Chesterton (29/5/1874-14/6/1936) foi um dos mais notáveis escritores ingleses de todos os tempos.
Talvez não se conceda bastante atenção a um caso singular que oferece a ciência dos estudos pré-históricos. Toda a ciência se funda, com efeito, no conjunto admirável de suas conquistas, por um método de acumulação. Todas as invenções mecânicas e a maior parte dos descobrimentos da física derivam da observação completada pela experiência. Ora, bem; não se fabricam homens primitivos. Esta é a grande dificuldade para o conhecimento de nossas origens. Assim, chegareis a aperfeiçoar, peça por peça, o aeroplano de vossa invenção, assistindo no jardim às evoluções de um modelo reduzido feito de bambus e de latas de sardinhas; porém, jamais, nesse mesmo jardim, assistireis a evolução do missing-link. Se cometeis um erro de cálculo, o aeroplano fará, por si mesmo, a prova em uma caída precipitada. Porém, se incidis num erro de suposição, a respeito dos costumes de um dos vossos ascendentes, na selva, por exemplo, não será, de certo, ele quem o demonstrará, deixando-se cair, da árvore em que estiver trepado, ao solo.
É impossível criar o homem de Weanderthal em uma gaiola, como galo, com o objetivo de descobrir se ele pratica a antropofagia e o rapto nupcial. É absurda a idéia de manter uma manada de homens de Cromagnon a fim de estudar as manifestações do instinto gregário. Se um pássaro se comporta de um modo insólito, é bem possível que adivinhemos os costumes de outros pássaros; mas, de um crânio ou de um fragmento de crânio a imaginação mais científica não pode deduzir todo um vale de Josafat, e, falha de experiência, ficaria reduzida a contar com o único testemunho evidente, se o próprio desse passado, quase inteiramente abolido, não fora o não ter deixado dele nenhum, sequer... Dessas diversas dificuldades resulta que se as outras ciências progridem, segundo uma espécie de curva incessantemente corrigida por incorporações novas, os estudos pré-históricos tomam a tangente com uma velocidade geometricamente acelerada. Não importa. O costume de tirar conclusões é um reflexo tão profundo do espírito científico que se não poderá impedir de colocar em um único e mesmo plano de realidade a teoria construída sobre um resto de ossada e o avião Paris-Londres, fabricado com os despojos de vinte modelos destroçados.
A vantagem do aviador está em fazer tantas saídas falsas quantas lhe venham à vontade, enquanto que a desgraça do professor de pré-história reside em não ter ele direito a mais de uma saída, verdadeira ou falsa. Tudo isto explica, mas, não justifica, o estado de precipitação ousada e, ao mesmo tempo, temerosa que se apodera de certos teóricos, induzindo-os a hipóteses arriscadas, a ponto de caírem na região da pura fantasia. Fala-se muito, geralmente, da paciência científica. Da impaciência é que se devia falar. O mais empírico dos antropólogos, está nas mesmíssimas condições que o mais prudente dos arqueólogos: — é-lhe preciso ater-se a um farrapo do passado, sem a esperança de, jamais, vê-lo aumentar entre as suas mãos. Manuseia a porção dos seus descobrimentos com a mesma energia feroz com que o homem das cavernas manuseava o seu pedaço de sílex, e por idênticas razões. É o seu único patrimônio, o seu único utensílio e a sua arma única; arma que manejará com uma espécie de fanatismo desesperado, ao qual não nos acostumaram, ainda, os sábios do laboratório. Estou seguro de que mais de um professor superaria a mais de um cão, na arte de arreganhar os dentes, em defesa do seu osso.
Contemplemos a sua obra. Ante a dificuldade de criar um macaco e de vê-lo transformar-se em ser humano, nosso homem não se contentará em dizer, o que nós o faríamos de bom grado: — que uma evolução desse gênero se apresenta, em suma, como bastante verossímil. Não, ele exibe a sua pequena esquírola ou a sua minúscula coleção de ossos, e deduz, para maravilhar as multidões, toda uma série de revelações surpreendentes. Assim, por exemplo, em Java se encontraram os restos de um crânio que devia ser mais estreito que o nosso, pelo que se pôde deduzir. Um pouco mais distante, um fêmur, e, dispersos pelas cercanias, alguns dentes que não eram humanos. Se o todo proviesse de um mesmo indivíduo, o que está, ainda, por averiguar, a idéia que poderíamos fazer de tal indivíduo, não seria, talvez, menos incerta. Entretanto, tudo isto bastou à ciência popular para fabricar um personagem completo, mais que completo, terminado dos pés à cabeça, sem a carência do mínimo detalhe, e que recebeu, para logo, um nome próprio, como toda a personagem histórica que se respeite.
