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Category: Revista Permanência 269Conteúdo sindicalizado

O número dos eleitos

 

Pe. Bernard Marechaux

 

 

 

Domine, si pauci sunt qui salvantur?

Senhor, são poucos os que se salvam? (Lc 13, 23.)

 

 

Primeira Parte: A Tradição

I – A fé e a razão

A fé em nada se assemelha às opiniões humanas: ela prescinde da concepção subjetiva do espírito – que variaria segundo os indivíduos – e corresponde à substância duma verdade firme e imutável.

A fé se fez a si mesma; por isso, a razão humana tem de aceitá-la como Deus a apresentou e não julgá-la, pois não é capaz disso; ademais, deduzir e coordenar as conseqüências que decorrem dela é um ministério belíssimo.

Em suma, a fé não é objeto submisso à razão, mas tem princípios que ultrapassam a razão, sem com isso contradizê-la. A fé tem regras e elementos de tal amplitude que deixam a razão (o termo, acreditamos, é de Bossuet) desconcertada, como as parábolas cuja imensa abertura escapa a qualquer medida. Por isso, a razão não se deve retirar ou isentar, menos ainda se insurgir, se na fé existem elementos que excedem a compreensão e a deixam escandalizada, por causa duma como incompatibilidade que a razão acredita haver encontrado. Nestes lances é obrigatório que a razão se imponha silêncio a si, humilhe-se e adore. Tão logo se humilhe e adore, decerto descobrirá, na obscuridade do mistério, as luzes que lhe hão de saciar a legítima necessidade de conhecimento, pacificar a inquietação – e quiçá deliciá-la.

Essas reflexões nos vêm ao espírito, no momento em que tratamos da temível questão do número – do reduzido número – dos eleitos, pois é este um dos problemas que mais incomodam as susceptibilidades e causam repugnância à razão humana.

Pois bem!, exclama a razão, poucos serão os eleitos? Perder-se-á eternamente a multidão do gênero humano? Seria frustra para a maioria da humanidade a redenção que o sangue de Jesus Cristo operou? Seria a misericórdia de Deus dalgum modo vencida pela justiça divina? Recolheria ela apenas poucos eleitos e deixaria cair no abismo eterno a avalancha dos condenados?

Assim fala a razão, seguindo o impulso da sensibilidade natural. Ora essa linguagem não é sóbria nem judiciosa. O número dos eleitos é uma questão de fato, sobre que o raciocínio perde todos os direitos. Dá-nos a Sagrada Escritura – expressão do pensamento divino – algum esclarecimento sobre o problema dos destinos humanos? Eis o que se deve buscar com espírito submisso, e uma vez exposta à luz meridiana a resposta da Sagrada Escritura, à razão só lhe cabe inclinar-se e adorar.

Na Sagrada Escritura se encontram a respeito do problema dos eleitos textos concordantes que sempre nos pareceram peremptórios.

Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição e muitos são os que entram por ela. Que estreira é a porta, e que apertado o caminho que conduz à vida, e quão poucos são os que acertam com ele. (Mt 7, 13-14).

São muitos os chamados, e poucos os escolhidos (Mt 20, 16 e 22, 14).

E alguém lhe perguntou: “Senhor, são poucos os que se salvam?” E ele disse-lhes: “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita (da penitência); porque vos digo que muitos procurarão entrar, e não o poderão”. (Lc 13, 23-25).

Ao nosso ver, as declarações do Salvador são duma clareza indubitável. Como negar que não se está falando da salvação das almas? Estão abertos os dois caminhos: o largo que conduz à perdição, e o apertado que conduz à vida. E é com dor que Nosso Senhor atesta, numa concepção abrangente, que muitos caminham no primeiro e poucos seguem o segundo.

E se alguém alegar que a misericórdia divina há de impedir à beira do abismo a maioria dos homens que nele se precipita? Nosso Senhor destroçou essa ilusão, quando à pergunta dos discípulos: “São poucos os homens que se salvam?”, respondeu ele: “Procurai entrar pela porta estreita; porque, digo-vos, muitos procurarão entrar e não o conseguirão.” Assim quem não se esforça a fim de entrar pela porta estreita, não há de ser um esforço tardio que lhe vai permitir a entrada, ficando deste modo do lado de fora.

Esses textos se nos apresentam – nunca é demais repetir – com tal clareza que nenhuma agudeza os poderia obscurecer.

Mas é preciso interpretar a Sagrada Escritura de acordo com o ensinamento da Igreja que, revigorando-se a cada época, constitui a chamada Tradição. Em qualquer ponto em que haja ambigüidade, a Tradição em último caso fixa a doutrina que os fiéis devem considerar de fato como a palavra de Deus.

Se o problema é o número dos eleitos – consultemos a Tradição.

Se a voz dos primeiros padres, dos doutores da Igreja, dos escolásticos da Idade Média, dos teólogos e dos célebres pregadores modernos nos declara que os eleitos, i. e. os salvos, são poucos em relação aos condenados, é evidente que o problema está resolvido. A Sagrada Escritura de per si já era bem clara; por seu lado, a Tradição não permite que nos desviemos do sentido óbvio dos textos, por isso estabelece duma vez para sempre a interpretação e a impõe como regra para os cristãos.

Eis como o Concílio de Trento estabelece a autoridade da Igreja e dos Padres, em relação à interpretação da Sagrada Escritura:

Para reprimir a petulância de certos espíritos, o Santo Concílio não permite que ninguém – apoiando-se sobre a prudência pessoal, nas coisas relativas à fé e aos costumes – ouse amoldar a Sagrada Escritura aos próprios sentimentos, e interpretá-la de encontro ao sentido que apregoou e apregoa a Nossa Madre Igreja, à qual pertence julgar o verdadeiro sentido e a verdadeira interpretação das Sagradas Escrituras, ou ainda contra o unânime e concordante ensinamento dos Padres.

Assim o espírito humano não está livre para seguir os próprios sentimentos em questões escriturárias: deve ele consultar a Tradição da Igreja e também o ensinamento dos Padres, que constitui uma parte importantíssima da Tradição. No momento em que se reconheça que a Tradição fixou o sentido dum texto, não é mais lícito buscar e abraçar outra interpretação.

Ora, já se pronunciou a Tradição sobre o problema do número dos eleitos? Têm os Padres um ensinamento unânime? É o que vamos estudar e relevar. Após analisarmos os Padres da Igreja, seguiremos o influxo da Tradição nos grandes teólogos da Idade Média, e depois nos autores mais santos e reputados da modernidade, que estão de pleno acordo com os Padres acerca do ensinamento do pequeno número dos eleitos, como iremos constatar. (Continue a ler)

Os tormentos do inferno

São Roberto Bellarmino

Caríssimos irmãos, quando contemplo o início e o crescimento da religião de Cristo e recordo os sinais e prodígios do Redentor, duas coisas me parecem admiráveis e quase inacreditáveis: a primeira, que existam pessoas que se recusam a abraçar a Santíssima Fé; a segunda, que aqueles que a abraçaram persistam no pecado.

Muitas foram as predições dos profetas, e quase unânime o consenso dos povos, e sem conto o número dos milagres, e imensa a esperança depositada em nossa Fé. Fomentou-a a caridade, fixou-a a antigüidade, confirmou-a a sucessão dos bispos e, enfim, fortificou-a a autoridade da Igreja Católica Romana. Por isso, quem não se assombraria com o fato de que, desde o início da pregação da fé, ainda se encontrem pessoas para as quais a doutrina da Igreja Católica Romana é inconsistente, pessoas essas que não temeram endossar os atos dos autores das novas seitas e, portanto, do Mestre dos Erros? Semelhantemente, como se é capaz de escutar que certos indivíduos acreditam na punição eterna para quem viole as leis de Deus, mas não se abismar que tais indivíduos – os que aderem a essa crença – não obstante pecam contra Deus com a mais descarada tranqüilidade e audácia?

