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Category: Luiz Carlos RamiroConteúdo sindicalizado

Gustavo Corção, onde tudo é amor

Luiz Carlos Ramiro Junior

(Nota do Editor: o presente artigo foi originalmente publicado na série "Intelectuais brasileiros" da Biblioteca Nacional)

 

Foi Nelson Rodrigues quem disse, em “O Óbvio Ululante” (1968): “Tudo em Corção é amor”. Explicava o cronista que o modo como Corção batia forte nos assuntos nada mais era do que sempre amor, de um coração atormentado e puro de menino. Seus textos fazem prova disso. Como o relato autobiográfico de sua conversão religiosa, “A Descoberta do Outro” (1944), que se tornou um poderoso livro à conversão de quem o lê.

Polemista, radical, persistente e peculiarmente irreverente, Gustavo Corção é um dos mais profundos escritores brasileiros. Segundo Oswald de Andrade surgia como Machado de Assis enquanto nosso mestre no século XX, enquanto Manuel Bandeira o sugeriu ao Prêmio Nobel, depois de ter lido “O Desconcerto do Mundo” (1965).

Corção causava espécie, turvava a cabeça da intelectualidade. Pude apurar isso quando mexia nos arquivos de João Camilo de Oliveira Torres, no acervo da PUC-Minas. Nas cartas endereçadas ao discreto historiador mineiro algumas citavam os artigos e entreveros do escritor carioca, e era sempre um tom de espanto, como Washington Vita que chegou a perguntar, num ar de mistério: “como você definiria Gustavo Corção?

    Em uma palavra, católico. Nasceu em 17 de dezembro de 1876 no Rio de Janeiro, fez Engenharia na antiga Escola Politécnica, foi estudioso, inventor e professor na área da eletrônica aplicada às telecomunicações, astronomia de campo, radiocomunicações. Sobre isso já havia feito um bocado de coisas, mas fez um tanto mais na crônica jornalística e numa série de reflexões sobre o destino do mundo ocidental e da Igreja. Aliás, foi essa a sua sina, apaixonado pela teologia e pela cruz.

Corção escreveu textos marcantes de cunho religioso. Foi chestertoniano em Três alqueires e uma vaca de 1946, ao abordar o distributivismo à realidade brasileira. Num título bastante agostiniano, Dois Amores e Duas Cidades (1967) foi tomista, o sendo mais ainda em O Século do Nada (1973), talvez o livro o mais importante na sua crítica católica sobre a crise da filosofia ocidental e da Igreja.

Deixou apenas um romance, Lições do abismo, lançado em 1950, e que já naquela década ganhou diversas traduções e foi premiado pela UNESCO em 1966

Líder no Centro Dom Vital, até o rompimento com Alceu Amoroso Lima em 1963, Gustavo Corção fundou, em 29 de setembro de 1968, o movimento e a revista Permanência. Foi um evento importante, que teve lugar no auditório do Ministério da Educação, no Palácio Capanema. Não apenas a Permanência existe, quanto quase tudo o que Corção escreveu está acessível nos jornais arquivados na Hemeroteca Brasileira, em especial o que publicou na Tribuna da Imprensa, no Diário de Notícias, n’O Estado de São Paulo.

Por algum tempo proscrito do quadro cultural brasileiro, Corção tem sido republicado e relido. A Biblioteca Nacional é fonte privilegiada a qualquer pesquisa sobre o autor. Em 26 de outubro de 1992 a instituição recebeu da senhora Hebe Corção o acervo pessoal, com correspondências ativas e passivas, textos e recortes de periódicos de Gustavo Corção. O conteúdo encontra-se na seção de Manuscritos. Detalhes podem ser encontrados no Guia de coleções da Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional (2018).

 

Abaixo algumas possibilidades de pesquisa à partir da obra de Gustavo Corção na Hemeroteca Digital Brasileira:

 

Contra a Novacap: Corção compreendeu um dos maiores desafios a qualquer comunhão política no Brasil: a demofobia, e esse havia sido seu diagnóstico a respeito da construção de Brasília, que foi sua batalha perdida. Deixou diversos artigos descrevendo o absurdo da Novacap, em frases bombásticas que circulavam em notas nos jornais:

"Eu não imagino como possa ser possível governar um país de costas para 90% da população e sem saber o que está acontecendo nos lugares onde ainda moram os desventurados habitantes que se deixaram ficar estupidamente no litoral, como caranguejos, em vez de optarem inteligentemente pelo deserto, como gafanhotos".