O público falou, assim de Pitecântropo como de Richelieu, de Fox ou de Napoleão. As enciclopédias ilustradas publicaram a sua efígie entre Pesistrate e William Pitt e, nós temos dele um excelente desenho, de um tão minucioso realismo, que se não pode duvidar de que lhe foram contados, um por um, até os cabelos. Quem suspeitaria ao ver aqueles rasgos fisionômicos, tão poderosamente acentuados, e aquele olhar meditabundo, que são o retrato de um fêmur ou de um pedaço de abóbada craniana e de um punhado de dentes? Seu caráter e seus costumes são, igualmente, de notoriedade pública. Eu li, ainda não faz muito, uma novela, cujo autor empenha toda a sua arte em demonstrar como os modernos colonos da ilha de Java se vêm irresistivelmente compelidos à infringirem as leis da conveniência pelo influxo pessoal desse pobre velho Pitecantropo. Que os habitantes contemporâneos daquela ilha observem, amiúde, uma conduta das mais inconvenientes, eu não o duvido. Mas, faz-me pena aceitar que sejam, fatalmente estimulados em seus excessos pelo descobrimento de uns velhos ossos de autenticidade mais que duvidosa. Ossos demasiado raros e bastante fragmentados para preencher o vácuo imenso que separa o homem, tanto em razão como de fato, do seu pretenso ascendente. Uma vez admitido este parentesco — o meu objetivo não é discuti-lo — não seria, de outra parte, senão mais surpreendente, ainda, a ausência quase completa de vestígios que o testemunhem.
Foi, exatamente, o que Darwin admitiu, de boa fé, criando a expressão — “missing link” — “elo perdido”, sem prever que o dogmatismo dos darwinistas acabaria, finalmente, com o agnosticismo darwiniano, dando a esse termo, completamente negativo, o sentido de uma expressão positiva. Essa gente fala, seriamente, em descobrir a habitação e os costumes do “missing-link”, depois do que não lhes faltará mais nada que almoçar com um guião, passear pelo bosque em companhia de uma solução de continuidade e passar o melhor possível com a incógnita de uma equação.
Isso é, propriamente, perder o tempo, tanto como conjeturar, sem regra, sobre o homem, antes que ele fora tal. Mas, ainda deduzida a matéria de seu corpo da dos brutos, esta explicação deixaria intacto o mistério de sua alma, tal como nos revela a história. Desgraçadamente, os autores em questão continuam raciocinando da mesma maneira, quando deparam com os documentos autenticamente humanos. Falando em um sentido estrito, quero fazer ressaltar que ignoramos tudo o que se refere ao homem pré-histórico, pela simples razão de que é pré-histórico, por isso que não é logicamente possível existir uma história da pré-história, expressão esta tão falha de razão, que só os racionalistas podiam inventá-la. Um predicador que qualificasse o dilúvio de antidiluviano surpreenderia, talvez, alguns sorrisos furtivos no rosto de seus ouvintes.
Um bispo faria bem não classificando Adão entre os pré-adanistas. Mas, que um historiador leigo nos fale das épocas pré-históricas da História não nos surpreende na medida que devera.
O que se quer dizer, sem dúvida, o que se pode e se deve dizer é que a Humanidade é mais velha do que a História, e que a civilização é anterior às crônicas escritas. O homem, de fato, cultivou várias artes antes da escritura, do que se não deve deduzir que, até então, fosse ele um consumado bruto.
O caçador que traçava a imagem de um rengífero não sabia fazer a descrição escrita da sua caça, por forma que esta não pertence à História. Mas, o seu desenho é inteligente; sua descrição também podia sê-lo. Em uma palavra: a expressão — tempos pré-históricos — não designa, necessariamente, tempos bárbaros e incultos, senão tempos, simplesmente, durante os quais se não escreveu nada que possamos decifrar. É bem possível que o grande passado mudo encerre em seu antro, inacessível à nossa sondagem, formas sociais tão civilizadas como rudes ou ferozes, ou melhores, talvez, do que o vão público pensa hoje em dia. Mas, quanta prudência e tato se requer para estas conjecturas! Qualidades, aliás, que não embaraçam aos senhores evolucionistas e que estão muito pouco de acordo com o gênio íntimo de uma época, devorada pela curiosidade, que nada teme tanto como às angústias do agnosticismo!
