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Um estudo sobre o monaquismo

I - A FISIONOMIA DO MONGE

 

1. Si vis perfectus esse...

 

Em Mateus (XIX, 16-22), lemos a primeira definição do monge: “E eis que alguém, abordando-o, disse: Mestre, que devo eu fazer de bom para ter a vida eterna? E ele lhe diz: Por que me interrogas sobre o que é bom? Um só é bom. Se queres entrar na vida, observa os mandamentos. E ele lhe diz: Quais? Jesus responde: São estes: não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não pronunciarás falso testemunho, honrarás pai e mãe, e amarás o próximo como a ti mesmo. Diz-lhe o moço: Observei-os todos, que me falta ainda? Jesus lhe diz: Se queres ser perfeito, vai, vende o que possuis, dá tudo aos pobres, e terás um tesouro nos céus: depois vem, e segue-me. Quando ouviu estas palavras, o moço afastou-se contristado porque era muito rico”.

 

E aí está uma primeira definição ligada a uma primeira recusa. O moço que Jesus amou, conforme está escrito em Marcos (X, 17-22) recuava diante do chamado mais premente, porque era muito rico. Foi por isso que Nosso Senhor, logo a seguir, acrescentou que era mais difícil um rico entrar no reino dos céus do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha. Cumpre notar, entretanto, que o moço rico do evangelho não se negava à perfeição. Ele mesmo dissera, com impulsiva generosidade, que vinha cumprindo os preceitos desde a juventude, o que se explica, segundo o Pe. Lagrange, pela tendência enfática que os moços têm de falar no seu passado recente. Desde a juventude, quer dizer desde sempre. Ou desde os dias em que havia despertado no moço uma consciência moral. Desejara e procurara a perfeição, quisera sempre orientar-se para um verdadeiro fim, mas assustou-se e fugiu quando o Senhor lhe apontou o caminho mais curto que lhe pareceu difícil demais. Como dirá depois o teólogo, o moço rico do evangelho cumprira o preceito, mas recuara diante do conselho.

 

Ora, duzentos e cinqüenta anos mais tarde, um outro moço, nobre e rico, ouvindo numa igreja a leitura do mesmo texto evangélico: “si vis perfectus esse...”, tomou para si o convite de Deus, saiu a vender suas terras e seus bois, distribuindo tudo pelos pobres, e foi viver no deserto da Tebaida, o mais pobre dos pobres, entre orações, jejuns e espantosas mortificações. Esse moço foi Antão, o monge.

 

2 . Preceito e conselho

 

Não devo, entretanto, dizer que o monge se define simplesmente pela escolha da perfeição. “Diz-se de uma coisa que ela é perfeita quando atinge seu próprio fim, que é a sua última perfeição”. (Suma Teo. II-II, Qu. 184, art. 1). Ora, a beatitude eterna é o fim último do homem. Logo, não somente os monges, mas todos os cristãos procuram a mesma perfeição. Explica Santo Tomás (Qu. 184, art. 3) que a perfeição consiste essencialmente no preceito e “secundariamente, a título de meio, no conselho”. Assim, o que caracteriza o monge, por enquanto, não é a escolha do fim, mas a dos meios; é a coragem de tomar o caminho mais curto e mais difícil; é a aventura de levar a obediência até os extremos do conselho. Não se contenta em evitar o que contraria a caridade, mas em evitar também o que não a acrescenta. Mas escolhe os meios de um modo especial, isto é, por já ver neles o fim, e faz dessa escolha um estado. Não foi o gosto de se desfazer dos deleites da fortuna e dos regalos  da vida, mesmo os legítimos, que lhe pesaram no espírito. Não por estoicismo que vendeu suas terras e seus bois. Antes daquelas palavras sobre os meios disse Jesus: “um só é bom”. Depois delas, acrescentou: “segue-me”. Tudo o mais então se torna acessório – rebanhos e vinhas – se um só é bom. Todas as coisas da terra serão reflexos de uma só bondade; e, assim sendo, mais vale seguir a luz do que demorar-se nos reflexos ou correr no encalço das sombras.

 

O moço rico do evangelho, cuja franqueza foi amada pelo Senhor, não seguiu a superabundância do conselho, mas tendo amado o preceito está certamente no céu. O bom Mestre, segundo Marcos, fixou seus olhos nos dele, e amou-o. Está escrito. O que absolutamente não está escrito é que Jesus tenha amado naquele moço rico todos os moços ricos que, pelos séculos afora, irão pensar que o preceito consiste na magra pontualidade, e na mesquinha observância das condições mínimas exigidas pela Igreja. Cumpre lembrar que a alma do preceito é a caridade. Amar a Deus e ao próximo, eis os principais mandamentos.

 

Lendo as distinções de Santo Tomás, poderíamos acha-las murchas e sem vida (porque são sóbrias e discretas), sobretudo se não lhe apreendermos o sentido completo. Preceito, no vocabulário corrente, tornou-se uma coisa seca, estrita, suficiente, parcimoniosa, como um negócio que se regateia. Ir à missa aos Domingos e comungar uma vez por ano: eis um preceito da Igreja. Mas é bom saber que esse mínimo, oferecido por Deus, será inútil e vão se faltar aquele máximo que é a caridade. Admite-se a liberdade de não usar a abundância dos meios santificantes; mas o que não se admite dentro da Igreja é o desprezo pelo fim. E é deste que cuida o preceito.

 

Há enormes mistérios dentro da Igreja. Um deles, e dos mais terríveis, a meu ver, é o preceito do mínimo. O homem do mundo, vendo a Igreja por fora, aprecia a enorme sabedoria de sua tolerância no que concerne à prática, mas acha esquisitíssima a vida dos monges. Ora, um pouco de convívio na Igreja, modifica radicalmente essa apreciação, mostrando-nos que esquisitíssima é a vida de quem crê e não usa aquilo em que crê senão uma vez por ano.

 

Na verdade, a Igreja concede que pratiquemos essa singular economia de meios; mas não transige quanto ao fim. Exige o máximo, mas tem a imensa e maternal paciência de levar a sério a presunção dos que se julgam suficientemente aparelhados para dispensar o quotidiano auxílio de sua maternidade. Diria até que ela sorri de nós, com essa história de comungar uma vez por ano, reservando seu riso franco e desvendado para o dia de suas núpcias.

 

O monge, nessa ordem de idéias, é o homem que entendeu por meias palavras o conselho do evangelho, e que decifrou o misterioso sorriso de sua mãe. Por isso vai muito além do preceito. Ou melhor, adivinha a verdadeira profundidade do preceito.

 

 

3. O máximo e o mínimo

 

Vimos atrás que está armado o problema de saber o que é o mínimo e o que é o máximo. O moço rico que veio ao encontro do Senhor queria a perfeição, a mesma a que Santo Antão se oferece; mas desejava-se equilibrar entre a riqueza na terra e a riqueza no céu. Não digo que ele fosse um calculador, dessa espécie ridícula que julga ser possível enganar a Deus. Lá diz S. Marcos que Jesus o amou depois de o ter olhado dentro dos olhos. Enganar ele não quis. O que ele vinha buscar era a mesma vida eterna dos santos. E certamente alcançou o que buscava, porque Jesus o amou. Mas, naquele momento de sua vida terrena e carnal ele foi um calculador, sim, um mau calculador, porque não soube distinguir a nova luz que subverte todos os valores, transformando o mínimo em máximo, e o máximo em mínimo.

 

O monge, ao contrário, é o homem para quem começa, a partir de sua opção, a vida subvertida das bem-aventuranças. Ouve e obedece. Vê o máximo no mínimo. Decifra a cruz. As terríveis palavras cruzadas do evangelho. Segue a Cristo. Segue-o passo a passo, de perto, deixando pai, mãe, terras, bois e vinhas, porque um só é bom.

 

 

4. Ida e volta

 

Aliás, nessa impetuosa partida, sob a claridade de um novo dia, o monge descobre que está trilhando um caminho de volta. “Redire ad Deum”: eis aí um resumo da vida monástica. É uma volta a Deus pelo caminho mais curto da forte obediência. É uma aventura, como aquela a que o bom humorista alude muitas vezes, glosando a seu modo as palavras evangélicas.

 

E agora vejo que cometi uma imperdoável omissão. Lá no capitulo de um livro, em que enumerei alguns dos oitenta volumes que era possível escrever sobre a simples idéia de volta, não mencionei o “Redire ad Deum” do monge que, permitam-me a imagem, é rápida e fogosa como a do cavalo que sente aproximar-se a paisagem familiar que circunda a casa do senhor.

