fatos e contra o ensino da Igreja, que os homens da esquerda tendem por instinto “vers la bonne doctrine”? Como explicar esse lapso espantoso?
O mundo inteiro sabe hoje que a infiltração marxista nos meios católicos foi um dos principais fatores que produziram a desastrosa crise que o Papa já qualificou de “autodestruição da Igreja”. Como explicar que em 1965 Jacques Maritain e Claude Tresmontant ignorem o que qualquer pessoa no Brasil sabe, e conservem a candura de atribuir às esquerdas generoso instinto político e entranhas evangélicas? Como explicar que em 1965, na hora de interrogar sobre o terremoto e incêndio que vêem, esses dois intelectuais não se lembrem do que fez Emmanuel Mounier, fez a revista Sept, e a seguir o que fizeram os Montuclard, os Mandouze, os Lebret, os Desroche, e o que fizeram os comunistas e católicos “de gauche” na “Résistance” e depois na “Épuration”?
Aqui no Brasil nós sabemos que a pregação de “Economia e Humanismo” do Pe.Lebret, e dos dominicanos contaminados, levou o Pe. Francisco Lage ao marxismo e ao comunismo militante. Sabemos que foi essa infiltração que transformou o Convento de Perdizes, dos frades dominicanos, em quartel general do guerrilheiro Marighela. Sabemos que moças egressas de tradicionais colégios católicos se transformaram em salteadoras de bancos, amantes de comunistas e culpadas de assassinatos de inocentes policiais. E para maior estridência do escândalo, e para maior evidência da fonte de inspiração, temos um arcebispo a esvoaçar pelo mundo inteiro a pregar uma espécie de socialismo em favor do qual é belo e meritório o ato de seqüestro e assassinato de reféns.
E agora sabemos que todas essas monstruosidades começaram principalmente na monumental impostura da “gauche catholique”, escorada na não menos monumental candura de pensadores e filósofos que até 1965 ainda ignoram e ainda prestigiam as famosas “esquerdas”. Como explicar tão prodigioso equívoco?
Cremos que o mistério se elucida, ao menos em parte, quando começamos a entrever as conseqüências produzidas pelo jogo, ou pelo “solecismo cultural” E-D, numa civilização predisposta para as “filosofias da inimizade” . O efeito produzido, sobretudo nos “intelectuais”, é o da censura psicológica denunciada por Jules Monnerot. Para entendermos melhor o mecanismo desse processo, precisamos aprofundar um pouco mais o sentido psicocivilizacional do jogo E-D. Convido o leitor a esse trabalho, fastidioso, mas indispensável.
Um Símbolo Profundo Escondido
Todos nós sabemos que os termos “esquerda” e “direita”, com conotação de antagonismo político, tiveram origem histórica na disposição das bancadas parlamentares. Daí em diante, por um conhecido processo semântico, os termos desligaram-se das significações primeiras e passaram a denotar mentalidades, comovisões em forte antagonismo. O fenômeno lingüístico não é raro, nem mereceria maior atenção, se não estivesse associado à mais apaixonante controvérsia ideológica do século, atuante como gerador de equívocos e molas de censuras, na cultura mais orgulhosa de sua lucidez em todo o Ocidente.
Este fato de estar uma metáfora tão vigorosamente ligada a um drama de dimensões planetárias no leva a desconfiar da gratuidade ou da casualidade da escolha dos termos. Sabemos hoje que há metáforas leves, destinadas a produzir aproximações inesperadas, centelhas poéticas que nos induzem a apreciar a maravilhosa solidariedade de todas as existências, e outras metáforas densas, maliciosas, inventadas para ocultar algum símbolo profundo com que entretemos algumas de nossas “mentiras vitais”.
Desconfiamos que o jogo E-D esteja nesse caso, e em vez de dizer “cherchez la femme”, diremos “cherchons le symbole”.
Os termos “esquerda” e “direita” são adjetivos aplicáveis a qualquer par de coisas simétricas, destinados a significar, cada um deles, mais uma relação do que uma coisa. A primeira reclamação que Jules Monnerot faz do abuso do binário é justamente a da coisificação do que só se deveria entender como uma pura relação. E qual será e razão desse “solecismo político”?
Parece-me que descobriremos a pista do segredo se lembrarmos que os termos posicionais, significadores de uma simetria no espaço, muito antes de existirem bancadas parlamentares, têm sua primeira e direta significação adjetiva aplicada às duas mãos do homem. E tão unidos estão esses substantivos, tão profunda é essa primeira associação. tão imediata é a adjetivação que logo facilmente se substantivam os dois adjetivos e, assim sustantivados, absorvem totalmente o nome da coisa, ou com ela se identificam. “Direita” não será então apenas a qualificação posicional “desta mão”, é o seu nome, é ela própria. No dicionário de Aulete o termo “direita” é logo, primeiramente, apresentado como substantivo feminino. Em latim e em grego observa-se a mesma forte tendência à substantivação dos termos “dextera” e “sinistra” ou “dexiós” e “aristerós”.
Ora, em todos os nossos dualismos nenhum há em que, pela força de sua simetria, tão veementemente e tão visivelmente se oponham e se componham as duas partes; nenhum há que tão instrutivamente nos inculque as vantagens e a necessidade de uma integração. A mão esquerda e a mão direita, como todas as formas simétricas, são formas geométricas iguais mas de incompatível superposição. Não posso na mão esquerda calçar a luva da direita a menos que faça meu braço girar cento e oitenta graus dentro de uma quarta dimensão do espaço. Que quer isto dizer? A frase “... girar o braço pela quarta dimensão” não tem nenhuma significação física; é apenas generalização lógica de uma propriedade dos entes de razão matemáticos. Se o leitor quiser entender melhor essa idéia, trace num pedaço de papel a figura de dois triângulos simétricos, recorte-os com a tesoura e verá que não conseguirá superpô-los enquanto mantiver esses dois entes geométricos de duas dimensões no seu espaço de duas dimensões, o plano. Para conseguir a superposição, a identificação posicional, será preciso tirar um deles do plano e, graças à terceira dimensão de que dispomos, deitá-lo sobre o plano com a outra face sobre o triângulo que permaneceu no plano. Generalizando, direi que duas formas simétricas de “n” dimensões só se superporão graças a um rebatimento por um espaço de “n+1” dimensões.
