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Category: S. S. Papa Pio XIIConteúdo sindicalizado

Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli (2 de março de 1876 - 9 outubro de 1958) reinou como Papa da Igreja Catolica de 1939 até sua morte, em 1958. Proclamou o dogma da Imaculada Conceição, publicou 41 Encíclicas, entre as quais Mystici Corporis, Mediator Dei e Humani Generis.

Teresinha, templo de Deus

(No dia 11 de julho de 1937 encerrava-se em Lisieux o 11° Congresso Eucarístico Nacional da França com a consagração da Basílica dedicada a Sta. Teresinha.

O Papa Pio XI, devotíssimo da santa, tencionava pessoalmente presidir as cerimônias. Devido ao precário estado de saúde não conseguiu realizar o seu ardente desejo.

Enviou, então, como Legado Papal, o Cardeal Eugênio Pacelli, o futuro Papa Pio XII. Da admirável alocução do Cardeal Pacelli na consagração da Basílica destacamos o trecho onde enaltece Teresinha).

 

AS ROSAS PARA PIO XI

No alto da nova basílica, brilha a cruz triunfante iluminada pelo sol de junho. No alto do edifício espiritual é também a cruz que a vós se oferece na pessoa do Papa representada, aqui, por seu humilde delegado.

A cruz, porque “se todos que piedosamente querem viver no Cristo sofrem perseguição” são particularmente penosas para o coração do Pontífice atual e lhe arrancam queixas pungentes e solenes protestos as que, em diferentes países, sofrem seus filhos. Mas, nem a violência sacrílega das massas encegueiradas por falsos profetas nem os sofismas dos doutores da impiedade que desejariam descristianizar a vida de todos puderam vencer a resistência e aprisionar a palavra e a pena deste intrépido ancião.

No entanto, e bem o sabeis, fazem alguns meses que a seus sofrimentos morais somaram-se sofrimentos físicos. Nesses dias, a grande família católica por inteiro, de um extremo a outro do mundo, voltou-se com filial ansiedade para o leito de sofrimento do Pai comum prostrado por dores agudas suportadas com grandeza heróica e sobrenatural, com coragem viril e cristã. Cada manhã seus olhos acompanhavam os telegramas dos jornais; cada noite seus ouvidos abriam-se para o jornal falado difundido pelo rádio; pela manhã e à tarde e mesmo durante a noite uma oração constante partindo dos lábios e do coração de 300 milhões de fiéis animava o mundo a elevar-se, com o incenso de sacrifícios, diretamente ao coração de Deus. Invocava-se esse Coração divino pela intercessão de sua Mãe “a suplicante toda poderosa”, invocavam-se pela intercessão dos santos e das santas, sobretudo daqueles que parecem ser os canais das graças milagrosas. Assim foi principalmente ela a invocada, esta querida santa de Lisieux, por quem o Papa, e se sabia, sentia tão terna e confiante devoção. E veio a consolação depois da cruz. Quando a Igreja festejava a ressurreição do Senhor, a doença alivia o cerco e o Pontífice como que ressuscitando para uma nova vida, surpreende o mundo com a publicação quase simultânea de três Encíclicas.

Foi por um sentimento de especial gratidão para com a taumaturga de Lisieux que, não podendo comparecer pessoalmente, como desejaria, às jornadas festivas em sua homenagem, o Soberano Pontífice Pio XI fez-se representar por um embaixador especial: “Legatus a latere”, diz o que traduziríamos, nesta circunstâncias, como o mensageiro do seu coração tocado de indizível gratidão.

Esse embaixador que o Soberano Pontífice vos envia carregado de suas bênçãos paternais, ele não o quer de volta com as mãos vazias: “Traga-Nos três rosas de Lisieux, recomendou-lhe, que dizer três graças especiais que imploramos à querida Santinha. E não é trair a confiança e revelar-vos, para que imploreis com o Supremo Pastor, as três graças que ardentemente ele suplica. Permanecendo fiel ao gracioso símbolo que Sua Santidade escolheu, parece-me entrever Teresa do Menino Jesus cultivando, no Carmelo e para o Papa que a elevou aos altares, as três rosas que lhe pede. Vamos recebê-las de suas suaves mãos para levá-las à Sua Santidade.

Por primeiro a rosa vermelha rodeada de espinhos. Sim, é a imagem da primeira graça solicitada pelo Santo Padre: uma perfeita e filial conformidade com todos os desígnios de Deus mesmo que se cumpram no sofrimento.

Segundo, a rosa cor-de-rosa de pétalas rijas e numerosas, a primeira a abrir-se e a que ainda viceja nos dias de outono quando as outras já fenecem. Simboliza o desejo do Santo Padre de recuperar as forças e o vigor físico; não para fugir à dor, “non recuse dolorem”, mas para ainda trabalhar, “peto laborem”, com a magnífica energia que durante tantos anos pôs a serviço de Deus e do bem das almas!

Terceiro a rosa branca de cálice amplo e perfumado, a que justifica o seu título de rainha das flores, abrindo generosamente suas pétalas de veludo acariciante e imaculado, envolvendo-se de perfume ora vivo ora suave. Com essa magnífica flor permitimo-nos simbolizar o desejo do Santo Padre de santidade de vida e de zelo fervoroso para o clero secular e regular, chamando à salvação das almas a partir da própria santificação.

 

TERESINHA, TEMPLO DA LEI DE DEUS

Há um terceiro templo, uma terceira casa de Deus entre os homens que, certamente, não nos cabe dedicar ou consagrar Deus, já que Ele mesmo o fez, mas exaltar e glorificar no dia de hoje. Essa casa de Deus é a alma de vossa encantadora Santa Teresa do Menino Jesus.

Por humilde que fosse, por pequenina que desejasse ser, a alma da Santa Teresa foi um imenso e magnífico templo. Assim como a basílica que hoje se eleva em sua honra, ela abrigou, em si, a lei divina, a graça, a Eucaristia e podemos dizer, a totalidade dos fiéis, a Igreja. Foi, portanto, a casa viva de Deus entre os homens. “Ecce Tabernaculum Dei cum hominibus”. Já não sabemos que, segundo a doutrina do grande apóstolo São Paulo (1 Cor. 111, 16-17), cada um de nós é o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em nós? “Nescitis quia templum Dei estis et Spiritus Dei habitat in vobis?... Templum Dei sanctum est, quod estis vos”. É esta a nossa grandeza e a nossa mais alta dignidade. Feitos à imagem e semelhança divina, trazemos na fronte um raio celeste que conservamos, mesmo decaídos, testemunha de nossa sublime origem e que nos torna belos e grandes no mundo material que nos rodeia; grandeza e dignidade que se projeta para além do tempo penetrando a eternidade; preciosa aos olhos de Deus pois custou o sangue de um Deus. É ela que lava e purifica nosso espírito; por ela nossas almas marcadas em íntima união com a graça e a caridade que o Espírito Santo transborda em nossos corações tornam-se o edifício espiritual construído nos alicerces dos apóstolos e dos profetas tendo por pedra angular o próprio Jesus Cristo: “Superrædificati super fundamentum Apostolorum et Prophetarum, ipse summa angulari lapide Christo Jesu” (Ephos. 11,20); sobre esta pedra fundamental todo edifício bem projetado eleva-se como templo santo para o Senhor, sobre ela somos transformados pelo Espírito em habitação de Deus: “In quo emnis ædificatio constructa crescir in templum sanctum in Domine, in que et vos coædificamini in habitaculum Dei in Spiritu” (Ephos. 11, 21-22), o Espírito de vida, de verdade de caminho para o céu.

 Deus hoje habita em seus templos, dizíamos há pouco, não como naqueles em que outrora repousavam insensíveis e inertes as tábuas da lei antiga – mas pelos ministros do seu poder, pelos mandatários de sua jurisdição que em nossas igrejas promulgam sua Lei e sancionam sua observância. Assim essa lei divina aí permanece viva e atuante guiando as almas no caminho da retidão e da pureza fora dos quais a natureza fraca e corrompida não  conhece senão descaminhos e vergonhas.

            A Lei de Deus assim foi, viva e ativa, na alma de Teresa. Como a outra Virgem, de quem nos falam os Atos “que trazia sempre no peito o Evangelho do Senhor” Teresa trazia sempre presente em sua alma e seu coração, a Lei e os conselhos divinos de seu bem amado Jesus Cristo.

           

TERESINHA, TEMPLO DA DOUTRINA DE DEUS

Ela lhe conhecia os segredos muito além do que aprendera pela leitura e pelo estudo. Contudo, não descuidou de instruir-se. O mesmo Soberano Pontífice que nos diz: “Agradou-se a Divina Bondade dotando-a e enriquecendo-a de um dom de sabedoria excepcional” declara também: “Ela buscou fartamente nas lições de catecismo a pura doutrina da fé; a do ascetismo no livro de ouro da Imitação de Cristo; a da mística nos escritos de seu Pai, São João da Cruz. Sobretudo nutria seu espírito e coração na meditação das Sagradas Escrituras; e o Espírito da verdade ensinou-lhe o que habitualmente esconde aos sábios e aos prudentes e revela aos humildes. Ela adquiriu uma tal ciência das coisas sobrenaturais que foi capaz de traçar para os outros um caminho seguro de salvação”.

Traçar m caminho, um “caminhozinho”. Sua ciência das coisas divinas, em parte adquirida, em parte infusa, ela não a guardou para si. Disse: “Minha missão é de ensinar a amar a Deus como eu O amo e de entregar meu ‘caminhozinho’ às almas”. É este um dos mais maravilhosos ângulos dessa figura tão atraente: a carmelitazinha, que do fundo do seu convento dá lições ao mundo do nosso século tão orgulhoso de sua ciência. Ela tem uma missão; tem uma doutrina. Mas sua doutrina, como ela mesma, é humilde e simples; resume-se em duas palavras: “Infância espiritual” ou em sua equivalente: “Caminhozinho”.

Não temos nós o Evangelho ensinando-nos há vinte séculos que “o Reino do Céu pertence às crianças e aos que a elas se assemelham”? O mestre o disse; doutores e santos comentaram sua palavra; mas para confirmá-lo objetivamente, como de todos o mais claro e decisivo comentário, temos a aplicação literal e integral desse princípio na orientação de uma vida inteira que por este “caminhozinho” elevou-se, em poucos anos, à maior e mais alta perfeição.    

É sobretudo por ele que Teresa ilumina e subjuga tantas almas. “Ela fascina o mundo pela magia do seu exemplo” diz Pio XI. Porque, depois de adquirir a ciência das coisas divinas, compreendeu o que Bossuet chama a “desgraça de toda ciência que não termina no amor”. Sua ciência de Deus levou-a a amá-Lo ilimitadamente do momento em que foi capaz de conhecê-Lo.         Apesar de, desde os três anos de idade jamais haver-Lhe recusado qualquer coisa. Foi sobre um ato de amor que, despertou sua alma; foi sobre um ato de amor que se cerraram seus olhos e seu coração quando murmurou no último suspiro: “Meu Deus, eu vos amo!” No entanto o amor não terminava com a vida; sua mensagem e sua missão não terminariam também. “Sinto, dizia pouco antes de morrer, que minha missão vai começar”. É impossível à palavra humana descrever o alcance desta missão e dos seus resultados.

O gênio brilhante de Agostinho, a sabedoria de Tomás de Aquino, projetaram sobre as almas raios de indestrutível clareza; por eles, o Cristo e sua doutrina são melhor conhecidos. O poema vivido por Francisco de Assis mostrou ao mundo uma imitação, até então inigualada da vida de Deus feito homem. Por ela legiões de homens e mulheres aprenderam a melhor amá-Lo. Porém, uma carmelitazinha, apenas chegada à idade adulta, conquistou, em menos de meio século, incontáveis falanges de discípulos. Em sua escola os doutores da lei tornaram a ser crianças; o supremo Pastor a exalta e reza a seus pés em humilde e assídua súplica; e agora mesmo, de um extremo a outro do mundo, há milhões de almas beneficamente influenciadas pelo livrinho: A história de uma alma.

Tinha muita razão dizendo a nossa querida Santa: “Sinto que minha missão vai começar. Minha missão é dar meu ‘caminhozinho’ aos outros”.

 

TERESINHA, TEMPLO DA GRAÇA

A alma de Teresa, templo da lei divina, luminosamente conhecida, amorosamente observada e ardentemente ensinada aos outros, foi também a habitação da graça, isto é, do próprio Deus.

Lembrávamos há pouco: todo homem nascido, privado por triste herança das predileções divinas porém remido pela Incarnação e morte de Jesus Cristo, pode, pelo batismo, voltar a ser filho de Deus. Torna a sê-lo mesmo depois das quedas do pecado pessoal desde que, na sinceridade de sua vergonha e dor, recorra aos méritos infinitos da Redenção.

Tudo é mistério da graça, participação real porém invisível da invisível natureza de Deus. É o mistério dos Sacramentos, sinais sensíveis dessa graça. É o mistério da incorporação do cristão a Jesus Cristo e da habitação, em nós, das três pessoas divinas. Toda alma em estado de graça é a casa de Deus.

Ora, essa graça do batismo, não somente Teresa nunca a perdeu pelo pecado como ainda sempre aumentou o seu tesouro por atos de amor e por mais íntima união com Aquele que é o seu autor e seu princípio: “Meu céu, eu o encontrei na Santíssima Trindade que mora em meu coração prisioneira do amor”.

Era assim que gostava de cantar.

Apesar dessa misteriosa união com Deus escapar às nossas avaliações e pobres medidas humanas, sabemos que pode não somente existir ou desaparecer como aumentar ou diminuir segundo a resposta da alma às suas sucessivas influências. Ações poderosas mas tão suaves que são chamadas toques da graça; ações divinas mas tão respeitosas da liberdade humana que qualificam-nas de chamados. Enfim, ações que, mesmo atuando em nós em conseqüência de uma operação extrínseca, de um ato realizado independente de nós mesmos (ex opere operato) terão maior ou menor eficácia dependendo da colaboração que nossa alma lhes der.

É por esta razão que, se a plenitude da divindade não habitou senão em Jesus pela união pessoal com uma natureza humana, os santos doutores sempre se extasiaram contemplando a morada de Deus na Virgem-Mãe. Porque Ela, cheia de graça desde o momento de sua concepção imaculada, não cessa durante toda sua vida mortal de aumentar seu tesouro por uma conformidade perfeita do seu querer com o querer divino, por uma correspondência absoluta e incessante a todos os chamados de Deus.

Sem atingir as alturas que o Filho de Deus reservou a sua Mãe, estamos seguros que Ele permitiu uma familiaridade incomum a esta alminha de criança para a qual jamais existiu outro prazer e outro querer que não fosse o prazer divino. Se alguém me ama, disse Ele, guardará minha palavra e meu Pai o amará; e viremos a ele e nele estabeleceremos a nossa morada. Ecce Tabernaculum Dei cum hominibus.

 

TERESINHA, TEMPLO EUCARÍSTICO

Teresa foi um tabernáculo sobretudo por sua devoção eucarística. Como no templo material onde tudo existe em função do altar e do viático, assim na alma de Teresa, templo espiritual de Deus, o lugar de honra e de predileção sempre pertenceu a Jesus-Hóstia.

Quando pequenina, querendo participar das lições de catecismo e dos encontros piedosos de suas irmãs mais velhas dizia que “quatro anos não são demais para preparar a primeira Comunhão”.