Ora, se a certa hora a ninguém se permitisse meter os pés para além dos portões da cidade – em razão dum edito do rei – sob pena de morte por enforcamento, quem haveria de ser tão descuidado e negligente da própria segurança a ponto de, à hora proibida e na presença de inúmeras testemunhas, aventurar-se a pôr o pé para além dos portões? E se acaso, por um motivo qualquer, alguém o fizesse, não lhe invadiria mais tarde o medo, não apenas das testemunhas mas também do portão, como se tal objeto estivesse cônscio do crime que se cometera? Por seu lado, estão todos os cristãos persuadidos de que Deus Onipotente proferiu uma sentença irrevogável, em cujo teor se lê que, quem partisse desta vida culpado de violação [grave] 1 à lei de Deus, como condenado que é, seria ligado às correntes eternas e sofreria tormentos inauditos e infindos, [caso não se arrependesse dos pecados antes da morte] 2. Todavia, observamos dia após dia muitos que ofendem a Deus, sem que para isso sejam coagidos, instigados, e muitas vezes até sem serem convencidos, mas por iniciativa própria, de boa vontade e com boa consciência. Decerto, eles buscam as ocasiões de pecado, regozijam se as encontram e, se não, lamentam. Que haveríamos de apontar como causa disso?

Caríssimos, parece-me que há três causas principais: falta de meditação, ignorância e amor-próprio, a última das quais os gregos com maior propriedade e acerto chamam de filáucia. A falta de meditação não é a menor das causas; pelo contrário, talvez seja a principal razão por que o risco do tormento eterno, que está sempre a nos acossar a todos, não nos afasta do pecado. Para muitas pessoas não lhes falta a fé, mas antes a meditação atenta e diligente do que a Fé propõe e ensina. Por isso, acredito que empreenderia uma tarefa agradabilíssima a Deus e útil a vós se hoje, como prometi no sermão anterior, eu lhes puxasse pela memória e exibisse diante dos vossos olhos o quão horrível, atroz e inexorável são as torturas que Deus preparou para a gente ímpia e perversa. Mas antes de falar dos tormentos do inferno, convém fazer algumas refutações, apoiado em dois elementos que mencionei há pouco.

De início, porque ignoramos a gravidade e a magnitude do pecado, mal conseguimos acreditar nos tormentos infernais com que as Santas Escrituras admoestam os homens nefandos. Afirma Santo Agostinho, nestes termos: “Para a razão humana, a pena eterna parece dura e injusta, pois que nesta [nossa] enfermidade da razão carecemos do conhecimento da sabedoria pura e soberana, pela qual é possível sentir a grandeza da afronta cometida na prevaricação originária.” Se de fato entendêssemos a gravidade da falta, só com muita dificuldade alimentaríamos dúvidas acerca da severidade da pena. Gostariam de saber de mim a imensidão da gravidade do pecado? Caríssimos, é ele tão imenso que a consciência não consegue abarcá-lo, visto que sobrepuja as faculdades da alma humana e derrota a inteligência dos seres mortais. Será o pecado certamente um mal imenso e infinito, se medirmos a magnitude da ofensa com a medida da dignidade e da nobreza do ofendido, que são infinitas.

Bem sabereis o perigo e a gravidade da doença do pecado se a comparardes com a excelência e a dignidade do Médico e dos remédios necessários para a cura. Quando ouvimos dizer que há uma pessoa tão doente que, insatisfeita com os médicos das redondezas, manda chamar cirurgiões de lugares distantes e estranhos, e que necessita de drogas preparadas a primor e com grande custo, então nos seria lícito a nós – que não somos médicos – afirmar que tal pessoa padece duma enfermidade gravíssima. Que se há de pensar, pois, da doença do pecado, a qual nem a sabedoria, nem o gênio, nem o poder e nem as faculdades de todos os homens e de todos os anjos seriam capazes de curar? Se não descesse a mesma Sabedoria do seio de Deus Pai, e preparasse um remédio perfeito a partir do Sangue do seu Santíssimo Corpo, decerto a doença destruiria a humanidade inteira.

Verdadeiramente, caríssimos, não tivesse eu outro argumento para demonstrar a gravidade do pecado, este só bastaria para persuadir todos os homens de que qualquer falta cometida contra Deus é um crime tão incomensurável que – ao considerar a pena devida à falta – com muita justiça poderíamos afirmar: “Olhos ainda não viram, ouvidos ainda não ouviram, nem jamais penetrou em qualquer coração humano as torturas e tormentos que Deus tem preparado para aqueles que O ofenderam.” Por que Deus, a própria Sabedoria, desejaria fazer-se homem, ser levado a Cruz, morrer e destruir o reino do pecado, senão para derrotar o poder e o domínio [de satã] e se tornar Ele mesmo o exterminador do pecado? Se por vezes meditássemos nestas coisas, não nos inclinaríamos ao pecado com tanta facilidade, e teríamos uma opinião diferente das torturas do inferno. Mas voltemos às causas da persistência do nosso torpor.

Caríssimos irmãos, é assombrosa a força persuasiva do amor, do maldito amor-próprio. Ele é, por assim dizer, a persuasão encarnada; essa alcoviteira – poderosa por natureza – é tão aduladora que, com as suas manhas, convence quase todas as pessoas a cortejarem a crença de que não sofrerão nenhuma pena ou, se as sofrerem, hão de ser breves e parcas, mesmo que vivam vidas desonestas e iníquas. Esta é a origem da opinião célebre entre alguns filósofos que, segundo Aristóteles, atribuem a si mesmos a excelência dos seus feitos, esperando que o próximo lhes dê o crédito e a admiração pela autoria deles, ao passo que atribuem a causas externas toda a sorte de crimes e injúrias que não raro cometem. Por isso, se agem bem, desejam recompensa e, se mal, o perdão da dívida.

Um após o outro, os erros dessa raiz germinaram até na pena de escritores cristãos, erros que Santo Agostinho enumera e refuta no Livro XII d’A Cidade de Deus. Havia quem acreditasse que não existem penas reservadas para católicos, mesmo para os de vida corrupta. Já outros, de iniciativa própria, deram o veredito de que não apenas os católicos, mas até os hereges – se tivessem sido outrora católicos – estariam dispensados da pena eterna! Outros ainda afirmaram que nem os católicos, nem os hereges a que se conferisse o Sacramento do Batismo, padeceriam as torturas eternas. Há outros que, indo mais longe ainda, conceberam que todos os homens – fossem cristãos, judeus ou pagãos – seriam salvos no Julgamento Final, quer pelos próprios méritos, quer pela intercessão e sufrágios de outrem. Já chegaram a existir pessoas que prometeram a esperança do perdão e a salvação eterna não só aos homens, mas até aos demônios do inferno! Quem mais seria capaz de baralhar nestas pessoas o senso de compaixão e causar nelas a adesão a opiniões tão insensatas sobre as torturas do inferno, senão o amaldiçoado amor-próprio? Assim sendo, não nos deve espantar que o amor-próprio atualmente dissemine tais idéias entre indivíduos que só com lentidão e dificuldade compreendem que o perigo das insuportáveis torturas eternas também pairam sobre elas. Deveras, raciocina e diz entre si essa gente tola: “É claro que Deus não me teria resgatado a um preço tão alto, nem padecido tantos males aqui na terra, se Ele planejasse me jogar eternamente na masmorra, por causa duma simples blasfêmia ou outro crime qualquer!”