Deixemos o mundo fantasioso dos entes de razão e voltemos à nossas mãos. Ei-las: sua igualdade simétrica é um desafio e um convite. Estamos diante de uma contraposição feita para composição, ou de uma disjunção que pede conjunção. A diferença na igualdade é um incentivo para a união, para a complementação e para a colaboração.
Nós sabemos, nas profundezas de nossa alma, que nosso eu está sempre ameaçado de uma disjunção, de um mal-estar, de uma inimizade interna, semente e modelo de todas as inimizades exteriores. O mais profundo de nossos instintos é o da unidade pessoal reforçado e aguçado pelo sentimento da unicidade do eu. A vida nos solicita, nos desafia, e em cada uma de suas arestas nos fere e nos quer dilacerar, e os outros nos chamam, nos pedem, nos comem. Aprendemos com a vida e com os outros, se alguma coisa aprendemos, a lição paradoxal, a lição quase absurda das leis do amor. Cabem em duas palavras: integridade difusiva. Só é difusivo, capaz de plena vida de conhecimento e amor, só é capaz de entrega, dom de si mesmo, difusão de seu ser e de seus dons, quem em si mesmo e consigo mesmo estiver bem integrado. Em outro lugar já vimos que nosso relacionamento com os outros é homólogo do relacionamento que temos em nosso próprio eu: amamos e desamamos o próximo conforme nos amamos e desamamos a nós mesmos. É do supremo mandamento: “Amar a Deus, e ao próximo como a si mesmo” que Santo Tomás (IIa IIae, q. 26, a. 4), tira a ordem da caridade, e que tiramos nós a lei de sua difusão em conformidade com a integração. Mas a perfeita integração que capacita a alma para a perfeita difusão de amor só se obtém se nosso próprio eu procura em Deus, e não no seu eu-exterior, a fonte de todo o verdadeiro amor. O amor-próprio, ou egoísmo, cicatriz do pecado original, cisão do eu, está na raiz de todos os descomedimentos humanos, de todos os pecados. Nosso tempo, por causa de sua atmosfera civilizacional, é especialmente marcado por uma terrível abundância de “eus” em avançado processo de desintegração. E as energias liberadas por essas desintegrações atômicas enchem de letal egoísmo, de essencial inimizade, a atmosfera de nossa civilização. O mundo morre de desamor. E as filantropias que inventa, são a mais cruel forma desse desamor.
Ora, está em nossas mãos, nesta, naquela, na direita, na esquerda, duas, duais, diversas, iguais e inconciliáveis no espaço, simétricas — está em nossas mãos a figura exterior mais eloqüente de nosso drama interior. Separadas, alheias, diversas, duas, duais, devem complementar-se diligentemente para a obra comum: vede o artífice como sabe bem explorar e conjugar o bom dualismo quando a esquerda segura a peça enquanto a direita busca o instrumento; vede o pianista como distribui as partes da mesma música nas duas mãos espalhadas, ora afastadas como se desconhecessem, ora aproximadas como se quisessem na obra comum encontrar a tão desejada integração. Vede como se afastam ou se juntam nos sinais de amizade. Mas é no rebatimento que realiza numa espécie de quarta dimensão que nossas pobres mãos divididas, duas, duais, conseguem docemente realizar o gesto perfeito de súplica e de adoração. Mas devem afastar-se, abrir-se, ignorar-se, esquecer-se cada uma de si mesma, na hora de dar: “nesciat sinistra tua quid faciat dextera tua.” (Mat.VI, 3).
E o símbolo do jogo E-D? O símbolo escondido na persistente e difundida metáfora, que tulmutua um século, está agora desvendado. Denunciemo-lo. O sucesso da metáfora e a violência de sua aplicação e sobretudo sua capacidade de confundir, mentir e falsear se explicam pelo humanismo que Maritain em “Humanisme Integral” chamou de “humanismo antropocêntrico”, e nós (na mesma linha de idéias) preferimos chamar de “humanismo antropoexcêntrico” . Ou se explicam por todo um processo civilizacional aberrantemente afastado de Deus e gerador de inimizades. Os homens quiseram-se bastar, pretenderam desvincular-se de todas as “alienações”, e nesse ato de suprema soberba produziram um humanismo que só tem consciência de sua interna inimizade, e fabricaram um mundo novo que rapidamente se aproxima do modelo dos institutos para alienados.
O símbolo da antítese esquerda-direita está no secreto desejo de rasgar o homem. O século disputa a hegemonia da nova civilização e disputa com a Igreja a posse do filho, preferindo-o rasgado em dois como a falsa mãe desvendada pelo rei sábio.
E aí está. O binário E-D pertence ao léxico das filosofias da inimizade que vêem no homem, de Hobbes a Marx, o irredutível, o inconciliável inimigo do homem.
Não contestarei, evidentemente, a valides de esquemas no domínio da caracterologia, e até, se quiserem, a valides de binômios tipológicos que indiquem oposições e inclinações temperamentais. Poderíamos, por exemplo, colocar na Esquerda as pessoas que por índole se dedicam a obras social, à enfermagem, ao ensino primário, etc. e colocar na Direita as pessoas que, por índole ou feitio do corpo, se dedicam à cirurgia, à carreira militar ou ao Corpo de Bombeiros.
Esse esquema tipológico poderia ser desenvolvido por algum estudioso, mas duvido de que alcançasse o sucesso e o vigor do jogo E-D, que encheu todo um século de equívocos e ódios. E por que? Porque o jogo E-D tem seu motor naqueles elementos intrinsecamente bons, dependendo todavia do uso que deles fazemos.
Voltemos atrás e reconsideremos as categorias confrontadas nas colunas Esquerda e Direita. Há no lado E um elemento: o anarquismo, que é intrinsecamente perverso por ser, não apenas a contestação das sociedades de direito natural que não se sustentam sem o princípio da autoridade, como também a contestação disfarçada da Autoridade suprema. Ao lado do anarquismo vemos o revolucionarismo, que é a dinâmica do anarquismo. A mística do revolucionarismo é essencialmente uma mística de inimizade, de contestação, de ruptura com o passado, de recusa de qualquer paternidade. O revolucionário místico, como já vimos em outro lugar, não é apenas o espírito ferido pelas injustiças sociais e desejoso de um mundo “aperfeiçoado”; é essencialmente um negador que quer a estaca zero, o recomeço de um mundo “mal venu”, como dizia Van Gogh a seu irmão.