 

 

5. As promessas de Deus

 

Acrescento mais um traço a esse esboço que estou tentando, valendo-me da continuação daquele texto de São Mateus. Nos versículos 27 e 29 do mesmo capitulo lemos: “tomando Pedro a palavra, disse-lhe então: Eis que tudo deixamos para seguir-vos; e agora, o que acontecerá conosco? Jesus lhe diz: Em verdade vos digo, quando o Filho do Homem sentar-se em seu trono de glória, vós que me haveis seguido, vos sentareis também em doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel. E quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, pai e mãe, filhos e campos, por causa de meu nome, receberá o cêntuplo, e possuirá a vida eterna”.

 

De onde eu concluo, nesta face que agora lhe vemos, que o monge é o homem que leva muito a sério as promessas de Deus. Em outras palavras, sua vida se desenrola perto e diante das últimas coisas. Seu caminho de perfeição é um estado, seus meios têm as marcas nítidas do fim, transformando-se o conselho em preceito, e sendo esse novo preceito uma regra, como se pode verificar nas primeiras linhas da Regra de São Bento: “Escuta, ó filho, os preceitos de um mestre...”

 

Os descendentes de Bento, Basílio e Pacômio são homens escatológicos que vivem “em pé diante do Senhor”, atentos, vigilantes, de cintos amarrados, lâmpada acesa, prontos para correr ao encontro do Esposo. De todas as palavras da Sagrada Escritura as que mais lhes concernem são as últimas: “Vinde, vinde Senhor Jesus”.

 

Ou então, as palavras da esposa no Cântico dos Cânticos: “Eu durmo, mas meu coração vigia. É a voz do bem amado. Ele bate...”

 

 

6. Vida nova

 

O que ficou dito até agora não basta para marcar uma diferença essencial entre o estado do monge e o que a Igreja preceitua para todos os batizados. O moço do evangelho, fugindo embora ao caminho do conselho, já escolhera o bom caminho. Não se pode dizer, creio eu, que desobedecera ao Senhor, mas que não largara as rédeas ao ímpeto da forte obediência. E é em torno deste ponto que se estabelece uma diferença entre ele e o monge. Antão, Paulo, Macário, foram monges, porque ouviram melhor, descobriram a nova lei do máximo e do mínimo, levaram a sério as promessas, viveram as bem-aventuranças e voltaram a brida solta para a casa de Deus.

 

É evidente pois que o monge, a partir de sua decisão, passará a viver uma vida nova. Uma nova conversatio, como diz a Regra de São Bento. Seus costumes, suas atitudes, seus julgamentos, sofrerão profundas modificações sob a nova luz que torna transparentes as coisas do mundo para a expectação da última realidade. E, como o característico desse estado consiste mais nos meios do que no fim, é fácil prever que as tentativas feitas através dos tempos, pelos eremitas e cenobitas (não falando nos sarabaitas e nos girovagos), serão diversas e por vezes esquisitas. Este, ouvindo dizer que tomasse sua cruz, vai corta duas traves, passando a andar pelos caminhos com uma concreta cruz a lhe pesar nas costas. Aquele outro irá para o deserto. Muitos praticarão macerações prodigiosas. Mas debaixo dessa variedade de métodos vê-se que a nova vida, a conversatio dos monges, tem um centro bem marcado: um só é bom. A própria esquisitice dos meios serve para realçar a constância do fim; e daí tiramos um traço a mais dizendo que o monge procura, na confusão do mundo, aqui e agora, o que somente no céu se pode desfrutar de modo perfeito: a unidade.

 

Etimologicamente monge vem de monos, um, no sentido de solitário. Podemos agora tomar a raiz do vocábulo em sentido mais espiritual dizendo que monos é unidade, e que o monge, como Maria, procura centrar a nova vida em torno do único necessário.

 

 

7. Integridade

 

Quem diz unidade diz não-divisão. Ora, o casamento é uma divisão (I Cor. VII, 33). O homem casado é dividido, tendo de cuidar das coisas do mundo e de agradar a sua mulher. O “único necessário” não pode pois ser realizado no casamento senão indiretamente, através de recíprocas dificuldades e por meio da santificação mútua. Os cônjuges não podem sequer dispor dos próprios corpos, nem estão livres de formular promessas porque, no vínculo que os prende, mesmo um juramento a Deus seria um perjúrio. Ou, se liberta, por outro lado embaraça; se completa, também divide; se satisfaz, também satura.

 

Mas não são essas desvantagens que impedem o casamento dos monges. Não se trata aqui de uma questão de conveniência ou de legislação, como no caso do celibato dos padres. A discussão sobre as vantagens ou desvantagens da divisão só tem algum valor nos momentos que precedem a escolha. Depois, já não cabe dizer que o matrimonio é desvantajoso para o monge, porque sua escolha exclui essa possibilidade. Há duas doações possíveis e uma exclui a outra, pois de outro modo não seria uma doação.

 

E, se a vida de família, fundada no amor humano, tem agasalhos e doçuras; se é bom muitas vezes ser dois; se é reconfortante mirar-se a gente no espelho de um rosto amigo, que tem seguranças de mãe, mimos de filha e ternuras de esposa; se é bom ter um corpo prolongado, destacado, que anda pela casa, e vai, e vem, separado e distante, seu e outro; se uma das maiores alegrias do mundo, legítima, abençoada, desejada, exigida por Deus, é a de ver ao redor, pela casa, uma porção de carinhas parecidas, nariz de um, olhos de outro, como se nossa divisão se transformasse numa sub-divisão, e andassem assim, vivos, inteiros, em torno de nós, a nos puxar pela roupa, rindo, chorando, falando, as esquisitas somas de nossas semelhanças, reflexos tornados carnes, e carnes nossas, nossas e reflorescidas; se é possível, através da noite do mundo, um pouco de calor e luz nesse acampamento em que o homem e a mulher se entendam, gravemente, profundamente, santamente – mesmo assim – admitida a mais perfeita compatibilidade e a mais harmoniosa compreensão – mesmo assim o casamento, isto é, a convivência conjugal, exclui a convivência monástica.

 

Aqui dividem-se os caminhos. Dividem-se as vidas. E o monge escolhe a vida nova da unidade, sendo íntegro na sua doação, indiviso na sua entrega, virgem no seu amor, uno, monos, e verdadeiramente solitário.

 

Não pelo gosto da privação e do sacrifício; mas pelo gosto de seguir o Cristo Jesus.

 

 

8. Voto e consagração

 

Mas a idéia de nova vida sugere logo a de um novo nascimento. Haverá pois um ato, um feito, um gesto, que marquem de modo inconfundível o momento dos primeiros passos. Volta ou partida, ou um pouco ambas as coisas, o caminho do monge será marcado nitidamente em seu início. Não podemos imaginar uma transformação gradativa. Se o moço do evangelho quisesse ser monge aos poucos, vendendo um boi por semana, ou um alqueire de terra por mês, é pouco provável que levasse a empresa a bom termo. Se é vida nova, novo é o nascimento. É preciso nascer de novo, como disse Jesus a Nicodemus.  

 

Mas o cristão já nasceu de novo, para a vida eterna, pela água do batismo, não podendo assim a entrada na vida monástica ser um segundo batismo senão alegoricamente. O batismo é um só.

 

Que caráter terá então esse limiar que o monge atravessa para a sua nova conversatio? Entre Antão e o moço que voltou contristado não pode existir a mesma diferença que separa um pagão de um batizado, um sacerdote de um leigo. Os sacramentos são sete. Não há outro sinal, que opere o que significa, e que sirva para marcar a transição para a vida monástica. Não há diferença de caráter entre um secular e um monge.

 

Por outro lado, porém, o estado do monge difere profundamente da atitude de um cristão que formula bons propósitos. E difere, justamente porque é um estado. Para Santo Tomás, o que marca esta transição é a solenidade dos votos, pela qual se distingue o simples voto (que é uma promessa, isto é, qualquer coisa de potencial) do voto solenizado que é uma entrega total (II-II, Qu. 88, art. 7). E esta solenidade não consiste somente nos gestos visíveis dos homens, mas em “algo de espiritual em que Deus mesmo se empenha, isto é, numa benção ou numa consagração espiritual”. Dir-se-ia que o voto solene é maior e mais decisivo do que a simples promessa pelo fato de ser, não apenas um compromisso a ser cumprido um dia (como um noivado), mas uma atual e plena doação (como um casamento) que a Igreja recebe e em que ela mesma determina as condições. Para Santo Tomás a consagração ou a benção solene não é a causa do estabelecimento no estado monástico. É o sinal. Mas um sinal espiritual com que a Igreja designa aquele que, por ela, se entrega a Deus definitivamente.

