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Introdução a um livro

O ÚLTIMO CAPÍTULO1
 
 
Há cerca de trinta anos um bom e velho amigo tentou me inculcar, como excelente, o método de ler os livros de traz para diante, alegando que o modo vulgar de leitura tem o inconveniente, entre outros, de afrontar a liberdade o leitor. Na seqüência forçadas dos números, ficamos nas páginas como nos dias. E já nos basta a vida — dizia meu velho amigo com melancolia — já nos basta a vida, esse folhetim de abstrusa composição e gosto duvidoso, onde a única independência que nos fica é a de remexer à vontade nos números já publicados.

Esse amigo era um pobre vendedor de manteiga. Na continuação de nosso convívio, por afeição desinteressada, esforçou-se ainda por me incutir os princípios do liberalismo ateu, os segredos do comércio, e as primeiras regras do jogo do xadrez. Perdi-o de vista durante o tempo que levei a crescer, amadurecer e envelhecer, indo encontrá-lo, há poucos meses, no último capítulo de seu folhetim: moribundo, indigente, mas alegremente reconciliado com Deus. O que não agradecera nos dias de saúde e muita manteiga, agradecia agora nos dias de pouco pão e muitas dores. Morreu assim, como pretendia ler os livros; acabou por onde devia ter começado, isto é, pelo Princípio.
 
Passando desse obscuro personagem a Pascal, fiquei sabendo que geralmente a última coisa que o autor de um livro encontra é o que deve dizer em primeiro lugar. Este capítulo dá razão a Pascal e ao vendedor de manteiga, porque foi o último que escrevi, sendo o primeiro para o leitor. Dei-lhe o título abstruso mas adequado, não para espantar alguém, mas para pagar àquele velho amigo um tributo de saudade.
 
Aliás, eu creio que as páginas introdutórias são sempre assim. Só posso dizer o que vou escrever depois de o ter escrito; a introdução, de certo modo, é uma explicação que o autor se dá a si mesmo. Meses atrás teve um plano; tem agora uma obra. Entre essas duas coisas, o plano e o livro, há uma apreciável divergência, que pode ser considerada sob dois aspectos: um animador, outro deprimente.
 
O lado desagradável da questão consiste em pensar que o melhor de um livro é aquilo que não se escreveu; que as mais finas idéias ficaram suspensas no longínquo firmamento das coisas indizíveis. O lado bom consiste em pensar que a obra saiu mais rica do que o plano, e que as divergências apareceram na libertação do objeto, em conseqüência de suas próprias reações durante o processo da fabricação.
 
De fato é isso que aconteceu na composição de um livro, ainda que seja árido e insípido, como talvez julgue o leitor o que lhe estou apresentando. À medida que vai tomando forma, vai também ganhando independência, vida própria, realidade em contato com as realidades, enchendo-se assim de uma substância ponderável e resistente, que não tinha enquanto era um simples diagrama mental. Eu imagino que na construção de um romance, e principalmente no que se refere aos personagens, esse fenômeno tenha uma importância decisiva. Há certamente um momento em que o romancista sente que seus personagens estão se tornando reais e livres, e por conseqüência indóceis e absurdos como seus modelos vivos. Já não obedecem facilmente aos fios; já não se deixam empurrar pelos capítulos afora como bonecos de pano. Um pacto misterioso se estabelece então entre o autor e a obra: ele já não está sozinho, e importa, soberanamente, que esse pacto sutil não seja desrespeitado, pela tirania do autor, para que o tênue alento que se esconde nas palavras escritas não se apague de súbito. Há um princípio de inércia, na física e na arte. A parcela de verdade, mínima embora, que penetre o objeto, terá seu próprio movimento, e resistirá, como uma flecha, como uma bala, às mudanças de direção. O autor se sentirá arrastado.
 
Nesse momento, a posição do autor é muito delicada: se resiste ao movimento, preso ao plano prévio, jugula a obra; se relaxa a direção, fiado na realidade cósmica da obra e pensando que o objeto em curso de fabricação tem uma atividade imanente que se basta, a composição de desgovernará, e a obra morrerá no arbitrário e no incoerente.
 