No mesmo lado E, representando a realização histórica em vigor da mística anarquista e revolucionária, está o comunismo marxista, sem o qual o jogo E-D perde o seu princípio interno de inimizade, e logo perderia sua força externa de perturbar, mentir e confundir. E é a presença desse jogo E-D na atmosfera cultural de nosso século que explica, de um lado a censura e a cegueira para as coisas concretas de filósofos do nível de Maritain e Yves Simon, e de outro lado a enxurrada de secularização e de apostasias. Mais adiante voltaremos, com apoio em Henry Bars, ao problema dos “Dois Maritain” mas desde já quero frisar que há uma enorme injustiça na equiparação e no paralelismo que os próprios “progressistas”, como Adrien Dansette traçam entre Maritain e Mounier. O segundo foi realmente um dos precursores de tudo isto que aí está. Sua vida concentrou-se toda no sinistrismo católico, enquanto Maritain só acidentalmente, e descontinuadamente, interrompeu sua grande obra de permanente tomismo, e teve atuação nos meios de esquerda. Atuação infeliz, para a qual faltou-lhe tantas vezes a pequena sabedoria do bom senso familiarizado com as obscuridades inteligíveis do contingente e do efêmero.
O Jogo E-D foi um Jogo Falseado e Falsificador
Sim, um jogo falseado, e posto em circulação pela torrente do anarquismo revolucionário. Não há nos binômios que fazem parte do jogo a simetria de peças e regras como no xadrez, ainda que umas sejam brancas e outras pretas. A rigor não há “esquerda” e “direita”. Historicamente, como feixe de linhas-de-história, só há “esquerda”. A “direita” não existe como corrente histórica. Ela passa a existir como coisa designada e apontada à execração pela “esquerda”
Abstratamente podíamos imaginar a possibilidade de existir na civilização sumeriana, na Gália ou na Islândia primitiva, tipos humanos temperamentalmente e espiritualmente divididos em torno de alguns daqueles binômios. Sempre houve, certamente, tipos mais inclinados a conservar do que a reformar, e tipos opostos; e sempre existiram, certamente, tipos propensos a acentuar o valor e a necessidade da autoridade, e tipos opostos, propensos a ver na autoridade mais os defeitos da miséria humana do que as perfeições que são reflexos das perfeições de Deus. Admitamos que na Suméria e na Islândia o desgosto da autoridade, em certos indivíduos, chegou a ver nela um mal, e na anarquia um ideal. Mesmo assim eu não diria que houve na Suméria, ou entre os Incas, o binômio E-D. Porque não é somente a presença de tais idéias e valores, e o seu uso por algumas pessoas, que faz existir o jogo E-D.
Esse jogo de binários, como abundantemente o tivemos, só começa a existir quando aquelas idéias e valores “formam corrente histórica”. Enquanto permanecem avulsas e raras, o jogo não começa, porque o jogo E-D não pode ser jogado entre 2 ou 20 pessoas. Ele se processa e só pode processar-se quando ganha dimensões de disputa civilizacional.
No século em que vivemos não são 3 ou 3.000.000 de pessoas que formam a “E” inicial que dá a partida do jogo: é todo um estuário de erros, desatinos e desacertos de quatro séculos que produziu certas “formas históricas” particularmente virulentas e capazes de pôr em movimento o perturbador binário.
Jean Madiran viu com grande lucidez esse aspecto da trapaça intelectual que atingiu principalmente o povo mais inteligente do mundo, e escreveu um livro que dedica todo o capítulo II a esse problema.
Eis o que diz Madiran:
“A distinção entre a esquerda e a direita é sempre uma iniciativa da esquerda, feita pela esquerda e em proveito da esquerda. Há uma direita na proporção em que uma esquerda se forma para designar a direita e a ela e opor: o inverso nunca se dá. Os que instauram e põem em funcionamento o jogo esquerda-direita, logo se situam na esquerda de onde delimitam a direita para combatê-la e excluí-la. Num segundo momento, a direita, assim designada e apartada, arregaça as mangas, nunca muito depressa nem com muita disposição, e então se organiza, se defende, contra-ataca e as vezes consegue vitórias...
Por isso, será “de direita” aquele que a esquerda designa ou denuncia arbitrariamente como tal: o inverso não é verdade, não existe. A arbitrariedade do processo se explica, ou se impõe, já que o jogo esquerda-direita, que mais exatamente devia chamar-se “esquerda-contra-direita” é inventado, conduzido e julgado sempre pela esquerda, jamais pela direita.
A direita sabe ou sente que se submete sem poder fixar ou modificar a regras do jogo. A própria extrema-direita, quando não está contente com M. André Tardieu ou com M.Paul Reynaud, dirá que eles cedem às esquerdas, que aplicam seus programas, ou até dirá que traem. Jamais dirão que M. Tardieu ou M. Reynaud se tornaram homens de esquerda. E por quê? Porque a direita não se julga com títulos nem com a possibilidade de colar o rótulo nos frascos. A esquerda, ao contrário, senhora e árbitro do jogo que inventou e iniciou, relega para as direitas quem ele acha que deve relegar, e como e quando lhe parece oportuno o conveniente”.
Duas páginas adiante, no mesmo livro que teríamos a tentação de transcrever inteiro se não estivéssemos nós comprometidos com o nosso próprio livro, Madiran aborda o problema da correlação entre as esquerdas e as injustiças, e aí nossa concordância não é perfeita. Estivéssemos um diante do outro, para prazer maior meu, e ambos na Idade Média, a exuberante palavra de Madiran seria interrompida por mim nos moldes escolásticos: “nego”, “concedo” “distingo”.
Madiran chega a conceder que a esquerda se constitui para combater a injustiça, mas logo adverte que não é bom o seu método de combater as injustiças. Na página 31 lemos:
A esquerda e o cristianismo lutam ambos contra a injustiça, mas nunca da mesma maneira, ressalvada a hipótese de uma contaminação do método cristão pelo método da esquerda.