 

Este problema está longe de ser uma questão encerrada. Disputa-se ainda em torno do conceito de voto, solenidade e consagração, não estando ao meu alcance desenvolver agora as sutilíssimas dificuldades em jogo.

 

Seja porém qual for o constituinte formal do estado religioso, resulta sempre que o monge, a partir da profissão solene e da consagração, está totalmente entregue a Deus. E cumpre notar aqui, para bem apreendermos a importância desta doação, que o monge, de tal modo crê nas promessas de Deus que se antecipa a elas, digamos assim, atualizando suas próprias promessas, trocando o invisível pelo visível, e o prometido pelo possuído. Por outro lado, porém, Deus não se deixa vencer em generosidade por ninguém. Se o monge avança é porque a graça de Deus o move, sendo sempre do Espírito Santo a primeira moção; e também, se o monge abandona o possuído, recebe no mesmo momento, não o cêntuplo que o espera no céu, mas as abundantes bênçãos que o amparam na terra.

 

 

 

II - INTERMEZZO ANGUSTIOSO

 

 

Nas linhas que ficaram para trás andamos a perseguir uma definição. Sentindo que ela ficou imperfeita, discutível e abstrata, e que nem de longe recobre o mistério da vida monástica, debruçamo-nos agora sobre os textos que contam as histórias extraordinárias dos monges antigos. Corremos os olhos pelos feitos de um Basílio ou de um Macário; pasmamos diante de um Simeão Stilita no alto de sua coluna; detemo-nos a considerar a luta de um Hilário que durante vinte e tantos anos fustiga as paixões de sua mocidade. Acompanhamos Crisóstomo na sua caverna; Atanásio, no seu exílio; e Marcela, e Paula, e Fabíola as grandes matronas de Cristo; e Jerônimo que impressiona tanto pelo que faz quanto pelo que conta; e tantos outros cujas histórias nos empolgam, nos espantam e – por que não dizer? – nos assustam e nos entristecem. Se muitas vezes essa leitura revigora a alma, noutras vezes, quando menos se espera, por causa de nossa fadiga, ou por termos apostado demais nos recursos da imaginação, sentimos que nos invade uma sufocante tristeza.

 

A julgar por aqueles exemplos, a separação entre o conselho e o preceito nos parece um abismo. O evangelho se parte em dois, como se aqueles loucos tivessem esgotado toda a seiva deixando-nos a palha. O fio da tradição parece partido, pela falta de nexo entre a vida extraordinária dos Padres do Deserto e a vida ordinária que vivemos.

 

Tão grande é a diferença dos meios que nos assalta a desesperada idéia de uma profunda diferença entre os fins. “Muitos serão chamados e poucos os escolhidos”. Como poderá um de nós, na vida familiar, na profissão, na política, - na vida quotidiana apagada e monótona – correr na mesma pista daqueles atletas? Como poderemos aspirar ao mesmo prêmio? Como poderá a mãe de família desejar a mesma coroa de uma Paula, que deixa pátria, família e filhos, para procurar o chão da Terra Santa os traços da passagem de Deus? Como poderá ser medida a perfeição, isto é, o fim, com o mesmo côvado, se é tão desigual a medida dos meios?

 

O monge, a bem dizer, nos assusta ainda mais do que o mártir. O extraordinário deste está na morte; o daquele na vida. O martírio violento e rubro dos perseguidos se nos afigura mais razoável, mais acessível, mais possível, do que o martírio lento e incolor dos solitários. Um circo com leões é mais compreensível do que uma caverna sem leões. Os apupos de uma platéia selvagem, mais suportáveis do que a acabrunhante ausência do contato humano, que até mesmo no ódio nos ampara.

 

Essas reflexões são insensatas. Os evangelhos têm respostas para cada situação da vida; o preceito é santo; os caminhos são vários; as moradas são muitas na casa do Senhor. Mas o fato de lá nos evangelhos estar escrito o convite premente ao caminho mais curto, e o fato histórico e incrível de muitos o terem palmilhado, deixa-nos n’alma uma pesada angústia. Que? Não estaremos nós aqui, com essa escolástica distinção entre preceito e conselho, tecendo sofismas para fugir ao chamado de Deus? Não estaremos nós aqui, como os moços ricos de todas as épocas, a imaginar uma desmesurada agulha ou um microscópico camelo?

 

Ademais, a Igreja instituída por Deus estava completa com os bispos e o povo. Onde inserir o monge na escada de Jacob? Há os pastores e as ovelhas; a hierarquia e os fiéis. Onde meter o monge? De que lado? Em que linhas? Se não têm ordens, é conosco, com os leigos, que estão. Mas, logo reaparece a dificuldade quando observamos que a vida extraordinária dos Padres do Deserto tem tudo, dir-se-ia intencionalmente, para nos separar. O caminho deles nos assusta, não somente por ser íngreme e rápido, mas por sugerir – tamanha é a diferença – um termo diferente. A violência do conselho ataca a essência do preceito, e tudo se afigura como se a perfeição, a caridade, Deus, só pudessem ser atingidos pelas cinzas e pelas macerações e pelas santas extravagâncias dos eremitas.

 

A palavra dos evangelhos, insistentemente gravada em Mateus, em Marcos e em Lucas, soa em nossos ouvidos distantes e vaga como as vozes em sonhos: “si vis perfectus esse...”.

 

E nós – que temos casa, família, filhos, livros, vitrola, etc. – nós voltamos contristados.

 

 

III - SÃO BENTO

 

 

1. Fulgens radiatur

 

Ora, em meio dessa angústia, obscura, fulge radiosa a obra conciliadora de São Bento. Antes de Santo Tomás, o mais tomista e sensato dos santos vem mostrar praticamente a firme conexão entre o extraordinário e ordinário, entre a aventura e a estabilidade, entre os horizontes do deserto e as paredes do mosteiro. E essa paradoxal proporção do que parecia desproporcionado, essa audaciosa analogia ele a realiza em sua própria vida. Entre a caverna de Subiaco e o mosteiro de Monte Cassino, São Bento traça com mão robusta a linha da tradição. Entre os espinheiros do monte e a Santa Regra, São Bento liga numa só linha o caminho da perfeição. A violência torna-se discreta; os instrumentos adaptam-se ao homem; o mosteiro, sem nenhuma diminuição de sua austeridade, reconcilia-se com a cidade cristã.

 

Foi por ouvir os homens que Bento desceu de sua solidão, e Deus quis provar a caridade do eremita consentindo na dura decepção de sua primeira experiência entre os homens. No dia em que os maus filhos de Vicovaro planejaram o parricídio, e concertaram os detalhes, e deitaram veneno no vinho que ofereceriam ao pai, houve certamente, como na história de Job, um tremendo diálogo entre Deus e o Príncipe das trevas. Uma aposta entre os céus e os infernos. E Deus aceitou o desafio.

 

E agora ali está o Judas tonsurado, que se curva pedindo a benção, e que oferece ao abade a bilha de vinho envenenado. A história é conhecida: o sinal da cruz vence as forças do inferno e, diante dos lívidos assassinos, a bilha se quebra.

 

Mas o desejo de Satã não visava simplesmente a morte de Bento. Que lucraria ele com a morte de um santo? Que parte poderia ter o condenado nas alegrias do céu? Outro era seu plano. Outro era o objetivo de seu desafio. A dúzia de almas que já colhia naquele motim de monges era um detalhe, um nada, um palito para a sua insensata fome de almas. O que ele queria, creio eu, era que Bento descresse definitivamente dos homens. Não de Deus. Isto, eu penso que ele não ousava esperar. Mas que desanimasse do homem, por causa dos homens; que desprezasse a condição humana, a essência do homem, a humanidade do homem que o Cristo aceitara e com seu sangue resgatara. Este era o plano do Demônio.