Conheceis seu cândido amor pelas procissões do Santíssimo Sacramento quando, na alegria de atirar flores a Jesus cuidava de jogá-las bem alto para que, ao caírem, tocassem o ostensório. Sabeis que durante a preparação próxima da Primeira Comunhão pressentiu as alegrias secretas da vida conventual fazendo também a experiência do sacrifício, multiplicando as orações e os atos de renúncia. Em dois meses anotou num caderninho recebido de Carmelo o total de 818 sacrifícios e 2.773 aspirações ou atos de amor.

Sabeis, por fim, o que disse do seu primeiro encontro com Jesus-Hóstia: “Sim, foi um beijo de amor! Sentia-me amada e dizia: Eu te amo, eu me entrego para sempre! Jesus nada pediu-me, nem ao menos um sacrifício. Há muito tempo Ele e a pequena Teresa olhavam-se e compreendiam-se. Nesse dia, nosso encontro não foi um olhar mas uma fusão. Não éramos mais dois. Teresa desaparecera como a gota d’água no oceano. Jesus permanecia só”.

Sim, hóspede único na alma de Teresa, tabernáculo de sua escolha. Quem saberá as confidências trocadas no mistério desse tabernáculo? Eram ingênuas e ternas pois que o alimento substancial dos que a conhecem e lutam mas também o primeiro alimento dos pequeninos, o angélico bocado das almas de criança. Eram sérios e profundos pois que Teresa, à sua inocente e virginal ternura, somava imenso respeito pela Hóstia da qual procurava com o olhar as imperceptíveis parcelas na patena que volta à sacristia envolvendo-as de homenagens e chamando outras irmãs para adorá-las à espera do sacerdote que vinha recolhê-las. Eram sinais significativos já que numa época em que restos de jansenismo conservavam as almas sonolentas de um falso respeito que as distanciava da comunhão, Teresa sentia uma fome imperiosa deste pão cotidiano e consolava-se de sua privação forçada pelo aviso profético dos decretos salvadores que abriram para as almas o acesso à Mesa Santa. Eram íntimos e sublimes, inacessíveis à palavra pois que, desde a sua primeira Comunhão compreendeu o poder redentor do sofrimento humano unido ao sofrimento do Cristo e pede a Deus que “transforme em amargura qualquer consolação terrena”. Foi magnificamente ouvida. Seu caminhozinho, por ser coberto de rosas, foi ainda mais rico em espinhos: espinhos das dores físicas da doença, espinhos da incompreensão e, por vezes, da contradição, espinhos mesmo do aparente abandono do Bem Amado que, no leito de morte lhe arrancaria esta confissão: “É agonia pura, sem sombra de consolação”.

Em cada uma de suas sucessivas comunhões Deus fê-la aprofundar pouco a pouco mais o mistério da dor redentora. O amor que a devorava e sua sede de reparação dela fizeram uma hóstia viva unida à Hóstia perpetuamente oferecida. Da Hóstia divina parecia ter copiado a aparência exterior da brancura e fragilidade não apenas pela candura angélica de sua alma que lhe transfigurava a fisionomia mas também pela palidez de seus traços desfeitos. Estava no fim de suas forças, gravemente enferma quando, um dia, arrastou-se até a capela para a missa e a comunhão; como uma irmã apiedava-se vendo-a tão fraca replicou: “Não acho que seja muito sofrimento para ganhar uma comunhão”.

Assim foi, a vida inteira, o que desejara ser quando visitara a santa casa de Lorette: “O templo vivo de Jesus”.

 

TERESINHA, TEMPLO DA IGREJA UNIVERSAL

Um último traço fazia da alma de Teresa a casa de Deus, Templo da lei e da doutrina divina, templo da graça sobrenatural, tabernáculo vivo de Jesus-Hóstia, ela era também, pela amplitude dos seus desejos, o templo da Igreja Universal; “Ecclesia Dei”. Escutemos o que ela mesma diz de suas ações de graça: 

“Imagino minha alma como um terreno disponível e peço à Virgem Maria que dele remova os detritos das imperfeições; a seguir peço que Ela mesma nele erga uma grande tenda digna do céu e a guarneça de seus enfeites. Convido os anjos e santos para que venham cantar cânticos de amor. Parece-me, então, que Jesus fica contente vendo-se magnificamente recebido e eu compartilho de sua alegria”.

Eis a Igreja triunfante descendo à alma de Teresa. Veremos nela a Igreja padecente? Sem duvida, pois que dela não poderia Teresa desinteressar-se. Todavia, estas almas já ao abrigo do pecado e próximas da visão beatífica pareciam-lhe mais objeto de inveja que de pena: “Não quero, dizia ela, que peçam a Deus para me livrar das chamas do purgatório. E Santa Teresa d’Ávila declarava às suas filhas que queriam por ela rezar: ‘Que importa ficar, até o fim do mundo, no purgatório se por minhas orações posso salvar uma única alma?’”.

A Igreja militante sempre existiu na alma de Teresa pela união de solidariedade que une todas as almas em estado de graça, como membros de um mesmo corpo. Porque devem ser e são inseparáveis os membros que participam de uma só e única vida: ora, nossa vida é o Cristo, a graça de sua Redenção sangrenta tornada sangue espiritual de nossas almas.

Contudo, a massa branca dos eleitos não satisfaz Teresa e o templo de seu zelo projeta-se mais além. Porque o Cristo morreu por todos os homens ela desejaria salvá-los, a todos. Assim como Paulo de Tarso, não podia pensar sem lágrimas de dor que “o Cristo tem inimigos”; e como Francisco de Assis não se resignava vendo que “o Amor não é amado”.

Eis porque salvar almas conduzindo-as ao conhecimento e ao amor de Jesus Cristo foi sua mais ardente aspiração. “O amor de Deus, o amor de Jesus, dela dirá Pio XI, inspiravam-lhe magníficos gestos de apóstolo e de mártir”.

 Desejou o carmelo de Hanói para estar mais próxima do terreno missionário. E sua vida passa-se em Lisieux, na oração e no silencio. Muitas vezes nossos olhos detiveram-se sobre a sacristia aparentemente absorvida em preparar o cálice e o missal para a missa da comunidade. Facilmente acreditaríamos que seus horizontes espirituais limitavam-se aos muros brancos da capela ou, no máximo, aos da clausura que limita os jardins silenciosos do convento. Como nos enganaríamos!

Quando no Natal de 1886 iniciou o que chamava o terceiro período de sua vida, “o mais belo de todos, o mais cheio de graças do céu”, Jesus maravilhosamente transforma essa vida espiritual já inteiramente votada a seu serviço, ou fazendo de Teresa, segundo ela mesma diz, “um pescador de almas”. Na muda contemplação das mãos divinas trespassados por nós e tantas vezes derramando seu sangue inutilmente sobre a terra, compreendeu, um dia, a grito ansiado do Redentor: “Tenho sede!” “Desde então, diz ela, desejei dar de beber ao Bem Amado; senti-me devorada pela sede de almas... e quanto mais Lhe dava a beber mais aumentava a sede de minha pobre alminha e recebia essa sede ardente como minha recompensa”.

Refletindo sobre o dia 8 de setembro quando, segundo suas próprias palavras, tornou-se “a esposa do Rei dos céus” acrescentava: “Seu único objetivo era salvar almas sobretudo almas de apóstolos. A Jesus, seu divino Esposo pedia para si particularmente o ter uma alma apostólica. Não podendo ser sacerdote desejou que, em seu lugar, um sacerdote recebesse os dons do Senhor e que sentisse os seus desejos”.

Bem sabia que, se as aspirações e desejos dos missionários podiam ser os seus, sabia também que os meios de ação deveriam ser diferentes: “Para eles, as armas apostólicas; para mim, a oração e o amor... Trabalhar para a salvação das almas é o objetivo que me levou a ser carmelita. Não podendo ser missionária pela ação quis sê-lo pelo amor e pela penitência”.

Começou ainda criança. Sua primeira conquista, lembrai-vos, foi um celebre condenado à morte. Não acabou nunca de rezar e de se imolar pelas almas: sua última comunhão, dia 19 de agosto de 1897, na festa de Santa Jacinta, foi oferecida por um bem conhecido apóstata.

Entre essas duas comunhões, quantas outras almas teria salvo durante a sua vida, pelo sacrifício e pela oração? Só Deus sabe e esta será sem dúvida, uma de nossas maravilhosas surpresas, no céu.

Mas, ainda era pouco para o seu amor. “Gostaria de salvar almas mesmo depois de minha morte... Desejaria ter no céu o mesmo que na terra: amar Jesus e fazê-Lo amado. Espero não ficar inativa lá em cima. Meu desejo é ainda o de trabalhar pela Igreja e pelas almas. É o que peço ao bom Deus e estou certa que me ouvirá”.

O que se seguiu à sua morte, canta pelo mundo inteiro o quanto Ele há quarenta anos a ouve e ouvirá sempre. A epopéia de suas conquistas apostólicas orquestradas pela voz das nações, ecoa de um pólo a outro; a santa Igreja, ela mesma, modulou o tema e ritmou o compasso abreviando todos os prazos canônicos para elevar Teresa aos altares e proclamando – a pequena contemplativa morta aos 24 anos! – Padroeira universal das Missões.

Como sois grande, pequenina Santa! E numerosa é vossa família espiritual. Sois grande, pequenina alma! Pequeno tabernáculo de Deus vivo entre nós, tornaste-vos o refúgio da humanidade que reza, que sofre, que milita e que cada dia a vós recorre!

Nos hinos que em vosso louvor se elevam parece-me ouvir um eco daquele que cantava Isaías à glória da nova Sion: “Gritem de alegria... transbordem de satisfação! Conquistem o espaço e ampliem muito a tenda. Não lhe neguem o aumento. Soltem-lhe as cordas e que os piedosos as sustentem. Porque te expandirás à direita e à esquerda; e tua posteridade tomará posse das nações e povoará as cidades desertas”.

Cada dia vós acolheis, ó Teresa! Legiões de crianças que vos consagram sua inocência, virgens que vos seguem na clausura, doente a quem dais ou saúde ao corpo ou o admirável heroísmo de vossa conformidade com o querer do Amor misericordioso. Sois vós que sustentais os missionários nas fadigas e decepções de seu apostolado distante; vossa imagem trouxe-lhes o sorriso na frigidez dos “isbas”, na aridez das choupanas, na imensidão dos desertos de areia, dos oceanos e até nas nuvens e nas alturas do firmamento.

Pequeno templo de Deus, sois o templo imenso de uma humanidade conquistado por vós. Ecce tabernaculum Dei cum hominibus.

 

(Tradução de Maria Helena Pinto Fraga).

Constituição Apostólica Munificentissimus Deus

MUNIFICENTISSIMUS DEUS

CONSTITUIÇÃO APOSTÓLICA 

DOGMA DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA, EM CORPO E ALMA AO CÉU 

 

PIO XII

servo dos servos de Deus
para perpétua memória

Introdução

1. Deus munificentíssimo, que tudo pode, e cujos planos de providência são cheios de sabedoria e de amor, nos seus imperscrutáveis desígnios, entremeia na vida os povos e dos indivíduos as dores com as alegrias, para que por diversos caminhos e de várias maneiras tudo coopere para o bem dos que o amam (cf. Rm 8, 28).

2. O nosso pontificado, assim como os tempos atuais, tem sido assediado por inúmeros cuidados, preocupações e angústias, devido às grandes calamidades e por muitos que andam afastados da verdade e da virtude. Mas é para nós de grande conforto ver como, à medida que a fé católica se manifesta publicamente cada vez mais ativa, aumenta também cada dia o amor e a devoção para com a Mãe de Deus, e quase por toda parte isso é estímulo e auspício de uma vida melhor e mais santa. E assim sucede que, por um lado, a santíssima Virgem desempenha amorosamente a sua missão de mãe para com os que foram remidos pelo sangue de Cristo, e por outro, as inteligências e os corações dos filhos são estimulados a uma mais profunda e diligente contemplação dos seus privilégios.

3. De fato, Deus, que desde toda a eternidade olhou para a virgem Maria com particular e pleníssima complacência, quando chegou a plenitude dos tempos (Gl 4,4) atuou o plano da sua providência de forma que refulgissem com perfeitíssima harmonia os privilégios e prerrogativas que lhe concedera com sua liberalidade. A Igreja sempre reconheceu esta grande liberalidade e a perfeita harmonia de graças, e durante o decurso dos séculos sempre procurou estudá-la melhor. Nestes nossos tempos refulgiu com luz mais clara o privilégio da assunção corpórea da Mãe de Deus.

4. Esse privilégio brilhou com novo fulgor quando o nosso predecessor de imortal memória, Pio IX, definiu solenemente o dogma da Imaculada Conceição. De fato esses dois dogmas estão estreitamente conexos entre si. Cristo com a própria morte venceu a morte e o pecado, e todo aquele que pelo batismo de novo é gerado, sobrenaturalmente, pela graça, vence também o pecado e a morte. Porém Deus, por lei ordinária, só concederá aos justos o pleno efeito desta vitória sobre a morte, quando chegar o fim dos tempos. Por esse motivo, os corpos dos justos corrompem-se depois da morte, e só no último dia se juntarão com a própria alma gloriosa.

5. Mas Deus quis excetuar dessa lei geral a bem-aventurada virgem Maria. Por um privilégio inteiramente singular ela venceu o pecado com a sua concepção imaculada; e por esse motivo não foi sujeita à lei de permanecer na corrupção do sepulcro, nem teve de esperar a redenção do corpo até ao fim dos tempos.

6. Quando se definiu solenemente que a virgem Maria, Mãe de Deus, foi imune desde a sua concepção de toda a mancha, logo os corações dos fiéis conceberam uma mais viva esperança de que em breve o supremo magistério da Igreja definiria também o dogma da assunção corpórea da virgem Maria ao céu.

Petições para a definição dogmática

7. De fato, sucedeu que não só os simples fiéis, mas até aqueles que, em certo modo, personificam as nações ou as províncias eclesiásticas, e mesmo não poucos Padres do concílio Vaticano pediram instantemente à Sé Apostólica esta definição.

8. Com o decurso do tempo essas petições e votos não diminuíram, antes foram aumentando de dia para dia em número e insistência. Com esse fim fizeram-se cruzadas de orações; muitos e exímios teólogos intensificaram com ardor os seus estudos sobre este ponto, quer em privado, quer nas universidades eclesiásticas ou nas outras escolas de disciplinas sagradas; celebraram-se em muitas partes congressos marianos nacionais e internacionais. Todos esses estudos e investigações mostraram com maior realce que no depósito da fé cristã, confiado à Igreja, também se encontrava a assunção da virgem Maria ao céu. E de ordinário a conseqüência foi enviarem súplicas em que se pedia instantemente a definição solene desta verdade.

9. Acompanhavam os fiéis nessa piedosa insistência os seus sagrados pastores, os quais dirigiram a esta cadeira de S. Pedro semelhantes petições em número muito considerável. Quando fomos elevado ao sumo pontificado, já tinham sido apresentadas a esta Sé Apostólica muitos milhares dessas súplicas, vindas de todas as partes do mundo e de todas as classes de pessoas: dos nossos amados filhos cardeais do Sacro Colégio, dos nossos veneráveis irmãos arcebispos e bispos, das dioceses e das paróquias.