Tribuna da Imprensa, 28 de julho de 1959

http://memoria.bn.br/DocReader/154083_01/45164

 

Para Corção a construção de Brasília era uma verdadeira "Ideia de Faraó", título de artigo publicado no Diário de Notícias, 1 de maio de 1957: "Ouvi dizer, por pessoas muito bem informadas, que as primeiras construções de Brasília estão sendo feitas com areia e tijolos transportados por via aérea. E não admira. No regime em que tudo anda pelo ar, não admira que também as paredes das casas aproveitem nossa magnífica frota aérea. Antigamente, quando se desejava frisar a dificuldade extrema de algum feito, dizia-se que era mais fácil um burro voar. Hoje, graças ao progresso do Brasil, voam os burros e os tijolos".

http://memoria.bn.br/DocReader/093718_03/60181

 

Sobre a ideia mirabolante de Brasília

http://memoria.bn.br/DocReader/154083_01/34874

 

Dinheiro enterrado em Brasília pagaria obras no Rio e sobrariam mais de três bilhões, Gustavo Corção explicou na Tribuna da Imprensa em 2 de outubro de 1958:

http://memoria.bn.br/DocReader/154083_01/42772

 

Contra o imobilismo: o reacionarismo de Corção não significava um imobilismo quanto as mudanças. Vivia impaciente com certos entraves brasileiros. Em artigo de 04 de abril de 1956 no Diário de Notícias, escreveu "Nada Acontece": "Todo o mundo no Brasil se queixa da inconsequência dos fatos. Denuncia-se o ladrão, aponta-se o prevaricador, prova-se o crime - e nada acontece. Nada acontece no Brasil, a não ser nas colunas sociais. Ninguém é punido, a não ser o batedor de carteiras que também é habilidoso, mas não tem um mandato que faça da sua habilidade uma virtude suprema".

http://memoria.bn.br/DocReader/093718_03/59360

 

Analista político: artigo “Um homem político”

http://memoria.bn.br/DocReader/093718_03/5369

 

Com se via e como foi visto: entrevista na Revista O Cruzeiro de 1967 - O segredo da vida:

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/165723

 

Raquel de Queiroz homenageia o 70º  aniversário de Corção, na revista O Cruzeiro, janeiro de 1967:

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/160237

 

Joaquim de Sales escreveu sobre Corção: “Para a Glória do Brasil”:

http://memoria.bn.br/DocReader/093092_03/15143

 

Reportagem de Luiz Santa Cruz, "Corção e Chresterton", no Diário de notícias de 10 de novembro de 1946:

http://memoria.bn.br/DocReader/093718_02/30487

 

Em 17 de dezembro de 1958, nota do Jornal do Brasil sobre o sucesso dos livros de Corção no exterior:

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_07/96691

 

Em 1963 quatro nomes circularam como possíveis indicados ao Nobel de Literatura: Jorge Amado, Gustavo Corção, Guimarães Rosa e Gilberto Freyre

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/63502

 

Um autor maldito nas páginas do Pasquim, segundo Millôr Fernandes:

http://memoria.bn.br/DocReader/124745/737

 

A influência de Corção sobre Carlos Lacerda: reportagem da Revista Manchete:

http://memoria.bn.br/DocReader/004120/290192

A Muito Leal e Heróica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro

Luiz Carlos Ramiro

 

 

Esse é o título da obra de Gilberto Ferrez e Raymundo de Castro Maia, em comemoração ao IVo Centenário da Fundação da Cidade, em 1965. Leal e Heróica porque foi decisiva para a defesa do império português contra o estabelecimento da França Antártica entre 1555 e 1570. É de São Sebastião porque se trata do padroeiro da cidade, o mártir cravado de flechas.

A cidade rodeada pelo mar guarda uma relação telúrica com a formação do Brasil. Desde 31 de agosto de 1763, quando d. José I (1714-1777) determinou a transferência da capital do Vice-Reino do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro, o Rio se tornou "cabeça do Estado do Brasil", como se dizia na época. E, tal como no século XVI, funcionou como lugar de fortaleza, pois era estratégico para Portugal ficar mais próximo das regiões meridionais, fosse para proteger as riquezas vindas das Minas, fosse para não dar margem às ameaças dos espanhóis.

