Para encontrar na obra de Chesterton a primeira idéia-mestra ou o primeiro sol ao centro de um sistema planetário, tomemos como ponto de partida a triste e fantástica mansão "onde brilha a estrela fixa da certeza, e onde os homens crêem em si mesmos mais colossalmente que Napoleão ou César, e onde podemos chegar junto aos degraus do trono do super-homem." Comecemos, pois, pela casa dos doidos. A idéia que procuramos diz respeito à saúde do espírito, e por isso é perfeitamente lógico que iniciemos nossa investigação onde falta essa saúde. Sentiremos assim mais vivamente, graças à parte de saúde que porventura ainda nos reste, a que extremidades sombrias nos poderá conduzir a parte que por desventura já nos falte.
O primeiro confronto de Chesterton, para lançar um desafio a uma opinião geralmente admitida, é entre o poeta e o louco. Em muitas outras páginas, em numerosas novelas, esse confronto é aproveitado sob variados, figurados e coloridos aspectos. Um livro inteiro The Poet and the Lunatics tem origem nessa chispa produzida pelo choque entre duas coisas tão diferentes que um vulgar preconceito considera tão semelhante. Mas é no segundo capítulo de Orthodoxy que encontramos a primeira e mais nítida apresentação da questão.
Fala-se geralmente dos poetas como de pessoas em quem não se pode depositar muita confiança, sob o ponto-de-vista psicológico, mas os fatos e a história contradizem completamente esse preconceito. Muitos dos poetas verdadeiramente grandes foram, não somente equilibrados, mas também dotados de senso prático; e, se Shakespeare foi realmente guardador de cavalos, é de crer que o julgaram um dos homens capazes disso. A imaginação não gera a insanidade; o que gera a insanidade é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem, mas os jogadores de xadrez, esses, sim, enlouquecem. Os matemáticos e os contadores muitas vezes ficam doidos; os artistas criadores muito raramente. Não pretendo, como se verá adiante, atacar a lógica: quero apenas frisar que é aí, na lógica, e não na imaginação, que está o perigo. A paternidade artística é tão salutar como a paternidade física. Deve-se notar, além disso, que os poetas realmente mórbidos foram os que tiveram algum ponto fraco de racionalismo. Poe, por exemplo, era de fato um mórbido; não por ser poeta, mas por ser excessivamente analítico. O próprio jogo de xadrez era poético demais para ele; desgostava-se por estar cheio de torres e peões, como um poema. Confessadamente, ele preferia o jogo de damas que melhor lhe sugeria a idéia de um diagrama com pontos pretos.
Homero é completo e bastante calmo: são os seus críticos que o dilaceram em muitas extravagantes criaturas. Shakespeare era bem ele mesmo: foram seus críticos que descobriram que ele era somebody else. E São João Evangelista, embora tenha visto muitos monstros estranhos, nunca chegou a ver criatura tão medonha como um de seus comentadores. O fato geral é simples. A poesia é sã porque flutua à vontade num mar infinito; a razão, porém, procura atravessar o mar infinito, tornando-o finito. O resultado disso é um esgotamento mental, como o esgotamento físico de Mr. Holbein. Aceitar todas as coisas é um exercício, mas compreender todas as coisas é um frenesi. O poeta procura apenas a exaltação e a expansão, isto é, procura um mundo onde se possa distender. Pretende ele, simplesmente, enfiar a cabeça nos céus, ao passo que o lógico se esforça por enfiar os céus na cabeça. E é a cabeça que estala.