 

Em outras palavras, ele queria destruir no germe a obra que já farejava. Queria destruir Monte Cassino. Planejou adiantado; mas chegou atrasado. Gastou mil e quatrocentos anos. Teve de mobilizar todos os seus grandes recursos: animando Lutero, inspirando Hitler, inventando a cruz quebrada (em desforra da bilha quebrada pela cruz), propagando no mundo uma filosofia que descrê do homem, em nome do super-homem, endurecendo com o ruído das metralhas os ouvidos dos soldados, que vinham de outras terras, arrancar a swastica das terras da Itália, arregimentando as traições, as insatisfações, os recalques e todas as muitas espécies da imbecilidade e da felonia.

 

Conseguiu derrubar as paredes do mosteiro. Monte Cassino já não existe. Monte Cassino foi reduzido a escombros. Mas duas coisas sobraram: a cripta onde os despojos do santo esperam a ressurreição; e a obra imorredoura que, mais do que nunca, fulge radiosa.

 

 

2. A obra civilizadora

 

Chamado novamente por outros discípulos, depois da sombria experiência de Vicovaro, São Bento torna a obedecer à voz de Deus pronunciada pela penúria dos homens. E com o claro gênio, somente igualado por seu filho adotivo Tomás, que ele cede a Domingos e retoma na hora da morte, Bento traça as bases singelas e robustas do monaquismo estável sem imaginar talvez que, na superabundância de sua abadia, estava incluído o que hoje chamamos civilização ocidental. O que ele fundava era uma casa de família, ou uma escola do serviço de Deus. O que ele fundamentava era um estado de perfeição em que a ousadia e a discrição se adaptavam aos arroubos do espírito e às fraquezas do corpo. Mas indiretamente, sem o querer, pela difusiva força do que é bom, São Bento amarrava fortemente as duas pontas quase partidas da tradição, ligando a vida prodigiosa dos santos do deserto às capacidades de nossa vida quotidiana. E, em conseqüência disto, sua obra foi fortemente civilizadora.

 

Pela simples presença, mais do que por uma série de operações calculadas, o mosteiro fertilizava e civilizava. Como o cristal de arestas rígidas e faces límpidas faz com que tudo, dentro da água salgada, se ordene e cristalize, assim também, pelo exemplo da forma, pela dureza das arestas perdidas, o cristal de Monte Cassino precipitou as salinas do mundo ocidental. Por acidente, evangeliza enormes regiões. Batiza os anglos. Converte os germânicos. Enche o mundo de heróis. Povoa a Igreja de santos. Pela simples presença, sendo o que é, uma abadia, casa de orações, statio de perfeição, família, escola de serviço de Deus, sem planos de conquista e sem planos de expansão, sendo o que é, Monte Cassino acende um farol que orienta as hordas bárbaras, mostrando àqueles violentos o caminho da menos defendida das fortalezas: a casa de Deus. E os bárbaros se tornam monges, mansos como cordeiros. E os romanos de fina estirpe ombreiam na salmodia com os hirsutos e rudes germanos, cujo olho azul viera buscar, através de léguas e léguas de caminho, por florestas e montes, por travessias de torrentes furiosas, por neves e calmarias, a luz de uma vela sobre o altar.

 

 

3. Ser, estar, ter e fazer

 

Se alguém tivesse dito a Bento, no dia em que ele tomou o caminho de Monte Cassino, para fugir com seus filhos à inveja de Florêncio, que sua obra se destinava a salvar a cultura clássica e a fundamentar uma nova civilização, o santo ficaria muito espantado. E assustado.

 

O que ele tinha em mente era uma obra simples que se destinava primordialmente a ser o que era. Das operações e das aplicações extrínsecas desse patrimônio, que assim formava, o patriarca certamente não cuidava. E foi justamente por isso, pela solidez de sua própria natureza, e pela ausência de qualquer programa prévio de apostolado e civilização, que as abadias beneditinas tiveram sempre disponíveis enormes forças de fecundação para cada época. Quando um grande papa, filho de Monte Cassino, planeja e organiza nos mínimos detalhes a expedição evangélica à terra dos anglos, lá estavam os monges para servi-lo, menos por alguma aptidão especial às viagens do que pelo simples fato de lá estarem.

 

E não terá sido por mera coincidência que Tomás saiu de Monte Cassino, para buscar no itinerário traçado por Domingos, uma prodigiosa aplicação do patrimônio beneditino. O ser que o monge é, Santo Tomás o aplicará, suberabundantemente, mugindo através dos séculos; e quando tiver espalhado todas as sementes recebidas, voltará ao ponto de partida, ao monte santo, e morrerá como uma criança de quatro anos no regaço duma abadia.

 

E não será também por mera coincidência que Francisco, o mais atraente e convincente doido de Nosso Senhor, foi procurar nos espinheiros do Subiaco o antigo segredo para vencer a rebeldia da carne.

 

E hoje, graças a obra de São Bento, que continua, e que se articula na multiplicidade de outras obras, tendo atravessado a obscuridade medieval, e a claridade medieval, sob o agudo olhar de Santo Tomás, e sob o ardente olhar de São Francisco, continuando sempre, transbordando sempre, com fortes oscilações de nave que atravessa mar grosso, jogando nas ondas, entre Cluny e Clairvaux – hoje, graças a essa obra continuada e mantida, nós podemos ler sem sustos as vidas dos padres do deserto, porque está aberto e desbastado o imenso campo das analogias, que veio enriquecer a obediência ao conselho evangélico.

 

São Bento, com seu incomparável exemplo prático, libertou-nos do univocismo, aproximando o que parecia distante e irreconciliável. O extraordinário é inserido no ordinário. Ao quotidiano monástico, substancia da nova conversatio beneditina, corresponde o nosso quotidiano na vida familiar e profissional. A “petite voie” do grande monge refloresce na santidade moderna de Santa Teresinha; e a pedra transforma-se em rosas.

 

E nestes tempos angustiados, em que todos procuram o segredo do homem no ter e no fazer, volta São Bento a ensinar nos seus montes santos multiplicados pelo mundo, que o segredo fundamental do homem está no ser e no estar. O grande problema do trabalho, em torno do qual se enrola hoje um torvelinho de falsas doutrinas, como assinalou o Santo Padre em sua encíclica, em nenhuma obra humana está mais dignificado do que na legislação beneditina. E creio não me enganar dizendo também que a Ação Católica só poderá produzir bons frutos na medida em que a participação no apostolado da hierarquia imitar a grande linha tradicional dos monges. Penso, em suma, que o mundo cristão de nossos dias, se não compreender o que é o monaquismo, ou não apreender o sentido do ser e do estar, perder-se-á num ativismo insensato. Já pairam sombrias dúvidas acerca do que o homem é, tornando-se dia a dia o que tem e o que faz, como se essa infeliz criatura se tivesse tornado tão excêntrica que andasse a correr no encalço do próprio coração.

 

 

4. O exemplo do abade

 

Sobre as possíveis aplicações do patrimônio no mundo moderno poderíamos escrever muitos volumes. É impossível, creio eu, pensar numa re-cristianisação dos povos sem esse elemento, que nas situações mais criticas da história firmou a Igreja. Não digo isso somente por causa do benéfico exemplo de vida austera e pobre, que os monges trazem à cidade. Nem tampouco me refiro à invisível ação da chuva de orações que caem sobre os nossos telhados. Entre a ação puramente moralizadora, e aquela devida à reversibilidade dos méritos na comunhão dos santos, há uma ação mais específica que consiste na reestruturação da sociedade.

 

Abrindo a Regra de São Bento, no segundo capítulo, onde trata do Abade, encontramos duas vezes uma misteriosa expressão que ilustra bem a nossa idéia. “O abade – diz a Regra – deve se lembrar sempre do nome que lhe dão”.

 

Esse preceito estruturador, trazido para fora da clausura, aplica-se a cada um de nós, ao presidente da república e a mim, como uma advertência de responsabilidade, e como um fundamental artigo de fidelidade à condição humana.

 

 

5. O oblato

 

Neste ponto quero apresentar um personagem obscuro, e de esquisito nome, que poderá ter grandes préstimos de apostolado, enquanto souber imitar o mosteiro e o abade, lembrando-se sempre do nome que dão. Refiro-me ao oblato.