Eu hoje posso dizer que conheço bem o vigor com que Madiran defende a Igreja e a Civilização contra o Monstro, e sei perfeitamente que ele não é inclinado a concessões e a meios-termos emolientes. Mas neste caso não concedo o que ele concede. Não, a esquerda propriamente dita jamais lutou contra a injustiça ou pela justiça; mas freqüentemente lutou contra os que, por assim dizer, lhe fazem o favor de praticar certas injustiças. É melhor usar o termo próprio: as esquerdas aproveitam as injustiças, vivem das injustiças, para manter em movimento os dois cilindros da motocicleta do progresso na direção da luta de classes.
Mas, antes que o leitor grite que assim eu exagero, corro a prestar um esclarecimento: há nas esquerdas definidas como corrente histórica de inspiração anarco-socialista, ou comunista, duas espécies de membros: os positivos e os negativos. E “honni soit qui mal y pense”. Os positivos são os da esquerda propriamente dita; os negativos são os simpatizantes, os incautos, os cândidos, “ceux qui sont dupes”. E esses, efetivamente, entram na caravana com a vaga e mole ilusão de estarem combatendo uma injustiça; mas esses mesmos, na maioria dos casos, estão buscando “ser alguma coisa”, ou tentando acalmar algum ressentimento familiar. Os outros, os positivos de esquerda, usam as abundantes injustiças, mas o que os move é sobretudo uma paixão de impor ao mundo uma forma nova, uma Idéia. É a vontade de poder. E não há mais violenta paixão do que essa de ver realizada, materializada, e funcionando, uma Idéia emanada de nossa mente criadora. Eu, que já inventei órgãos eletrônicos, e outras coisas de meu primeiro ofício, posso imaginar a violência da paixão que deseja realizar uma Idéia, quando essa idéia em vez de envolver resistores, capacitores e transistores, envolve gente, crianças, mulheres, velhos, instituições, edifícios e todo o vistoso trem de uma civilização.
É ingênuo estabelecer qualquer paralelismo entre o ideal desses ideólogos e a cálida justiça tão apetecida pelos corações normais. Os agregados, os negativos, freqüentemente ingênuos e até imbecis, podem ser levados ao sinistrismo por algum anseio de justiça, embora seja hoje difícil admitir a ingenuidade nessa matéria.
Estou pensando aqui em dois personagens de Roger Martin du Gard, Jacques Thibault e Meynestrel. Relendo as páginas do grande romance, lembrei-me de uma carta de Marcel de Corte, publicada anos atrás, onde o filósofo belga dizia que nada há de mais cruel do que esse amor abstrato dos socialistas. Tolstoi e Henri Troyat, em “Ana Karenina” e “Tant que la Terre Durera”, também souberam dar realce a essa dualidade de tipos revolucionários, o positivo, possuído pelo cruel amor abstrato, e o negativo que adere à Revolução por um vago sonho de justiça, ou por algum desejo de ferir o pai. Retocando uma frase de Jean Lacroix, poderíamos dizer “la gauche est le meurtre du pére”.
E aqui, neste tópico que trata dos que são atraídos pela “Esquerda” por um real embora perturbado anseio de justiça, não posso esquecer a admirável figura de Simone Weil que vejo, levada pelo mais monstruoso dos equívocos, fazendo a mala e tomando o trem para lutar ao lado dos “rouges” na Espanha. Durou pouco seu entusiasmo e sua febre, que mais se alimentava de 50 séculos de dor de todo um povo do que de 1 século de disparates franceses. Pobre grande judia! Na primeira expedição organizada para matar um “cura” pela simplíssima razão de ser “cura”, Simone Weil se dispõe a dar sua própria vida pela do cura, mas não chegou a realizar o sacrifício porque a expedição punitiva não encontrou a vítima. Simone Weil volta à França, amargurada, e escreve uma carta a Georges Bernanos que também não suportara as experiências da guerra civil, mas jamais procurou consolo disto nas “esquerdas”, que ninguém detestou com tão perfeita galhardia.
Outro grande amigo com quem Simone Weil se conforta é o admirável Gustave Thibon, que recolheu o último poema recitado com lágrimas por Charles Maurras, e que ainda hoje, não menos galhardamente, colabora na revista Itinéraires.
Simone Weil já terá encontrado no Céu a justiça e o amor que, por um prodigioso equívoco do século, andou procurando entre os “possessos”.
O Espírito de Esquerda e o Espírito de Direita
Gustave Thibon, que hoje milita ardorosamente contra a Onda, ao lado dos companheiros de Itinéraires, não consegue escapar ao estranho fascínio que o jogo E-D exerce sobre os franceses. No seu último livro, “Diagnostics” , dedica um capítulo inteiro a esse problema, e começa com estas palavras:
É fácil definir o homem de esquerda como um invejoso ou um utopista, e o homem de direita como um satisfeito ou um “realista”. Essas fórmulas nos ensinam pouca coisa sobre a verdadeira diferença interior entre esses dois tipos de humanidade.
Tentemos ver melhor. Se evocarmos em cada campo algumas personalidades superiores (só elas serão capazes de nos fornecer a amplificação necessária à descoberta das essências), a seguinte conclusão se imporá: o grande homem de direita (Bossuet, de Maistre, Maurras, etc.) é profundo e “estreito”, o grande homem de esquerda (Fénelon, Rousseau, Hugo, Gide, etc.) é profundo e “confuso” (trouble). Uns e outros possuem toda a envergadura humana: em suas entranhas se misturam o mal e o bem, o real e o irreal, a terra e o céu. O que os distingue é isto: o homem de direita, dilacerado entre uma visão clara da miséria e da desordem do mundo e o apelo de uma pureza impossível de se confundir com qualquer coisa a ela inferior, tende a separar com força o real e o ideal; o homem de esquerda, cujo coração é quente e o espírito menos lúcido, mais depressa se inclina a confundi-los, a baralhá-los...
E por aí adiante, o lúcido Gustave Thibon (ora homem de “direita”, ora de “esquerda”, segundo sua própria definição) se deixa levar pelas equivocidades do jogo inventado precisamente para produzi-las. Voltando às primeiras linhas do tópico citado, onde o autor se refere à “diferença interior entre esses dois tipos da humanidade”, eu começo por negar aquilo que o autor de início aceita sem nenhum espírito crítico: a existência desses dois tipos da humanidade.