10. Por esse motivo, ao mesmo tempo que dirigíamos a Deus intensas súplicas, para que concedesse à nossa mente a luz do Espírito Santo para decidirmos tão importante causa, estabelecemos normas especiais em que determinamos que se procedesse com todo o cuidado a um estudo mais rigoroso da matéria, e se reunissem e examinassem todas as petições relativas à assunção da santíssima virgem, enviadas à Sé Apostólica desde o tempo do nosso predecessor de feliz memória, Pio IX, até ao presente. (1)

Consulta ao episcopado

11. Mas como se tratava de assunto de tanta importância e transcendência, julgamos oportuno rogar direta e oficialmente a todos os nossos veneráveis irmãos no episcopado, que nos quisessem manifestar explicitamente a sua opinião. Para tal fim, no dia 1° de maio de 1946, dirigimos-lhes a carta encíclica «Deiparae Virginis Mariae» em que fazíamos esta pergunta: «Se vós, veneráveis irmãos, na vossa exímia sabedoria e prudência, julgais que a assunção corpórea da santíssima Virgem pode ser proposta e definida como dogma de fé, e se desejais que o seja, tanto vós como o vosso clero e fiéis».

Doutrina concorde do magistério da Igreja

12. E aqueles que «o Espírito Santo colocou como bispos para reger a Igreja de Deus» (At 20, 28) quase unanimemente deram resposta afirmativa a ambas as perguntas. Essa «singular concordância dos bispos e fiéis» (2) em julgar que a assunção corpórea ao céu da Mãe de Deus podia ser definida como dogma de fé, mostra-nos a doutrina concorde do magistério ordinário da Igreja, e a fé igualmente concorde do povo cristão - que aquele magistério sustenta e dirige - e por isso mesmo manifesta, de modo certo e imune de erro, que tal privilégio é verdade revelada por Deus e contida no depósito divino que Jesus Cristo confiou a sua esposa para o guardar fielmente e infalivelmente o declarar. (3) De fato, esse magistério da Igreja, não por estudo meramente humano, mas pela assistência do Espírito de verdade (cf. Jo 14,26), e portanto absolutamente sem nenhum erro, desempenha a missão que lhe foi confiada de conservar sempre puras e íntegras as verdades reveladas; e pelo mesmo motivo transmite-as sem contaminação e sem lhes ajuntar nem subtrair nada. «Pois - como ensina o concílio Vaticano - o Espírito Santo foi prometido aos sucessores de Pedro não para que, por sua revelação, expressem doutrinas novas, mas para que, com sua assistência, guardassem com cuidado e expusessem fielmente a revelação transmitida pelos apóstolos, ou seja o depósito da fé». (4) Por essa razão, do consenso universal do magistério da Igreja, deduz-se um argumento certo e seguro para demonstrar a assunção corpórea da bem-aventurada virgem Maria. Esse mistério, pelo que respeita à glorificação celestial do corpo da augusta Mãe de Deus, não podia ser conhecido por nenhuma faculdade da inteligência humana só com as forças naturais. E, portanto, verdade revelada por Deus, e por essa razão todos os filhos da Igreja têm obrigação de a crer firme e fielmente. Pois, como afirma o mesmo concílio Vaticano, «temos obrigação de crer com fé divina e católica, todas as coisas que se contêm na palavra de Deus escrita ou transmitida oralmente, e que a Igreja, com solene definição ou com o seu magistério ordinário e universal, nos propõe para crer, como reveladas por Deus». (5)

Testemunhos da crença na assunção

13. Desde tempos remotíssimos, pelo decurso dos séculos, aparecem-nos testemunhos, indícios e vestígios desta fé comum da Igreja; fé que se manifesta cada vez mais claramente.

14. Os fiéis, guiados e instruídos pelos pastores, souberam por meio da sagrada Escritura que a virgem Maria, durante a sua peregrinação terrestre, levou vida cheia de cuidados, angústias e sofrimentos; e que, segundo a profecia do santo velho Simeão, uma espada de dor lhe traspassou o coração, junto da cruz do seu divino Filho e nosso Redentor. E do mesmo modo, não tiveram dificuldade em admitir que, à semelhança do seu unigênito Filho, também a excelsa Mãe de Deus morreu. Mas essa persuasão não os impediu de crer expressa e firmemente que o seu sagrado corpo não sofreu a corrupção do sepulcro, nem foi reduzido à podridão e cinzas aquele tabernáculo do Verbo divino. Pelo contrário, os fiéis iluminados pela graça e abrasados de amor para com aquela que é Mãe de Deus e nossa Mãe dulcíssima, compreenderam cada vez com maior clareza a maravilhosa harmonia existente entre os privilégios concedidos por Deus àquela que o mesmo Deus quis associar ao nosso Redentor. Esses privilégios elevaram-na a uma altura tão grande, que não foi atingida por nenhum ser criado, excetuada somente a natureza humana de Cristo.

15. Patenteiam inequivocamente esta mesma fé os inumeráveis templos consagrados a Deus em honra da assunção de nossa senhora, e as imagens neles expostas à veneração dos fiéis, que mostram aos olhos de todos este singular triunfo da santíssima Virgem. Muitas cidades, dioceses e regiões foram consagradas ao especial patrocínio e proteção da assunção da Mãe de Deus. Do mesmo modo, com aprovação da Igreja, fundaram-se Institutos religiosos com o nome deste privilégio. Nem se deve passar em silêncio que no rosário de nossa Senhora, cuja reza tanto recomenda esta Sé Apostólica, há um mistério proposto à nossa meditação, que, como todos sabem, é consagrado à assunção da santíssima Virgem ao céu.

Testemunho da liturgia

16. De modo ainda mais universal e esplendoroso se manifesta esta fé dos pastores e dos fiéis, com a festa litúrgica da assunção celebrada desde tempos antiquíssimos no Oriente e no Ocidente. Nunca os santos padres e doutores da Igreja deixaram de haurir luz nesta solenidade, pois, como todos sabem, a sagrada liturgia, «sendo também profissão das verdades católicas, e estando sujeita ao supremo magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pequeno valor para determinar algum ponto da doutrina cristã». (6)

17. Nos livros litúrgicos em que aparece a festa da Dormição ou da assunção de Santa Maria, encontram-se expressões que de uma ou outra maneira concordam em referir que, quando a virgem Mãe de Deus passou deste exílio para o céu, por uma especial providência divina, sucedeu ao seu corpo algo de consentâneo com a dignidade de Mãe do Verbo encarnado e com os outros privilégios que lhe foram concedidos. E o que se afirma, para apresentarmos um exemplo elucidativo, no Sacramentário enviado pelo nosso predecessor de imortal memória Adriano I, ao imperador Carlos Magno. Nele se diz: «É digna de veneração, Senhor, a festividade deste dia, em que a santa Mãe de Deus sofreu a morte temporal; mas não pode ficar presa com as algemas da morte aquela que gerou no seu seio o Verbo de Deus encarnado, vosso Filho, nosso Senhor». (7)

18. Aquilo que aqui se refere com a sobriedade de palavras costumeiras na Liturgia romana, exprime-se mais difusamente nos outros livros das antigas liturgias orientais e ocidentais. O Sacramentário Galicano, por exemplo, chama a esse privilégio de Maria, «inexplicável mistério, tanto mais digno de ser proclamado, quanto é único entre os homens, pela assunção da virgem». E na liturgia bizantina a assunção corporal da virgem Maria é relacionada diversas vezes não só com a dignidade de Mãe de Deus, mas também com os outros privilégios, especialmente com a sua maternidade virginal, decretada por um singular desígnio da Providência divina: «Deus, Rei do universo, concedeu-vos privilégios que superam a natureza; assim como no parto vos conservou a virgindade, assim no sepulcro vos preservou o corpo da corrupção e o conglorificou pela divina translação». (8)

A festa da assunção

19. A Sé Apostólica, herdeira do múnus confiado ao Príncipe dos apóstolos de confirmar na fé os irmãos (cf. Lc 22,32), com sua autoridade foi tornando cada vez mais solene esta celebração. Esse fato estimulou eficazmente os fiéis a irem-se apercebendo mais e mais da importância deste mistério. E assim, a festa da assunção, que ao princípio tinha o mesmo grau de solenidade que as restantes festas marianas, foi elevada ao rito das festas mais solenes do ciclo litúrgico. O nosso predecessor S. Sérgio I, ao rescrever as ladainhas, ou a chamada procissão estacional, nas festas de nossa Senhora, enumera simultaneamente a Natividade, a Anunciação, a Purificação e a Dormição. (9) A festa já se celebrava com o nome de assunção da bem-aventurada Mãe de Deus, no tempo de S. Leão IV. Esse papa procurou que se revestisse de maior esplendor, mandando ajuntar-lhe a vigília e a oitava. E o próprio pontífice quis participar nessas solenidades acompanhado de imensa multidão. (10) Na vigília já de há muito se guardava o jejum, como se prova com evidência do que afirma o nosso predecessor S. Nicolau I, ao tratar dos principais jejuns «que... desde os tempos antigos observava e ainda observa a santa Igreja romana». (11)

20. A Liturgia da Igreja não cria a fé católica, mas supõe-na; e é dessa fé que brotam os ritos sagrados, como da árvore os frutos. Por isso os santos Padres e doutores nas homilias e sermões que nesse dia fizeram ao povo, não foram buscar essa doutrina à liturgia, como a fonte primária; mas falaram dela aos fiéis como de coisa sabida e admitida por todos. Declararam-na melhor, explicaram o seu significado e o fato com razões mais profundas, destacando e amplificando aquilo a que muitas vezes os livros litúrgicos apenas aludiam em poucas palavras, a saber, que com esta festa não se comemora somente a incorrupção do corpo morto da santíssima Virgem, mas principalmente o triunfo por ela alcançado sobre a morte e a sua celeste glorificação à semelhança do seu Filho unigênito, Jesus Cristo.

Testemunho dos santos Padres

21. S. João Damasceno, que entre todos se distingue como pregoeiro dessa tradição, ao comparar a assunção gloriosa da Mãe de Deus com as suas outras prerrogativas e privilégios, exclama com veemente eloqüência: «Convinha que aquela que no parto manteve ilibada virgindade conservasse o corpo incorrupto mesmo depois da morte. Convinha que aquela que trouxe no seio o Criador encarnado, habitasse entre os divinos tabernáculos. Convinha que morasse no tálamo celestial aquela que o Eterno Pai desposara. Convinha que aquela que viu o seu Filho na cruz, com o coração traspassado por uma espada de dor de que tinha sido imune no parto, contemplasse assentada à direita do Pai. Convinha que a Mãe de Deus possuísse o que era do Filho, e que fosse venerada por todas as criaturas como Mãe e Serva do mesmo Deus». (12)

22. Condizem com essas palavras de s. João Damasceno as de muitos outros que afirmam a mesma doutrina. E não são menos expressivas, nem menos exatas, as palavras que se encontram nos sermões proferidos pelos santos Padres mais antigos ou da mesma época, ordinariamente por ocasião dessa festividade. Assim, para citar outro exemplo, s. Germano de Constantinopla julgava que a incorrupção do corpo da virgem Maria Mãe de Deus, e a sua assunção ao céu são corolários não só da sua maternidade divina, mas até da santidade singular daquele corpo virginal: «vós, como está escrito, aparecestes "em beleza"; o vosso corpo virginal é totalmente santo, totalmente casto, totalmente domicílio de Deus de forma que até por este motivo foi isento de desfazer-se em pó; foi, sim, transformado, enquanto era humano, para viver a vida altíssima da incorruptibilidade; mas agora está vivo, gloriosíssimo, incólume e participante da vida perfeita». (13) Outro escritor antiquíssimo assevera por sua vez: «A gloriosíssima Mãe de Cristo, Deus e Salvador nosso, dador da vida e da imortalidade, foi glorificada e revestida do corpo na eterna incorruptibilidade, por aquele mesmo que a ressuscitou do sepulcro e a chamou a si duma forma que só ele sabe». (14)

23. A medida que a festa litúrgica se foi espalhando, e celebrando mais devotamente, maior foi o número de bispos e oradores sagrados que julgaram de seu dever explicar com toda a clareza o mistério que se venerava nesta solenidade e mostrar como ela estava intimamente relacionada com as outras verdades reveladas.

Testemunho dos teólogos

24. Entre os teólogos escolásticos, não faltaram alguns, que, pretendendo penetrar mais profundamente nas verdades reveladas, e mostrar o acordo entre a chamada razão teológica e a fé católica, notaram a estreita conexão existente entre este privilégio da assunção da santíssima Virgem e as demais verdades contidas na Sagrada Escritura.

25. Partindo desse pressuposto, apresentam diversas razões para corroborar esse privilégio mariano. A razão primária e fundamental diziam ser o amor filial de Cristo para o levar a querer a assunção de sua Mãe ao céu. E advertiam mais, que a força dos argumentos se baseava na incomparável dignidade da sua maternidade divina e em todas as graças que dela derivam: a santidade altíssima que excede a santidade de todos os homens e anjos, a íntima união de Maria com o seu Filho, e sobretudo o amor que o Filho consagrava a sua Mãe digníssima.

26. Muitas vezes os teólogos e oradores sagrados seguindo os passos dos santos Padres, (15) para explicarem a sua fé na assunção, serviram-se com certa liberdade de fatos e textos da Sagrada Escritura. E assim para mencionar só alguns mais empregados, houve quem citasse a este propósito as palavras do Salmista: «Erguei-vos, Senhor, para o vosso repouso, vós e a Arca de vossa santificação» (Sl 131, 8); e na Arca da Aliança, feita de madeira incorruptível e colocada no templo de Deus viam como que uma imagem do corpo puríssimo da virgem Maria, preservado da corrupção do sepulcro, e elevado a tamanha glória no céu. Do mesmo modo, ao tratar desta matéria, descrevem a entrada triunfal da Rainha na corte celeste, e como se vai sentar a direita do divino Redentor (Sl 44,10.14-16); e recordam a propósito a esposa dos Cantares «que sobe pelo deserto, como uma coluna de mirra e de incenso» para ser coroada (Ct 3,6; cf. 4, 8; 6, 9). Ambas são propostas como imagens daquela Rainha e Esposa celestial, que sobe ao céu com o seu divino Esposo.

27. Os doutores escolásticos vislumbram igualmente a assunção da Mãe de Deus não só em várias figuras do Antigo Testamento, mas também naquela mulher revestida de sol, que o apóstolo s. João contemplou na ilha de Patmos (Ap 12,1s.). Porém, entre os textos do Novo Testamento, consideraram e examinaram com particular cuidado aquelas palavras: «Ave, cheia de graça o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres» (Lc 1, 28), pois viram no mistério da assunção o complemento daquela plenitude de graça, concedida à santíssima Virgem, e uma singular bênção contraposta à maldição de Eva.