 

Não é propriamente um monge. Não veste o hábito nem pronunciou os votos solenes. Ou melhor, usa no peito um pedaço do hábito; e guarda na memória o que prometeu, diante do abade: realizar na cidade e na família uma conversatio análoga à dos monges; sendo assim um pedaço do mosteiro, espécie de diástase espiritual, que leva pelas ruas da cidade, não somente o exemplo moral, mas a semente do ser monástico. É um pequeno mensageiro. Um modesto colonizador. Sua ligação concreta e freqüente com a abadia facilita a circulação da seiva que pode vivificar a cidade. Ele desce e sobe a ladeira do monte santo, num ritmo mais rápido do que os monges, indo e vindo, trazendo e levando, como um pobre cão de pastor no meio de um rebanho anarquizado. Ladra às vezes com raiva; uiva às vezes com melancolia; mas procura, o pobre coitado, ser fiel ao nome que lhe dão. E, como aquele cachorro pintado nos anúncios das vitrolas, conhece a voz de seu Senhor.

 

 

 

IV - MILES STATARIUS

 

 

1. A Regra

 

Não foi São Bento o inventor do cenobitismo. Muito antes dele, no tempo de Santo Antão, já era costume reunirem-se os discípulos em torno de um mestre a fim de procurarem o caminho da perfeição na vida comum. Nos Atos dos Apóstolos encontramos um quadro de singelo cenobitismo: “Todos os que tinham fé viviam juntos e possuíam tudo em comum; vendiam seus bens partilhando (o produto) entre todos conforme a necessidade de cada um. Todos os dias, com o mesmo fervor, assíduos no templo, e partindo o pão em casa tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração, louvando a Deus e tendo o agrado de todo o povo. E o Senhor acrescentava à massa, cada dia, aqueles que estavam salvos” (Atos, II, 45-47).

 

Não foi também São Bento o primeiro a escrever uma Regra para os monges. Antes dele, São Pacômio e São Basílio já haviam legislado para comunidades religiosas.

 

Mas foi São Bento, certamente, que firmou o cenobitismo nas bases em que até hoje se mantém. O comentário da Regra Beneditina publicado sob os auspícios da abadia de Maredsous assinala três elementos que para o comentador são características da obra de São Bento. O primeiro é a precisão. Sua regra é clara e nítida. O postulante, desde os primeiros dias, conhece “sob que lei vai militar”, e sabe muito exatamente que compromissos toma a fazer a profissão. O segundo elemento é a discreção. São Bento, com efeito, não exige nenhuma austeridade extraordinária, prevê o alimento e sono suficientes, divide as horas entre a oração, o trabalho manual e a leitura, não sendo sua Regra concebida, nem para os heróis da penitência, como a de São Columbano, nem para uma elite intelectual, como a de Cassiadoro. Em suma, ele espera não prescrever nada de rude nem de penoso em demasia. O abade deve levar em conta a fragilidade terrestre, dispondo as coisas e distribuindo os trabalhos com moderação e discernimento, de modo que as almas se salvem, que os fortes desejem fazer mais do que se lhes pede, e que os fracos não desanimem.

 

Mas é o terceiro elemento assinalado por aquele comentador, a estabilidade, que marca de modo decisivo a obra de São Bento. Logo no primeiro capitulo da Regra, ele analisa as quatro espécies de monge e faz o elogio da forte raça dos cenobitas, isto é, dos que vivem em um mosteiro, militando sob uma regra e um abade. E nesta definição já estão contidos os elementos que constituirão os objetos de voto: estabilidade (no mosteiro): conversatio morum (regra); obediência (abade). Pode-se entretanto dizer que é no voto de estabilidade que está a chave do monaquismo ocidental.

 

 

2. Sto, stare, stans

 

No sentido literal, estabilidade quer dizer permanência no mosteiro. Significa fixidez, incorporação para sempre numa família. Mas o sentido espiritual dessa palavra deve ser bem apreendido para podermos avaliar, em toda a extensão, a obra do patriarcado do ocidente.

 

Hoje, quando se diz estabilidade, a primeira idéia que nos acode à mente é a de um modelo mecânico. Pensamos numa ponte, num edifício, numa pedra solidamente assentada sobre sua base. Se tomarmos um livro, por exemplo, direi que ele fica estável quando o coloco deitado, de modo que o centro de gravidade esteja amplamente inscrito no polígono de sua projeção horizontal. É estável quando não pode cair.

 

Ora, a raiz daquele vocábulo tem uma origem com sentido diverso e quase oposto. Essa palavra, que hoje tiramos da pedra para aplica-la figuradamente ao homem, foi na origem tirada do homem e aplicada às vezes, figuradamente, à pedra. Realmente, se pedirmos à ciência dos filólogos alguns dados de empréstimo, veremos que o termo latino stabilitas vem do sânscrito stâ, que significava estar em pé. Segundo F. Bopf (Grammaire comparées de langues indo-européennes, trad. frac.) o verbo sânscrito era da 1ª conjugação principal, sendo tistâmi a primeira pessoa do indicativo presente, de onde, provavelmente, deriva o latim testis, testemunha, lembrando o sujeito que se levanta para depor.

 

No “Tostius Latinitatis Lexicon” de Forcellini, colhemos no verbete sto o seguinte: stare ritto, o in piedi... opondo-se a sedeo e iaceo, e com os sentidos figurados de ficar firme, permanecer, durar, etc. Nota-se pois que o sentido próprio estava ligado à posição erecta do homem e que o sentido figurado incluía atitudes morais de firmeza e vigilância. Escolhendo uns poucos exemplos entre mil, temos no sentido próprio, em Plauto: “Hos quos videtis stare hic captivos duos, hi stant ambo, non sedent” (Cpt. Prol. v. 1) -  “Estes dois cativos que vedes aqui em pé, ambos estão de pé,  e não sentados”. Em Cícero: “Qui ausi aliquando sunt, stantes loqui...” (Bruto c. 77) – “Que às vezes ousaram falar de pé...”. No sentido figurado temos em Virgílio: Apud memores veteris stat gratia fact” – Mantêm-se gratos pelos benefícios recebidos. Em Cícero: “Stare in fide” – Permanecer fiel. E num sentido duplo, físico e moral, temos Suetonio: “Imperatorem ait statem mori oportere” – O imperador deve morrer em pé. E em Tito Lívio “miles statárius” é o soldado que combate em pé, ou que não arreda do posto.

 

Vê-se pois que stare está ligado estreitamente à posição do homem, derivando daí, quer no sentido moral aplicado ainda ao homem, quer na designação de coisas que imitam a posição vertical do homem. Estátua, por exemplo, deriva do mesmo radical, mas aplicava-se somente à figura do homem de pé. Estátua eqüestre não podia ser dito em latim, a não ser que se tratasse do Iniciatus que era ao mesmo tempo cavalo e senador.

 

A posição vertical do homem foi sempre sentida como um glorioso paradoxo, símbolo da excepcional situação desse misterioso ser dentro da criação, resultando disso a enorme fecundidade desse radical e sua imensa repercussão no campo das questões espirituais. Entre os gregos o fato de ficar de pé era tão importante que justificava a invocação de um deus especialmente propício às crianças que pela primeira vez se firmam nos pés. Encontramos em Santo Agostinho (Civ. Dei. lib. IV, 21) uma alusão aliás sarcástica, a esse pluralismo dos deuses pagãos: “Que necessidade há de recomendar à deusa Opis aos recém-nascidos, ao deus Vaticanus a criança que chora, à deusa Cunina a criança que adormece, à deusa Rumina a que mama, e ao deus Statilinus o que se firma nos pés?”

 

Estou com Santo Agostinho que eram deuses demais, os que rondavam a vida de um garotinho em Atenas, mas de todos aqueles o que mais se justificava era, sem dúvida, o que trazia no nome o antigo radical que simboliza a atitude maior do homem.

 

Aliás, consultando a Table des Racine do Dictionnaire Grec-Français de Bailly, encontramos o mesmo radical stô para ter-se em pé, com uma série de derivações semelhantes às latinas. Coluna, por exemplo, é stéle ou stylos, porque a coluna não somente é vertical como de certo modo lembra a nobre função humana de firmar e agüentar. Mais tarde voltará ao homem o símbolo dele saído, quando Paulo dirá que os apóstolos são as colunas da Igreja, provando assim que, para os antigos, a força das coisas mecânicas era, em última análise, uma força do homem.

 

Mas é nas Sagradas Escrituras que os derivados de stô ganham um especial relevo e um forte sentido espiritual. São Paulo aos Coríntios (I, XV) diz : “Stabiles stote, et immobiles”. Acrescentando também: “Itaque qui se existimat stare, videat ne cadat” – Aquele que se julga em pé, olha lá que não caia. E São Pedro, na primeira epístola (V, 8) aconselha a vigília nestes termos: “Sobrii estote et vigilate...” que a Igreja adotou para a oração da noite, num curioso paradoxo que convida o homem a stare justamente quando vai se deitar.