É curioso que todos os autores até aqui citados falam de “direita” e “esquerda” como se houvesse um unânime consenso na existência dessas duas coisas e até um unânime consenso de uma diferença em primeira aproximação; sim, falam como se desejassem analisar melhor, mais a fundo, duas coisas que todo o mundo conhece. Ora, esse pressuposto é falso. As únicas coisas que preexistem são os termos, mas na verdade a límpida conclusão a que se chega é que ninguém sabe quem é de direita e quem é de esquerda. Guastave Thibon, colaborador de Itinéraires, deve ser visto hoje como “un homme de droite”; mas ontem e anteontem o grande amigo de Simone Weil e dos pobres era visto como um homem de esquerda. E o que dizer de Frederico Ozanam, o admirável amigo dos pobres, autor da famosa frase que podia ser explorada um século depois pelos padres-operários: “allons aux barbares”? É um homem de esquerda e quase diríamos de extrema esquerda; mas quando nos lembramos da atitude que tomou em 1848 e das páginas candentes e proféticas com que denunciou o socialismo, mais depressa diríamos que é um irmão de Donoso Cortés e até ousaríamos traçar uma extrapolação em que seu pensamento viria passar na área da “Action Française”, e a léguas de distância do Sillon de um Marc Sangnier.
Insisto neste ponto: o binômio esquerda-direita é falso e falseador, e o melhor que dele se pode dizer é a denúncia de sua equivocidade tantas vezes posta a serviço da impostura. Para tornar mais claro o meu pensamento direi que uma tipologia só pode ser “dual” à custa de um brutal tratamento ou de uma escamoteação. Podemos, sem dúvida, aplicar à humanidade várias análises tipológicas, segundo várias linhas de comportamento, e podemos tirar de cada linha de comportamento definida por dois contrários (reais ou aparentes) dois tipos opostos E e D. Se nos entregássemos a essa fastidiosa ou divertida análise, mas nunca esclarecedora, veríamos com surpresa que muitos indivíduos classificados como “E” numa linha de comportamento, são classificados como “D” em outra. O próprio Maritain, que tanto usou o esquema tipológico E-D, quando se sente embaraçado, usa o recurso de uma divisão do esquema E-D em dois: um temperamental e fisiológica e outro político. No opúsculo “Lettre sur l’Independance”, Maritain desenvolve a idéia e chega a admitir que:
as coisas se embrulham quando os homens de direita (no sentido fisiológico) fazem uma política de esquerda, e reciprocamente. Penso que Lenine é um bom exemplo do primeiro caso. Não há mais terríveis revoluções que as revoluções de esquerda feitas por temperamentos de direita; e não há mais fracos governos que os governos de direita conduzido por temperamentos de esquerda (Luis XVI).
Tudo isto hoje me parece um jogo de espírito e quase “un jeu de mots”. É com mal-estar que leio a atribuição de governo de direita à monarquia de Luis XVI, e de temperamento de esquerda ao próprio Luis XVI. Também li com penoso sentimento a oposição feita por Gustave Thibon entre o “calor de coração” dos homens de esquerda e a lucidez fria dos homens de direita; e estou inclinado a crer que foi esta a taxa de imposto mais pesada que Gustave Thibon teve que pagar à tolice universal.
Estou pensando na rapaziada de nossa extrema esquerda e no terno calor com que decidiram, no aniversário da morte de Guevara, o assassinato “justiceiro” de um oficial norte-americano que saia de casa com seu filho de onze anos. Deveremos usar o recurso proposto por Maritain, dizendo que esses moços se acharam na mesma trágica situação de Lenine e que são moços de direita engajados numa guerrilha de esquerda?
Parece-me decididamente mais razoável abandonar esse binário equívoco e gerador de equívocos e procurar em cada casos a adjetivação apropriada que tanto a língua portuguesa como a francesa possuem fartamente. Mas antes disso, e pelo menos uma vez no século, é preciso denunciar a impostura que está na base de todos esses equívocos.
A Impostura do Jogo E-D
Em qualquer época da História e em qualquer parte do mundo, por isso mesmo chamado de vale de lágrimas, é possível demarcar vários “conjuntos” de homens cuja norma de pertinência seria uma das várias aflições da vida. Haverá o conjunto dos carecas, o conjunto dos desdentados, o conjunto dos cardíacos, o dos neuróticos e o largo e denso conjunto dos pobres de cada pobreza. Dada a conhecida tendência que o homem tem de atribuir a outrem a culpa de sua miséria ou de sua dor, é fácil imaginar e correlata tendência de explorar essa tendência de inculpar os outros.
Ora, uma das características de nossa civilização, como já vimos em outra obra, consiste precisamente na exacerbação dessa filosofia da inimizade, de Hobbes e Marx. É então fácil imaginar que o largo, denso e doloroso conjunto dos pobres será assediado por solícitos advogados que requererão: primeiro, explicar toda a pobreza de uns pela riqueza de outros; segundo, corrigir esse erro por um levante dos pobres, ou por uma Revolução. Para isto os “advogados” dos desfalcados, dos oprimidos, contando com os bons sentimentos e a imaturidade da maior parte do mundo, erguem o punho, impostam a voz e declaram: “Nós somos os amigos dos pobres! Nós somos os que combatem pela justiça!”
E quem não concordar com eles, na explicação da origem da pobreza ou no método de sua eliminação, sentir-se-á tolhido, vagamente apontado como mau, como insensível à causa dos pobres.