Evidentemente, se eu fosse um pintor de retratos, não poderia começar uma figura pelos traços de um comendador e acabá-la com os traços de uma dançarina. Mas poderia começar o retrato de um comendador, e conseguir finalmente o retrato de um homem. Neste livro, eu comecei a fazer uma figura, e acabei desenhando uma multidão. Não posso dizer, por mais que a modéstia ou a convenção obriguem, que estou descontente com o resultado2. Comparando o projeto com o livro feito, eu prefiro, francamente, o livro. Se o leitor achar mau o livro, fique sabendo que o projeto ainda era pior.
 
OS PERSONAGENS
 
O principal personagem, em torno de quem giram os debates contidos neste livro, é o homem que faz coisas como aparelhos de rádio, aviões, locomotivas, e que, na perfeição desses objetos aplica o melhor de seus dias e de suas faculdades. O leitor já prevê, se é perspicaz, que esse indivíduo, atendo demais aos objetos que fabrica, será forçosamente um distraído em relação às pessoas da família, aos aniversários, e às eleições presidenciais. As anedotas que correm a seu respeito são inquietantes. Ora nos aparece aqui a queimar toda a mobília da casa para conseguir o esmalte da porcelana; ora, acolá mais inquietante ainda, nos surge no alto da Torre Eifel, com duas asas de lona. Em outras circunstâncias, entretanto, vamos encontrá-lo paciente, rotineiro, a repetir com regularidade e pela milionésima vez o mesmo objeto, dando as maiores provas de satisfação dentro da monotonia.
 
Esse personagem é o Técnico: inventor, engenheiro, tool-making-man. Não sei qual é a opinião do leitor a seu respeito; a minha, digo-a sem hesitar, é excelente. Guardo afeição por esse pequeno herói dos feitos exatos; e até hoje o vejo, apesar dos anos e das decepções, como há trinta anos o vi nos meus sonhos de adolescente. Vejo-o no campo, ao sol, em mangas de camisa, pernas bem fincadas, límpido olhar alongado pelos contornos e relevos da terra, que sente submissa e possuída. Seu lápis traça nas cadernetas figuras simples, onde aparecem rios e casas, figuras mal feitas, como as paisagens que dez anos atrás fazia num canto de papel de embrulho, deitado de bruços no chão. Agora, porém, ao lado do singelo esboço, há uma página eriçada de números (ângulos verticais, ângulos horizontais, distâncias, correções), por cuja virtude os rios serão galgados e perfuradas as cordilheiras.
 
O segundo personagem, que aparece com menos freqüência, para lembrar o parentesco com o primeiro, ou para acentuar a dessemelhança que os separa, é o homem que faz coisas como poemas, sonatas, iluminuras, e que concentra, tanto ou mais do que o primeiro, todas as suas faculdades na perfeição do objeto que faz. Sua crônica, também não é tranqüilizadora. Suas experiências são mais íntimas; os incêndios que ateia ou os vôos em que se mata têm lugar num mundo diferente; mas nem por isso deixa ele de apresentar algumas anomalias exteriores. Muitas vezes, por exemplo, foi visto diante do absinto, noite a dentro, perdido num bar tumultuoso, como se estivesse — o mais solitário dos homens — perdido no centro de uma paisagem polar. Também, e apesar das mais engenhosas conjecturas, nunca se conseguiu apurar com exatidão o motivo que o levou, um dia, a pintar os cabelos de verde; ou a razão que depois o impeliu a deixar bruscamente a poesia, para ir negociar marfim com os muçulmanos.
 
Esses dois personagens se tornam facilmente ridículos, e muitas vezes atravessarão assim nossas páginas, como atravessam nossas vidas; um com suas asas de lona, outro com seus cabelos verdes; ambos com modos esquisitos e palavras incoerentes. Devemos, entretanto, lembrar com boa vontade, e até com gratidão, que isso acontece porque eles carregam dons especiais para o bem dos outros. Aliás, quem reconhece esse fato com reto julgamento é o terceiro e mais extraordinário personagem desta história. Não possui dons especiais; a rigor pode-se dizer que nada sabe fazer, ou, pelo menos, que não é na feitura das coisas que mora sua principal virtude. Para ele, o uso das coisas é um problema mais grave do que o fabrico; porque é segundo esse uso que o homem se torna o que é, e tende para seu fim verdadeiro. Interessa-lhe o que fazem o técnico e o poeta, porque é homem e sensível. Tem bons olhos, bom paladar e reta razão prática.
 