Mais adiante, seguindo a mesma ordem de idéias, encontramos o tipo especial de raciocinador que aplica aos atos humanos um determinismo rígido. Um deles, o Sr. R. B. Suthers, marxista por convicção e ofício, diz que o livre arbítrio seria uma loucura, porque levaria o homem a agir sem causas, isto é, como louco. Chesterton passa rapidamente sobre a falta de lógica determinista desse discípulo de Marx: realmente, se os loucos pudessem agir sem causas o determinismo estaria perdido. Mas o ponto principal da questão é outro: o Sr. Suthers pode perfeitamente ignorar o que seja o livre arbítrio, mas é pouco razoável que a tal ponto ignore o que seja um louco, porque a última coisa que dele se pode dizer é que age sem causas. O louco é, ao contrário, o único determinista rigoroso:
Se alguns atos humanos podem ser considerados sem causa, são os pequeninos atos gratuitos e simples do homem normal: assobiar quando passeia, partir a grama com a ponta da bengala, bater com os calcanhares ou esfregar as mãos. É esse homem feliz que faz coisas inúteis; o doente não é bastante forte para esses desperdícios. São exatamente esses atos descuidados e sem motivos que o doido não pode compreender; porque o doido (como o determinista) vê geralmente causas demais em todas as coisas. Naquelas atividades gratuitas ele é capaz de descobrir uma significação conspiratória. Pensará que o vergastar a grama é um ataque à propriedade privada; e que o bater de calcanhares é um sinal transmitido a algum cúmplice escondido. Se o doido pudesse ficar um só instante descuidado ficaria curado. Aqueles que tiveram a infelicidade de privar com uma pessoa mergulhada ou mesmo na orla da desordem mental sabem que a mais sinistra qualidade desse estado é uma horrível clareza nos detalhes; é a conexão de uma coisa com outra numa espécie de mapa mais elaborado do que um labirinto. Se um de nós quiser discutir com um doido, é extremamente provável que ele leve a melhor, porque em muitos pontos seu espírito é mais rápido do que o nosso, não estando preso a certas coisas que atrasam um bom julgamento. Ele não se embaraça com o senso de humour, com a caridade, ou com algumas certezas de experiência. Tornou-se mais lógico pela perda de certa fraquezas saudáveis. Realmente, a definição vulgar da insanidade mental é, nesse sentido, um equívoco. O doido é o homem que perdeu tudo, exceto a razão.
Suas explicações de cada coisa são sempre completas, e muitas vezes num sentido puramente racional, satisfatórias. Ou então, mais exatamente, a explicação do louco, se não é convincente, pelo menos é irrespondível. E isso se pode ver em dois ou três dos casos mais comuns em loucura. Se um homem diz, por exemplo, que o resto da humanidade conspira contra ele, não podemos discutir senão dizendo que todos os homens negam unanimemente que sejam conspiradores; ora, se eles o fossem, diriam exatamente isso. A explicação do doido, portanto, está de acordo com os fatos tão bem como a nossa. Se um homem diz que é o legítimo rei da Inglaterra, não será satisfatório dizer-lhe que as autoridades existentes o consideram doido; porque se ele fosse o rei da Inglaterra as autoridades usurpadoras não teriam melhor coisa a dizer. Ou então, se um homem diz que é Jesus Cristo, não adiante responder que o mundo nega sua divindade, porque o mundo nega a divindade de Cristo.
A seguir, ainda no mesmo extraordinário capítulo, Chesterton apresenta as duas características da demência: uma completação e uma retratação. Uma completação pequena. Uma exaustão. Um círculo. Ele bem sabe que a inteligência humana tem seus limites e que a liberdade que ela possa gozar tem, digamos assim, o prêmio (ou o preço) de uma limitação. Esse ponto constitui a cúpula de todo o arcabouço de idéias. Mas antes de chegarmos a ele observemos que a filosofia materialista é mais limitadora e impõe mais restrições do que qualquer religião.
O cristão tem plena liberdade de crer que existe no Universo uma ordem estabelecida e um inevitável crescimento, mas ao materialista não é permitido admitir dentro de sua imaculada máquina a mais ligeira nódoa de espiritualidade ou milagre. O pobre materialista que é o Sr. McCabe não tem permissão de crer no mais minúsculo diabinho escondido numa pimpinela. O homem normal sabe que tem em si um pouco de animal, um pouco de demônio, um pouco de santo e um pouco de cidadão. Ainda mais, o homem realmente normal sabe que tem em si um pouco de doido. Mas o mundo do materialista é perfeitamente sólido e simples; como também o doido está perfeitamente convencido de que é normal. Os materialistas e os doidos nunca têm dúvidas.