Em 1808 se torna a única sede de um império europeu nas Américas. Em 1815 o Brasil vira Reino, junto com Portugal e Algarves, e o Rio se reafirma como a Corte dos Braganças. Por conseguinte, é o lugar de estabelecimento do Império do Brasil com a Independência em 1822.

Por quase 200 anos o Rio de Janeiro foi institucionalmente capital do Brasil, e, mesmo quando perdeu o título formal, nunca deixou de ser na prática o centro de referência. Mal ou bem, para mostrar as imoralidades – o Carnaval -, ou para mostrar a religiosidade brasileira – pelo Cristo Redentor, o Rio é a imagem que aparece com maior frequência entre brasileiros e estrangeiros. Não é o lugar mais rico, tampouco o mais organizado, e nem mesmo o mais homogêneo, e justamente por isso é que representa bem a nação.

 

Capital espiritual do Brasil

Nação de grande porte, naturalmente influente e potente, o Brasil tem sua forma política, ainda hoje, imperial. Não é possível pensar o país sem compreender esse fenômeno. Pouco importa se o regime é republicano ou monárquico, importa é que o substrato é imperial. Reúne e permite a heterogeneidade de povos e tem uma referência, um caput. Esse ponto não é um discurso técnico, etéreo, mas marcado pela história, até mesmo pela trajetória espiritual de um povo. Administrativamente, se pode governar de qualquer lugar, mas politicamente, não se pode exercer o poder à distância.

Por mais que se tenha insistido nos últimos 60 anos, Brasília jamais conseguiu se estabelecer como uma capital nacional, de referência dos brasileiros para si e para fora. Não significa que não possa cumprir funções gerenciais, mas jamais será a identificação nacional, algo do resumo do Brasil.

Ainda que seja compreensível o modo como o Rio de Janeiro é percebido pelos brasileiros em geral, como o lugar da sacanagem, dos traficantes, da lasciva e dos políticos ladrões, é verdade que essa é a identificação comum a qualquer capital no mundo. O Rio assume um ônus de capital, ainda que já não tenha o bônus. Mas isso ao mesmo tempo nos leva a pensar sobre o porquê de tamanho desprezo ou mesmo desejo pela decadência. A mesma explicação para o desleixo que temos conosco, como nos consumimos em iniquidades, é o que o brasileiro tem com o Rio de Janeiro, não preserva e ama o que tem de precioso.

 

  O Rio, por sua vez, tem todas as marcas da nação, inclusive suas cicatrizes. Se a cabeça vai mal, o corpo vai mal, logo o modo como o Rio decai nos resume, expressa essa atroz falta de amor de si e ao próximo, desleixo, apatia, entrega. Tudo diferente da altivez do Cristo, que deu coragem a São Sebastião, e motivo de proteção de Nossa Senhora.

E se politicamente o Brasil surge mesmo com d. João VI, ao criar uma série de instituições para o estado brasileiro, é bom lembrar o que a Família Real fez logo que desembarcou em 1808. O regente foi até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário rezar, em agradecimento.

O dia do Fico foi decidido dentro do Convento de Santo Antônio, no centro do Rio. Foi ali que praticamente se fez a Independência, como pensamento e sistema, foi onde d. Pedro I e seus amigos iam conspirar, sob o auspício de Frei Sampaio, o mesmo que oficiou a Missa de Sagração e Coroação do imperador em 12 de outubro de 1822.

O maior símbolo do Brasil é o Cristo Redentor, construído pela solidariedade de um povo católico. Campanhas, doações e envolvimento popular foram essenciais para erguer a estátua inaugurada no dia de Nossa Senhora Aparecida, em 1931. Foi feito olhando para Sua Mãe, representada no outro lado da baía de Guanabara, no Monumento Nossa Senhora Auxiliadora, situada no Morro do Alarico, em Santa Rosa, Niterói, cuja estátua havia sido erigida em 08 de dezembro de 1900.

No Centenário da Independência, em 1922, quando o Rio foi palco da Exposição Universal, e era uma das cidades mais iluminadas do mundo, outro evento central dessa simbiose entre capitalidade e a religião verdadeira: é fundado o Centro Dom Vital. E dele é que surgiu a ação viva de manutenção do espírito católico, que foi a Permanência, em 1968, em cerimônia dentro do Palácio Gustavo Capanema, reunindo centenas de autoridades.