Esse extraordinário personagem é o Homem Comum. Raramente, porém, consegue dar seu testemunho inteiro, por causa de um outro personagem que anda atrás dele, puxando-lhe a aba do casaco, pisando-lhe os calcanhares e importunando-o com suas opiniões. Este é o Homem Vulgar. Pretende, em cada circunstância, se apresentar como o autêntico representante da espécie humana, mas invariavelmente se equivoca sobre a significação e o gosto das coisas. Intrometido, tendo a seu favor os articulistas modernos, ele exibe seus títulos por toda parte e vale-se do avultado número de seus semelhantes. O autor deste livro, porém, usando de uma incontestável prerrogativa, procurou poupar a seus leitores a facúndia desse indivíduo. Mostra-o aqui e ali, sobretudo nas situações em que esse personagem quer falar com técnico e, equivocado sempre, olha as coisas do mundo, as aves, as margaridas e as crianças, como supõe que o técnico as veja, isto é, como se ele as tivesse feito.
 
Devo mencionar agora dois personagens muito respeitáveis, que o leitor descobrirá na penumbra de uma modéstia monacal. São o Teólogo e o Filósofo. Esses personagens mereceriam maior evidência, e todos nós lucraríamos se eles pudessem comunicar-se melhor com o Homem Comum. Não estou absolutamente seguro de ter interpretado com fidelidade a palavra substancial desses dois discretos indivíduos. No plenário um pouco tumultuoso em que se desenrolaram os nossos debates, o filósofo e o teólogo contentaram-se em colocar, aqui e ali, algumas sábias ponderações, que essas mesmas só me chegaram aos ouvidos através do vozerio dos outros personagens. E foi pena. Tivéssemos todos nós, a começar pelo autor, maior docilidade à palavra da verdade, e o livro sairia mais exato e mais suculento. Consolo-me pensando que a variedade de registros, e as notas cômicas introduzidas pelos personagens menores, compensarão a falta de ciência por um acréscimo de amenidade.
 
Esses personagens menores são numerosos e variados. Desempenham papeis secundários e passageiros, como a criada, o polícia ou o bêbedo do teatro. Correndo rapidamente os meus apontamentos, vejo entre eles um ministro de estado, a sombra de um ditador, diversos amigos, dois industriais, um pobre leproso, meia dúzia de filósofos materialistas, três ou quatro idiotas disfarçados em sociólogos e pedagogos, e finalmente uma multidão de anônimos, que enche as ruas, as praças, as casas, esperando de nosso debate um resultado, pequeno embora, pequeníssimo até, mas um resultado que tenha o genuíno gosto da verdade.
 
Se o leitor tiver boa vontade, descobrirá que procurei dirigir os debates nesse sentido. Por esse motivo, e por um sentimento de responsabilidade, fui obrigado a opor certos obstáculos à desordenada loquacidade dos personagens idiotas que se fazem passar por sociólogos e pensadores: pois sem essa precaução, eles encheriam o livro todo.
 
O direito que me reservei de dirigir os debates, pedindo a palavra a uns, cassando-a a outros, é certamente legítimo. Dirá o leitor de má vontade que houve de minha parte uma espécie de tirania, e que meu livro não passa de um espetáculo de marionetes com mal disfarçados fios. Direi eu então, a esse leitor, que faça o mesmo. O papel é paciente, e a palavra escrita não é privilégio de ninguém. Faça-o, e melhor. Fale sozinho, se quiser, ao longo do volume inteiro; passe quatorze meses debruçado sobre duzentas e tantas páginas, a razão de três ou quatro horas por dia; escrever sete vezes o mesmo capítulo; raspe o fundo da memória; roube mil horas ao sono e outras tantas às mais legítimas e simples alegrias; suporte, dez vezes ao dia, por mais de ano, a tristeza de verificar que trocou um enorme e substancial pedaço da vida por uma resma de papel — e venha depois dizer-me se achou cômodo.
 
Não veja, porém, nessa confidência que me escapou, um apelo à benevolência, que além de indecoroso seria estúpido. Um livro é o que é. Minhas conjuntivites, meus cansaços e minhas tribulações, com certificados estampilhados, não fariam de um mal livro um bom livro. Quem se mete a fazer livros jura submissão à lei implacável que rege as atividades do técnico e do artista: a lei do objeto.
 