Em verdade, caríssimos irmãos, devemos nos insurgir contra essa opinião falsa e perniciosa e expor os frágeis fundamentos sobre que está assentada. Digamos que o nosso rei venha a se afeiçoar de certo homem obscuro, regalá-lo com cargos públicos e enfim alçá-lo ao governo duma bela e aprestada cidadela do seu império. Agora imaginemos que este tal conspire com inimigos contra o seu rei e lhes entregue a cidadela confiada aos cuidados dele. Se fosse o caso de que no curso dos acontecimentos esse homem fosse capturado e levado à presença do rei, que pensais que faria com ele o rei? O fato de que um dia o rei tivesse afeição pelo traidor lhe impediria de pronunciar as penalidades estabelecidas para a traição? Certamente, as penas seriam atrozes, e tanto mais quanto maiores os precedentes benefícios conferidos. Assim é conosco. Embora Deus nos tenha amado com amor sumo, enviado o Seu Filho até nós, disposto que Ele sofreria e padeceria muitas agonias para a nossa libertação – apesar de tudo isso, se desertássemos para o campo do inimigo e entregássemos as cidadelas da alma aos demônios, Ele ainda nos puniria com tormentos eternos.

Há alguém que ainda não ouviu a história do patriarca José? Venderam-lhe os seus irmãos como escravo, e quando lhe conduziram ao Egito, lá o comprou o mordomo de Faraó, que passou a lhe querer bem, nomeou-o supervisor de toda a sua casa e lhe confiou a administração de todos os negócios; porém, mal suspeitara que José houvesse seduzido a sua esposa e tivesse adulterado com ela, não se contentara em lhe arrancar a dignidade da prefeitura da casa, mas o mandou lançar no mais pestilento dos calabouços.

Que dizer dos anjos condenados? Não fora o Príncipe dos Demônios outrora o Príncipe dos Anjos? E como foi! Segundo ensinava São Gregório Magno, e bem antes dele Tertuliano, além de muitos outros escritores eclesiásticos, era ele o mais nobre e principal dos anjos, tanto assim que o grau da sua preeminência entre as obras de Deus passou a ser o de sua humilhação, desgraça e degradação. Donde na Sagrada Escritura é chamado de “Lúcifer” (Is 14.12), “O principal entre as obras de Deus” (Jó 40, 14), “o selo da semelhança (de Deus), cheio de sabedoria e perfeito na beleza.” (Ez 28, 13). Dele ainda Ezequiel: “teu vestido estava ornado de toda casta de pedras preciosas.” (Ex 28, 13). E ainda: “No jardim de Deus não havia cedros mais altos do que ele.” (Ez 31, 8). E igualmente: “tiveram dele emulação todas as árvores deliciosas que havia no jardim de Deus.” (Ez 31, 9).

Então, se o maior e o mais sábio e eminente dos anjos foi expulso do Paraíso, em razão dum único pecado, e arremessado no abismo, que há de acontecer conosco, que nos apegamos ao lodo dos inúmeros pecados, e nos indulgenciamos na benevolência e bondade de Deus? Como é possível fazer objeções a isso, se Deus afligiu não apenas os anjos mas até ao Seu Filho por causa dos pecados? Meus caros, Deus ama ao Seu Filho verdadeiro e dileto acima de tudo e, ainda assim, quando Ele carregou nos ombros todos os pecados e manifestou o desejo de satisfazer a ofensa deles, Deus o esmagou e, como apregoava o profeta Isaías, consumiu-o “com sofrimentos” (Is 53, 10). Deus O destinou para aflições e torturas que nunca nenhum ser humano provara nesta terra. Grande e implacável se mostrou o ódio de Deus contra o pecado, quando o Filho provou em Si a vingança severíssima dos crimes alheios! Mas “se isto se faz no lenho verde, que se fará no seco?” (Lc 23, 31). Nosso Senhor foi adornado com as primícias da salvação e iluminado com toda a graça e beleza espiritual. Se a raiva de Deus, incitada por crimes alheios, O vergastou com a chama da Paixão, de modo a reduzi-l’O ao “último dos homens, um homem de dores” (Is 53, 3), que se fará com a madeira seca, i. e., com os seres humanos desprovidos do orvalho da graça e da virtude? Ao que irá reduzi-los a fornalha do inferno, inflamada por tantos crimes, ultrajes e transgressões? Porque as coisas são assim, meus caros, não devemos sequer pensar em duvidar de que os castigos do inferno são insuportáveis e inenarráveis.

Entretanto, parece que escuto uma voz se levantar e objetar-me: “Já alguém retornou do inferno e confirmou que tais coisas são verdade?”. Ah, pergunta tola! Tanto mais temível é esse calabouço, justamente porque ninguém jamais conseguiu sair de lá! Se alguém retornasse do inferno, todos depositariam esperança em tal retorno. Como de lá nunca ninguém voltou, isso só prova que o inferno é um poço profundíssimo, donde não há saída possível.

Este bom-senso, se não tivéssemos outras fontes, aprenderíamos até nas fábulas. Por certo, narra a fábula que a raposa viu muitas criaturas entrando no covil do leão, mas nenhuma delas saindo de lá. Não se perguntou a raposa: “Ninguém vem para fora anunciar os riscos que existem no covil do leão; logo, não haverá nenhum risco.” A fábula, dizia eu, não nos conta que ela tenha dito isso, mas antes, ao contrário, conta-nos que a raposa se atemorizou ainda mais de aproximar-se do covil do leão pelo só motivo de que vira muitos entrarem e nenhum sair. Precisamos de mais confirmações? O poder divino já restaurou a vida a muitos mortos, que com palavras e atos nos referiram a magnitude das penas do inferno e, demais a mais, afiançaram de que elas excedem em muito qualquer coisa imaginável. São Gregório Magno, São João Clímaco e vários outros santos e doutores documentaram tais casos.

Deixai-me agora retornar ao ponto crucial do meu sermão. Em todo pecado existem duas malícias: uma é voltar as costas ao Sumo Bem Incriado, e a outra é voltar-se ao miserável bem criado [se comparado ao primeiro]. Semelhantemente, existem duas tristezas na pena correspondente à falta: a primeira se origina da perda da beatitude eterna, e a segunda das torturas e tormentos que assolarão igualmente a alma e o corpo. Chamam os teólogos a essas duas torturas de pena do dano e pena dos sentidos.