Na época darwiniana fez-se possível o fenômeno da — “palavra antes da coisa!” — Tanta ignorância, digamo-lo claramente, se cobre com o manto da mais ultrajante impudicícia. Fazem-se em um tom tão categórico e soberbo certas afirmações gratuitas, que é preciso, para examiná-las, uma virtude crítica que ultrapasse o comum. Escolhamos, entre outros, um estudo recente sobre um povo da idade de pedra. Começa, destemerosamente, deste modo: “Viviam em completa nudez!” Talvez não ocorresse a um leitor, entre cem, pensar donde e como esse autor pode comprovar o estado do guarda-roupa de gene da qual se não encontrou outro vestígio que um montão de ossos ou de calhaus. Será que se esperava encontrar um chapéu de sílex entre os machados feitos desse material ou se pensava descobrir umas ceroulas de pedra e umas calças literalmente paleolíticas? Pessoas de temperamento mais ponderado, ao contrário, aceitariam que um povo se poderia vestir sumariamente ou, mesmo, com suntuosidade, sem que ficassem vestígios disso. Se poderiam ter trançado ervas e juncos num trabalho esquisito, sem eternizar os tecidos. É fácil imaginar a existência de certas sociedades especializadas em artes frágeis, tais como as do tecido e do bordado, em detrimento de outras mais duradouras como a da escultura e a da arquitetura. Existem numerosos exemplos dessas sociedades especializadas. Nossos descendentes distantes, quando registrem as ruínas de nossas fábricas, deduzirão, quiçá, que não conhecíamos mais do que o ferro, e anunciarão, como um interessante descobrimento, que o diretor e seus engenheiros, andavam completamente nus, a não ser trouxessem trajes e chapéus feitos de ferro. Eu não afirmo que os primitivos se vestissem com roupas feitas de ervas. Limito-me a comprovar que não sabemos nada a respeito da sua indumentária e que suas pinturas testemunham que eles possuíam a noção da ornamentação bastante desenvolvida. Outro escritor notável, comentando os desenhos atribuídos aos povos neolíticos da época da rena, e conjeturando que nenhuma dessas imagens parecia ter uma significação religiosa, não vacila em chegar à conclusão de que aqueles povos não tinham religião alguma. Belo sistema! Deste modo nos podemos fazer intérprete dos mais íntimos e secretos movimentos da alma primitiva, por isso que um não se sabe quem, ensaiando, não se sabe porque, esgravatar na rocha, achou mais cômodo desenhar uma rena que uma religião! Desenhou uma rena porque esta era o seu emblema religioso; desenhou porque não o era; desenhou porque não importa o quê, exceto o seu emblema; desenhou seu verdadeiro emblema religioso em outra parte; ou este emblema desenhado foi deliberadamente borrado. Há dez mil explicações de igual valor. Mas, eu, em todo o caso, acho peregrina a dedução de que nosso homem não possuísse um emblema religioso, ou que, ainda no caso de o não possuir, não acreditasse em nada.
E vede que lógica! Descobriram-se, nas mesmas grutas, outras figuras de animais não desenhadas, e sim esculpidas, algumas das quais têm buracos ou talhos que se supõem sejam sinais de flechas. As figuras, assim danificadas, foram, imediatamente, catalogadas como vestígios excludentes de um rito mágico que matava as bestas em efígie, enquanto que as figuras indenes serviriam a outros ritos não menos de magia que tinham como objeto a fecundação de animais. Assim, as imagens danificadas testemunham uma superstição e as indenes, outra. Decididamente estes cavalheiros cultivam uma comicidade inconsciente, que é, também, a melhor. Tudo isto é trabalhar demasiado depressa. Se terá pensado em que uma tribo de caçadores encerrados pelo inverno numa caverna pode entreter o tempo atirando ao alvo? Mas, enfim, que seja superstição: — que se faz, então, da teoria segundo a qual a religião nada tem a ver com os desenhos? Em uma palavra: todas estas hipóteses são flechas lançadas à lua. É muito melhor, ainda, como jogo de sociedade, atirar contra um bisonte de argila.