A COMÉDIA (OU TRAGÉDIA)
 
Onde há personagens há comédia; ou tragédia. E isto mais se acentua quando os personagens se enganam sobre as atitudes que devem tomar ou se equivocam a respeito do fim que os espera. Um espetáculo, em si mesmo, não se define como comédia ou tragédia senão depois que o espectador escolheu o olho com que o vê. Mudado o olho, muda a peça; e apesar da etiqueta, e da intenção do autor, a cena mais trágica se prestará ao riso; ou a mais cômica, à lagrima.
 
Predomina o cômico quando consideramos as cenas de um modo puramente intelectual, observando os enganos de atitudes e posições; predomina o trágico quando consideramos as cenas com interesse pelo destino dos personagens. A comédia é essencialmente feita de meios, de detalhes, de situações; a tragédia é essencialmente feita de atitudes em relação aos fins. Esquecidos os fins, o destino, a missão, a vocação do homem, tudo ficará desesperadamente cômico.
 
Toda comédia é uma Comédia de Erros, quer envolva dois irmãos gêmeos, como em Plauto; ou quatro, como em Shakespeare. As cenas deste livro chegarão a um cômico excessivo, e portanto de gosto duvidoso, quando aparecem milhares de personagens que, à luz de certa filosofia, são gêmeos sem serem irmãos. Tal filosofia tende a destruir a diferenciação dos personagens, transformando o mundo numa insuportável comédia; como também, por estranha derrisão, tende a destruir a fraternidade, transformando o mundo numa insustentável tragédia.
 
Devo dizer, entretanto, em meu favor, que a comédia, se comédia há, não foi composta por mim. Esforcei-me, ao contrário, por esclarecer a identidade de cada figurante. Fiz o que pude para determinar as fronteiras da técnica e para indicar a posição correta que compete ao técnico. Procurei mostrar, por exemplo, que o político ou o pai de família que adotem atitudes e métodos técnicos, seriam tão incôngruos como um conselheiro de estado escondido no armário de uma corista. Quem faz um vaudeville, acha gosto em meter o conselheiro naquela delicada e imprópria situação; dei provas de não gostar desse gênero de intrigas procurando desembaraçar meus personagens. Se o leitor encontrar uns restos de farsa ao longo do ato de desmontar a farsa, ou perceber no desalinho e na confusão dos personagens uns vestígios de vaudeville, a culpa não é minha.
 
* * *
 
Há uma tarefa que se impõe no cenário do mundo: a restauração das atitudes e das identidades. O problema importa não somente para a harmonia geral do conjunto, como também para a perfeição de cada parte. Traçando as fronteiras da técnica, ou procurando corrigir o braço e o olho do técnico, visei duas coisas igualmente importantes: aliviar os outros personagens de um importuno e evitar que o técnico se torne ridículo, perdendo suas próprias virtudes. Limitar é dar forma e força. Creio que ninguém põe em dúvida o valor e a utilidade das paredes e das fronteiras.
 
Quanto à questão da posição correta, talvez não sejam inúteis algumas reflexões. Sabemos que existe uma posição correta do sujeito para cada tipo de atividade. Qualquer professor, de piano ou caligrafia, sabe que a posição tem uma importância decisiva. Esse fato, que ninguém por certo contestará, se evidencia de um modo particularmente claro, entra pelos olhos a dentro; bastando olhar um jogador de bilhar no momento em que pega o taco e se debruça no pano verde, para se ter a impressão de estar vendo, no seu braço, nos seus dedos, no seu ombro, a virtude de carambolar. Há uma concordância, uma convergência harmoniosa em vista de um ato, uma inteligência visível, que nos sugerem um completo domínio do sujeito sobre o objeto. Há uma elegância, que é a prévia manifestação de destreza.
 
Ao contrário, quando um principiante pega no taco, vê-se logo que entre ele, o instrumento e a operação a ser feita, ainda não se estabeleceu a harmonização necessária. O resultado desse desacerto é cômico. O cômico, na maioria dos casos, vem de um erro de posição. Não é o contrário do sério, mas o contrário de um desembaraço e elegância. Neste ponto tomo a liberdade de discordar de Bergson quando diz que "as atitudes, os gestos e os movimentos do corpo humano provocam o riso na medida em que esse corpo nos dá a idéia de um simples mecanismo". A aparência mecânica provoca o riso, sem dúvida; não pelo fato de ser mecânica, mas pelo fato de parecer inadequada. Creio que Bergson chegou a aquela conclusão por nos parecer mecanizado o gesto observado em desacordo com a função. Insisto porém num ponto: o cômico, a meu ver, reside mais no desacordo do que na mecanização. Mais adiante em seu estudo, Bergson me satisfaz completamente quando afirma que o problema do cômico está na maneira puramente intelectual de ver um espetáculo. E chega a dizer: "Numa sociedade de puras inteligências ninguém choraria, mas o riso existiria".
 