Mais adiante, referindo-se ainda à libertação de que se gaba o materialista:
É absurdo dizer que estamos progredindo em liberdade quando só nos utilizamos do livre pensamento para destruir o livre arbítrio. Os deterministas vieram para amarrar e não para afrouxar. Fazem bem em chamar à sua lei "cadeia" da causalidade, pois nunca houve pior cadeia do que essa para acorrentar um ente humano. Podem usar a linguagem da liberdade, se quiserem, na doutrina materialista, mas é claro que ela é tão inaplicável a essa doutrina como, de um modo geral, ao homem aferrolhado no hospício. Podem dizer, se quiserem, que o homem é livre de se considerar um ovo cozido. Ma o fato mais maciço e mais importante, seguramente, é que, sendo um ovo cozido, ele não terá liberdade de comer, beber, dormir, passear ou fumar um cigarro. Do mesmo modo eles podem dizer, se quiserem, que o ousado pensador determinista tem a liberdade de descrer na realidade da vontade; mas o fato mais importante e mais maciço é que, nesse caso, ele não é livre para louvar, maldizer, agradecer, justificar, implorar, punir, resistir às tentações, promover arruaças, formar bons propósitos no Ano-Novo, perdoar os pecadores, apostrofar os tiranos ou até para dizer um simples "obrigado" a quem lhe passar a mostarda.
Agora, deixando esse tipo de materialista que troca todas as liberdades pela liberdade de descrer, encontramos um personagem ainda mais sombrio:
Há um cético mais terrível do que aquele que acreditava que tudo começou na matéria; há um que acredita que tudo começou nele mesmo. Já não é dos anjos e dos demônios que este duvida, mas dos homens e das vacas. Para ele, os próprios amigos não passam de uma mitologia que ele próprio construiu. Criou seu pai e sua mãe. Essa horrível fantasia contém qualquer coisa atraente para o egoísmo mais ou menos místico de nossos dias. Aquele editor que pensava que os homens vencem quando crêem em si mesmo; aqueles que andam em busca do Super-Homem e o vão procurar no espelho; aqueles escritores que falam em modelar a própria personalidade em vez de criarem vida para o mundo; toda essa gente está realmente a dois dedos desse vácuo horroroso. E então, quando todas as coisas boas desse mundo estiverem enegrecidas como uma mentira; quando os amigos se esvaírem em fantasmas e os alicerces do mundo ruírem; então, o homem que não crê em nada e em ninguém, sozinho em seu pesadelo, deverá ser marcado com a vingadora ironia da divisa individualista. As estrelas serão meros pontos no negrume de seu cérebro; a face de sua mãe será somente um esboço de seu insano lápis nas paredes de seu cárcere. Mas em cima da porta de sua cela deve ser escrito, com terrível verdade: "Ele crê em si mesmo".
Agora, depois de uma longa caminhada pelos infernos da demência, onde encontramos as diferentes perturbações que afligem o espírito, sob as formas das filosofias materialistas e idealistas (que nem sempre, aliás, se revestem dos aspectos clínicos oficialmente estabelecidos, e muitas vezes conduzem, não ao manicômio, mas aos altos postos da política racionalista), agora é justo que façamos um inventário e que perguntemos: "Se é isso que enlouquece o homem, o que será que mantém a saúde do espírito?" E aqui responde Chesterton:
É a idéia do mistério que conserva o homem são. O mistério é a saúde do espírito; sua negação é a loucura.