Falemos em primeiro lugar da perda da felicidade, que é das penas a mais rigorosa. Caríssimos, não é possível existir nenhuma punição inventada ou até imaginada tão monstruosa que não seja superada pela perda do Sumo Bem. O calor do fogo infligido ao corpo provoca dores insuportáveis, mas só lesiona a boa constituição e o temperamento do corpo, que no todo é um bem mediano e modesto. Quão brutal, então, será a tortura que há de afastar e separar [as almas] de Deus, cuja simples face é um bem tão incomensurável que santifica e contenta qualquer pessoa num instante! Entre os romanos [considerava-se] que dentre todas as punições a pior era de longe o exílio – i. e., quando obrigavam o cidadão, por causa de grandes crimes, a deixar a cidade, sendo assim despojado da convivência dos seus compatrícios, e a viver entre os bárbaros em ilhas ainda meio selvagens. Por isso afirmava Cícero, quando o exilaram, que havia ingressado como que num mundo novo; chegou ele a espantar-se e, por assim dizer, a confundir Céus e terra: “Contemplai a beleza da Itália!, exclamava ele, contemplai a celebridade de suas cidades e a delícia de seus territórios! Contemplai os prados, os frutos e a beleza de Roma! Contemplai a benevolência dos cidadãos e a dignidade e a majestade da República!” Que pesar imenso sentirá então quem for privado dos palácios do Paraíso, da Comunhão dos Santos, das regiões venturosas onde reinam a paz, o amor, a alegria e a tranqüilidade, e ressoa o hino de louvor e o júbilo, e se entoa o aleluia eterno e, acima de tudo, onde mora a Luz Puríssima, cuja face santifica e contenta quem a contempla! Que pesar imenso sentirá então quem for compelido a habitar para todo o sempre em calabouços infectos e em sentinas repletas de toda a imundície, “onde habita a sombra da morte, onde não há nenhuma ordem, mas um sempiterno horror” (Jó 10, 22), onde só se ouvirá a voz dos lamuriantes e blasfemadores, onde só se escutará o clangor dos malhos e o estalo dos açoites, na companhia da hoste dos demônios, monstruosos e bárbaros, e da escória dos pecadores!

Mas bem sei o que dirão os amantes desta vida presente: “Já não nos falta, nesta vida presente, tudo quanto mencionaste? Quem de nós reside em palácios celestiais? Quem de nós contempla luz puríssima? Mas nos entristece ou atormenta a falta disso? Pelo contrário: se nos fosse permitido sempre residir neste corpo e gozar dos bens da vida presente, pensaríamos ainda de leve nos bens do Paraíso?”

Caríssimos irmãos, esta é uma ilusão costumeira dos ignorantes, os quais não concebem que, após a morte, estimaremos as coisas que agora possuímos com outros olhos e outras idéias. São João Crisóstomo expressou essa mudança com estas belas palavras: “Quem arde no inferno perde para sempre o Reino dos Céus, e a perda do Reino é certamente uma pena maior que o tormento das chamas. Ora, sei que muitos temem o inferno, e sei também que a perda da glória celestial é uma punição muito mais amarga que o próprio inferno. Não é de espantar que eu não consiga descrever tais punições neste sermão, pois, assim como desconhecemos a bem-aventurança das recompensas divinas, naturalmente ignoramos de todo quais os efeitos de sua perda. Não obstante, certificar-nos-emos da magnitude desta perda, quando a experiência começar a nos instruir. Só então abriremos os olhos e retiraremos o véu; só então que os ímpios conhecerão – para a sua profunda aflição – qual é a diferença entre o Sumo e Eterno Bem e os bens frágeis e perecíveis deste mundo mortal”.

Para fins de ilustração deste tópico, tenham a bondade de aceitar a seguinte comparação, que foi a melhor que conseguimos. Existia certa vez um rei poderosíssimo, que não tinha filhos que o sucedessem na administração do reino. Um dia ele ouviu falar dum menino airoso e agradável de aparência, mas de origem humilde e meios parcos. Ordenou o rei que lhe trouxessem o menino, cuja instrução a partir daí foi confiada a tutores. Estipulou o rei que, se o menino quando chegasse à maturidade fosse educado, sábio, ajuizado e adornado de bons modos e de todas as virtudes, sendo assim pessoa conveniente para assumir a direção do estado, ele haveria de ser proclamado rei e soberano legítimo, instalado no trono real com cetro e diadema, e incumbido do governo de todo o reino; mas, ao contrário, se se transformasse num homem cruel, seria atado em correntes e condenado às galés, com toda a ignomínia e a desgraça da penalidade. Os ministros reais deram cumprimento imediato às ordens do rei: convocaram o menino e o confiaram aos tutores, que usaram de muita diligência ao educá-lo nas letras e costumes. Contudo, o menino deixou-se levar pelos outros meninos, sem notar os benefícios de que gozava. Mal o professor punha os pés fora da casa, o menino escondia o livro no canto mais escuro do quarto e vagabundeava o dia inteiro, construindo casinhas de cacos de vaso e brincando de piques. Já perto do pôr do sol o professor retornou e lhe fez uma sabatina das lições, mas o menino sequer se recordava onde pusera o livro. Irado o professor sovou o menino e apisoou as casinhas de caco; disse enfim ao pupilo: “Oh, se soubesses o que desperdiças com essas tuas criancices! Talvez aprendas mais tarde, mas só quando tal conhecimento já te não servir de nada.” Ora o menino, como menino que era, chorou com o castigo e a repreensão do professor, mas lamentou ainda mais as casinhas quebradas. Nem as palavras do professor, nem a vontade e o testamento do rei lhe pesaram no espírito. Decerto, no dia seguinte ele esqueceria a surra e a admoestação recebidas, e novamente construiria casinhas de cacos e voltaria aos jogos infantis. Quando o menino crescesse, os testamenteiros do rei se deparariam com uma pessoa rude e ignorante, e de modo geral incapacitada para governar o reino. Leriam para ele o testamento do rei, e então o poriam a ferros e o enviariam às galés na pior das degradações. Ora que pensais que mais lhe penalizou com lágrimas e amargura: a labuta das galés ou a perda do reino? Talvez escuteis de mim que ele lamentou amargamente a condenação às galés, porque não sou capaz de conceber um estado de vida mais desgraçado nesta terra. Certamente, a única esperança de quem foi sentenciado às galés é fartar-se de açoites. No entanto, tenho plena certeza de que o seu coração se angustiou e afligiu muito mais quando o despojaram da honra de governar o maior e mais suntuoso dos reinos, pois existe alguma coisa mais miserável e desgraçada para se dizer ou pensar do que a notícia de alguém que perdeu o mais esplêndido e nobre dos reinos, por causa de ninharias infantis?

Caríssimos irmãos, para quem de nós não se aplica essa parábola? Enquanto vivemos na terra, somos crianças. Não conhecemos nada de elevado, nem contemplamos nada de sublime. Estamos todos ocupados com assuntos burlescos e ninharias infantis. Quão ansiosos somos em amontoar casas de lama! Em que diferem elas das casas de cacos dos meninos, salvo serem algo maiores em tamanho? Assim é o entusiasmo dos mercadores, as ambições dos governadores e dos cortesãos, as obras dos arquitetos, as contendas dos reis e dos príncipes por cidades, províncias e reinos; assim também os processos judiciais dos cidadãos em torno de posses, limites e cursos d’água. Isso mesmo: são tudo ninharias! São ninharias só um pouquinho maiores que as das crianças, e por essa razão, escreve Santo Agostinho, são chamadas de negócios3. Apesar de tudo quanto mencionei serem ninharias, se comparadas aos negócios da vida futura, não por isso elas ainda ocupam a maioria esmagadora das pessoas, de forma que não consigam dedicar um pensamento sequer aos negócios do reino celeste, que é único negócio sério e verdadeiro [desta vida]. E tudo acontece sob a vigilância do Professor Celeste, que se encarregou de nossa instrução; talvez ele nos encontre merecedores de tomar posse do Reino dos Céus. Ele lamenta continuamente nossa inconstância e deplora: “Até quando amareis (à maneira de) crianças, a infância? (Até quando é que) os insensatos cobiçarão as coisas que lhe são nocivas?” (Pr 1, 22). “Por que amais a vaidade e buscais a mentira?” (Sl 4, 3). Então, com Seu pé Ele destrói nossas casinhas de cacos.