Hoje, qualquer honesto estudante de economia e de sociologia sabe que as desigualdades econômicas se explicam por várias causas, entre as quais a exploração injusta está longe de ocupar os primeiros lugares. Numa sociedade qualquer, imaginariamente tratada por um processo de pasteurização igualitária, ao cabo de poucos meses apresentar-se-ão diferenciações e, no fim de poucos anos, ver-se-ão nela milionários e pobres. Alguns desses enriquecimentos serão injustos e feitos à custa do empobrecimento de muitos, mas nem todos. Há casos de enriquecimento de um ou de poucos, que contrariam essa aritmética estática dos marxistas e que, ao contrário, produzem o enriquecimento geral e, por conseguinte, a melhora da vida dos pobres. Não é difícil encher um volume com exemplos. Tomemos um, no domínio da medicina: quem descobrisse um remédio eficaz para a gripe, ficaria rico. Para os socialistas ele só poderia ficar rico à custa do empobrecimento alheio; mas para a economia do bom senso, a riqueza desse homem se explica melhor pela riqueza de todos. É claro que em determinado instante da história do dinheiro possuído por uma comunidade, houve um fluxo favorável a esse químico bem sucedido e uma diminuição no bolso de cada gripado. Mas logo no momento seguinte, na suposição da real eficácia do remédio, verificar-se-á que todos ganharam mais com a cura do que perderam com o custo do remédio. Houve portanto enriquecimento geral, mas não igual, que não é exigido pela justiça. O inventor e o produtor ganharam mais do que os operários da fábrica. Será justo esse prêmio dos que souberam criar valores que seus operários apenas sabem materialmente fazer? O fato incontestável é que todos, operários e burgueses se beneficiaram. Quererão os reformadores do mundo inventar um sistema em que o aumento de produtividade e de riqueza geral não beneficiasse em primeiro lugar seus próprios criadores, e não criasse por conseguinte desníveis de riqueza? Então terão de inventar outro homem, outro coração, outra alma insensível aos proveitos pessoais e desinteressada do progresso. O que há de especialmente estúpido nas utopias socialistas é a contradição dos que ao mesmo tempo desejam o progresso, sem o qual não se pode proporcionar bem-estar material a uma multidão, e reivindicam um igualitarismo, com o qual não se vê como se dará partida ao motor do progresso. Se os socialistas fossem ardorosos apóstolos de um hiperespiritualismo desinteressado dos bens materiais, entender-se-ia que fossem também ardorosos apóstolos de um igualitarismo que não faz questão de progredir materialmente. Sim, o que há de grotesco, de supremamente impostor, no ideal socialista é a contradição entre o brutal materialismo dos fins propostos e o delirante e falso espiritualismo dos meios imaginados.
Além disso, e em vista das experiências que o planisfério do século nos exibe, temos todos os fundamentos para duvidar da sinceridade de bons sentimentos que tão facilmente se transformam em ferocidade de demônios. Em outras palavras, e admitindo a realidade da entredevoração humana e da exploração dos mais pobres pelos menos pobres, o que se pode dizer de todas as experiências socialistas é que revelaram uma requintada perversidade, parecida com a de todos os exploradores das misérias humanas: os capitalistas exploram o trabalho dos operários; os socialistas exploram o sofrimento, a lágrima do pobre. Uma das grandes imposturas das esquerdas foi esta: ostentaram bons sentimentos escondendo cuidadosamente a vontade de poder que os levava a aproveitar-se da sofrida massa humana, tornaram-se donos dos bons sentimentos e logo denunciaram a dureza, o egoísmo de todos aqueles que discordavam de sua panacéia social. Se discordavam dela, não era porque apenas discordassem da droga, mas porque desprezavam a justiça e até a caridade.
Cabe ainda aqui outra reflexão. Qualquer pessoa medianamente iniciada nas ciências da humana convivência sabe que o bem comum é arduamente promovido por um rico concurso de fatores. Numa sociedade complexa, densa, como a de nossos dias, a melhor divisão de bens em cada conjuntura, a mais razoável política de atendimento dos pobres, não pode ser direta, uniforme, imediata, sem se tornar catastrófica. Trabalha diretamente para os pobres todo aquele que trabalha em obras assistenciais, em obras de misericórdia, e todo aquele que dá diretamente seu tempo e seus bens aos mais necessitados. Mas trabalha socialmente para os pobres — e às vezes mais eficazmente — aquele que indiretamente traz sua contribuição para o bem comum. Todos os professores que ensinarem bem o que sabem, todos os pesquisadores que se debruçam sobre problemas de engenharia ou medicina, todos os profissionais que cumprirem seu dever de estado, trabalham para todos e portanto também para os pobres. Os que mais alegam serviços prestados nessa matéria são os que menos fizeram, mas são efetivamente os que exploram a miséria humana. Os comunistas, na Rússia, constituem o mais espantoso exemplo da impostura e do equívoco socialista. É preciso lembrar que esta corrente se compõe quimicamente de 1 perverso para 100 ou 1.000 ingênuos. O fato brutal que no princípio deste século deveria ter definitivamente vacinado o planeta para o socialismo foi a revolução russa seguida de um governo que quis aplicar num povo traumatizado três ou quatro idéias de uma primária economia política. O genial Lenine, cercado de outros ideólogos, imaginou e decretou uma reforma agrária que matou, entre 1920 e 1930, mais de oitenta milhões de camponeses russos.
Para encobrir esse total e colossal fracasso, desencadeou um jogo de chicote-queimado: o jogo esquerda-direita, que consistiu essencialmente em cobrir a evidência dos fatos com a ideologia. E como em toda a parte do mundo havia pobres, e especialmente na Europa havia a aceleração do progresso material que proporciona o confronto capital-trabalho, tornou-se fácil manter a repetição do binômio E-D. Os intelectuais ditos generosos prestaram-se admiravelmente a esse jogo por causa da tendência que têm à levitação. Pairam nas nuvens. E então Emmanuel Mounier pôde tranqüilamente dizer esta frase: “Nós, que a vida inteira lutamos pela justiça...”
Arimã e Ormuz
Esta frase, escritas por Mounier e abundantemente repetida com variações nos discursos de um Dom Helder, constitui um modelo de novo farisaísmo, que só se tornou possível pela aplicação do jogo E-D repetido durante mais de um século. Seu pretendido dualismo tipológico na verdade inculca uma outra espécie de dualismo, que só pode ser moral, mas que se apresenta mais como um dualismo substantivo, um dualismo de entidades, um dualismo de mal e de bem tornado fisicamente delimitado com muito mais nitidez e brutalidade do que no confronto de pretos e brancos. Surge assim, no século XX, um maniqueísmo imprevistamente organizado às avessas daquele que Maritain aponta no “Le paysan ...”, quando nos fala no “maniqueísmo larvado” anterior que explicaria a crise de nosso tempo.