 

E com estes exemplos, depois de uma aventura penosa pela ciência que não é de nosso ofício, descobrimos que estável, no sentido clássico e escriturístico, dá ao mesmo tempo idéia de firmeza e de possibilidade de queda; ou melhor, sugere a firmeza própria do homem, sua condição, a verticalidade de seu corpo e de seu espírito, que é uma empresa com suas glórias e seus riscos. Dirá Santo Tomás a respeito do conceito de estado (no sentido de situação humana): “nomen status videtur ad quandam altitudinem pertinere” – a palavra estado sugere a idéia de elevação.

 

E no grego dos evangelhos encontramos o mesmo radical num objeto que marcou a atitude vertical do homem de um modo particularmente significativo. Refiro-me à cruz, que em grego é staurós.

 

 

3. Uma nova definição de monge

 

É mais que provável que, no tempo de São Bento, a palavra stabilitas tivesse ainda vivas todas essas ressonâncias que lembram a contradição do homem e da cruz. E, se estou certo, o voto de estabilidade, ao mesmo tempo que significava a permanência física no mosteiro, abrangia também o forte sentido da atitude escatológica pela qual a vida monástica era um estar de pé diante de Deus como se lê em Jeremias (XXXV, I-10): “Porque guardaste os mandamentos de Jonadab, vosso pai, a raça de Rechab não cessará de produzir homens que permanecerão sempre diante de pé de mim, disse o Senhor”.

 

E aí está uma bela definição para o monge, trazendo-nos à mente o nome daqueles soldados que combatiam de pé, e não arredavam de seus postos: o “miles statarius”.

 

 

4. Uma lição de Santo Tomás

 

Voltando ainda uma vez à Suma descobrimos que as lições de Bento e Tomás se harmonizam perfeitamente; e ainda uma vez verificamos que esses dois santos possuíram a virtude do bom senso em grau heróico. De fato, se Bento, na ordem prática, propõem como primeiro objeto de voto a estabilidade, Tomás, na ordem especulativa, começa o estudo do monaquismo pela consideração “De officiis et statibus hominum in generali”. (II-II, Qu. 183, art. 1-4); e começa por dizer que status evoca a idéia de estar de pé, citando Ezequiel: “Fili hominis, sta super pedes tuos”. E logo acrescenta que dessa noção deriva a de retidão e elevação. Mais adiante ensina: “Estado, no sentido próprio, é uma posição particular, não qualquer, mas conforme a natureza do homem”.

 

Deste modo a escolástica, mostrando que a vida do monge é um estado de perfeição, confirma este sentido do voto de estabilidade da Regra de São Bento, que se refere não somente às pedras do mosteiro, como também à vigilância e à prontidão.

 

Mas, a atitude de vigília não é própria do monge. Não é exclusiva dos mosteiros; sendo, antes a clássica atitude de todo o cristão. No caso do monge, porém, ela se constitui em estado, tendo sido solenemente prometida e solenemente aceita pela benção consagratória da Igreja. E é neste ponto que o monge se separa de nós para melhor guardar o tesouro da estabilidade e seus derivados. Adaptada e aplicada à cidade, a lição beneditina e tomista é esta: o homem não pode descuidar-se de seu prumo, não lhe convindo adormecer nos sarcófagos das fórmulas de equilíbrio mecânico que são o ópio do povo. O regime do direito e da justiça, a eqüitativa distribuição de riquezas, isto enfim que chamamos democracia de inspiração evangélica, é uma situação que deve procurar constantemente o antigo stô da verticalidade humana, e aferir todos os seus valores pelo prumo da cruz.

 

 

5. A sonolência

 

Pode-se dizer, de um modo geral, que a sorte da civilização – desta arriscada civilização que desceu um dia de Monte Cassino – depende da capacidade de vigilância dos homens. Temos uma certa tendência ao sono. Em todos os sentidos. As pálpebras de nossas pobres virtudes são pesadas. A terra, com seu zelo multiplicado de mãe devorante, atrai-nos. Convida-nos ao torpor. Oferece-nos o premio do nada. Prepara-nos um tálamo nupcial à sombra dos ciprestes. Convence-nos, com todas as forças da matéria, que a posição horizontal é mais estável que a vertical. Diz-nos que o fatigante stare dos santos e dos soldados não merece o esforço que custa. Que durmamos, e que deixemos a vida correr.

 

Nas suas mais modernas propostas, o materialismo político, confessado ou disfarçado, incita-nos a um completo abandono de nossas prerrogativas de verticalidade, estendendo-nos no chão um lençol que será um sudário, sob as ramas venenosas de um Estado que chama a si, absorvendo-o em si, o status do homem.

 

Despojam-se todos os seus prumos, e no piramidal e estável monumento das demissões humanas, o Estado Total concentra em si as forças que os antigos punham nas suas colunas, nos mastros dos navios, e na cruz de Nosso Senhor.

 

Os fenômenos lingüísticos acompanham muito de perto os fenômenos sociais, e não é de estranhar que o mais desumano dos monstros modernos tenha guardado o nome, a palavra, a raiz, pela qual os homens até hoje se distinguiram das bestas e das serpentes. E isto aconteceu porque os homens se cansaram da fatigante vigilância. A liberdade obriga à vigilância. A salvação obriga ao revezamento do plantão, porque o leão ruge em torno de nós.

 

Num magistral estudo sobre a crise da civilização, Belloc assim se refere ao profundo desespero da sociedade pagã greco-romana: “Quanto mais avança esta civilização pagã em seu desenvolvimento – um rápido desenvolvimento que a transformará e a envelhecerá num lapso de três séculos – mais profundamente penetra nela esse desespero. Sentimos isto na progressiva letargia que entorpece os homens, na esterilização de seu poder inventivo e sobretudo  no refrão contínuo de sua literatura (...) Entre mil trechos magníficos que poderíamos escolher para ilustrar a profundidade desse abandono, recordemos estes versos escritos pelo mais patético dos poetas latinos:

 

Soles occidere et redire possunt

Nobis cum semel occidit brevis lux

Nox est perpetua una dormiunda

 

“Devemos notar particularmente este ‘dormiunda’ – diz ainda Belloc – com suas lúgubres vocais. O grito é de Catulo. A sociedade greco-romana agonizava. Mas isto é a metade, e a menos importante metade da verdade, pois é preciso acrescentar que ela morria de desesperança. E foi então que apareceu no mundo uma força que teve a virtude de transforma-la”.

 

Esta esplendida passagem de Belloc tem entretanto um defeito, a meu ver: o de sugerir, pelo menos assim isolada do contexto, a falsa idéia de que o cristianismo venceu definitivamente a sonolência do espírito humano, ou melhor, a funesta idéia de que a ação civilizadora do cristianismo tem uma eficácia própria, necessária, mecânica, que dispensa nossa vigilância. O homem continua sob o peso do pecado original, e continua a encher os séculos com seus bocejos, e às vezes com os estertores de seus pesadelos.

 

Não é em Catulo, nem em outro poeta pagão, mas num moderno que encontramos esta pequena quadra citada por Unamuno:

 

Cada vez que considero

Que me tengo de morir

Tiendo la capa al suelo

Y no me harto de dormir.

 

 

6. Dois cochilos terríveis

 

Aliás, falando em sonolência, convém lembrar que os apóstolos dormiram em duas ocasiões inauditas. Na transfiguração, segundo Lucas, e na paixão, segundo o depoimento de três evangelistas. No momento em que Cristo quer mostrar aos discípulos um fulgor de sua glória, “Pedro e seus companheiros estavam acabrunhados de sono”. Mais tarde, em Getsemâni, diz o Senhor aos seus discípulos: “Ficai aqui enquanto vou adiante orar”. E começando a sentir tristeza e angústia diz aos seus discípulos: “Minha alma está triste, mortalmente triste: ficai aqui; vigiai comigo”. E tendo avançado um pouco, prostou-se com a face em terra, rezando e dizendo: “Meu pai, se é possível, afasta de mim este cálice. Mas não como eu quero; e sim como Tu queres”. Voltando aos discípulos encontrou-os a dormir e disse a Pedro: “Então, não pudeste velar uma hora comigo?” Vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito, em verdade, é ágil, mas a carne é fraca”. E retirando-se pela segunda vez tornou a rezar: “Meu pai, se não pode este cálice desviar-se sem que eu o beba, faça-se a Tua vontade”. E voltando a eles, achou-os ainda a dormir porque seus olhos estavam pesados de sono. (Mat. XXVI, 43).