Na teologia escolástica

28. Por esse motivo, nos primórdios da teologia escolástica, o piedosíssimo varão Amadeu, bispo de Lausana, afirmava que a carne da virgem Maria permaneceu incorrupta nem se pode crer que o seu corpo padecesse a corrupção, porque se uniu de novo à alma, e juntamente com ela penetrou na corte celestial. «Pois ela era cheia de graça e bendita entre as mulheres (Lc 1,28). só ela mereceu conceber o Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, e sendo virgem deu-o à luz, amamentou-o, trouxe-o no regaço, e prestou-lhe todos os cuidados maternos». (16)

29. Entre os escritores sagrados que naquele tempo com vários textos, comparações e analogias tiradas das divinas Letras, ilustraram e confirmaram a doutrina da assunção em que piamente acreditavam, ocupa lugar primordial o doutor evangélico s. Antônio de Pádua. Na festa da assunção, ao comentar aquelas palavras de Isaías: «glorificarei o lugar dos meus pés» (Is 60,13), afirmou com segurança que o divino Redentor glorificou de modo mais perfeito a sua Mãe amantíssima, da qual tomara carne humana. «Daqui, vê-se claramente», diz, «que o corpo da santíssima Virgem foi assunto ao céu, pois era o lugar dos pés do senhor». Pelo que, escreve o salmista: «Erguei-vos, senhor, para o vosso repouso, vós e a Arca da vossa santificação». E assim como, acrescenta ainda, Jesus Cristo ressuscitou triunfante da morte e subiu para a direita do Pai, assim também «ressuscitou a Arca da sua santificação, quando neste dia a virgem Mãe foi assunta ao tálamo celestial». (17)

No período áureo

30. Quando, na Idade Média, a teologia escolástica atingiu o maior esplendor, s. Alberto Magno, para demonstrar essa verdade, apresenta vários argumentos fundados na Sagrada Escritura, na tradição, na liturgia e em razões teológicas, e conclui: «Por estas e outras muitas razões e autoridades, é evidente que a bem-aventurada Mãe de Deus foi assunta ao céu em corpo e alma sobre os coros dos anjos. E cremos que isto é absolutamente verdadeiro». (18) E num sermão pregado em dia da Anunciação de nossa Senhora, ao explicar aquelas palavras do anjo: «Ave, cheia de graça...», o doutor universal compara a santíssima Virgem com Eva, e afirma clara e terminantemente que Maria foi livre das quatro maldições que caíram sobre Eva. (19)

31. O Doutor Angélico, seguindo as pisadas do mestre, ainda que nunca trate expressamente do assunto, no entanto sempre que se oferece a ocasião fala dele, e com a Igreja católica afirma que o corpo de Maria juntamente com a alma foi levado ao céu. (20)

32. E da mesma opinião, entre outros muitos, o Doutor Seráfico, o qual tem como certo que, assim como Deus preservou Maria santíssima da violação do pudor e da integridade virginal ao conceber e dar à luz o seu Filho, assim não permitiu que o seu corpo se desfizesse em podridão e cinzas. (21) Aplica a santíssima Virgem, em sentido acomodatício, aquelas palavras da Sagrada Escritura: «Quem é esta que sobe do deserto, cheia de gozo, e apoiada no seu amado?» (Ct 8,5), e raciocina desta forma: «Daqui pode concluir-se que ela está ali corporalmente (na glória celeste)... Porque... a sua felicidade não seria plena se ali não estivesse em pessoa; ora a pessoa não e só a alma, mas o composto; logo é claro que está ali segundo o composto, isto é, em corpo e alma; de outro modo não gozaria de felicidade plena». (22)

Na escolástica posterior

33. Na escolástica posterior, ou seja no século XV, são Bernardino de Sena, resumindo e ponderando cuidadosamente tudo quanto os teólogos medievais tinham escrito a esse propósito, não julgou suficiente referir as principais considerações que os antigos doutores tinham proposto, mas acrescentou outras novas. Por exemplo, a semelhança entre a divina Mãe e o divino Filho, no que respeita à perfeição e dignidade de alma e corpo - semelhança que nem sequer nos permite pensar que a Rainha celestial possa estar separada do Rei dos céus - exige absolutamente que Maria «só deva estar onde está Cristo». (23) Portanto, é muito conveniente e conforme à razão que tanto o corpo como a alma do homem e da mulher tenham alcançado já a glória no céu; e, finalmente, o fato de nunca a Igreja ter procurado as relíquias da santíssima Virgem nem as ter exposto à veneração dos fiéis, constitui um argumento que é «como que uma experiência sensível» da assunção. (24)

Nos tempos modernos

34. Em tempos mais recentes, as razões dos santos Padres e doutores, acima aduzidas, foram usadas comumente. Seguindo o comum sentir dos cristãos, recebido dos tempos antigos s. Roberto Belarmino exclamava: «Quem há, pergunto, que possa pensar que a arca da santidade, o domicílio do Verbo, o templo do Espírito Santo tenha caído em ruínas? Horroriza-se o espírito só com pensar que aquela carne que gerou, deu a luz, alimentou e transportou a Deus, se tivesse convertido em cinza ou fosse alimento dos vermes». (25)

35. De igual forma s. Francisco de Sales afirma que não se pode duvidar que Jesus Cristo cumpriu do modo mais perfeito o divino mandamento que obriga os filhos a honrar os pais. E a seguir faz esta pergunta: «Que filho haveria, que, se pudesse, não ressuscitava a sua mãe e não a levava para o céu?» (26)  E s. Afonso escreve por sua vez: «Jesus não quis que o corpo de Maria se corrompesse depois da morte, pois redundaria em seu desdouro que se transformasse em podridão aquela carne virginal de que ele mesmo tomara a própria carne». (27)

36. Quando já tinha aparecido em toda a sua luz o mistério que se celebra nesta festa, não faltaram doutores que, em vez de tratar das razões teológicas pelas quais se demonstrasse a absoluta conveniência de crença na assunção corpórea da Virgem santíssima, voltaram o pensamento para a fé da Igreja, mística esposa de Cristo, sem mancha nem ruga (cf. Ef 5,27), que o Apóstolo chama «coluna e sustentáculo da verdade» ( 1Tm 3,15). E apoiados nesta fé comum pensaram que seria temerária, para não dizer herética, a opinião contrária. S. Pedro Canísio, como outros muitos, depois de declarar que o termo assunção se referia à glorificação não só da alma mas também do corpo, e que a Igreja há muitos séculos venerava e celebrava solenemente este mistério mariano, observa: «Esta opinião é admitida há vários séculos e tão impressa na alma dos fiéis, é tão recomendada pela Igreja, que quem negasse a assunção ao céu do corpo de Maria santíssima nem sequer seria ouvido com paciência, mas seria vaiado como pertinaz, ou mesmo temerário, e imbuído mais de espírito herético do que católico». (28)

37. Pela mesma época, o Doutor Exímio estabelecia esta regra para a mariologia: «Os mistérios da graça que Deus operou na virgem Maria não se devem medir pelas leis ordinárias, senão pela onipotência divina, suposta a conveniência do fato e a não contradição ou repugnância com as Escrituras». (29) E apoiado na fé de toda a Igreja, podia concluir que o mistério da assunção devia crer-se com a mesma firmeza que o da imaculada conceição, e já então julgava que ambas as verdades podiam ser definidas.

Fundamento escriturístico

38. Todos esses argumentos e razões dos santos Padres e teólogos apóiam-se, em último fundamento, na Sagrada Escritura. Esta nos apresenta a Mãe de Deus extremamente unida ao seu Filho, e sempre participante da sua sorte. Pelo que parece quase que impossível contemplar aquela que concebeu, deu à luz, alimentou com o seu leite, a Cristo, e o teve nos braços e apertou contra o peito, estivesse agora, depois da vida terrestre, separada dele, se não quanto à alma, ao menos quanto ao corpo. O nosso Redentor é também filho de Maria; e como observador perfeitíssimo da lei divina não podia deixar de honrar a sua Mãe amantíssima logo depois do Eterno Pai. E podendo ele adorná-la com tamanha honra, preservando-a da corrupção do sepulcro, deve crer-se que realmente o fez.

39. E convém sobretudo ter em vista que, já a partir do século II, os santos Padres apresentam a virgem Maria como nova Eva, sujeita sim, mas intimamente unida ao novo Adão na luta contra o inimigo infernal. E essa luta, como já se indicava no Protoevangelho, acabaria com a vitória completa sobre o pecado e sobre a morte, que sempre se encontram unidas nos escritos do apóstolo das gentes (cf. Rm 5; 6; 1Cor 15, 21-26; 54-57). Assim como a ressurreição gloriosa de Cristo constituiu parte essencial e último troféu desta vitória, assim também a vitória de Maria santíssima, comum com a do seu Filho, devia terminar pela glorificação do seu corpo virginal. Pois, como diz ainda o apóstolo, «quando... este corpo mortal se revestir da imortalidade, então se cumprirá o que está escrito: a morte foi absorvida na vitória» ( 1 Cor 15,14).

40. Deste modo, a augustíssima Mãe de Deus, associada a Jesus Cristo de modo insondável desde toda a eternidade «com um único decreto» (30) de predestinação, imaculada na sua concepção, sempre virgem, na sua maternidade divina, generosa companheira do divino Redentor que obteve triunfo completo sobre o pecado e suas conseqüências, alcançou por fim, como suprema coroa dos seus privilégios, que fosse preservada da corrupção do sepulcro, e que, à semelhança do seu divino Filho, vencida a morte, fosse levada em corpo e alma ao céu, onde refulge como Rainha à direita do seu Filho, Rei imortal dos séculos (cf. 1Tm 1,1'7).

Oportunidade da definição

41. Considerando que a Igreja universal - que é assistida pelo Espírito de verdade, que a dirige infalivelmente para o conhecimento das verdades reveladas - no decurso dos séculos manifestou de tantas formas a sua fé; considerando que os bispos de todo o mundo quase unanimemente pedem que seja definida como dogma de fé divina e católica a verdade da assunção corpórea da santíssima Virgem ao céu; considerando que esta verdade se funda na Sagrada Escritura, está profundamente gravada na alma dos fiéis, e desde tempos antiquíssimos é comprovada pelo culto litúrgico, e concorda, inteiramente, com as outras verdades reveladas, e tem sido esplendidamente explicada e declarada pelos estudos, sabedoria e prudência dos teólogos - julgamos chegado o momento estabelecido pela providencia de Deus, para proclamarmos solenemente este privilégio insigne da virgem Maria.

42. Nós, que colocamos o nosso pontificado sob o especial patrocínio da santíssima Virgem, à qual recorremos em tantas circunstâncias tristes, nós, que consagramos publicamente todo o gênero humano ao seu imaculado Coração, e que experimentamos muitas vezes o seu poderoso patrocínio, confiamos firmemente que esta solene proclamação e definição será de grande proveito para a humanidade inteira, porque reverte em glória da Santíssima Trindade, a qual a virgem Mãe de Deus está ligada com laços muito especiais. É de esperar também que todos os fiéis cresçam em amor para com a Mãe celeste, e que os corações de todos os que se gloriam do nome de cristãos se movam a desejar a união com o corpo místico de Jesus Cristo, e que aumentem no amor para com aquela que tem amor de Mãe para com os membros do mesmo augusto corpo. E também é lícito esperar que, ao meditarem nos exemplos gloriosos de Maria, mais e mais se persuadam todos do valor da vida humana, se for consagrada ao cumprimento integral da vontade do Pai celeste e a procurar o bem do próximo. Enquanto o materialismo e a corrupção de costumes que dele se origina ameaçam subverter a luz da virtude, e destruir vidas humanas, suscitando guerras, é de esperar ainda que este luminoso e incomparável exemplo, posto diante dos olhos de todos, mostre com plena luz qual o fim a que se destinam a nossa alma e o nosso corpo. E, finalmente, esperamos que a fé na assunção corpórea de Maria ao céu torne mais firme e operativa a fé na nossa própria ressurreição.

43. E é para nós motivo de imenso regozijo que este fato, por providência de Deus, se realize neste Ano santo que está a decorrer, e que assim possamos, enquanto se celebra este jubileu maior, adornar com esta pedra preciosa a fronte da Virgem santíssima, e deixar um monumento, mais perene que o bronze, da nossa ardente devoção para com a Mãe de Deus.

Definição solene do dogma

44. «Pelo que, depois de termos dirigido a Deus repetidas súplicas, e de termos invocado a paz do Espírito de verdade, para glória de Deus onipotente que à virgem Maria concedeu a sua especial benevolência, para honra do seu Filho, Rei imortal dos séculos e triunfador do pecado e da morte, para aumento da glória da sua augusta mãe, e para gozo e júbilo de toda a Igreja, com a autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados apóstolos s. Pedro e s. Paulo e com a nossa, pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado que: a imaculada Mãe de Deus, a sempre virem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial»

45. Pelo que, se alguém, o que Deus não permita, ousar, voluntariamente, negar ou pôr em dúvida esta nossa definição, saiba que naufraga na fé divina e católica.

46. Para que chegue ao conhecimento de toda a Igreja esta nossa definição da assunção corpórea da virgem Maria ao céu, queremos que se conservem esta carta para perpétua memória; mandamos também que, aos seus transuntos ou cópias, mesmo impressas, desde que sejam subscritas pela mão de algum notário público, e munidas com o selo de alguma pessoa constituída em dignidade eclesiástica, se lhes dê o mesmo crédito que à presente, se fosse apresentada e mostrada.

41. A ninguém, pois, seja lícito infringir esta nossa declaração, proclamação e definição, ou temerariamente opor-se-lhe e contrariá-la. Se alguém presumir intentá-lo, saiba que incorre na indignação de Deus onipotente e dos bem-aventurados apóstolos Pedro e Paulo.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no ano do jubileu maior, de 1950, no dia 1° de novembro, festa de todos os santos, no ano XII do nosso pontificado.

Eu Pio, Bispo da Igreja Católica assim definindo, subscrevi.

 


Notas

(1) Petitiones de Assumptione corporea B. Virginis Mariae in caelum definienda ad S. Sedem delatae, 2 vol. Typis Polyglottis Vaticanis, 1942.

(2) Bula Ineffabilis Deus, Acta Pii IX, parte I, vol. 1, p. 615.

(3) Cf. Conc. Vat. I, Const. dogm. Dei Filius de fide catholica, cap. 4.

(4) Conc. Vat. I, Const. dogm. Pastor aeternus de Ecclesia Christi, cap. 4.

(5) Conc. Vat. I, Const. dogm. Dei Filius de fide catholica, cap. 3.

(6) Carta Encíclica Mediator Dei, AAS 39 (1947), p. 541.

(7) Sacramentário gregoriano.

(8) Menaei totius anni.

(9) Liber Pontificalis.

(10) Ibid.

(11) Responsa Nicolai Papae I ad Consulta Bulgarorum, 13 nov. 866.

(12) S. João Damasc., Encomium in Dormitionem Dei Genetricis semperque virginis Mariae, hom. II, 14; cf. também ibid. n. 3).

(13) S. Germ. Const., In Sanctae Dei Genitricis Dormitionem, sermo 1.

(14) Encomium in Dormitionem Sanctissimae Dominae nostrae Deiparae semperque Virginis Mariae [atribuído a S. Modesto de Jerusalém] n. 14.

(15) Cf. S. João Damasc., Encomium in Dormitionem Dei Genetricis semperque Virginis Mariae, hom. II, 2, 11; Encomium in Dormitionem... [atribuído a S. Modesto de Jerusalém].

(16) Amadeu de Lausana, De Beatae Virginis obitu, Assumptione in Caelum, exaltatione ad Filii dexteram.

(17) S. Antônio de Pádua, Sermones dominicales et in solemnitatibus. In Assumptione S. Mariae Virginis Sermo.

(18) S. Alberto Magno, Mariale sive quaestiones super Evang. «Missus est», q. 132.

(19) Idem, Sermones de Sanctis, sermo XV: In Annuntiatione B. Mariae; cf. também Mariale, q. 132.

(20) Cf. Summa Theol. III, q. 27, a. 1. c.; ibid. q. 83, a. 5 ad 8; Expositio salutationis angelicaeIn symb. Apostolorum expositio, art. 5; in IV Sent. D. 12, q. l, art. 3, sol. 3; D. 43, q. l, art. 3, sol. I e 2.