Deus confunde amiúde os nossos desejos. O mercador espera o navio cargueiro abarrotado de mercadorias do Oriente, e eis que escuta a notícia de que a embarcação naufragou e a mercadoria submergiu no oceano! Já outros depositam toda a esperança no filho e confiam que em breve ele há de se tornar doutor em teologia, canonista, até Papa! Constroem sobre ele as torres altaneiras de seus planos, mas eis que chega a notícia de que uma leve febre acometeu o filho, e que depois de alguns dias o filho chegou ao termo da vida! Outro homem é convidado a um casamento, a um elegante repasto, a uma ilustre recepção. Ele está pronto para ir, mas eis que fica indisposto e, para que se consume a cura, deve abster-se de vinho e comida!

Quem é esse, pergunto-vos, quem é esse que faz isso conosco? Quem é esse que frustra os pensamentos e conselhos dos homens? Caríssimos irmãos, quem faz tais coisas é o nosso Professor, e as faz não porque nos odeie, mas porque nos ama com ternura! Porquanto é Seu desejo limpar os obstáculos que nos impedem de avançar no caminho do Paraíso que Ele nos preparou. Deveras, quais crianças tolas, suportamos contrariados a destruição das nossas casinhas de cacos, a perda dos bens da terra e outros castigos do Senhor. E eis que de novo amontamos nossos caquinhos, mas não dedicamos nenhum pensamento ao Reino dos Céus, que está nos chamando quando nos flagela.

Mas virá o tempo, acreditai-me, virá o tempo em que teremos de passar pelos portões da morte para o outro mundo, mundo onde reconheceremos num instante que já somos homens adultos; neste novo lugar não é possível encontrar crianças. A passagem desta para a outra vida, pelo simples fato de ser passagem, já nos torna a todos nós homens crescidos! Ouviremos então a seguinte declaração: “O Reino dos Céus e as suas lindas moradas estavam sendo preparadas para ti. Se ao menos tivesses dado ouvidos à verdadeira sabedoria! Mas porque preferiste às tolices infantis, e desprezaste a voz e as admoestações de teu professor, serás lançado com ignomínia e vergonha nas trevas exteriores, onde ‘haverá choro e ranger de dentes’ [Mt 25, 30]”, e outras torturas e punições eternas.

Caríssimos irmãos, que diremos então? Que pensaremos dessas casinhas de cacos, dessas honrarias ridículas, desses negócios infantis, quando percebermos com a clareza dos raios do sol que por causa de sombras e sonhos fomos persuadidos a abrir mão de bens duma bondade inexplicável, bens realmente duráveis e imperecíveis? Oh, com que pesar o espírito do homem pecador irá lamentar: “De que nos aproveitou a soberba? De que nos serviu a vã ostentação das riquezas? [Sb 5, 8]. De que nos aproveitou correr terras e oceanos, a fim de juntar riquezas? De que nos aproveitou esgotar-nos de tanto trabalhar, a fim de sustentar nosso fausto no palácio dos príncipes? De que nos aproveitou empregar todas as finezas da arte para cortejar as honrarias, i. e., para cortejar terra e cinzas, a fim de alcançar as honrarias por nós mesmos? De que nos aproveitou atormentar a cabeça e gastar noites a fio em estudos, a fim de compreender os autores mais obscuros e deles captar algum raio de luz? Portanto, vede que tudo passa como sombra, ao passo que ignoramos a verdadeira honraria, a verdadeira riqueza, o verdadeiro prazer, a verdadeira sabedoria da verdade e o Eterno e Soberano Bem. E uma vez perdidas, já não há esperança de recuperá-las!” Caríssimos, há de ser tão grande o pesar de espírito que, apesar de todos os condenados saberem perfeitamente que os portões da beatitude eterna estão encerrados para eles e um imenso precipício se cavou entre eles e a morada dos bem-aventurados, a força do desejo natural os compelirá a implorar: “Senhor, Senhor, abre-nos” (Mt 25, 11).

Por isso, o sapientíssimo doutor São João Crisóstomo afirma: “Certamente o inferno é algo de intolerável. Quem desconhece que a pena do inferno também é horrível?” Ora, ainda que alguém postulasse a existência de milhares de infernos, não seria capaz de dizer nada que transmitisse com exatidão o que é ser excluído das honras da glória bem-aventurada do Paraíso, o que é ser odiado por Cristo e o que é ouvir Dele estas palavras: “Nunca vos conheci” (Mt 7, 23), sendo assim condenado porque negara comida e bebida a quem tinha fome e sede. Melhor seria agüentar a descarga de milhares de raios, do que ver aquele rosto cheio de gentileza e piedade desviar-se de nós, e aqueles olhos cheios de tranqüilidade incapazes de suportar a visão de nossa presença. A perda do Soberano Bem acarreta [também] a perda de todas as coisas boas. Que isso significa? Apenas que os olhos dos condenados nunca mais apreciarão belas paisagens, nem os ouvidos escutarão cantos suaves, nem o paladar provará sabores aprazíveis, nem o tato sentirá objetos macios. Uma vez excluído do consórcio com Deus, o homem ficará de uma vez para sempre mergulhado num oceano de sofrimentos e calamidades, sem esperanças de fuga.

Deixai-me terminar neste ponto o que tenho para contar sobre o Soberano Bem e prosseguir agora discorrendo sobre aquela tortura que os teólogos denominaram pena dos sentidos. Denominaram-na assim porque ela deve incidir sobre os sentidos e as forças, exteriores e interiores, no corpo e na alma. Comecemos com a tortura dos sentidos interiores.

Existem quatro faculdades espirituais, pertinentes ao assunto de que tratamos, que no inferno padecerão tormentos espantosos. A primeira dessas faculdades, os gregos a chamavam de “fantasia”, mas nós a chamamos de “pensamento”; a segunda é a memória; a terceira, a inteligência; e a quarta, a vontade.

A faculdade do pensamento padecerá de certos tormentos gravíssimos e opressivos, que o corpo e o espírito terão de aturar. Se, pois, nesta vida uma dor intensa pode subjugar e reprimir o pensamento dum homem a ponto de ele não conseguir parar de pensar nela, embora o queira com ardor, o que as penas do inferno – em comparação, muito maiores – farão às almas? Assim, o pensamento aguçará as dores, e as dores excitarão o pensamento; e ambos se estimularão mutuamente, de modo que as almas ou os corpos dos condenados não repousarão jamais. Essas dores serão objeto de perpétua contemplação de quem poderia ter meditado frutuosamente nestas coisas, mas se recusou a pô-las em prática, ou de quem despreza nesta terra utilizar seus pensamentos mais profícuos como rédeas contra a luxúria. Na vida futura, tais pensamentos serão os cruéis verdugos a atormentá-lo.

Também a memória será uma pesada cruz para as almas condenadas, quando ela lhes patentear a felicidade dos velhos tempos e os prazeres passados, pelo bem dos quais vieram a se abismar naqueles tormentos. Só aí conhecerão o verdadeiro sabor do sal generoso e da pimenta picante que se esparziam nos banquetes, que outrora lhes eram tão aprazíveis. Mas muito maior sofrimento haverá quando elas compararem a brevidade dos prazeres passados com a eternidade das tristezas presentes; quem poderia topar com um matemático tão erudito que fosse capaz de nos calcular a extensão do abismo que separa o tempo e a eternidade? Por isso, quantos brados não irão lançar? Quantos suspiros não irão arrancar do imo peito quando, ao meditarem com cuidado, descobrirem que os prazeres, que mal duram um instante, passaram qual sombra ou sonho, enquanto a tristeza não terá fim nem termo!