Se os nossos teóricos se dessem ao trabalho de olhar em redor, comprovariam que o homem moderno conservou o gosto de escrever na pedra. A passagem de uma caravana de turistas por lugares históricos é seguida, fatalmente, por uma floração de legendas e de hieróglifos, aos quais os sábios recusam atribuir qualquer antiguidade. Mas, se os professores do ano 3.000 não se tiverem curado da magnífica seguridade de seus antecessores, entre os quais não me conto, — que admiráveis deduções tirarão das inscrições insertas no ano da graça de 1925! As iniciais entrelaçadas de Júlia e Marianinho, na gruta de Butts-Chaumont, lhes revelariam, indiscutivelmente: — 1°, por serem grosseiramente talhados com um canivete mal afiado, que no século XX não se dispunha de nenhum instrumento de precisão e, ignorava-se a arte da escultura; 2°, que sendo formadas por maiúsculas, nossa civilização não tinha idéia da caixa baixa da tipografia, nem da escrita cursiva; 3°, que estando agrupadas em consoantes impronunciáveis, nossa linguagem tinha fundas afinidades com o “galés”, ou mais provavelmente, com os dialetos proto-semitas, que proscrevem o uso das vogais; 4°, que estando manifestamente desprovidas de sugestões religiosas, nossa época não tinha, por isso, nenhuma religião. No que, aliás, não se equivocariam, senão em parte, por isso, se tivéssemos religião, teríamos, certamente, mais senso comum. Afirma-se, segundo os mesmos métodos, que o sentimento religioso se desenvolveu pouco a pouco, em um encadeamento de causas fortuitas que não têm mais do que um valor de coincidência. Estas causas, se nos assegura, se reduzem a três principais: a) ao terror ao chefe da tribo, a que Mr. G. Wells chama, com uma deplorável familiaridade, “o velho”; b) os fenômenos do sonho, e c) a associação de idéias que reúne a colheita, as sementes e a germinação, de uma parte, e, de outra, as noções de sacrifício e de ressurreição. Confesso não conceder grande credulidade a uma opinião que faz derivar um sentimento tão vivo de três fontes tão díspares. Imaginemos que Mr. Wells, em uma das suas encantadoras antecipações, quer fazer-nos assistir ao advento de uma paixão nova e misteriosa que embriague o homem, — como o primeiro amor, pela qual verteria o seu sangue como por uma pátria. Ficaríamos bastante intrigados se o novelista nos explicasse que essa paixão singular era resultante de três influências distintas, a saber: o gosto pelos cigarros turcos, aumento do imposto sobre a renda e os cento e vinte à hora.
A relação se nos escapa; não a compreendemos. Porém, não há outra entre um pesadelo, uma seara e um velho cacique armado de lança, a menos que pré-exista um sentimento que os associe. Este sentimento não pode ser senão de ordem religiosa e eu me permito observar que se é ele a causa da associação de idéias assinaladas, então, não pode ser, ao mesmo tempo, o efeito. Sentimento, graças ao qual, agora como antes, é natural ver os campos, os reis e os sonhos sob uma luz mística.
É um excesso de malícia dar ao passado um aspecto estranho e inumano, fingindo não se entender o que se entende muito bem. Se poderia dizer, igualmente, que os homens pré-históricos tinham o costume repugnante de abrir a boca desmesuradamente em intervalos regulares e engolir substâncias estranhas, ou que os terríveis trogloditas da idade de pedra imprimiam, alternativamente, a cada uma das pernas, um movimento de elevação centrífuga, — como se ninguém ouvira, ainda, falar em comer ou em caminhar.
Não se faria, assim, mais do que um mal em parte, se se pretendesse, desse modo, solicitar nossa fibra mística e tornar-nos sensíveis ao milagre das coisas familiares. Trata-se, ao contrário, de fazê-las ininteligíveis. Mas, quem não sentirá o mistério do sonho? Quem não pressentirá na morte e na ressurreição da matéria vegetal um dos segredos do universo? Quem não apreenderá esse caráter sagrado da autoridade em que se encarna a alma de um povo?
O antropólogo que de boa fé achasse estas idéias inverossímeis teria de confessar que tinha menos espírito e menos coração que o homem de Cromagnon. Eu creio indubitável que só um instinto religioso, já manifesto, poderia reunir em uma mesma veneração coisas tão diversas. Querer que a religião nasça do temor a um chefe ou de sacrificar à colheita, é pôr um veículo moderníssimo diante de uma parelha de cavalos não domados. É pretender que a idéia de pintar provenha da contemplação de imagens em uma caverna e que ninguém pensasse escrever em verso sem o costume de compor uma ode oficial para festejar a chegada da primavera, ou, sem o hábito, adquirido por certo jovem, de ouvir primeiramente o canto da calhandra para depois fixar no papel a impressão recebida. É bem verdade que freqüentemente algum jovem, em chegando o mês de maio, se descobre uma alma de poeta, e, então, aqui em baixo, nada é capaz de impedi-lo que celebre à calhandra ou ao rouxinol. Isto, entretanto, não significa que o senso poético venha da prosódia. Tão pouco que a religião provenha dos ritos religiosos.