Graças ao jogo E-D avalizado pelos mais prestigiados intelectuais, pôde um Emmanuel Mounier escrever tranqüilamente esta frase: “Nós que a vida inteira lutamos pela justiça”, para significar “nós fizemos tudo o que pudemos para instalar na França um governo de “Front Populaire”, e para instalar na “Resistance” e na “Epuration” uma casa de tolerância onde os católicos se tornaram comunizantes, como diz o Pe.Bigo, citado por Adrien Dansette. E graças ao mesmo jogo, ficou universalmente admitido que seria de “droite”, e portanto contrário à justiça, quem discordasse da “idéia” que o diretor de Esprit formara de Justiça e dos meios que julgara ter descoberto para alcançá-la — meios que discordavam singularmente da doutrina moral ensinada pela Igreja durante mais de um século.
O jogo E-D, por iniciativa das “esquerda”, como tão bem mostrou Madiran, forneceu critérios que superaram os do Magistério, e que concomitantemente, tranqüilizaram os que sem nenhuma hesitação se valiam de tal superação. No caso da Guerra Civil espanhola, ou melhor, no caso do “alzamiento” do exército, dos patriotas e dos católicos espanhóis contra o horror do terrorismo comunista e anarquista, o grande filósofo Jacques Maritain, engajado no jogo E-D, pôde tranqüilamente discordar e contrariar todos os pronunciamentos de Pio XI; pôde ficar indiferente à maior unanimidade católica de toda a História, provocada pelo apelo do Episcopado Espanhol, que foi respondido pelo apoio veemente e patético do mundo inteiro; e pôde explicar com estranha tranqüilidade a singular incapacidade que impedia o Pe.Garrigou-Lagrange de ver o erro colossal cometido por toda a Igreja e de compreender as luminosas razões que dava aos homens de “gauche” tão especial direito de ignorar o Magistério, o Episcopado mundial e a preocupação de um grande teólogo que até então fora respeitado como mestre e diretor espiritual do “Cercle de Meudon”. Tudo se explica com estas frases de espantosa simplicidade:
“Le Pére Garrigou était un homme de droit”... mes positions sur la guerre d’Espagne étaient décidément trop pour lui...”
Estas frases de inconcebível impertinência, escritas em 1964 com o estado de espírito voltado para 1937, como aquela de Mounier, servem para ilustrar o grau de obnubilação a que podem chegar os mais lúcidos espíritos quando se deixam envolver por um jogo de equívocos criado e alimentado por uma corrente histórica maligna e devastadora.
É incrível que um filósofo, como Jacques Maritain, não tenha percebido em 1937, e continue a não perceber em 1964, que obstinadamente apregoa a impossibilidade de apreciar racional e prudencialmente uma grave situação histórica, já que o fato de pertencer ao grupo tipológico dito de direita torna fisicamente impossível a percepção daquilo que o elemento oposto, pelo fato de pertencer à torrente histórica dita de esquerda, tem a liberdade (e o estranho privilégio) de chamar de “mes positions”, à revelia do que diz o Papa e do que clamam os bispos do mundo inteiro.
Graças a esse totemismo, a essa pertinência quase mágica a um grupo, pode o praticante das esquerdas, sacerdote de um dualismo de tipo religioso, apresentar-se como dono da “justiça”, que contrapõe à “ordem”, valendo-se das ressonâncias de irracional antipatia que cercam o vocábulo e o conceito. Poderá então o grupo mais representativo das esquerdas, o comunismo vitorioso depois da revolução de 1917, ostentar seus mais estridentes fracassos, seu massacre de milhões e milhões de camponeses, sua fome monumental, sua incomparável ferocidade, seus operários aprisionados nas fábricas, o massacre de Katym, a “Épuration” na França, o muro de Berlim, os horrores praticados contra as freiras e os padres no México e na Espanha tudo isto, julgado com os critérios da moral comum de que em vão se vale o Ocidente, para mostrar o malogro total da Revolução Russa, esbarra num novo dualismo místico que divide toda a criação em dois hemisférios inconciliáveis. Ormuz e Arimã se defrontam e proporcionam critérios absolutos e irredutíveis àqueles com que até hoje o mundo do homem viveu.
Durante a desastrosa experiência dos padres-operários, os militantes da mística revolucionária chegaram à enormidade de apregoar que “o operário é puro pelo simples fato de pertencer à classe que não explora, que é explorada”.
Estamos evidentemente na paisagem lunar ou onírica de um, mundo que “recusa o ser”, com diz Alfredo Lage, ou num mundo de jogo em que “o sinal toma o lugar da coisa significada”, como diz Marcel de Corte.
Uma pessoa sensata que acordasse nesta altura do século, depois de uns quatrocentos anos de sono, relutaria muito em compreender a continuidade, o nexo dessa corrente histórica que, em nome da “justiça” e do “interesse pelos pobres”, produziu o monstrificado mundo socialista; e não saberia o que mais admirar, se volvesse a considerar a flácida tolerância com que o mundo liberal se deixou estuprar.
Solecismos Políticos Fundamentais: a Direita e a Esquerda
Como atrás disse, Jules Monnerot também se preocupou com esse jogo falseado, dedicando-lhe um capítulo inteiro no livro em que denuncia a já quase secular “journée des dupes” dos “intelectuais” franceses. Nesse capítulo, o autor da famosa “Sociologie du Communisme” começa por citar uma passagem de um livro de René Rémond, na qual o historiador, tomando as “esquerdas” e as “direitas” por coisas subsistentes, cai na armadilha do jogo e passa a provar que todas as “direitas” enumeradas naquele período da História da França têm uma coisa comum: são antigas “esquerdas”. Ou melhor, foram esquerdas vencidas, superadas, por outra formação situada mais à esquerda, que as suplantou. Diz então Monnerot:
Direita e derrota (ou envelhecimento) são sinônimos. Uma formação passa da direita à esquerda quando é vencida, e porque foi vencida. É o sentido da História; a História “mantém-se à esquerda” (ao contrário dos automobilistas). Mas isto só se aplica à História em maiúscula, porque a história em minúscula não autoriza de modo algum tais generalizações. Na verdade, esse “sinistrismo” não pertence à História, e sim à ideologia.