(21) Cf. S. Boaventura, De Nativitate B. Mariae Virginis, sermo 5.

(22) S. Boaventura, De Assumptione B. Mariae Virginis, sermo l.

(23) S. Bernardino de Sena, In Assumptione B. M. Virginis, sermo 2.

(24) Idem, l. c.

(25) S. Roberto Belarmino, Conciones habitae Lovanii, concio 40: De Assumptione B. Mariae Virginis.

(26) Oeuvres de S. François de Sales, Sermon autographe pour la fête de l'Assomption.

(27) S. Afonso Maria de Ligório, As glórias de Maria, parte II, disc. 1.

(28) S. Pedro Canísio, De Maria Virgine.

(29) F. Suárez, In tertiam partem D. Thomae, q. 27, art. 2, disp. 3, sect. 5, n. 31.

(30) Bula Ineffabilis Deus, l.c, p. 599.

Texto copiado do site Nossa Senhora de Lourdes

Encíclica Humani Generis

Sobre algumas doutrinas errôneas

Encíclica Humani Generis

12 de Agosto de 1950

Aos Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários Locais em paz e comunhão com a Sé Apostólica: Sobre algumas falsas opiniões que ameaçam destruir os fundamentos da Doutrina Católica.

Veneráveis Irmãos, saúde e benção apostólica.

Introdução

1. As discórdias e os erros do gênero humano, em matéria de religião e de moral, foram sempre para todos os bons, e principalmente os fiéis e sinceros filhos da Igreja, causa de profundo pesar, mas são-no hoje de modo especial, quando vemos atacados por todas  as partes os princípios mesmos da civilização cristã.

2. Não é de estranhar que fora do redil de Jesus Cristo tenham sempre existido tais dissensões e erros. Pois, embora a razão humana, absolutamente falando, possa chegar com suas forças e lume naturais ao conhecimento verdadeiro e certo de um Deus pessoal, que governa e protege o mundo com sua Providência, bem como chegar ao conhecimento da lei natural impressa pelo Criador em nossas almas, contudo, de fato, muitos são os obstáculos que impedem a mesma razão de usar eficazmente e com resultado desta sua natural capacidade. As verdades que se referem a Deus e às relações entre os homens e Deus são verdades que transcendem completamente a ordem das coisas sensíveis e quando estas verdades atingem a vida prática e a regem, requerem sacrifício e abnegação. A inteligência humana, na aquisição dessas verdades, encontra dificuldades tanto por parte dos sentidos e da imaginação como por parte das más inclinações provenientes do pecado original. Donde vemos que os homens em tais questões facilmente procuram persuadir-se de que seja falso ou ao menos duvidoso aquilo que não desejam que seja verdadeiro.

3. Por tais motivos se deve dizer que a Revelação divina é moralmente necessária para que aquelas verdades que em matéria de religião e moral, mesmo na presente condição do gênero humano, não são de sua natureza inacessíveis à razão, possam ser por todos conhecidas com facilidade, com firme certeza, sem mistura alguma de erro. (Conc. Vaticano I, Const. De fide catholica, c.2, De revelatione).

4. Mais ainda, a mente humana pode até, às vezes, encontrar dificuldade em formar um juízo certo sobre a “credibilidade” da fé católica, apesar de serem tantos e tão admiráveis os sinais e argumentos externos, concedidos por Deus em seu favor, a tal ponto que ainda somente com o lume da razão natural se pode provar com certeza a origem divina da religião cristã. É que o homem, movido por preconceitos ou instigado pelas paixões e pela vontade pervertida, não só pode rejeitar a evidência dos sinais e argumentos externos que se lhe apresentam, como também resistir às celestes inspirações que Deus lhe infunde na alma.

5. Quem quer que lance os olhos sobre aqueles que vivem fora do redil de Cristo, facilmente poderá distinguir os principais caminhos por onde enveredaram muitos dos homens que se dizem cultos e doutos. Há-os que, sem a devida prudência e discernimento, admitem e propugnam como extensivo à origem de todos os seres o sistema evolucionista, que nem mesmo no campo das ciências naturais está indiscutivelmente demonstrado, e com ousadia temerária se entregam à hipótese monista e panteísta de um universo sujeito às leis de uma contínua evolução. Desta hipótese logo se aproveitam os fautores do comunismo para propugnar e exaltar com mais eficácia o seu “materialismo dialético” e arrancar das mentes toda a idéia de Deus.

6. As falsas afirmações de tal evolucionismo, no qual se repudia tudo o que é absoluto, firme e imutável, prepararam o caminho às aberrações de uma nova filosofia, que, fazendo concorrência ao idealismo, ao imanentismo e ao pragmatismo, tomou o nome de existencialismo, porque, rejeitando as essências imutáveis das coisas, só se preocupa com a existênciade cada indivíduo.

7.  A essas correntes se vem juntar um falso historicismo que se atém somente aos acontecimentos da vida humana e subverte os fundamentos de toda e qualquer verdade ou lei absoluta, seja no campo da filosofia, seja no dos dogmas do cristianismo.

8. Em meio de tão grande confusão de idéias algum conforto nos traz ver o bom número daqueles que, imbuídos outrora dos postulados do racionalismo, desejam agora voltar às fontes da verdade revelada por Deus e proclamam a palavra de Deus conservada na Sagrada Escritura como fundamento da ciência sagrada. Mas é ao mesmo tempo doloroso verificar que não poucos dentre esses mesmos, quanto mais firmemente aderem à palavra de Deus, tanto mais deprimem a capacidade da razão humana, e quanto mais de boa vontade exaltam a autoridade de Deus Revelador, com tanto maior acrimônia desprezam o Magistério da Igreja, instituído por Cristo Nosso Senhor para guardar e interpretar as verdades reveladas. Tal desprezo não só está em contradição aberta com as Sagradas Letras, mas até mesmo pela experiência se tem mostrado errado. Quanta vez os próprios dissidentes, que se separaram da verdadeira Igreja, são os primeiros a lamentar publicamente a confusão e discórdia que entre eles reina no campo dogmático, reconhecendo assim, embora a seu pesar, a necessidade de um Magistério vivo!

A Igreja Católica face aos erros modernos

1- O papel dos teólogos e dos filósofos

9. Pois bem, essas tendências que  mais ou menos se desviam do reto caminho da verdade, não podem ser ignoradas ou deixadas de lado pelos teólogos e filósofos católicos, aos quais incumbe a grave missão de defender as verdades divinas e humanas e difundi-las entre os homens. Mas ainda, é preciso que conheçam bem tais sistemas, já pela razão de que as doenças não se podem curar se não forem primeiro bem conhecidas, já porque nessas falsas teorias muitas vezes está latente alguma parcela de verdade, já finalmente porque esses mesmos erros incitam a inteligência a perscrutar e a examinar certas verdades filosóficas e religiosas com maior atenção e agudeza.

10. Se os nossos filósofos e teólogos procurassem somente colher de tais doutrinas, cautelosamente assim estudadas, esses frutos que acabamos de mencionar, não haveria suficiente motivo para uma intervenção do Magistério da Igreja. Mas, embora estejamos cientes que em geral os professores e estudiosos católicos se guardam de tais erros, consta-Nos outrossim que não falta também hoje, como nos tempos apostólicos, quem, aliciado mais do que convém pela novidades, ou temendo por ventura ser tido por ignorante das descobertas da ciência nesta época de progresso, procure subtrair-se à submissão devida ao Sagrado Magistério da Igreja, correndo o perigo de se afastar insensivelmente da mesma verdade revelada por Deus e arrastar consigo outros ao erro.

11. Há, além disso, outro perigo ainda maior, porquanto vai mais encoberto sob a aparência de virtude. São muitos os que, deplorando a discórdia a que chegou o gênero humano e a confusão de idéias que hoje reina, levados de um zelo imprudente, se sentem impelidos vigorosamente por um desejo ardente de destruir as barreiras que separam entre si a tantos homens retos e honestos. E abraçam, em conseqüência, um gênero de irenismo, que, pondo de lado as questões que dividem os homens, pretendem não só obter uma união de forças para repelir a avalanche avassaladora de ateísmo, mas chegam a querer conciliar as oposições que existem no próprio campo dogmático. E assim como em tempos passados houve quem perguntasse se a apologética tradicional da Igreja não era um obstáculo, mais que um auxílio, para ganhar almas a Cristo, assim hoje não falta quem chegue ao ponto de levantar a questão: se a teologia e os métodos que se usam com aprovação da autoridade eclesiástica no ensino hodierno, não devem  ser, não já aperfeiçoados, mas completamente reformados, para que o reino de Cristo possa ser propagado com mais eficácia no mundo inteiro, entre os homens de qualquer cultura e de qualquer opinião religiosa.

12. Se esses tais não tivessem em mira senão introduzir algumas inovações para adaptar com mais acerto o ensinamento eclesiástico e os seus métodos às condições e necessidades hodiernas, quase não haveria razão para temer; mas arrebatados desse imprudente irenismo, alguns chegam a julgar como óbices, para se restaurar a união fraterna, aquelas mesmas instituições que se baseiam nas leis e princípios promulgados pelo próprio Jesus Cristo, bem como quanto constitui a defesa e o sustentáculo da integridade da fé. Se isto se abate, tudo será unificado, sim, mas  nos escombros de uma ruína geral. 

13. Essas novas opiniões, nascidas quer de uma deplorável ânsia de novidades quer mesmo de louváveis intenções, nem sempre são propostas com a mesma intensidade, com a mesma clareza, ou com os mesmos termos. Nem sempre  os seus propugnadores estão em perfeito acordo entre si. O que hoje está sendo ensinado veladamente por alguns, com cautelas e distinções, amanhã será proposto publicamente e sem rebuços por outros mais audazes, com escândalo de muitos, especialmente de jovens sacerdotes, e com detrimento da autoridade eclesiástica. E se geralmente se usa mais cautela nos livros que se publicam, o mesmo assunto é tratado com mais liberdade em folhetos distribuídos em particular, em lições datilografadas, em reuniões. E não só entre os membros do clero secular e regular, nos seminários e institutos religiosos vão sendo divulgadas tais opiniões, mas até entre os leigos, especialmente entre os que se dedicam à educação e instrução da juventude.

2. Os perigos do relativismo dogmático

14. No que se refere à teologia, alguns pretendem reduzir, quanto podem, o significado do dogma e libertar este do modo de exprimir-se, já desde muito usado na Igreja, e dos conceitos filosóficos em vigor entre os doutores católicos, para voltar, na exposição da doutrina católica, às expressões da Sagrada Escritura e dos Santos Padres. Assim esperam eles que o dogma, despojado dos elementos que dizem extrínsecos à revelação divina, possa ser proveitosamente comparado com as opiniões dogmáticas daqueles que se separam da Igreja e deste modo se possa chegar pouco a pouco à assimilação mútua do dogma católico e das opiniões dos dissidentes. Além disso, reduzida a estes termos a doutrina católica, pensam eles que desembaraçam o caminho para, com a satisfação dada às necessidades do mundo hodierno, poder exprimir o dogma com as categorias da filosofia de nosso tempo, quer sejam do imanentismo, quer sejam do idealismo, quer sejam do existencialismo ou de qualquer outro sistema. E alguns mais audazes sustentam que isso se pode fazer e se deve fazer, porque os mistérios da fé, afirmam os tais, não se podem exprimir por meio de conceitos adequadamente verdadeiros, mas somente por meio de conceitos aproximativos e sempre mutáveis, através dos quais a verdade se manifesta, sim, mas ao mesmo tempo necessariamente se deforma. Daí que não crêem absurdo mas absolutamente necessário que a teologia, segundo as várias filosofias de que se sirva como de instrumentos no decurso dos tempos, substitua as noções antigas por outras novas e assim, de maneiras diversas, e até sob certos aspectos contrários, mas – como dizem – equivalentes, traduza em linguagem humana as mesmas verdades divinas. Acrescentam que a história dos dogmas consiste em apresentar as várias formas sucessivas de que se revestiu a verdade revelada, segundo as diversas doutrinas e opiniões que no volver dos séculos foram aparecendo.

15. É claro, do que dissemos, que essas tendências não somente levam ao relativismo dogmático, mas de fato já o contém. Relativismo esse que é por demais favorecido pelo desprezo que mostram para com a doutrina tradicional e para com os termos em que ele se exprime. Todos sabem que as expressões desses conceitos, usadas tanto no ensino das aulas como no mesmo Magistério da Igreja, podem ser melhoradas e aperfeiçoadas; é por outra parte bem sabido que a Igreja nem sempre usou constantemente determinadas expressões; é evidente também que a Igreja não pode estar ligada a um qualquer efêmero sistema filosófico; mas tais noções e tais expressões que com geral consenso foram através dos séculos encontrados e formuladas pelos doutores católicos para chegar a algum maior conhecimento e inteligência do dogma, sem dúvida que não se apóiam em um fundamento tão caduco. Apóiam-se, sim, em princípios e noções deduzidas de um verdadeiro conhecimento das coisas criadas; e na dedução de tais noções, a verdade, revelada como estrela, iluminou por meio da Igreja a inteligência humana. Portanto não é de maravilhar que algumas dessas noções tenham sido usadas em Concílios Ecumênicos, e que deles tenham recebido tal sanção que a ninguém é lícito afastar-se delas.

16. Por esses motivos, ter em pouco caso ou rejeitar ou privar do seu justo valor conceitos e expressões que foram encontradas e aperfeiçoadas para exprimir com exatidão as verdades da fé, por pessoas de inteligência e santidade nada vulgares, num trabalho muita vez plurissecular, sob  a vigilância do Magistério da Igreja, e não sem uma ilustração e direção do Espírito Santo, e querer agora substituí-las por noções hipotéticas e por certas expressões flutuantes e vagas da nova filosofia, que à semelhança da flor dos campos hoje verdeja e amanhã já secou, é por certo uma grandíssima imprudência. Seria reduzir o dogma à condição da cana agitada pelo vento. O desprezo dos termos e das noções usadas pelos teólogos escolásticos  por si mesmo conduz ao enfraquecimento da teologia denominada especulativa, que tais inovadores julgam, por se apoiar  em razões teológicas, desprovidas de verdadeira certeza.

3. O papel do Magistério da Igreja

17. Infelizmente esses amadores de novidades passam facilmente do desprezo da  teologia escolástica ao pouco caso e até ao desprezo do próprio Magistério da Igreja, que dá com sua autoridade tão notável aprovação a essa teologia. O Magistério Eclesiástico é apresentado por eles como um empecilho ao progresso e um estorvo para a ciência; ao mesmo tempo que é considerado por certos acatólicos como um freio já injusto para alguns teólogos mais cultos que procuram renovar a sua ciência. E embora este Sagrado Magistério deva ser para qualquer teólogo a norma próxima e universal de verdade em matéria de fé e de moral (pois Cristo Senhor Nosso lhe confiou todo o depósito da fé - Sagrada Escritura e tradição divina - para guardá-lo, defendê-lo, interpretá-lo), contudo por vezes é ignorado como se não existisse o dever que têm os fiéis de fugir também daqueles erros que em maior ou menor medida se aproximam da heresia, dever portanto de "observar as constituições e decretos com os quais essas falsas opiniões foram proscritas e proibidas  pela Santa Sé" (Código de Direito Can., cân. 1324; cf. Conc. Vaticano I, Const. De fide catholica, c.4, De fide et ratione, depois dos cânones). O que as Encíclicas dos Sumos Pontífices expõem sobre o caráter e a constituição da Igreja é por alguns intencional e habitualmente deixado de parte com o intuito de fazer prevalecer um conceito vago, que eles dizem terem tomado dos antigos Padres, especialmente Gregos. Os Sumos Pontífices, dizem tais propugnadores, não tencionam dirimir as questões disputadas entre teólogos; é portanto necessário voltar às fontes primitivas e com os escritos dos antigos se devem explicar as posteriores constituições e decretos do Magistério Eclesiástico.