A inteligência, porque é a faculdade mais eminente e perspicaz, padecerá uma cruz mais intolerável, pois nesta faculdade habitará o verme com que a Sagrada Escritura ameaça tão amiúde os pecadores: “O seu bicho não morrerá, e o seu fogo não se extinguirá” (Is 66, 24). Assim como o verme brota da madeira e rói o mesmo pau donde foi gerado, assim o verme nasce do pecado e trava com o pecado uma guerra eterna. Este verme nada mais é que a penitência perpétua, cheia de cólera e desespero, cheia da dor que se origina dos pecados e crava as unhas nas almas dos condenados, tão logo percebam que perderam o Reino dos Céus e atraíram para si torturas indescritíveis por causa de seus pecados. Lemos no livro do Gênese que certa vez os egípcios gozaram sete anos de tanta fertilidade e abundância que abarrotaram os silos onde armazenavam os grãos. A estes sete anos se seguiram outros sete de tanta esterilidade e penúria que os egípcios foram obrigados a trocar dinheiro, campos, gado e até a si mesmos por grãos. Quem poderia descrever o profundo arrependimento que sentiram nesta época, ao se darem conta da negligência em armazenar os grãos no tempo em que o frumento transbordava dos celeiros? Quem poderia descrever sua aflição, porque não acumularam para o tempo da futura penúria, quando o diligente armazenamento de grãos não apenas os livraria da pobreza e da fome, mas também torná-los-ia muitíssimo mais ricos.

Caríssimos irmãos, o verme dos condenados é de tal natureza, que não descansa nem de dia nem de noite, pois rói, mastiga, devora e se alimenta das entranhas dos desgraçados pela eternidade afora. E os desgraçados tampouco esquecem a oportunidade esplêndida, que tiveram cá nesta terra, de evitar essas penalidades a um custo baixo, e de assegurar o Reino dos Céus por um preço módico. Nessas circunstâncias, injuriar-se-ão uns aos outros para sempre, e dirão: “Ai de nós! O Reino dos Céus se ofereceu a nós, e se ofereceu grátis. Mais ainda, quase que implorou para que o recebêssemos, mas recusamos. Se nós nos tivéssemos arrependido dos pecados e confessado, tudo haveria de ser perdoado! Por acaso, eram suplícios colossais a penitência e a confissão? Se implorássemos misericórdia, ser-nos-ia dada quase de imediato! Se implorássemos pela bondade divina, ei-la ali a nosso dispor! Ora, se oferecêssemos um copo de água fria em honra de Deus, lograríamos encontrar a vida eterna! Mas agora vamos jejuar para sempre, vamos ser afligidos para sempre – e não haverá frutos disso. Oh, precioso tempo, que já passaste e nunca retornará, eternamente! Que nos oferece o mundo para que ousemos provocar a terrível cólera de Deus? Sim, se nos oferecessem todos os reinos e impérios do mundo, e se nos afiançassem que deles gozaríamos por milhares de anos, que seria isso tudo, comparado à menor destas penas eternas? Mas o mundo não nos oferece reinos, nem impérios, nem duração certa, mas a mera sombra dum prazer miserando. E é por isso que nos obrigamos a suportar o fardo das torturas eternas? Oh, por que somos tão tolos e tão cegos? Quem nos roubou o entendimento? Quem nos cerrou os olhos e entupiu os ouvidos? Quem nos traz tão enfeitiçados, que não refletimos sobre essas torturas, nem dedicamos um pensamento a esse novíssimo? Quem nos traz tão enfeitiçados, que nunca nos precavemos contra tal pobreza, nem atentamos naqueles que nos deram bom conselho?” Se a faculdade da inteligência há de sofrer tudo isso, que diremos da vontade, que é a causa principal dos pecados?

A vontade sofrerá a tortura duma inveja furiosa, que afrontará a glória e a honra de todos os santos e do próprio Deus; pois, como canta o salmista: “Ve-lo-á o pecador, e se indignará; rangerá os dentes, e se consumirá” (Sl 111, 10). Os danados também não possuirão aquilo que desejam, pois “o desejo dos pecadores perecerá” (Sl 111, 10). Daí levantar-se-á na vontade dos pecadores um ódio implacável contra Deus, e do ódio por sua vez originar-se-ão maldições horrendas e blasfêmias inauditas, que nunca hão de sair de seus lábios e bocas; não terão eles a menor esperança de salvação redentora, mas saberão com toda a certeza que nunca voltarão às graças de Deus, e que as torturas nunca hão de findar ou mitigar-se; compreenderão que é Deus quem os mantém atados em cadeias, por assim dizer, às penas eternas, e que é Ele quem – desde o alto – ateia sobre eles o fogo, e que é Ele quem atiça as fornalhas do inferno com seu hálito poderoso. Os réprobos ficarão encolerizados como cães raivosos, latindo blasfêmias e injúrias sem cessar; amaldiçoarão a Deus porque os criou e os condenou à morte; amaldiçoarão a Deus porque Ele os matará para sempre, não consentindo em que morram; amaldiçoarão Seu poder porque os tortura imensamente; amaldiçoarão Sua sabedoria porque nenhuma infração escapa dela; amaldiçoarão Sua bondade, porque se transformou para eles em ferocidade e condenação; amaldiçoarão Sua Cruz e o Sangue derramado sobre eles, porque os beneficiou muitíssimo; amaldiçoarão a Rainha dos Céus, porque ela foi para muitos pecadores a Porta da Vida e da Misericórdia, mas para eles se converteu agora em cruel madrasta. Enfim, amaldiçoarão todos os santos, porque em meio aos tormentos observá-los-ão regozijando e exultando em triunfo. Essas maldições serão a eterna sinfonia de seus ouvidos, suas matinas e vésperas, os salmos e cânticos entoados no templo tenebroso dos demônios, onde o incenso será de enxofre, e os círios poços donde sobem fumo e fogo e, em vez das harpas e órgãos, rangido de correntes e rumor de malhos e chibatas.

Verdadeiramente, se a simples menção de coisas tão horrendas incute terror e impõe respeito, que será então aturar realmente, naquele lugar de eternidade, as coisas que se escutaram e disseram?  Que devemos fazer para que não sejamos compelidos a participar dessas solenidades tenebrosas?

Recorda o profeta Jeremias que o Senhor lhe mostrou dois cestos cheios de figos. Um deles continha figos bons, muito bons mesmo; o outro continha figos ruins, muito ruins mesmo, que não se poderiam de jeito nenhum comer. A não ser que eu esteja enganado, o profeta nos está ensinando que os dois tipos de figo são figura dos dois tipos de pessoas que haverá após esta vida. Por isso, todos chegaremos àquele estado que é bom, muito bom mesmo – ou que é ruim, muito ruim mesmo. Não há estado intermédio entre o estado dos bem-aventurados – que é bom, muito bom mesmo – e o dos condenados – que é ruim, muito ruim mesmo, porquanto o fogo do Purgatório, que alguns consideram um estado intermédio, arde até um tempo certo e definido, do que se depreende que todas as almas que agora estão lá ou que lá estarão [no futuro] serão partícipes da glória e felicidade eterna, alcançando aquele estado que é bom, muito bom mesmo. E com a ajuda de Deus lhes apresentaremos no próximo sermão o quão bom, muito bom mesmo, será o estado dos bem-aventurados; por sua vez, o estado dos condenados, que é ruim, muito ruim mesmo, ficará claro com o que já dissemos e ainda resta por dizer.

Assim manifestamos, com toda a nossa habilidade, que a tristeza decorrente da perda do bem supremo e que atormenta as faculdades da alma interior, é fortíssima e indescritível. Demonstraremos agora que as penas e torturas infernais que incidirão nos sentidos externos dos condenados são as mais atrozes de todas.