Precisa-se uma certa dose de espírito para sentir o mistério do sonho e da morte, o valor poético da primavera e o canto dos pássaros. A vaca, nos prados, não parece tirar nenhum partido lírico das facilidades insignes que lhe são oferecidas para ouvir o rouxinol e nada permite pressagiar que os carneiros vivos se decidam a render aos carneiros mortos a homenagem de piedosas cerimônias. É verdade que os primeiros raios da primavera sugerem aos quadrúpedes jovens fantasias galantes, mas todas as primaveras do mundo têm sido, até o presente, impotentes para lhes sugerirem fantasias literárias. Igualmente, se o cão, segundo todas as aparências, possui a faculdade de sonhar, há muito que esperamos que faça de seus sonhos a base de um sistema refinado de cerimônias litúrgicas; tanto tempo esperamos e muito nos surpreenderia vê-lo utilizar seus sonhos em um sentido eclesiástico e interpretá-lo segundo as doutrinas da psicanálise. Qualquer que seja a razão é indubitável que certas experiências e certas emoções não franqueiam mais que no homem a fronteira da expressão criadora.
Jamais se viu isto em outra criatura e, sem dúvida, nunca será visto. Não é impossível, num sentido de auto-contradição, que víssemos os bois se absterem do pasto nas sextas-feiras e, como na legenda, caírem de joelhos ao ouvir o sino da Natividade ou, então, expressarem suas esperanças de felicidade celeste por meio de uma dança simbólica em honra da famosa vaca da canção que saltou por cima da lua. A força de sonhar o cão chegaria, talvez, a erigir um templo a Cérebro, concebido como uma espécie de trindade canina. Talvez seus sonhos comecem já a traduzir-se em visões suscetíveis de expressão verbal, em revelações concernentes à constelação do Grande Cão, pátria espiritual dos cães abandonados... Nada de tudo isto constitui uma contradição de princípio absoluto; mas o senso das probabilidades ou o bom senso nos adverte de que os animais não evoluem nesta direção, ainda que a morte, a primavera e até o sonho pertençam tanto à sua experiência como à nossa. Do que se depreende que só o nosso espírito é suscetível de receber as impressões de ordem religiosa.
E, eis-nos, de novo, no âmago de nosso tema — a existência, tão distante quanto possamos remontá-la, de um pensamento ativo, solitário, capaz de formar doutrinas tanto como imagens, de extrair da matéria imóvel suas razões de temor e de esperança e de abandonar-se à contemplação misteriosa de sua natureza, que o fará já não crer mais na morte.
As raras observações permitidas aos nossos olhos só nos deixam ver o homem como tal. Guardam na sombra o elo suposto que o uniria ao animal, pela razão muito simples de que ele é mera suposição, e, em conseqüência de não saber se o Pitecantropo existiu, de fato, ignoramos mais, ainda, se ele sabia rezar. É um ente de razão, um sinal convencional, um tampão destinando a tapar a brecha que separa macacos incontestes de homens incontestáveis. Assim, o homem-macaco, se é que existiu, será, segundo nosso humor, tão piedoso como o homem, tão livre-pensador como o macaco e não será um resto de crânio recolhido em Java que vai nos ilustrar sobre este ponto. A verdade é que, em um dado momento, tão distante que escapa à ciência, produziu-se uma transição de que não podem ser testemunhas nem pedras, nem ossos, e na qual se revelou a alma humana.
Reconhecemo-la como nossa e a saudamos no seu longínquo aparecer. Seu passo e seu gesto nos são familiares. Por ela, todos somos irmãos. Por ela um selvagem, um estrangeiro, uma figura histórica despertam em nosso coração fibras profundas.