Realmente, o cômico é detectado como um erro; erro prático, erro de atitudes ou de limites. Cômico é o sujeito que não sabe fazer e que o proclama, antes mesmo do ato, por seus gestos e atitudes. É também aquele que parece estar aprendendo, como Carlitos, que anda como se estivesse aprendendo a andar, fuma como se estivesse aprendendo a fumar. Seu inimitável e cândido cômico torna-se ainda mais vivo pelo contraste com suas veleidades de elegância.
 
O desembaraço nunca é cômico, ainda que os gestos sejam mecanizados. Um operário adestrado, que sincroniza o braço com a máquina, nunca provoca o riso. Ele sabe fazer, e isto é o bastante para imprimir à sua figura uma harmonia que pode ser trágica, mas que nunca será cômica. Cômica é, decididamente, a falsa posição revelada pela razão prática. Ri-se o espectador como quem julga. E como quem reprova. O público de uma comédia tem vaga semelhança com uma banca de examinadores; o candidato lembra o palhaço; a platéia é um tribunal; o riso, uma vaia. E ainda mais, de acordo com Bergson, e agora com Baudelaire, o cômico só existe onde há público, e onde existe da parte do espectador um forte sentimento de superioridade. Não conseguimos imaginar um palhaço particular, com a facilidade com que imaginamos um professor particular.  
 
Cômico é pois o erro, o erro prático, previamente anunciado e publicado pela posição imprópria. Vale mais, neste caso, a posição do indivíduo do que o próprio erro do ato, porque é mais ao sujeito do que ao objeto que o riso se dirige. O indivíduo que erra uma bola nem sempre se torna ridículo. O erro acidental, que não estava anunciado na posição, não provoca o riso. Ao contrário, o sujeito que acerta por acaso, quando tudo indicava que devia errar, torna-se duplamente cômico.
 
As cenas de equívoco que o leitor encontrará neste livro são produzidas por erros de atitude num sentido mais largo, que são menos visíveis do que os trejeitos de um patinador principiante. Nem por isso, a meu ver, são menos cômicos; ou menos trágicos.
 
O técnico tem uma atitude clássica diante dos objetos que faz, derivado das próprias regras do fazer. Caracteriza-se pela facilidade de medir os elementos parciais e de prever, em função dessas medidas, a perfeição mecânica do total. Adquire assim o técnico um vício: ele considera todas as coisas como se as tivesse feito.
 
É fácil prever o sem número de intrigas e de quiprocós que esse personagem causará entre os homens se sair do laboratório sem deixar sua atitude; isto é, se andar pelas ruas e pelas casas sem se lembrar que, antes de ser técnico, é um homem comum. Os disparates que esse perigoso indivíduo produzirá podem ser considerados sob dois aspectos: erro de oportunidade ou de local, e erro de atitude ou posição. Uma canção de amor é a mais admissível das coisas; mas o sujeito que, por distração, a entoasse na fila do ônibus, seria certamente cômico, ainda que cantasse bem. O campeão olímpico de saltos é homem que merece admiração, porque a destreza é admirável; mas, se por equívoco começasse a pular por cima das cadeiras e das damas, numa sala de visitas, seria certamente cômico; ainda que pulasse bem. Ou seria trágico.
 
Procurei mostrar que o técnico comete às vezes erros de atitude e de conveniência que merecem vaia. Mas procurei mostrar também um inconveniente maior do que a vaia, e que vem a ser a deformação das próprias virtudes do técnico diante do aparelho de rádio. O cantor que por toda parte solte a voz acabará não sabendo cantar no teatro. O campeão de saltos, se pula sem propósito acabará confundindo proporções e perdendo seus títulos. O pianista que viver dedilhando sobre os móveis que encontra, ao cabo de poucos anos não saberá dedilhar sobre um teclado. A força principal de um especialista consiste em reconhecer que suas atividades, por isso mesmo que são especiais, devem se ater às circunstâncias especiais. O cientificismo é adversário da ciência; o tecnicismo, adversário da técnica.
 