 

É terrível imaginar-se esse momento em que o Filho de Deus clama ao Pai e suplica aos homens: “Fiquem aqui, velem comigo, pois minha alma está mortalmente triste”. Mas, de certo modo, este mistério doloroso lança uma luz sobre o mistério da incarnação, ajudando-nos a compreender que Deus se fez homem para melhor suplicar aos homens, como um homem. “Então, não pudestes velar uma hora comigo?”.

 

 

7. Sentinelas do Cristo

 

Ora, o monge, no seu estado, na sua estabilidade, é aquele que ouve o conselho de Deus Homem na súplica do Homem Deus. Sentinela do Cristo, propõe-se suprir e resgatar a sonolência dos outros, velando e orando. No voto de estabilidade física no mosteiro está portanto incluída a idéia central de estabilidade no coro, em pé, atento, expectante, pronto para correr ao encontro do esposo que tarda, e que virá em meio da noite.

 

O Ofício Divino é portanto o centro da vida do monge, pois é aí, nesse momento e nessa atitude, que ele melhor realiza seu estado. O sentido da vigília transcende agora, no coro, o ascético cuidado de não cair em tentação, e desabrocha, para além da paixão, no louvor que à glória de Deus é devido. Entre o horto e as núpcias, entre os terríveis jejuns de Clairvaux e o laus-perenne de Cluny, o monge paga uma dívida e canta. Ele é o “amigo do esposo, que fica em pé” na estabilidade da vigília e do louvor.

 

 

8. A civilização

 

Disse atrás, a propósito do radical stô, que o homem viu sempre na sua vertical um símbolo de dignidade. Os diferentes fenômenos lingüísticos – que apenas esbocei por me faltar o hábito do ofício – mostram singular concordância com os sentimentos de exaltação e angustia que, em todos os tempos, preocuparam o homem a respeito de sua condição. Disse também, se não me engano, que a vida moral é vigilância contínua, não havendo nunca, enquanto há vida, um termo perfeito, uma conclusão, um arremate, um repouso. Cada problema resolvido é um novo problema aberto; cada situação atingida é uma nova situação iniciada; cada fim é um principio. Freqüentemente, fatigados, mortalmente fatigados desse rosário ininterrupto de problemas, atitudes e situações que só acabam para começar, e recomeçar, e continuar, como as águas de um rio – freqüentemente tentamos trazer para a vida, isto é, para esse plano dos atos morais, o critério e os métodos próprios dos atos artísticos ou técnicos. Metemos as mãos nessa massa espalhada e fluida numa insensata tentativa de esculpir momentos de vida, que se imobilizem num termo, como se quiséssemos erguer uma encruzilhada dos tempos a nossa própria estátua. Ou tentamos trazer para os minutos da alma os ritmos da poesia e da música.

 

E esse esforço, que parece provir de uma transbordante vivência, porém, na verdade, de uma sonolência.

 

A vida conjugal, por exemplo, começou numa festa que marcava o termo de uma vida e o começo de outra. A festa é um patamar da vida. É uma estação. Mas a vida continua e a festa fica para trás, num álbum, num véu guardado, numa flor murcha. E a vida continua, com seu desafio quotidiano, fastidioso, minucioso, num desgaste terrível das reservas de amor que o noivado acumulou. Ou, pelo menos, das reservas desse amor que parece tecido de poesia e de música. E a fatigada impaciência procura substituir a ininterrupta vida conjugal por uma série de romances, inda que esses volumes formem as obras completas da infidelidade. E, se ainda maior é a impaciência, não possuindo sequer capacidade para a literatura de fôlego, será a vida conjugal substituída por uma série de anedotas.

 

O que é difícil, na vida, é não substitui-la por coisa nenhuma. O que é difícil, na vida, é manter-se o homem de pé, consciente sempre de seu estado, atento sempre aos ventos do mundo que tentam verga-lo, esse pobre junco.

 

Na política, que também exige do homem a mesma verticalidade vigilante, e fatigante, quando o sono pesa nas pálpebras, procura-se uma solução técnica e cômoda, uma nova estrutura que funcione, desde que se lhe dê corda, como um maquinismo fabricante de bem-estar. Projeta-se na prancheta de desenha a épura de uma sociedade humana ou pensa-se transformar a confusa massa de atores indisciplinados numa apoteose wagneriana. Ou então, passa-se quinze anos a fazer da vida política uma série de anedotas.

 

Muita gente tem a ingenuidade de crer que a civilização é uma inabalável conquista garantida pelas invenções da mecânica. Temos, por exemplo, o automóvel, logo estamos definitivamente senhores das distâncias. Temos a geladeira elétrica, logo estamos definitivamente senhores do calor. Temos o radar, logo não haverá mais trevas para nossos olhos. E assim por diante.

 

Ora, Civilização é uma coisa muito menos garantida do que parece. O que possuímos, podemos perder. O que sabemos, podemos esquecer. E, se estamos de pé, podemos cair. Nossos sucessos são precários e constantemente disputados pelo Príncipe que tenta impor ao mundo um direito de conquista. Revendo os últimos acontecimentos salta aos olhos a fragilidade da civilização. Bastou um cochilo, para transformar o mundo num monte de escombros; bastou, entre nós, um colapso de vigilância política, para que a vida pública de nossa terra se transformasse num prolongado Joujoux et Balangandans, em que nos furtaram o que nós e nossos pais havíamos conquistado: o pão, a carne, o açúcar, e o direito de voltar para casa dignamente. Bastou para isso que altiva a raça dos batizados se curvasse muito baixo diante daquilo que o homem de Deus aprendeu, com a igreja de Cristo e dos santos, a sempre considerar com desconfiança: o Estado. Porque essa entidade, como seu nome indica, facilmente se torna monstruosa, e dificilmente resiste à tentação de absorver em si toda a capacidade humana de stare, isto é, de ser vertical e digna.

 

Civilização, na verdade, é estar em pé. Em cada momento histórico o futuro do gênero humano depende da atenção vigilante e consciente de cada homem. E por aí se vê que o monge é um elemento civilizador sendo um campeão de vigília. Transferindo analogicamente a estabilidade beneditina para o domínio da vida política, teremos a força indispensável a esse regime que chamamos democracia cristã, e que se caracteriza por uma viva consciência da realidade moral e do primado da justiça.

 

O mundo moderno padece de um singular escurecimento. Já o disse, diversas vezes, e torno a dizê-lo. O homem não se lembra mui exatamente o que é. Não se lembra sempre, como o recomenda a Santa Regra beneditina, o nome que tem. E é por isso, principalmente por isso, que nossa civilização corre um grave perigo. Estamos ainda dormindo tendo apenas passado, no fragor das batalhas, da modorra tranqüila para um sobressaltado pesadelo.

 

A ciência que o homem tem de si mesmo está em crise. A pergunta da esfinge é respondida com uma coleção de disparates. O homem não sabe mais o que é.

 

Ora, entre outras coisas surpreendentes, e diria até chocantes, que nossa fé nos ensina, temos esta: se quisermos saber mais exatamente o que é um homem, devemos erguer os olhos para uma mulher.

 

 

9. Stabat Mater dolorosa...

 

Em verdade, a Virgem Santíssima, em cujos pés deponho este pequeno trabalho, que andei compondo e escrevendo durante o mês de maio, o seu mês, é a coroa da criação. Primeira remida, e mais perfeitamente remida, ela abriu com seu assentimento os caminhos do preceito e do conselho. Foi ela, a bem dizer, a primeira virgem consagrada e o primeiro monge. E é nela que encontramos realizada de modo perfeito a estabilidade monástica.

 

Para nos convencermos disto, basta abrir o missal na Festa das Sete Dores de Nossa Senhora. Logo no Intróito, a primeira palavra que nos salta diante dos olhos é esta: “Stabant...”. Estavam em pé junto da cruz, sua mãe, a irmã de sua mãe, etc. Vejam bem o diálogo tremendo destas duas atitudes: o filho da cruz, de pé, pregado no madeiro que tem aquele mesmo radical misterioso, a raiz do homem, da sua vertical; e a mãe, e mais as outras três mulheres, de pé, formando por assim dizer o primeiro coro, diante da cruz.