18. Tais afirmações, feitas muito embora com elegância de estilo, estão cheias de falácia. É verdade que geralmente os Sumos Pontífices deixam livres os teólogos naquelas questões em que os melhores doutores se acham divididos entre várias posições, mas a história mostra como muitas questões que em certa época eram objeto de livre discussão, posteriormente já não o puderam ser.

19. Nem se deve crer que os ensinamentos das Encíclicas não exijam per se o assentimento, sob o pretexto de que os Pontífices não exercem nelas o poder de seu Supremo Magistério. Tais ensinamentos fazem parte do magistério ordinário, para o qual também valem as palavras: "Quem vos ouve, a mim ouve" (Lc 10,16), além do que, quanto vem proposto e inculcado nas Encíclicas pertence já, o mais das vezes, por outros títulos, ao patrimônio da doutrina católica. Ademais, se os Sumos Pontífices no exercício do seu magistério emitem de caso pensado uma decisão em matéria até então controvertida, é evidente que tal questão, segundo a mente e a vontade dos mesmos Pontífices, não pode já constituir objeto de livre discussão entre os teólogos.

20. Também é verdade que os teólogos devem voltar sempre às fontes da revelação divina do Magistério vivo "se encontrem já explícita ou implicitamente" (Pius IX, Inter gravissimas, 28 Oct. 1870, Acta, vol. I, p. 260) na Sagrada Escritura ou na divina Tradição. Acresce que ambas as fontes da Revelação contém tais e tantos tesouros de verdade que se não poderão jamais, de fato, exaurir: As ciências sagradas com o estudo das fontes da revelação sempre  rejuvenescem; enquanto, pelo contrário, a especulação que negligencia um estudo mais profundo no depósito sagrado, consta pela experiência que se torna estéril. Mas por isso mesmo a teologia, mesmo a chamada  positiva, não pode ser equiparada a uma ciência meramente histórica. Juntamente com as sagradas fontes, Deus deu à sua Igreja um magistério  vivo para iluminar e pôr em relevo aquilo que no depósito da fé não se acha senão obscuramente e como que implícito. Este depósito, não foi a cada fiel nem mesmo aos teólogos, que o Divino Redentor o entregou para que o interpretassem autenticamente, - mas somente ao Magistério da Igreja. Se a Igreja desempenha este seu múnus, como o fez inúmeras vezes no decurso dos séculos, já com o extraordinário, é claro que é completamente falso o método de explicar as coisas claras pela obscuras: muito ao invés, o contrário é o que se impõe a todos. Pelo que o Nosso Predecessor de imortal memória, Pio IX, ao ensinar que é nobilíssima incumbência da teologia mostrar como a doutrina definida pela Igreja esteja contida nas sagradas fontes, acrescentou estas palavras "naquele mesmo sentido no qual foi definida pela Igreja".

4. A autoridade da Sagrada Escritura

21. Voltando, pois, às novas teorias, a que acima aludimos, por alguns vão sendo proferidas e ensinadas certas doutrinas que põem em perigo a autoridade da Sagrada Escritura. Alguns permitem-se a ousadia de deturpar o sentido da definição do Concílio Vaticano, a respeito do doutrina que diz ser Deus o autor da Sagrada Escritura e renovam a opinião, já várias vezes condenada, de que a imunidade de erro que compete às Sagradas Letras se estende somente ao que se refere a Deus e aos assuntos religiosos e morais. Mais; falam com pouco acerto de um sentido humano dos Livros Sagrados, sob a qual estaria latente um sentido divino, único que têm como infalível. Na interpretação da Sagrada Escritura não querem ter em conta a analogia da fé e a tradição da Igreja e sustentam que a doutrina dos Santos Padres e do Sagrado Magistério se deve regular pela Sagrada Escritura explicada pelos exegetas sob aspecto meramente humano, em vez de ser a Sagrada Escritura que deva ser exposta segundo a mente da Igreja constituída por Cristo Nosso Senhor guarda e intérprete de todo o depósito da verdade revelada.

22. Além disso, o sentido literal da Sagrada Escritura e sua exposição, elaborada, sob a vigilância da Igreja, por tantos e tão grandes exegetas, deve ceder o passo, segundo caprichosamente afirmam, à nova exegese, que chamam espiritual e simbólica, e pela qual a Sagrada Bíblia do Antigo Testamento, que, segundo eles, hoje na Igreja está como fonte selada, será finalmente aberta a todos. Desta forma, asseveram, desvanecer-se-ão todas as dificuldades, que não podem causar embaraço senão àqueles que se atêm ao sentido literal da Escritura.

23. Todos vêem como todas estas doutrinas se afastam dos princípios e das normas hermenêuticas justamente estabelecidas pelos Nossos Predecessores de feliz memória, Leão XIII na Encíclica Providentissimus e Bento XV na Encíclica Spiritus Paraclitus, como também por Nós na Encíclica Divino Afflante Spiritu.

 

II - Penetração dos erros modernos

1. No terreno da teologia

24. Não deve causar maravilha que tais inovações tenham produzido seus frutos envenenados em quase todas as partes da teologia. Põe-se em dúvida que a razão humana sem a ajuda da Revelação divina e da graça possa demonstrar, com argumentos  tirados das criaturas, a existência de um Deus pessoal: nega-se que o mundo tenha tido início e afirma-se que a criação do mundo é necessária, porque procede da necessária liberalidade do amor divino; como também se afirma que Deus não têm presciência eterna e infalível das ações livres do homem; opiniões todas contrárias às declarações do Concílio Vaticano (Cf. Conc. Vaticano I, Const. De fide catholica, c. I, De Deo rerum omnium creatore)

25. É posto em discussão por alguns se os anjos são pessoas e se existe uma diferença essencial entre matéria e espírito. Outros desnaturam o conceito da gratuidade da ordem sobrenatural, sustentando que Deus não pode criar seres inteligentes sem ordená-los e chamá-los à visão beatífica. Nem basta ainda, pois deixando de lado as definições do Concílio de Trento, chegam a destruir o verdadeiro conceito de pecado original e juntamente o de pecado, em geral, como ofensa de Deus, bem assim o conceito da satisfação que Jesus Cristo deu por nós. Nem falta quem sustente que a doutrina da transubstanciação, porquanto fundada num conceito de substância já antiquado, deva ser corrigida, de modo que se reduza a presença real de Cristo na Eucaristia a um simbolismo, pelo qual as espécies consagradas não seriam outra coisa senão sinais eficazes de uma presença espiritual  de Cristo e da sua íntima união, no Corpo místico, com os membros fiéis.

26. Alguns não se julgam obrigados a professar a doutrina que expusemos numa das Nossas Encíclicas, fundada nas fontes da Revelação, segundo a qual o Corpo Místico de Cristo e a Igreja Católica Apostólica Romana são uma só e mesma coisa (Cf. Enc. Mystici Corporis Christi,  A.A. S. vol. XXXV, p. 193 s.). Alguns reduzem a uma fórmula vã a necessidade de pertencer à verdadeira Igreja para obter a salvação eterna! Outros, finalmente, não admitem o caráter racional dos sinais de credibilidade da fé cristã.

27. É sabido que esses erros e outros semelhantes se andam espalhando entre alguns de Nossos filhos, levados a engano por um zelo imprudente ou por uma ciência de falso cunho, e a esses filhos somos obrigados a repetir, com o coração dolorido, verdades conhecidíssimas e erros patentes, indicando-lhes com preocupação os perigos de tais erros.

2. No terreno da filosofia

28. Todos sabem quanto apreço dá a Igreja à razão humana no que concerne à sua capacidade de demonstrar com certeza a existência de um Deus pessoal, de provar iniludìvelmente pelos sinais divinos  os fundamentos da própria fé cristã, de exprimir com justeza a lei natural  que o Criador imprimiu na alma humana, de conseguir por fim uma inteligência limitada mas utilíssima dos mistérios (Cf.Conc. Vaticano I). Esta atribuição podê-la-á a razão desempenhar convenientemente e com segurança, se estiver nutrida daquela sã filosofia que constitui como que um patrimônio de família, herdado das precedentes gerações cristãs e que reveste uma autoridade superior, pois que o mesmo Magistério da Igreja confrontou com a própria verdade revelada os seus princípios e as suas principais asserções, precisadas e fixadas lentamente através dos séculos por homens de inegável talento. Esta mesma filosofia, confirmada e comumente admitida pela Igreja, defende o genuíno valor do conhecimento humano, os indestrutíveis princípios da metafísica - a saber: de razão suficiente, de causalidade, de finalidade - e propugna a capacidade da inteligência de atingir a verdade certa e imutável.

Devem-se respeitar as aquisições definitivas da filosofia

29. Nesta filosofia há certamente muitas coisas que não dizem respeito à fé e à moral, nem direta nem indiretamente e por isso a Igreja as deixa à livre discussão dos competentes na matéria; mas não existe a mesma liberdade com respeito a muitas outras questões, especialmente com respeito aos princípios e principais asserções de que acima falamos. Pode-se dar à filosofia, também nessas  questões essenciais, uma veste mais conveniente e mais rica; poder-se-á reforçar a mesma filosofia com expressões mais eficazes, despojá-la de certos meios escolásticos menos adequados, enriquecê-la ainda - com prudência porém - de certos elementos que são frutos do progressivo trabalho da inteligência humana. Não se deverá, porém, jamais subvertê-la com falsos princípios, nem estimá-la  só como um grandioso monumento de valor puramente arqueológico. Pois a verdade e toda a sua manifestação filosófica não pode estar sujeita a mudanças cotidianas, especialmente tratando-se dos princípios evidentemente e diretamente conhecidos como tais pela razão humana ou daquelas asserções, referenciadas já pela sabedoria dos séculos, já pela harmonia com os dados da Revelação divina. Qualquer  verdade que a razão humana por meio de uma pesquisa sincera for capaz de descobrir, não poderá jamais estar em contraste com uma verdade já anteriormente demonstrada; porque Deus, suma Verdade, criou e rege o intelecto humano, não para que às verdades já adquiridas ele contraponha cada dia outras novas, mas para que, removendo os erros que eventualmente se forem introduzindo, acrescente verdade a verdade, na mesma ordem e com a mesma harmonia, onde  a inteligência humana vai haurir a verdade. Por isso o cristão, seja filósofo ou teólogo, não abraça sem mais, com precipitação e leviandade, todas as novidades que aparecem, mas as deve examinar com a máxima diligência e as deve ponderar no seu justo peso, para não perder a verdade já adquirida ou corrompê-la, certamente com perigo e dano para a sua fé.

Devem-se respeitar o método e a doutrina de São Tomás de Aquino

30. Se se considera bem quanto acima está exposto, facilmente aparecerá claro o motivo por que a Igreja exige que os futuros sacerdotes sejam instruídos nas ciências filosóficas "segundo o método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico (Direito Canônico, cân. 1366, 2) já que, como o sabemos pela experiência de vários séculos, o método do grande Aquino se distingue por singular superioridade tanto no ensino como na investigação; a sua doutrina harmoniza-se esplendidamente com a Revelação divina e é eficasíssima tanto para pôr a salvo os fundamentos da fé, como para colher com utilidade e segurança os frutos de um sadio progresso (A.  A. S. vol. XXXVIII, 1946, p. 387).

31. É deveras para deplorar que hoje a filosofia, confirmada e admitida pela Igreja, seja objeto de desprezo da parte de alguns, a ponto de, com imprudência, declará-la antiquada na forma racionalista pelo processo de pensamento. Vão espalhando que esta nossa filosofia defende erroneamente a opinião de que possa existir uma metafísica verdadeira de modo absoluto; quando pelo contrário eles sustentam que as verdades, especialmente as verdades transcendentes, não podem ser expressadas mais convenientemente que por meio de doutrinas divergentes que se completem entre si, ainda em certo modo entre si opostas. Daí que a filosofia escolástica com a sua clara exposição e solução das questões, com a sua exata determinação dos conceitos e suas claras distinções, pode ser útil - concedem os tais - como preparação para o estudo da teoria escolástica muito bem condizente com a mentalidade dos homens medievais; mas não pode dar-nos - acrescentam - um método e uma orientação filosófica que corresponda às necessidades da cultura moderna. Objetam demais que a filosofia perene não é senão a filosofia das essências imutáveis ao passo que uma mentalidade moderna se deve interessar pela existência de cada indivíduo e da vida sempre em devir. E enquanto de uma parte desprezam esta filosofia, de outra parte exaltam os demais sistemas, antigos e recentes, de povos orientais e de povos ocidentais, de modo que parece quererem insinuar que todas as filosofias ou teorias, com o retoque - se necessário - de alguma correção ou de algum complemento, se podem conciliar com o dogma católico. Mas nenhum católico pode pôr em dúvida quanto isto seja falso, especialmente tratando-se de sistemas como o imanentismo, o idealismo, o materialismo, seja histórico seja dialético, ou ainda como o existencialismo, quando professa o ateísmo ou quando nega o valor do raciocínio no campo da metafísica.

3. No terreno didático

32. Finalmente, à filosofia de nossas aulas levantam esta acusação: que ela no processo do conhecimento se ocupa somente da inteligência e faz caso omisso da função da vontade e do sentimento. Isto não corresponde à verdade: a filosofia cristã não negou nunca a utilidade e eficácia que provém das boas disposições da alma toda, para conhecer e abraçar as verdades religiosas e morais; pelo contrário, ela sempre ensinou que a falta de tais disposições pode ser a causa pela qual a inteligência, sob o influxo das paixões e da vontade transviada, se obscureça a tal ponto que já não consiga ver a verdade. Mais ainda, o Doutor Comum é de parecer que a inteligência pode em algum modo perceber os bens superiores da ordem moral, seja natural, seja sobrenatural, enquanto experimenta no seu íntimo uma certa co-naturalidade, seja na ordem natural seja como fruto da graça, com os ditos bens (Cf. S. Tomás, Summa Theol. II-II, q. I, a. 4, ad 3; e q. 45, a. 2, in c.); e é manifesto quanto este conhecimento, embora subconsciente, ajude a razão nas suas investigações. Mas uma coisa é reconhecer o poder que têm a vontade e as disposições da alma para ajudar a razão a atingir um conhecimento mais certo e mais firme das verdades morais, outra coisa é quanto vão espalhando esses inovadores, a saber: que a vontade e o sentimento têm um certo poder intuitivo e que, não podendo o homem discernir com certeza aquilo que deve abraçar como verdadeiro, se serve da vontade, determinando por ela a sua livre escolha entre duas opiniões opostas, confundindo assim indevidamente conhecimento e ato de vontade.