A recompensa dos bem-aventurados não é um bem particular em especial, separado e distinto doutros bens, mas um bem generalizado e comum, que contém em si todos os bens, prazeres e delícias. Assim a define Boécio: “Estado de perfeição, que consiste em possuir todos os bens.” De modo análogo, a pena dos condenados não é um pesar específico, que afetasse a cabeça ou os rins, os dentes ou os olhos, mas um mal generalizado que dissemina todos os sofrimentos pelos membros, articulações e sentidos do corpo. Nesta terra nunca provamos do sofrimento generalizado dos condenados, bem como nunca provamos o bem generalizado dos bem-aventurados, porque uma pessoa com dor nos olhos não sofre desta feita dos dentes, nem com dor de dentes sofre por isso dos olhos; esse padrão se aplica a todas as demais dores corporais. Porém, no inferno a dor atrocíssima há de ser uma só e simultânea, e acometerá rins e peito, e cada articulação, centro nervoso, medula, sentido e faculdade do corpo. Assim como o pecador usou os membros para ofender a Deus, assim não haverá parte, ou antes, não haverá a menor parte sua que não tenha torturador e algoz específico. Pergunto-vos: Que sentiria aquele de nós que, durante apenas um dia, fosse submetido à tortura geral dessa pena? Qual seria para ele a duração desse dia? Não lhe pareceria que cada momento dura mais que vários meses, e que cada hora, mais que vários anos? Sem dúvida, caríssimos, se víssemos na rua um cão sofrendo essa dor generalizada, não duvido de que ficaríamos comovidíssimos. Se for possível dalgum modo descrevê-las, eis aí a pena e eis a dor com que serão torturados os seres humanos condenados ao inferno, não apenas por um só dia, mas pelos séculos dos séculos. Mas procedamos a partir daqui a uma investigação mais atenta e diligente das várias espécies de penalidades.

Os olhos, porque observam todas as coisas, com muita justiça se oferecem como os primeiros à nossa consideração. Estes nossos olhos, aqui e agora, não os sacia o prazer: eles fitam avidamente as belas formas; quais depositários de curiosidades, voam ligeiros para assistir a espetáculos mesquinhos e ridículos; quais mulherengos impuros, levam amiúde imagens vulgares para a alcova do coração. A única coisa que não conseguem fitar é o infortúnio catastrófico dos pobres e miseráveis. Qual a cruz que há de torturar os olhos no inferno? Decerto, a primeira coisa que lhes aparecerá são as formas horrendas dos demônios: olhar um demônio é experiência tão horrível que dizem que algumas pessoas perderam a sanidade e outras a vida. Comentando o Salmo IX, conta São Bernardo de um de seus monges a quem certa noite lhe visitou uma figura pavorosa. Durante todo o dia seguinte, esse monge quase perdeu o tino por causa da visita, imaginando-se sempre em perigo. Até que, numa hora em que calhou de todos os monges estarem dormindo, ele deu um tal grito que os acordou a todos e os encheu de pavor. Cassiano, nas Colações, também relata que entre os antigos anacoretas [ermitões] às vezes assomava um temor tão forte do demônio – o qual fazia questão de lhes aparecer, mas sempre com formas horríveis – que ninguém tinha coragem de ficar só; tampouco os que compartilhavam celas ousavam dormir ao mesmo tempo: enquanto uns dormiam, outros faziam vigília, entoando salmos e hinos sem parar. Se neste mundo nosso os demônios podem reivindicar para si um poder tão grande sobre nós, e se aqui os tememos imensamente, que farão, pergunto-vos, que farão quando estiverem em seu próprio território, onde não precisam temer exorcismos, água benta, nem os méritos e as orações dos santos? Se eles vagueiam por aqui, donde são expelidos com tanta violência, que hão de fazer no país onde governam e dominam? Imaginem um homem andando pelo cemitério; se a mera suspeição da presença dos demônios o assaltasse, talvez fosse o suficiente para que ficasse de cabelos em pé e a voz se afogasse na garganta. Qual não será a confusão dos pecadores, quando naquele comum “Cemitério dos Condenados” encontrarem face a face com a multidão dos monstros, fantasmas e quimeras!

Além disso, que cruz os olhos dos condenados sofrerão, quando virem as suas esposas, pais e filhos nos mesmos tormentos! Hegesipo nos legou um relato da destruição de Jerusalém: Alexandre, filho de Hircano e capitão dos hebreus, quando quis infligir a algumas pessoas uma penalidade atrocíssima, ordenou a crucificação simultânea de oitenta prisioneiros na praça da cidade. Enquanto estivessem vivos, as esposas e filhos de cada um seriam cruelmente vergastados diante de seus olhos. Deste modo, os desgraçados padeceriam não uma mas muitas mortes. No inferno também não há de faltar essa punição: com imenso pesar, ali os filhos verão os seus pais e os pais verão os seus filhos, os maridos as suas esposas e as esposas os seus maridos; além disso, todos os que tiverem sido causa dos pecados de outrem, suportarão na companhia deles as torturas infernais!

Caríssimos irmãos, sei que nesta notável universidade [i. e., Lovaina, na Bélgica, onde se proferiu o sermão] a maioria dos moços – moços de fato modestos, pacatos, estudiosos e religiosos – está sendo cultivada e instruída. Estou ciente desse fato, em parte pelo que ouvi doutras pessoas, em parte pelo que observei em pessoa. Eu me regozijo imensamente com isso, e assim dou graças ao Senhor de todos nós. Mas o meu coração ficou muitíssimo contristado ao ouvir que, entre tantos moços direitos, existem corruptores e corrompidos, que circulam entre vós e assediam os simples de coração, seduzindo-os a freqüentar as bebedeiras, os bailes e outros estímulos à luxúria. Ai de vós, homens impuros, imitadores do diabo e flagelos da juventude! Ousais então invejar e roubar a dignidade dum bem tão excelente? Que hão de fazer quando, em meio à combustão das labaredas abrasadoras, virem-se na companhia daqueles a quem enganaram? Oh, quantas vezes não ireis repetir: “Morra o dia em que te vi pela primeira vez, morra o dia em que me empenhei em te manipular e enganar! Quando te jogava no vício da bebedeira e noutros crimes e escândalos, estava eu me jogando nestes tormentos!” Por sua vez, objetará o outro: “Morra o dia em que pela primeira vez te trouxe à minha companhia, ladrão e carrasco de minha alma; morra o dia em que pela primeira vez dei ouvidos aos teus discursos envenenados!” Eis o dueto e a sinfonia desses amaldiçoados, e tal sinfonia agora nos admoesta para que passemos dos olhos aos ouvidos.

Os ouvidos que outrora se deleitaram em canções licenciosas, regozijaram ao escutar infâmias e detrações contra vizinhos, ouviram indolentemente por horas a fio os mascates na praça pública, ao passo que se agastavam com um sermão de apenas uma hora na igreja – esses ouvidos, no inferno, só escutarão gemidos, urros, choros, contumélias, blasfêmias e maldições; pois, se no Reino dos Bem-Aventurados há de se entoar para sempre louvores divinos e aleluias melífluos, já no calabouço dos condenados há de ressoar para sempre gritos e blasfêmias; alguns desses hinos serão cantados no tom dos malhos e açoites.