Assim, vemos que o costume de vestir-se é uma das regras fundamentais da vida humana universal. O vestuário é, desde suas origens, o sinal de um sacerdócio, pois, se é verdade que o homem, enquanto como animal difere dos outros, a ponto de que a nudez lhe pode causar a morte, não é menos certo que se veste por decência e magnificência quando não por necessidade. O traje tem, amiúde, um valor de decoro. A diversidade de convenções que o regem, segundo os povos e segundo os tempos, é extrema como também o é a simplicidade da boa gente, a qual esta simples observação basta para desmoralizar. Será, pois, que o pudor não existe desde o momento em que os insulares do Pacífico e os habitantes de Paris não têm a mesma idéia da moda? Como se disséramos que, posto que tenham levado tantos e tão estranhos chapéus, estes não existem, nem sequer a calvície e as insolações. O simples bom senso mostra que sempre se tem precisado de regras que, velando certas intimidades do homem, o pusessem a coberto da mofa e do desprezo e que a observação destas regras, qualquer que fossem gera o sentido da dignidade e do respeito mútuo. O fato delas, a maior parte das vezes, estarem ligadas às relações entre os dois sexos, ilustra os dois grandes casos que dominam desde a origem da história da indumentária: um deles é que o pecado original é literalmente original, não somente no sentido teológico como no histórico da palavra. Quaisquer que tenham sido suas crenças, a Humanidade acreditou, sempre, na evidência do mal, e este senso do pecado tornou impossível, para sempre, o viver nu e o ser natural na vida. O outro caso é a família.
Aqui, mais do que em nenhuma outra parte, guardemos o justo sentido das proporções. Estamos em frente de uma montanha. A nuvem flutuante das teorias e das teses pode ofuscá-la em parte, mas não por completo; mons parturiens em verdade, de onde procede todo o reino aqui de baixo, todo o império e toda a república. O que chamamos família teve de abrir um caminho através das diversas formas de anarquia e de aberração?
Pode ser. O certo é que ela os sobrevive; o provável é que ela os precedeu. O comunismo e o nomadismo provam que estados sociais amorfos podem se desenvolver à margem das sociedades civilizadas; mas nada testemunha que a forma não se tenha adiantado à deformidade. Sempre é a forma a que conta e a humanidade foi quem escolheu esta forma. Nada mais curioso, por exemplo, que o costume selvagem que se chama couvade, mundo invertido, digno dos antípodas, em que o pai, durante o embaraço da mulher, é tratado como se fora esta. Não somente se supõe certo misticismo sexual, senão que simboliza a aceitação pelo homem de suas responsabilidades paternais. Neste caso, a feroz mascarada se converte em um rito dos mais solenes, e no fundamento de toda família e de toda sociedade.
Alguns têm emitido a hipótese de que a humanidade constituía, em outro tempo, um matriarcado (feminismo devera chamar-se); outros, alegam que se tratava de um período de anarquia no qual a mãe não representava o ponto fixo, senão em razão do descuido e do anonimato dos pais. Depois, viriam os tempos em que o pai se decidiria a cuidar da prole, a protegê-la e a converter-se em chefe de família consciente e organizado. É muito possível, e, então, pela primeira vez, o homem teria obrado como homem. Porém, é também possível, igualmente, que o estado de matriarcado, de anarquia, de promiscuidade, como se queira, não fora mais que uma das inumeráveis regressões bárbaras que se terão produzido nos tempos pré-históricos tanto como nos históricos. Se é um símbolo, a couvade talvez comemore, não o nascimento de uma religião, mas a destruição de uma heresia.
Quaisquer que sejam as origens do edifício humano, ele está ante nossos olhos e a família constitui sua célula central, ao redor da qual, como uma guarda de honra, velam as santas virtudes domésticas que nos distinguem da abelha e da formiga. O pudor é a cortina da tenda e a liberdade a muralha desta cidade. A propriedade não é senão o reduto da família. A honra seu brasão.
A história se abre com um pai, uma mãe e um filho, e se não somos dos que invocam uma divina Trindade, teremos, não obstante, de invocar uma trindade humana, cujo triângulo se repete até o infinito na trama do universo. Pois o ponto culminante da história, para o qual tende a criação de todas as partes, vibrando, estremecendo-se, nos apresenta esse mesmo triângulo invertido, ou, melhor dito, um triângulo novo, que, superpondo-se ao primeiro, forma com ele uma estrela de cinco pontas, mais terrível para os demônios que a dos Magos.
A antiga trindade, composta do pai, da mãe e do filho, tinha um nome: a família humana. A nova se compõe do filho, da mãe, e do pai, e, também, tem um nome: a Sagrada Família. Não foi alterada, exceto no sentido de ter sido inteiramente invertida. O mesmo que o mundo, que ela transformou, não se tornou diferente, mas completamente ao inverso: — Isto é, tudo ao contrário do que era antes.
(“The Everlasting Man”, 2o. cap., trad. Lourival Cunha, Editora O Globo de Porto Alegre, 1934.)