33. Não é de admirar que com essas novas teorias corram perigo as duas ciências filosóficas, por sua mesma natureza intimamente relacionadas com os ensinamentos da fé: a teodicéia e a ética. Pretendem as novas teorias que o papel de ambas não é o de demonstrar certas verdades sobre Deus ou outro ser transcendente, mas o de mostrar como sejam coerentes com a necessidade da vida as verdades que a fé ensina sobre Deus, Ente pessoal, e sobre os seus mandamentos, e que devem ser admitidas por todos, para evitarem o desespero e alcançarem a salvação eterna. Todas essas opiniões e teorias estão em franca oposição com os documentos emanados pelos Nossos Predecessores Leão XIII e Pio X, e com os decretos do Concílio Vaticano I. Seria supérfluo deplorar essas várias aberrações, se todos, ainda mesmo no campo das doutrinas filosóficas, se mostrassem dóceis e reverentes, como de dever, para com o Magistério da Igreja, a qual por instituição divina recebeu a missão não só de guardar e interpretar o depósito da fé, mas ainda de vigiar o campo das disciplinas filosóficas, a fim de que o dogma católico não receba de opiniões menos sensatas nenhum dano.

 

III - A Fé e as ciências positivas

34. Resta agora falar daquelas questões, que, ainda que pertençam às ciências positivas, são mais ou menos relacionadas com as verdades reveladas da fé cristã. Não poucos são os que pedem insistentemente que a religião católica tenha em máxima conta estas ciências, o que é sem dúvida coisa louvável, quando se trata da fatos realmente demonstrados. Mas é preciso ser muito cauto quando se trata de puras hipóteses, embora de algum modo fundadas cientificamente, e nas quais se toca a doutrina contida na S. Escritura ou na tradição. E se tais hipóteses vão direta ou indiretamente contra a doutrina revelada, então de modo nenhum se podem admitir.

1. Biologia e Antropologia

35. Por essas razões o Magistério da Igreja não proíbe que, em conformidade com a atual estado das ciências e da teologia, sejam objeto de pesquisas e de discussões, por parte dos competentes em ambos os campos, a doutrina do evolucionismo, enquanto ela investiga a origem do corpo humano, que proviria de matéria orgânica preexistente (a fé católica nos obriga a professar que as almas são criadas imediatamente por Deus). Isto, porém, deve ser feito de tal maneira, que as razões das duas opiniões, isto é, da que é favorável e da que é contrária ao evolucionismo, sejam ponderadas e julgadas com a necessária seriedade, moderação, justa medida, e contanto que todos estejam dispostos a se sujeitares ao juízo da Igreja, à qual  Cristo confiou o oficio de interpretar autenticamente a S. Escritura e de defender os dogmas da fé (Cf. Alocução Pontifícia aos membros da Academia das Ciências. 30 nov. 1941 A. A. S. vol. XXXIII p. 506). Mas alguns ultrapassam temerariamente esta liberdade de discussão procedendo como se estivesse já demonstrado com certeza plena  que o corpo humano se tenha originado de matéria orgânica preexistente, argumentando com certos indícios achados até agora e com raciocínios baseados sobre tais indícios; e  isto como se nas fontes da revelação não existisse nada que exija neste assunto a maior moderação e cautela.

36. Quanto, porém, à outra hipótese, isto é, ao poligenismo, os filhos da Igreja não gozam, de modo nenhum, da mesma liberdade, pois os fiéis não podem abraçar uma opinião cujos fautores ensinam que depois de Adão existiriam nesta terra verdadeiros homens que não tiveram origem, por via de geração natural, do mesmo Adão, progenitor de todos os homens, ou então que Adão representa um conjunto de muitos progenitores. Ora, não se vê de modo algum como estas afirmações se possam conciliar com os que as fontes da revelação e os atos do Magistério da Igreja nos ensinam acerca do pecado original, que provém de um pecado verdadeiro cometido individualmente por Adão e que, transmitido a todos por geração, é inerente a cada um como próprio (Cf. Rom 5, 12-19; Conc. Triden., sess. V, cân. 1-4).

2. Ciências Históricas

37. Como nas ciências biológicas e antropológicas, também nas históricas há quem ousadamente ultrapasse os limites e as cautelas estabelecidas pela Igreja. De modo particular se deve deplorar certo sistema de interpretação demasiado livre dos livros históricos do Antigo Testamento; e os fautores desse sistema, para defender suas razões, apelam infundadamente para a carta não há muito enviada ao Arcebispo de Paris pela Pontifícia Comissão Bíblica (16 de janeiro de 1948: A. A S., vol. 40 pp. 45-48). Esta carta com efeito, faz notar que os 11 primeiros capítulos do Gênese, ainda que propriamente falando não concordem com o método histórico usado pelos melhores autores gregos e latinos e pelos bons historiadores do nosso tempo, pertencem contudo ao gênero histórico em verdadeiro sentido, mas que deve ser ainda mais estudado e determinado pelos exegetas: os mesmos capítulos, nota ainda a citada carta, com um modo de falar simples e figurado, adaptado à mentalidade de um povo de cultura elementar, ensinam as principais verdades que são fundamentais para a salvação eterna e contém além disso uma narração popular sobre a origem do gênero humano e do povo eleito.

38. Se alguma coisa os antigos hagiógrafos tomaram de outras narrações populares (o que pode ser concedido), é preciso não esquecer que eles o fizeram com o auxílio da inspiração divina, que na escolha e na valorização dos documentos os premunia contra todo e qualquer erro. Portanto as narrações populares inseridas na S. Escritura não podem de maneira alguma ser postas no mesmo plano das mitologias ou gêneros semelhantes, as quais são fruto mais de uma fantasia exaltada do que amor à verdade e à simplicidade. Este amor à verdade e esta nativa simplicidade ressalta de tal modo nos Livros Inspirados, inclusive nos do Antigo Testamento, que colocam os nossos hagiógrafos indiscutivelmente acima dos antigos escritores profanos.

Conclusão: Missão dos superiores eclesiásticos e dos professores das ciências religiosas

39. Sabemos em verdade que a maioria dos doutores católicos, de cujos valiosos estudos os Ateneus, Seminários, Colégios dos religiosos, tanto proveito recebem, estão longe de tais erros que aberta ou disfarçadamente vão sendo hoje divulgados, seja por mania de novidade, seja por desacertado zelo apostólico. Mas sabemos também que essas falsas opiniões poderão ilaquear os menos cautos. Preferimos por isso atalhar esses males logo de início, a ter que subministrar o remédio quando a doença já estiver adiantada.

40. Depois de madura reflexão e consideração, para não faltar ao Nosso sagrado dever, ordenamos aos Bispos e aos Superiores das Ordens e Congregações religiosas, impondo-lhes gravíssima obrigação de consciência, que cuidem diligentissimamente de que nem nas aulas nem em reuniões e conferências, nem em escritos, de qualquer gênero, sejam propaladas as falsas opiniões de qualquer maneira ensinadas aos seminaristas ou aos fiéis.

41. Os Professores dos Estabelecimentos Eclesiásticos saibam que não poderão exercer, com consciência tranqüila, o ofício de ensinar que lhes foi confiado, se não aceitarem religiosamente as normas que aqui estabelecemos e se as não observarem exatamente no ensino de suas matérias. Este acatamento e obediência que nos seu assíduo trabalho devem professar para com o Magistério da Igreja instilem-no também na mente e na alma dos seus alunos.

42. Procurem com todo o empenho e entusiasmo concorrer para o progresso das ciências que ensinam; mas abstenham-se também de ultrapassar os limites que, para a defesa da fé e da doutrina católica, lhes demarcamos. Às novas questões que o progresso moderno suscitou dêem a contribuição de suas diligentíssimas pesquisas, mas com conveniente prudência e cautela. Finalmente não julguem, levados por um falso irenismo, que se possa obter o suspirado retorno dos dissidentes e dos errantes ao seio da Igreja se não lhes ensina, sinceramente, sem nenhuma corrupção nem nenhuma diminuição, toda a verdade professada pela Igreja. 

43. Fundados nesta esperança, que será aumentada pela vossa solicitude pastoral, como auspício dos celestes dons e sinal da Nossa paterna Benevolência damos de todo o coração e cada um de Vós, bem como ao vosso clero e aos vossos fiéis, a Bênção Apostólica.

Dado em Roma, junto à Basílica de S. Pedro, aos 12 do mês de agosto do ano de 1950, duodécimo do Nosso Pontificado.

PIO PAPA XII

 

Alocução Davanti a questa

Alocução de

PIO XII

Sobre a Educação da Infância

 

Os pais e a educação dos filhos

1. Diante desta magnífica reunião, que reagrupa hoje em torno de Nós em tão grande número as mães de família, juntamente com as Religiosas, as mestras, as delegadas das crianças da ação Católica Italiana, as apóstolas da infância, as monitoras e assistentes das colônias, o Nosso olhar e o Nosso coração transpõem os limiares desta sala e volvem-se para os confins da Itália e do mundo, Abraçando em Nosso abraço de Pai comum todas as queridas crianças, flores da humanidade, alegria de suas mães (Sl 112, 9); enquanto o Nosso pensamento comovido recorda o imortal Pontífice Pio XI que, na Encíclica Divini illius Magistri de 3 de Dezembro de 1929, tão altamente tratou da educação cristã da juventude. Sobre este grave argumento ele, depois de ter sabiamente determinado a parte que compete à Igreja, à família, e ao Estado, notava com dor como tantas vezes os pais pouco ou nada se preparam para cumprir a sua missão de educadores; mas, não tendo podido naquele claro e vasto documento tocar de propósito também nos pontos que se referem à educação familiar, suplicava em nome de Cristo aos Pastores de almas que se servissem de todos os meios, nas homilias e no catecismo, de viva voz e por meio de folhas escritas largamente divulgadas, para que os pais cristãos aprendam bem, e não só genericamente, mas em particular, os seus deveres sobre a educação religiosa, moral e civil dos filhos, e os métodos mais adequados – além do exemplo da sua vida – para alcançar eficazmente tal fim (Cf. AAS, vol. XXII, 1930, p. 73-74. – DP nº 7).

2. Através dos Pastores de almas o grande Pontífice dirigia a sua exortação aos progenitores, pais e mães conjuntamente; mas Nós julgamos também corresponder àquele desejo do Nosso venerando Predecessor, reservando esta especial Audiência para as mães de família e outras educadoras das crianças. Se a Nossa palavra se dirige a todos, mesmo quando falamos aos novos esposos, é para Nós doce nesta ocasião propícia dirigirmo-Nos designadamente a vós, filhas diletas, porque nas mães de família – juntamente com as piedosas e experimentadas pessoas que as auxiliam – Nós vemos as primeiras e mais íntimas educadoras das almas das crianças que devem crescer na piedade e na virtude.

3. Não nos deteremos aqui a recordar a grandeza e a necessidade desta obra de educação no lar doméstico nem a estrita obrigação que a mãe tem de se lhe não subtrair, de a não deixar a meio, de se não lhe dedicar negligentemente. Falando às Nossas queridas filhas da Ação Católica, Nós bem sabemos que naquela obrigação elas vêem o primeiro dos seus deveres de mães cristãs e uma missão em que ninguém poderia plenamente substituí-las. Mas não basta ter a consciência de um dever e vontade de o cumprir: é preciso, além disso, pôr-se em condições de o cumprir bem.

Necessidade de preparação séria para a obra da educação

4. Ora – vede a coisa estranha que Pio XI também lamentava na sua Encíclica – enquanto não passaria pela cabeça de ninguém fazer-se de repente, sem tirocínio nem preparação, operário mecânico ou engenheiro, médico ou advogado, todos os dias não poucos rapazes e moças desposam-se e unem-se sem nem sequer por um instante ter pensado na preparação para os árduos deveres que os esperam na educação dos filhos. E contudo, se S. Gregório não duvidou chamar a todo o governo das almas ars artium, a arte das artes (“Regul. Pastor.”, l. I, c. I – Migne PL, t. 77, col.14), é certamente arte difícil e laboriosa a de plasmar bem as almas das crianças; almas tenras, fáceis em deformar-se por impressões imprudentes ou por falsos estímulos, almas das mais difíceis e delicadas de se guiarem, nas quais muitas vezes, mais que na cera, uma influência funesta ou um descuido culpável bastam para lhes imprimir vestígios indeléveis e malignos. Felizes aquelas crianças que encontram na mãe junto do berço um segundo anjo da guarda para a inspiração e o caminho do bem! Enquanto, por isso, Nos congratulamos convosco por tudo o que já tendes feito, não poderemos, senão com novo e mais quente entusiasmo, animar-vos a desenvolver cada vez mais as belas instituições que, como a Semana da Mãe, se esforçam eficazmente por formar em toda a ordem e classe social educadoras que sintam a altura da sua missão, prudentes no espírito e na conduta perante o mal, seguras e solícitas para o bem. Em tal sentimento de mulher e de mãe está toda a dignidade e a reverência da fiel companheira do homem, a qual, como coluna, é o centro, o sustentáculo e o farol do lar doméstico; pelo que a sua luz se torna exemplo e modelo numa paróquia e irradia daí até as reuniões femininas que por sua vez se iluminam com ela.

Ação educadora da mãe durante a puerícia

5. E uma particular e oportuna luz difunde a vossa União de Ação Católica mediante as organizações do Apostolado do Berço e da Mater Parvulorum, com as quais tomais a peito formar e auxiliar as jovens esposas já antes do nascimento de seus filhos e depois durante a primeira infância. À semelhança dos anjos, vós vos tornais guardas da mãe e da criatura que ela traz no seio (Cfr. S. Tomás, I p., q. 113, a. 5, ad 3.); e, quando nasce a criancinha, vos debruçais sobre o berço, e assistis à mãe, que com o seio e os sorrisos alimenta no corpo e na alma um anjo do céu. À mãe foi dada por Deus a missão sagrada e dolorosa, mas também fonte de puríssima alegria, da maternidade (Jo 16, 21), e à mãe é, mais que a outrem, confiada a educação primeira da criança, nos primeiros meses e anos. Não falaremos de ocultas heranças transmitidas pelos pais aos filhos, da influência tão importante na futura fisionomia do seu caráter; herança que por vezes acusa a vida desregrada dos pais, tão gravemente responsáveis por tornar com o seu sangue talvez bem difícil aos seus filhos uma vida verdadeiramente cristã. Ó pais e mães, a quem a fé de Cristo santificou o mútuo amor, preparai, já antes do nascimento do filho, o candor da atmosfera familiar, em que os seus olhos e a sua alma se abrirão à luz e à vida; atmosfera que deixará o bom odor de Cristo em todos os passos do seu progresso moral.

6. Vós, ó mães, que, porque sois sensíveis, sois também mais ternamente amadas, durante a infância dos vossos filhos devereis segui-los a toda hora e instante com o vosso olhar vigilante, e velar pelo seu crescimento e pela saúde de seu pequenino corpo, porque é carne da vossa carne e fruto das vossas entranhas. Pensai que aquelas crianças, adotadas no batismo como filhos de Deus, são as almas prediletas de Cristo, cujos anjos vêem sempre a face do Pai celeste (Mt 18, 10). Também vós no guardá-los, no fortalecê-los, no educá-los, deveis ser outros anjos, que no vosso zelo e vigilância olhais sempre para o céu. Desde o berço deveis iniciar a educação não só corpórea mas também espiritual; porque se os não educais vós, eles mesmos educar-se-ão a si, bem ou mal. Recordai que não poucos traços, mesmos morais, que vedes no adolescente e no homem adulto, têm realmente origem nas formas e nas circunstâncias do primeiro crescimento físico na infância: hábitos puramente orgânicos contraídos em pequenos mais tarde tornar-se-ão talvez duro obstáculo para a vida espiritual da alma. Vós fareis, portanto, tudo por que os cuidados tidos com os vossos filhos estejam de acordo com as exigências da higiene perfeita, de forma a preparar neles e a fortalecer, para o tempo em que lhes alvorecer o uso da razão, faculdades corpóreas e órgãos sãos, robustos, sem desvios de tendências; eis por que muito é de desejar que, salvo o caso de impossibilidade, a mãe amamente ela própria o filho do seu seio. Quem pode descobrir as misteriosas influências que no crescimento daquela criança exerce a ama de quem depende inteiramente no seu desenvolvimento?