Enquanto brasileiros e católicos, o Rio de Janeiro e Roma exercem ações análogas. Como não há como resgatar o Brasil sem resgatar o Rio, não há como resgatar a Igreja católica sem a conversão de Roma.

 

Frutos de uma aberração

Em 21 de abril de 1960 a capital foi transferida para Brasília. Foi uma das maiores loucuras da história mundial, a construção de uma cidade futurista para ser capital num deserto. É como se hoje a Rússia decidisse substituir Moscou e São Petersburgo por uma invenção na Sibéria, ou o Canadá montasse sua capital no gelo, ou então a Austrália fizesse o mesmo naquele deserto imenso. Pois nos anos 1950, o então presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek fez. Mas não faltaram críticas e demonstrações do quão absurdo era aquilo. Gustavo Corção, fundador da Permanência, escrevia seguidamente nos jornais explicando o erro.

Mas aconteceu, e erra quem pense que se tratou apenas de um crime contra o Rio, pois foi uma atrocidade contra o Brasil. Brasília resultou em aumento da dívida pública, gerou surto inflacionário nas décadas seguintes, e deu origem a diversos vícios do serviço público e da atividade política. A Novacap ainda artificializou a relação política, criando nos brasileiros uma consciência de que é normal o distanciamento entre o exercício do poder e as pessoas, como se a autoridade devesse ser exercida à distância, quando essa é uma das origens centrais da corrupção.

Entre 1960 e 1974 a cidade do Rio de Janeiro funcionou como cidade-estado, a Guanabara. Ao redor estava o antigo estado fluminense, cuja capital era Niterói. Desde 1834 a vida carioca e a dos fluminenses era diferente, não se confundiam. Mas em 1975 se fez a confusão: sob decisão do então presidente Ernesto Geisel os estados foram fundidos. Se a situação da Guanabara já era difícil, e o antigo estado do Rio de Janeiro pobre, desde então a situação ficaria muito pior. Ao contrário do previsto, as duas regiões se enfraqueceram, e em mais de quatro décadas foi o estado brasileiro que mais decaiu em riqueza, industrialização, participação política nacional, índices de desenvolvimento humano, liberdade e segurança pública.

 

A crise de autoridade

Não há mais como acreditar no exercício normal da autoridade no Rio de Janeiro. O problema é estrutural. O atual estado precisa acabar e o Brasil cuidar do que é seu, da cidade do Rio de Janeiro, inclusive para permitir uma vida própria ao antigo estado fluminense. O Rio é da nação brasileira, pois é onde há mais servidores públicos federais do que Brasília; a União é proprietária da maior parte dos prédios e terrenos públicos, superando estado e município; parte significativa das repartições federais estão na cidade, assim como é onde estão os pontos essenciais à história nacional. O Museu Nacional que pegou fogo há dois anos (02 de setembro de 2018) não era da cidade, mas do país.

Como o poder é deteriorado a elite não se integra, e quando podem lavam as mãos, e as instituições são fatiadas. Delegacias e batalhões têm dono, ao mesmo tempo o subúrbio e as favelas são dominadas por organizações criminosas, traficantes e milicianos. Hoje o Rio tem mais traficantes e milicianos, bem armados, do que policiais na rua. O poder local é incapaz de responder a altura, tanto que o Supremo Tribunal Federal sem muita dificuldade intervém diretamente no modelo de ação das polícias, ao impedir operações em favelas. A descrença sobre os políticos é imensa, todos os governadores eleitos já foram destituídos do cargo, e quase todos eles presos – o atual pode ser o próximo.

Diante de tudo isso algumas coisas aconteceram, até mesmo pela sucessão de medidas emergenciais demandadas pelo estado. Desde os anos 1990 sucessivas operações de Garantia de Lei e da Ordem (GLO), em que as Forças Armadas atuavam para auxiliar na Segurança Pública. Em 2018 o governo federal decreta uma Intervenção Federal na Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro, tendo em vista o somatório de crise fiscal e política local. O problema da Intervenção foi ela ter acabado, pois precisa ser permanente. E nesse sentido entra a proposta que já circula de federalização do Rio de Janeiro através da criação de um Distrito Federal. Um deputado federal protocolou uma PEC (Proposta de Emenda Parlamentar) para a criação desse 2º DF, que dividiria atribuições com Brasília e iria desfazer a fusão de 1975.        

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