O mundo moderno, por lamentável engano, pensa que o mal e o sofrimento humano vêm da diversidade. Procura então destruí-la, arrasando limites e paredes, e fundindo numa grossa pasta, onde serão trituradas, todas as coisas que constituem o esplendor da civilização. Não é justo dizer que isto seja uma idéia de bárbaro: um bárbaro nunca teria uma idéia tão prodigiosamente estúpida. Não podemos imaginar um selvagem a fundar doutrina para simplificar seu "boomerang" ou a composição do seu curare. Mas posso dizer que essa idéia conduz à barbárie: o primeiro que a formula é geralmente um indivíduo muito civilizado, que num certo ponto de sua história toma nojo da sua condição; o segundo, que a repete, é geralmente um tolo; o terceiro, um idiota; o quarto ou o quinto será então um bárbaro, e esse já não se dará ao trabalho de formular idéias.
 
A propósito de simplificações desse tipo, ouvi contar, recentemente, que em Moscou, graças à proletarização, chegou-se à conclusão que tocar piano é aproximadamente a mesma coisa que carregar piano. Um jornalista americano, de ótimo humor, contou-nos esta cena incrível: num concerto, depois de duas horas de grande desempenho artístico, tocado o último acorde e recebidas as últimas palmas, a pianista sai da sala de espetáculos empurrando o piano (que tem rodas apropriadas) diante de um público que já não sabe rir. Ou chorar.
 
Em cenas assim, há comédia ou tragédia; conforme a perspectiva. Escolha o leitor, à vontade, o olho que mais lhe agrade. Ria-se ou chore, como dizia Machado na última página de Quincas Borba. Ria-se ou chore, digo também. Não porque seja isso indiferente, ou porque esteja o Cruzeiro do Sul longe demais de nossas aflições. Digo-o porque ambos são legítimos: o riso e a lágrima.
 
Ninguém, certamente, se lembrará de nos contestar o direito às lágrimas; mas muitos, pelo que tenho visto, querem nos contestar o direito ao riso. O apupo é certamente uma pesada manifestação, e muitas vezes cruel. Baudelaire irritava-se diante dessa convulsiva e estridente maneira de opinar, vendo nela uma obra do demônio. Exagerava. Escrúpulos de homem muito sensível, arrepios de poeta, faziam que ele visse no riso cômico um sinal satânico. Além disso, ele não tinha experiência da opressão moderna, da taciturna tirania, que procurou suprimir nas faces dos homens as legítimas manifestações de oposição e de livre opinião. O riso que apupa é certamente pesado, mas é um direito do homem. As ditaduras, aqui ou em Portugal, na Alemanha ou na Rússia, foram comédias em que o riso se tornou proibido3. Não admira pois que tão depressa se tenha transformado a comédia em tragédia. Represado o riso, rebentaram as lágrimas.
 
Ria-se, pois, leitor antes que seja tarde. Ou então, ajude-me ao longo dessas páginas, a desmontar a comédia tirando o conselheiro de estado do seu ridículo esconderijo; reconduzindo o técnico aos seus instrumentos; convencendo o campeão de saltos que uma dama pode ser um obstáculo em nossa vida, mas não no sentido esportivo; internando num manicômio os personagens impostores que se fazem passar pelo que não são; e tornando mais silencioso o mundo para que se possa ouvir a voz da Sabedoria. Ajude-me, ó leitor amigo, a evitar que o homem se torne cada dia mais ridículo, e que uma vaia atômica nos venha estragar a peça. Desmontemos juntos a comédia dos erros. O mundo, apesar de tudo, não é teatro; e mais vale um bom entendimento do que uma boa comédia.
 
(A Ordem, Janeiro de 1947)

  1. 1. [N. do Autor] Esses três capítulos, a começar pelo último, fazem parte da Introdução de um livro que talvez nunca seja publicado.
  2. 2. [N. do Autor] O autor, nesse meio tempo, mudou de opinião; agora está a parecer-lhe que o projeto era melhor.
  3. 3. [N.da P.] Corção refere-se à ditadura de Getúlio Vargas. Quanto ao governo Salazar, mudou de opinião mais tarde.
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