E aqui chegamos ao núcleo principal do seu pensamento e da sua mensagem. Esta é a delicada e esquisita linha que separa o lúgubre Hanwell [*] daquele outro país da imaginação, da poesia e da Fé, daquele "ensolarado rincão do senso comum" que vamos encontrar no admirável capítulo A Ética do País das Fadas.
E esta é a primeira idéia-mestra de Chesterton: ou o mundo conserva a noção do mistério, ou se transforma num imenso pátio de hospício. E essa idéia, como as outras, não é sua. É antiga como o mundo; e é no plano sobrenatural a idéia central da liturgia católica: o Sacrifício da Missa é o centro da vida cristã, e o "mistério da Fé" (mysterium fidei) é o centro do sacrifício do altar. O autor, que mais de uma vez confessou ter descoberto o que já havia sido descoberto, tem entretanto um mérito, o único, aliás, a que pode pretender um autêntico pensador: não foi ele que descobriu o sol, não foi ele que inventou a luz que banha sua rica palheta fazendo o cobalto ser azul e o cádmio amarelo; mas foi ele, em larga medida, que soube aceitar essa luz, servir-se dela como de uma dádiva, e que soube olhar em volta, maravilhado, para descobrir e redescobrir a beleza oferecida de todas as coisas.
Cedo-lhe mais uma vez a palavra para que ele termine este capítulo como terminou seu magistral capítulo O Maníaco:
O lógico mórbido procura tornar tudo lúcido, e consegue tornar tudo misterioso. O místico admite que uma coisa seja mistério, e tudo se torna lúcido. O determinista constrói a teoria clara da causalidade, e descobre então que não pode dizer um "faça o favor" à sua arrumadeira. O cristão permite que o livre arbítrio seja um sagrado mistério, e por isso suas relações com a arrumadeira ganham uma cintilante e cristalina claridade. Ele coloca a semente do dogma numa escuridão central; mas os ramos brotam e crescem em todas as direções com a natural pujança da saúde. Como já tomamos o círculo para o símbolo da razão e da loucura, tomamos agora a cruz para o símbolo do mistério e da saúde. O budismo é centrípto, mas o cristianismo e centrífugo: ele explode. Pois o círculo, sendo embora perfeito e infinito em sua natureza, está fixado para sempre no seu tamanho: nunca poderá ser maior ou menor. Mas a cruz, apesar de ter em seu centro uma colisão e uma contradição, pode estender sempre os seus quatro braços sem que a forma se altere. Porque tem um paradoxo em seu coração, pode crescer sem mudar. O círculo gira sobre si mesmo e está atado. A cruz abre os braços aos quatro ventos como um indicador de caminhos para os viajantes livres.
Somente os símbolos podem ter algum valor neste profundo assunto; tomarei, pois, um outro símbolo, tirado da natureza física que exprimirá suficientemente bem o verdadeiro lugar do mistério perante o gênero humano. A única coisa criada que não podemos olhar é aquela em cuja luz vemos todas as coisas. Como o sol ao meio-dia, o mistério esclarece todas as coisas pelo fulgor de sua vitoriosa invisibilidade. O intelectualismo isolado é como o luar, porque é uma luz sem calor, uma luz secundária refletida por um mundo morto. Os gregos tinham razão quando tomaram Apolo como deus da imaginação e da saúde, fazendo-o igualmente patrono da poesia e da medicina. Falarei mais adiante de um credo especial e dos dogmas necessários. Mas esse transcendentalismo pelo qual todos os homens vivem tem, primariamente, algo da posição do sol no firmamento. Temos consciência dele como de uma esplêndida confusão; é qualquer coisa brilhante e informe, ao mesmo tempo clarão e mancha. Mas o círculo da lua é tão claro e tão inequívoco, tão recorrente e tão inevitável, como um círculo de geômetra no quadro-negro. Porque a lua é completamente racional; a lua é mãe dos lunáticos, e todos eles deu o seu nome.
(G. C., in Três Alqueires e um Vaca, 6a. edição, Agir, 1961, Rio de Janeiro. Título original do capítulo: Apolo)