Mas qual é a ideologia que, na França e na data em que foi publicado o livro de Rémond, antes de qualquer outra, decreta que a direção da História é “sinistra” e também que todos os governos, todos os partidos na França, desde 1815, passaram da direita à esquerda, todos, menos um? Qual é esta ideologia e este partido? É claro que só há uma palavra para responder a essas duas perguntas: comunista. E assim é que esse postulado comunista, aliás anticientífico e anti-histórico, é ministrado “ex cathedra” na França de hoje, aos jovens de hoje, sem nenhum antídoto crítico, e aparentemente com toda a sinceridade. Explicitemos o postulado implícito: “o partido comunista é a esquerda realizada. A distância em relação ao partido comunista basta para medir, em dado momento, o grau de sinistrismo de uma formação política”.
O partido comunista, nesse jogo, é a esquerda em “ato-puro”; é o referencial absoluto trazido à força para a política e para a História numa física antieinsteineana e anticoperniciana. E o curioso paralelismo está em pretender que tal concepção, tão brutalmente fixista, seja o modelo perfeito do progressismo. Desaparece a incoerência, ou coleção de solecismos, se lembrarmos que na metafísica e na teologia sobrenatural explicam-se os movimentos das coisas pela imobilidade de Deus. E concluímos: o comunismo é deus, ou é para seus crentes uma encarnação do verbo divino na realidade histórica do PC.
Monnerot termina seu capítulo, que gostaríamos de transcrever na íntegra:
O efeito desse jogo e dessa denominação afetiva é o de transferir, por contigüidade, o ódio que o propagandista espalha (...) de um ser a outro ser, e finalmente, de transferência em transferência, é o de aplicar a Guy Mollet a aversão inicial que o homem de esquerda tem pelo rei Carlos X. A identidade de denominação tem por objetivo estender e aplicar a dois seres, artificial e abusivamente identificados, o mesmo sentimento hostil.
Nesse sentido, a mágica — trata-se efetivamente de operações mágicas — produz efeitos reais. Porque, se for bem sucedida, e isto depende dos meios empregados (e os “mass media” aqui são dominantes), essa transferência de ódios passará a motivar os atos. Se conseguirmos, por condicionamento de reflexos, ligar um epíteto a condutas hostis, bastará uma circunstância favorável para que um indivíduo, apontado como fascista, seja linchado por uma multidão previamente condicionada. O caso já se registrou mais de uma vez. O inevitável desgaste do epíteto fascista, a despeito das maldições rituais repetidas pelos “mandarins”, levou nossos publicistas sob controle “Intelectual” à substituição progressiva do epíteto fascista, por “extrema direita” Mas este vitupério só se manteve por decreto. Abstrato demais, não pôde ser suficientemente mágico. Eles poderiam sempre achar quem os ajudasse a linchar um homem dom o grito: “fascista!” Mas dificilmente conseguirão comoção pública com gritos: “Extrema direita!” E é assim que o mau lógico acaba por conseguir ser um bom “publicitário”. Na rampa do declive da inteligência intelectual, procura-se em vão uma “linha de parada”.
E não resisto ao prazer de terminar este penoso e trabalhoso capítulo, com as mesmas palavras que Monnerot escolhe para terminar o seu. O leitor certamente já percebeu que este livro não tem um só autor. Sem chegar à mania dos Congressos, dos Sínodos, das Conferências que não caberiam na minha pequena sala de estudo, convidei vários amigos vivos e mortos, enquanto eu mesmo ainda pertenço a “esta orgulhosa aristocracia dos vivos”. Mas calemo-nos, porque Monnerot já deu sinais de impaciência. Ouçamo-lo:
Essa bipartição mágica em direita e esquerda acarreta, pelo jogo de uma espécie de inércia psicológica, uma classificação dualística de categorias opostas, cada uma a cada outra, a qual classificação poderá, por contágio paranóico, estender-se no espaço e no tempo. Já vi um conhecido intelectual aplicar-se a dividir os heróis de Homero e os profetas do Antigo Testamento em direitistas e esquerdistas. O alarmista Jeremias, em particular, homem de direita disfarçado em homem de esquerda, por suas profecias derrotistas para o seu próprio campo, aparecia ao nosso intelectual como um “social-democrata típico”. E o sacrifício de Efigênia, em que se prefigura o proletariado, desmascara em Agamenon o “fascista” não menos típico.
O Otimismo das Esquerdas
Estava decidido a encerrar, com o tópico anterior, este fastidioso capítulo, quando deparei com um livro da coleção “L’Univers des Connaissances”, editado pela Hachette e publicado simultaneamente na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Espanha, nos Estados Unidos, na Itália e na Suécia. A excelente iconografia, a ótima impressão e o largo internacionalismo, logo me convenceram de que o livro intitulado “Qu’est-ce que la Gauche”, muito provavelmente era mais uma contribuição para o dilúvio de estupidez que inunda o mundo moderno.
A rápida leitura confirmou o prognóstico. Efetivamente, depois de abundantes solecismos assinalados por Monnerot, o livro chega onde eu esperava. Começando por assinalar o inicial “handicap” das direitas nas Sagradas Escritura, onde se vê, em Mateus XXV-33, que as direitas são chamadas benditas e as esquerdas malditas, e onde se poderia tirar mais um argumento favor da tese que mostra a Igreja comprometida com os interesses da classe dominante, o autor anuncia o termo da secular injustiça.
Mas no mundo contemporâneo, os maçons, os radicais e os socialistas inverteram, as posições: desde algum tempo a esquerda adquiriu, no plano sentimental, uma significação nitidamente favorável, que implica progresso e enriquecimento do espírito.
A partir daí a dita esquerda, subsistente, quase hipostasiada, passa a ser apontada como confiança, OTIMISMO em relação ao homem e a seu futuro, desde que esse futuro, evidentemente seja atingido pela Revolução que tudo promete, sob a condição de tudo rejeitarmos.
Jean Madiran disse em 1968 que sentiu nas ruas de Paris o hálito da Revolução. Eu acabo de sentir nas páginas desse livro internacional e otimista o “hálito do nada” que perseguiu Frederico Nietzsche e não resisto ao desejo de agora encerrar este árido capítulo com a pergunta de Léon Bloy estampada como epígrafe desta obra: “De que futuro nos falam ‘eles’, então esses esperantes às avessas, esses escavadores do nada?”
O que realmente se vê neste mundo moderno modelado “pelos maçons, radicais e socialistas” é uma mortal des-Esperança — e não há mais lúgubre do que o otimismo desses desesperados.
(Gustavo Corção, O Século do Nada, cap. II)