 

Na coleta, a palavra reaparece para designar os santos que se mantém de pé, ao lado da cruz:...“e pelas preces de todos os santos que estavam fielmente em pé junto da cruz”. Fideliter astantium. No Gradual, com uma nota de dor, pela terceira vez encontramos: “Dolorosa et lacrimabilis es, Virgo Maria, stans juzta crucem Domini Jesu, Filii tui Redemptoris”. No Tractus: “Stabat Mater dolorosa...”. No Evangelho, novamente, a primeira palavra que lemos é: “Stabant...”. E no Ofertório: “Recordare, Virgo Mater Dei, dum stéteris in conspectu Domini...”.

 

Vê-se assim que as Sete Dores de Nossa Senhora aparecem no Missal sete vezes ligadas aos derivados do vocábulo que se encontra nos mais remotos documentos do mundo, sempre que está em jogo um problema fundamental do homem.

 

Há, porém, nas Dores de Nossa Senhora, uma atitude especial que merece muita atenção. Passa-nos despercebida primeiro; espanta-nos depois. E é esta: a mais dócil e obediente das criaturas humanas não deu um só passo e não pronunciou uma só palavra no sentido de interceder por seu filho junto ao poder de Roma. Quem intercedeu foi a mulher de Pilatos, por causa de um sonho. Não a Mãe de Deus. Dócil e obediente à vontade do Pai, a mulher forte, a criatura erecta por excelência, o cedro do Líbano, não quis nunca submeter o sacrifício de seu Filho aos decretos do Estado. Em cada statio da via-crucis a Virgem Santíssima afirmou a isenção da Igreja e a primazia espiritual. Sua atitude vale um tratado.

 

 

10. As filhas de Santa Escolástica

 

Gostaria de abrir um largo capítulo para falar nas virgens consagradas ao serviço do Senhor. Muita coisa do que já disse se aplica tanto aos monges como às virgens, na medida em que ambos imitam a atitude de obediência da Virgem Santíssima. Mas a entrada da virgem no estado religioso parece-nos conter um elemento a mais do que na profissão monástica dos homens. A magnífica dramaturgia com que a Igreja cerca a consagração virginal, mais do que no caso dos monges, se assemelha a uma festa de núpcias. Dir-se-ia – não sei – que a união mais forte, mais íntima, mais livre de qualquer função, mais próxima do céu. O pontífice fala à monja com a voz do esposo: “Veni, electa mea, et ponam in te thronum meum...”. E depois da imposição do véu insiste, no tom premente dos noivos: “Desponsari dilecta veni...”. “Vem, ó bem amada, vem para a festa de núpcias; já passou o inverno, a rola canta, recendem as vinhas em flor”.

 

Se o monge é “o amigo que fica em pé, ao lado do esposo”, a monja se apresenta como a própria esposa: “Estou desposada com Aquele a quem os anjos servem, e cuja beleza o sol e a lua admiram”.

 

Digo por isso que as virgens consagradas desfrutam já, aqui e agora, uma união mais perfeita do que os monges. Mas digo-o sem provas. Não tenho certeza; e que Santa Escolástica me perdoe se deixo tão mal esboçado o problema de suas filhas para voltar a São Bento, terminando esta modesta homenagem que, a par a canseira e das decepções experimentadas pelos esbarros em meus próprios limites, trouxe-me já a recompensa de um acréscimo de veneração.

 

 

11. Conclusão

 

Tentei mostrar nas páginas anteriores o sentido, a extensão, e o campo das aplicações analógicas da estabilidade, que constitui o principal característico da Regra de São Bento. Focalizado nos seus diferentes planos, explorando sob ângulos diversos, o conceito revela uma riqueza enorme que se estende da fidelidade aos compromissos humanos à fidelidade dos votos pronunciados diante de Deus; que diz respeito à abadia, à casa de família e à cidade; que vai do homem à pedra e da pedra ao homem; que se refere à posição erecta de Nossa Senhora e à posição vertical da cruz.

 

A figura do monge, nesta tentativa de um esboço, surge-nos como um marco. Vemo-la como o profeta viu: aquele que fica em pé diante do Senhor. Apreciamos a profundidade e o alcance do humanismo beneditino, tão semelhante ao humanismo tomista, compreendendo que a atitude que verdadeiramente convém ao homem é aquela que o eleva. E aprendemos, com São Paulo, que assim sendo não pode haver descuido, pois esta atitude por si mesma implica a idéia de queda.

 

E a rigor, podemos dizer que a lição dos monges, não foi perdida. Apesar de tudo, a estabilidade beneditina ajudou o mundo a se firmar, justamente nos momentos em que parecia perdido. Compete-nos agora continuar. Exploremos e usemos o patrimônio de São Bento, para bem servir à sociedade e à Igreja, nestes tempos perturbados em que os falsos salvadores nos querem arrebatar o status para formar um monumental monólito, uma nova pirâmide egípcia que será, não o túmulo de um rei, mas o sarcófago de um povo. Firmemos pois nossos pés; sejamos mastros de vigilância; colunas de dignidade; torres de justiça. Contra o materialismo que nos quer prostrar, e contra o falso espiritualismo que tem a pretensão insolente de interceder por nossa Igreja, saibamos ser monges, firmes, inabaláveis, como os soldados romanos que combatiam de pé, sem arredar do posto.

 

 

12. “O imperador deve morrer em pé”. (Suetonio)

 

Mas vejo agora – um pouco tarde talvez – que posso ser acusado de ter andado a fazer jogo de palavras. Dirão que tirei de um verbete de dicionário, e de uma mera coincidência de palavras, abundantes conseqüências, emprestando aos vocábulos mais do que realmente contêm. Bem sei que isto é perigoso, e que, mesmo em relação às Sagradas Escrituras, não convém fugir demais do sentido literal para procurar sentidos ocultos e simbólicos.

 

No caso presente, porém, a abundancia de provas parece demonstrar que a idéia de aproximar o voto da estabilidade do estar em pé, em coro e diante da cruz, é verdadeira; e que é impossível supor que no espírito de São Bento não escoassem todas essas ressonâncias quando ele fez da estabilidade o objeto de um voto.

 

Mas eu deixei para o fim dois argumentos que me parecem especialmente convenientes. Alias, a verdade é que só agora me vieram elas à mente, quando no capítulo anterior – como se vê pelo tom de peroração que lá ficou – tencionava encerrar este estudo. E não oculto que tive uma grande alegria quando os encontrei.

 

O primeiro argumento é este: São Bento, ao sentir aproximar-se a hora de sua morte, fez questão de ser levado para o Oratório, fez questão de ser sustido pelos braços de seus filhos, e morreu em pé. Eis como São Gregório Magno, em seus Diálogos, narra os últimos dias do patriarca: “Seis dias antes de sua morte mandou abrir a sepultura. Logo a seguir foi atacado de febres e começou a sofrer de seus ardores violentos. Como a enfermidade se agravasse dia a dia, fez-se levar no sexto dia por seus discípulos ao Oratório, onde se prevenia para sua partida deste mundo com o Corpo e o Sangue do Senhor; depois, amparando seus débeis membros nos braços de seus discípulos, ficou em pé, com as mãos levantadas para o céu, e exalou seu último suspiro murmurando uma oração”.

 

Agora vejamos o segundo argumento. Este vem dos evangelhos e tem um certo sabor, que nos faz pensar numa coisa que está constantemente e cuidadosamente velada nas escrituras: o sorriso de Nosso Senhor. Voltemos ao texto de São Mateus que nos serviu para definir a obediência do monge e que se refere mais diretamente à obediência dos apóstolos. Depois da partida do moço rico, e das palavras de Deus sobre o camelo e a agulha, eis que Pedro (a quem competia sempre fazer tais perguntas) interroga o Senhor: E nós? E Jesus lhes diz: “Em verdade vos digo, quando o Filho do Homem se sentar no seu trono de glorias, vós também, vós que me haveis seguido, vos sentareis em doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel”.

 

E aqui está a chave final de nosso problema. O prêmio oferecido àqueles peregrinos, àqueles vigilantes, que ficaram de pé no coro, ao lado do esposo, ao pé da cruz, nos caminhos da vida e na hora da morte, o prêmio do cêntuplo e da vida eterna está ligado a essa atitude final, de repouso, de termo atingido e de bem conquistado: os apóstolos e os monges, no fim dos tempos, estarão sentados em torno do Rei.

 

(A Ordem — Julho, Agosto e Setembro de 1947)

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