7. Nunca tendes observado aqueles olhinhos abertos, perscrutadores, irrequietos, que correm mil objetos fixando-se sobre este ou sobre aquele, que seguem um movimento ou um gesto, que já revelam alegria ou tristeza, cólera e teimosia e indícios de paixõezinhas que se aninham no coração humano, antes ainda que os pequeninos lábios tenham aprendido a articular uma palavra? Não vos admireis. Não se nasce – como ensinaram certas escolas filosóficas – com as idéias de uma ciência inata nem com os sonhos de um passado já vivido. A mente de uma criança é página em que nada vem escrito do seio da mãe: escreverão aí as imagens e as idéias das coisas, no meio das quais venha a encontrar-se hora a hora, desde o berço ao túmulo, os seus olhos e os outros sentidos externos e internos, que durante a vida lhe transmitem a vida do mundo. Por isso um irresistível instinto de verdade e de bem arrasta “l’anima semplicetta che sa nulla” (Dante, Purg. 16, 88) para as coisas sensíveis; e toda esta sensibilidade, todas estas sensações infantis, por cuja via se vêm lentamente revelando e despertando a inteligência e a vontade, têm necessidade de educação, de ensinamento, de vigilante direção, indispensável, a fim de que não fique comprometido ou deformado o despertar normal e a reta orientação de tão nobres faculdades espirituais. Desde então a criança, sob um olhar amoroso, sob uma palavra de direção, deverá aprender a não ceder a todas as suas impressões, a distinguir com o alvorecer da razão e a dominar o vaivém das sensações, a iniciar, numa palavra, sob a direção e o conselho materno, o caminho e a obra da educação.

8. Estudai a criança na idade tenra. Se a conhecerdes bem, educá-la-eis bem; não tomareis a sua natureza ao avesso, ao contrário; aprendereis a compreendê-la, a ceder não fora de tempo: nem todos têm boa índole os filhos dos homens!

Educação da inteligência

9. Educai a inteligência dos vossos filhos. Não lhes deis falsas idéias ou falsas razões das coisas; não respondais às suas perguntas, quaisquer que sejam, com gracejos ou com afirmações não verdadeiras, a que a sua mente raras vezes se sujeita; mas aproveitai-as para dirigir e amparar, com paciência e amor, a sua inteligência, a qual não anseia senão por abrir-se à posse da verdade e aprender a conquistá-la com os passos ingênuos do primeiro raciocinar e refletir. Quem jamais poderá dizer o que tantas magníficas inteligências humanas devem a estas longas e confiantes perguntas e respostas da puerícia, dialogadas no lar doméstico?

Educação do caráter

10. Educai o caráter dos vossos filhos; atenuai-lhe ou corrigi-lhe os defeitos, acrescentai-lhe e cultivai-lhe as boas qualidades, e coordenai-lhas com aquela firmeza que prepara e denuncia a fortaleza dos propósitos no curso da vida. As crianças, enquanto crescem, sentindo acima de si, à medida que começam a pensar e a querer, a vontade paterna e materna sã, isenta de violências e de cólera, constante e forte, não inclinada a fraquezas ou incoerências, aprenderão com o tempo a ver nela o intérprete de vontade mais alta, a de Deus, e desta guisa hão de inserir e enraizar na alma os primeiros e poderosos hábitos morais que formam e sustentam o caráter, pronto a dominar-se nas mais diversas dificuldades e contrariedades, intrépido para não recuar nem diante da luta nem em face do sacrifício, penetrado de um profundo sentimento do dever cristão.

Educação do coração

11. Educai o coração. Que destinos, que alterações, que perigos tantas vezes preparam nos corações das crianças as complacentes admirações e elogios, as solicitudes imprudentes, as adocicadas condescendências de pais cegos por um mal compreendido amor, que habituam aqueles pequeninos e volúveis corações a ver tudo mover-se e gravitar em torno de si, dobrar-se às suas vontades e caprichos, e assim lançam neles as raízes de egoísmo desenfreado de que os próprios pais serão mais tarde as primeiras vítimas! Castigo, não menos freqüente que justo, daqueles cálculos egoístas, com que se recusa ao filho único a alegria de pequeninos irmãos, os quais, participando com ele no amor materno, o teriam desviado de pensar só em si. Quantas íntimas e poderosas capacidades de afeto, de bondade e de dedicação dormem no coração das crianças! Vós, ó mães, as despertareis, as cultivareis, as dirigireis, as elevareis para quem deve santificá-las, para Jesus, para Maria: a Mãe celeste abrirá aquele coração à piedade, ensinar-lhe-á com a oração a oferecer ao divino Amigo dos pequeninos os seus cândidos sacrifícios e as suas inocentes vitórias, a sentir também compaixão pelos pobres e miseráveis. Ó feliz primavera da infância sem procelas nem ventos!

Educação da vontade na adolescência

12. Virá porém o dia em que este coração de criança sentirá despertar em si novos impulsos, novas inclinações que perturbam o céu formoso da primeira idade. Nessa provação ó mães, recordai que educar o coração é educar a vontade contra as seduções do mal e as insídias das paixões: naquela passagem da inconsciente pureza da infância para a pureza consciente e vitoriosa da adolescência o vosso ofício será capital. Pertence a vós preparar os vossos filhos e as vossas filhas para atravessar resolutos, como quem passa entre serpentes, aquele período de crise e de transformação física sem perder nada da alegria da inocência, mas conservando aquele natural e particular instinto do pudor, com que a Providência quer cingida a sua fronte como freio das paixões muito fáceis em transviar-se. Aquele sentimento do pudor, suave irmão do sentimento religioso, na sua espontânea vergonha, em que hoje pouco se pensa, vós evitareis que se perca nos vestidos, no adorno, na familiaridade pouco decorosa, em espetáculos e representações imorais, vós torná-lo-eis cada vez mais delicado e vigilante, sincero e puro. Vós vigiareis atentamente seus passos; não deixareis que o candor das suas almas se manche e se estrague em contato com companheiros já corrompidos e corruptores; vós inspirar-lhe-eis alta estima e zeloso amor pela pureza, dando-lhes por guarda fiel a materna proteção da Virgem Imaculada. Vós, enfim, com a vossa perspicácia de mães e de educadoras, graças à confiança amorosa que sabereis conquistar nos vossos filhos, não deixareis de perscrutar e discernir a ocasião e o instante, em que certas questões ocultas, revelando-se-lhes ao espírito, terão dado origem a especiais perturbações nos sentidos. Tocará então a vós para as vossas filhas, ao pai para vossos filhos – no que se julgar necessário – levantar cautelosamente, delicadamente, o véu da verdade, e dar-lhes resposta prudente, justa e cristã àquelas perguntas e inquietações. Recebidas dos vossos lábios de pais cristãos, na hora oportuna, na devida medida, com todas as devidas cautelas, as revelações sobre as misteriosas e admiráveis leis da vida serão ouvidas com reverência mista de gratidão, iluminar-lhes-ão as almas com muito menor perigo que se as aprendessem ao acaso, de encontros escusos, de conversações clandestinas, na escola de companheiros de pouca confiança e demasiadamente entendidos por meio de leituras ocultas, tanto mais perigosas e perniciosas, quanto mais o segredo inflama a imaginação e excita os sentidos. As vossas palavras, se sensatas e discretas, poderão ser salvaguarda e conselho no meio das tentações da corrupção que os cerca, “che saetta previsa vien piú lenta” (menos magoa a seta ao que a pressinta - Dante, Paraíso 17, 27).

O poderoso auxílio da religião

13. Mas nesta magnífica obra da educação cristã dos vossos filhos e das vossas filhas vós certamente compreendereis que a formação doméstica, por sábia e íntima que seja, não basta, mas deve ser completada e acaba com o poderoso auxílio da religião. Ao lado do sacerdote, cuja paternidade e autoridade espiritual e pastoral sobre os vossos filhos desde a sagrada fonte batismal se ergue ao vosso lado, vós deveis fazer-vos seus cooperadores naqueles primeiros rudimentos de piedade e de catecismo que são o fundamento de toda a sólida educação, e dos quais também vós, primeiros mestres dos vossos filhos, convém que tenhais conhecimento suficiente e sólido. Como podereis ensinar o que ignorais? Ensinai a amar a Deus, Jesus Cristo, a Igreja, nossa mãe, os Pastores da Igreja que vos guiam. Amai o catecismo e fazei-o amar aos vossos filhos: ele é o grande código do amor e do temor de Deus, da sabedoria cristã e da vida eterna.

Cooperadores na educação dos filhos

14. Na vossa obra educativa, que não pode restringir-se a alguns aspectos, sentireis além disso a necessidade e a obrigação de recorrer a outros auxiliares: escolhei-os cristãos como vós e com todo o cuidado que merece o tesouro que lhes confiam: a fé, a pureza, a piedade dos vossos filhos. Mas, uma vez escolhidos, não vos reputeis por isso mesmo livres e quites dos vossos deveres e da vossa vigilância; vós deveis colaborar com eles. Sejam embora quanto quiserdes eminentes educadores aqueles mestres e aquelas mestras; pouco conseguirão fazer pela educação dos vossos filhos, se não unirdes à sua ação a vossa. Que aconteceria, pois, se esta, em vez de auxiliar e confortar a sua obra, viesse precisamente opor-se-lhe e contrariá-la? Se as vossas fraquezas, se as vossas opiniões inspiradas num amor que não será senão disfarce de egoísmo mesquinho, destruíssem em casa o que foi bem feito na escola, no catecismo, nas associações católicas, para moderar o caráter e dirigir a piedade dos vossos filhos?

15. Mas – dirá alguma mãe – as crianças de hoje são tão difíceis de dominar. Com aquele meu filho, com aquela minha filha, não se pode fazer nada, não se consegue nada. – É verdade: aos doze ou aos quinze anos não poucos rapazes e raparigas são intratáveis, mas por quê? Porque aos dois ou aos três anos tudo lhes foi concedido e permitido, tudo lhes foi perdoado. É verdade: há temperamentos ingratos e rebeldes: mas porventura aquela criança reservada, teimosa, insensível, deixa por tais defeitos de ser vosso filho? Amá-lo-íeis menos que os seus irmãos, se fosse doente ou aleijado? Deus também vos confiou esse: não o deixeis vir a ser o refugo da família. Ninguém é tão feroz que se não amanse com a dedicação, a paciência, o amor; e será caso muito raro que naquele terreno pedregoso e silvestre não alcanceis fazer nascer alguma flor de submissão e de virtude, contanto que com rigores parciais e desarrazoados não corrais o risco de desanimar naquela pequenina alma altiva o fundo de boa vontade que ela encerra. Vós falsearíeis toda a educação dos vossos filhos, se um dia descobrissem em vós (e Deus sabe se têm olhos para tanto!) predileções entre irmãos, preferências de favor, antipatias para um ou outro: para vosso bem e da família é preciso que todos sintam, que todos vejam, na vossa ponderada serenidade, como nos vossos doces entusiasmos e nas vossas carícias, um amor igual, que não faz distinção entre eles senão no corrigir o mal e no promover o bem. Não os recebestes a todos igualmente de Deus?

Cooperadoras das mães cristãs

16. A vós, ó mães de família cristãs, foi dirigida particularmente a Nossa palavra; mas juntamente convosco vemos hoje em torno de nós uma coroa de Religiosas, de mestras, de delegadas, de apóstolas, de guardas, de assistentes, as quais consagram à educação e à reeducação da infância todo o seu esforço e trabalho; não são mães pelo sangue da natureza, mas por impulso de amor pelas crianças, tão queridas de Cristo e da sua Esposa, a Igreja. Sim: também vós, que estais ao lado das mães cristãs como educadoras, sois mães, porque tendes coração de mãe, e nele palpita a chama da caridade que o Espírito Santo difunde nos vossos corações. Nesta caridade, a caridade de Cristo que vos arrasta para o bem, vós encontrais a luz, o conforto e o programa que vos aproxima das mães, dos pais e seus filhos; e de tão exuberantes rebentos da sociedade, esperanças dos pais e da Igreja, vós fazeis uma família cada vez maior de vinte, cem, de milhares e milhares de meninos e crianças, dos quais mais altamente educais a inteligência, o caráter e o coração, elevando-os a um ambiente espiritual e moral, onde brilham com a alegria da inocência a fé em deus e a reverência para com as coisas santas, a piedade para com os pais e para com a pátria. O louvor e a Nossa gratidão juntamente com o reconhecimento das mães vão para vós. Educadoras como essas trazei-as, ponde-as à frente das vossas escolas, nos vossos asilos e colégios, nas vossas associações; irmãs de uma maternidade espiritual que os lírios coroam.

Conclusão e Bênção

17. Que missão maravilhosa, e em nossos tempos cheia de graves obstáculos e dificuldades, ó mães cristãs e diletas filhas, - quantas vos cansais em cultivar as crescentes vergônteas das oliveiras familiares – cuja beleza Nós revelamos apenas num ou outro ponto! Como se engrandece no Nosso pensamento a mãe dentro das paredes do lar doméstico, por Deus destinada a ser junto do berço a ama e a educadora dos seus filhos! Admirai a sua operosidade, que talvez fôssemos tentados a julgar insuficiente para as necessidades, se a onipotente graça divina não estivesse ao seu lado para iluminar, dirigir, sustentar nas ansiedades e nas canseiras cotidianas; se a colaborar com ela na formação daquelas almas juvenis não inspirasse e chamasse outra educadora de coração e ação que rivaliza com ela em afeto. Enquanto portanto imploramos ao Senhor que vos cumule a todas da superabundância dos seus favores e desenvolva a vossa multiforme obra em prol da infância a vós confiada, concedemo-vos do coração, como penhor das mais eleitas graças celestes, a nossa paterna Bênção Apostólica.

Na festa de Cristo Rei (26 de outubro de 1941) Sua Santidade Pio XII recebeu em Audiência especial numerosos grupos de membros da União de Senhoras da Ação Católica de Roma e de Lácio, que se dedicam à sublime missão da educação de crianças. Nesta ocasião o Santo Padre pronunciou este discurso.

 

I M P R I M A T U R: POR COMISSÃO ESPECIAL DO EXMO. E REVMO. SR. DOM MANUEL PEDRO DA CUNHA CINTRA, BISPO DE PETRÓPOLIS. FR. LAURO OSTERMANN, O. F. M. PETRÓPOLIS, 1-VI-1950.

EDITORA VOZES Ltda, PETRÓPOLIS, RJ, 1950.

RIO DE JANEIRO - SÃO PAULO

Mensagem sobre o Nazismo e a situação da Igreja na Alemanha

O texto que se vai ler é a íntegra da mensagem de 2 Junho de 1945 do Papa Pio XII aos Cardeais, sobre a condição da Igreja após a rendição dos Alemães. Repetindo as inequívocas condenações ao Nazismo proferidas por seu egrégio predecessor, esta alocução elucida o real posicionamento da Igreja com relação a Alemanha de Hitler, e constitui prova documentalde que jamais existiu tal coisa como "o silêncio de Pio XII": 

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