Lembro-me de ter lido no livro Vida de Sula, de Plutarco, a seguinte história: certo dia esse cruel ditador ordenou se juntassem seis mil homens num pequeno círculo. Ao mesmo tempo, ordenou que o Senado deveria reunir-se num templo não muito distante dali. Daí então instruiu os soldados que, enquanto estivesse discursando, massacrassem os seis mil homens o mais rápido possível. Assim, quando Sula começou o discurso ao Senado, ouvia-se o estrépito e o fragor contínuo de inúmeras espadas, cujos sons se misturavam aos gritos e gemidos dos massacrados. O ditador advertiu os senadores para que escutassem os procedimentos na câmara, e não fossem curiosos nem prestassem atenção ao que acontecia do lado de fora. Entretanto, como todos os senadores ficassem apavorados e fora de si, mal puderam concentrar-se no discurso. Daqui é possível conjeturar qual “sinfonia” e quais “órgãos e harpas” escutaremos, se nos fosse permitido encostar o ouvido nos portais do inferno, onde não seis mil porém um sem conto de pessoas que choram, gritam e vociferam, serão massacradas, flageladas e golpeadas para sempre.

Que diremos sobre o sentido do olfato? Não existe sentina mais imunda, nem esgoto mais pestífero que se compare ao lago do inferno, onde se há de lançar toda a imundícia do mundo. São Vítor Africano descreve os tormentos que os vândalos arianos infligiram aos santos mártires, e assegura que um dos piores sofrimentos era o fedor da masmorra. A descrição do santo se refere aos Quatro Mil Novecentos e Noventa e Seis Mártires que juntos foram torturados no mesmo calabouço; ele relata que os vândalos jogaram literalmente os confessores de Cristo uns sobre os outros no recinto estreito do cárcere, como uma fieira de caranguejos ou, para falarmos com mais propriedade, como preciosos grãos de milho. Naquele amontoamento não havia lugar retirado para que alguém atendesse às necessidades da natureza. Premidos pela necessidade, deixavam as fezes e a urina num só canto, de forma que o fedor e o nojo superou todo o sortimento das punições. Os vândalos, por sua vez, sofreram severa punição na mão dos mouros, que eclipsaram aquela raça: os mouros conduziram publicamente ao mesmo calabouço os vândalos que, mal entrando lá, atolaram-se até os joelhos numa verdadeira voragem de lama. Assim os vândalos provaram na carne o cumprimento da profecia de Jeremias: “Os que se nutriam ente púrpuras, abraçaram o esterco” (Lm 4.5).

Meus caros, comparai a pena dos mártires com as torturas dos condenados. Havia poucas pessoas nas masmorras onde prenderam os confessores de Cristo; já nas masmorras do inferno haverá muitíssimas pessoas. Naquela, apenas a imundície humana exalava fedor; nesta, reunir-se-á em montão a imundície, o excremento, a carniça, a impureza e o fartum do mundo inteiro. Então, se o fedor do calabouço terrestre superou toda casta de punições, quem haverá de suportar o fedor do inferno, incomparavelmente mais impetuoso e horrendo? Quem consegue ler sem horror sobre aquela nova variedade de tormento que, seja verdade ou ficção, descreve o poeta latino ao cantar:

Vivos ligava a mortos, contrapondo

 Mãos a mãos (que tormento!) e boca a boca,

 E em triste abraço e pútrida sangueira

 Nesta agonia longa os acabava.

Virgílio, Eneida.

Livro 8, linhas 485-488.

(Tradução de Manuel Odorico Mendes).

Que diremos perante esse quadro? Que um homem vivo e saudável será atado ao cadáver frio; que o desgraçado definhará, porque aspirará o abominável odor, a bicharia e o chorume que porejam do corpo; que um homem vivo há de ser assassinado por um homem morto – e quem não se aterraria apenas ao escutar isso, e quanto mais quem o testemunhasse? Mas se tais métodos de punição nos parecem severos e monstruosos – como de fato o são – que dizer do fedor do inferno, que se levantará das pilhas de corpos putrefatos?

Mas se o sentido do olfato sofre tais punições, ficaria imune à pena o sentido do paladar, que de praxe é causa de crimes muito mais numerosos e graves? Meus caros, os beberrões e os glutões impuros não hão de conhecer – e conhecer de fato, pela primeira vez – a que custo adquiriram pratos e licores delicados, cujo preço de compra nesta terra estimavam de pouquíssima monta? Verdadeiramente, o sentido do paladar será torturado com fomes e sedes indescritíveis. Quem hoje não suporta um jejum de dois dias – e acha que a natureza não estará saciada, a não ser que beba ao ponto de se intoxicar e vomitar – há de ser torturado com fome e sede tais, que é impossível conceber ou excogitar pena mais dolorosa. Quem não se comoveria com as palavras do homem rico do Evangelho: “Pai Abraão, compadece-te de mim, e manda Lázaro que molhe em água a ponta do seu dedo, para refrescar a minha língua, pois sou atormentado nesta chama” (Lc 16, 24). Que pobreza maior que essa poder-se-ia imaginar? Que coisa mais insignificante poderia desejar um rico, que outrora “se banqueteava esplendidamente todos os dias” (Lc 16, 19)? Ele, que não se satisfazia nem com vinhos preciosíssimos, não busca sequer um copo d’água, nem implora a Lázaro – o que é mais incrível – que mergulhe a mão inteira n’água: pede tão-somente que Lázaro umedeça a pontinha do dedo em água – e nem isso lhe é concedido! Deram-nos a conhecer essas coisas, para que saibamos que os efeitos da sentença de excomunhão e interdição que o Senhor proferiu contra os condenados são tão universais que ninguém é capaz de levar-lhes o mais leve conselho ou auxílio: para onde quer que os condenados voltem os seus olhos ou estendam as suas mãos, saberão que todos os canais de conselho ou auxílio lhes foram interditos.

Os náufragos em alto-mar amiúde retesam pés e mãos, como estivessem se sufocando e pelejando com a morte; todavia, não deparam nada além de água, o que frustra todo o empenho que intentam para se agarrarem em alguma coisa. Eis o que acontecerá com quem se tenha abismado naquele derradeiro Mar de Misérias, sufocando-se ali para todo o sempre. Implorarão todos os tipos de auxílios, chegarão até a pedir socorro à própria morte, mas em vão, pois lá não existe ninguém que possa dalguma sorte lhes prestar o mínimo socorro.

Caríssimos irmãos, são de fato verdade tais coisas? Donde as aprendemos? Quem no-las contou? Foi Homero? Platão? Virgílio? Quem no-las contou foi a Verdade em Si, a Sabedoria de Deus em pessoa, que não pode mentir! Ainda existe fé no mundo? Ainda usam os homens a razão? Podem formar julgamentos sobre qualquer coisa? Como sobreveio esse torpor nos homens que costumavam acreditar em tais coisas? Somos diligentíssimos em repelir outros males menores; por que motivo então nos não dispomos a encontrar um modo de evitar as torturas infernais?

Entretanto, as penalidades que temos mencionado nem de longe são as piores: existem outras ainda mais gravosas. O parecer da justiça divina exige que o sentido do tato, pelo qual se cometeram tantos crimes, ultrajes, sacrilégios, impurezas e adultérios, sofra torturas ainda mais atrozes que os demais sentidos. O algoz desse sentido será o fogo, um fogo tão poderoso, intenso e eficaz que, comparado a ele, o nosso fogo terrestre parece não ser fogo verdadeiro mas pintado. Não podemos duvidar de que o fogo há de causar imensa aflição e tormento, porque foi Deus quem o destinou para executor de Sua justiça. Meus caros, imaginai um homem lançado vivo numa fornalha ardente, cuja portinhola se fechasse enquanto ficasse ele lá durante uma hora inteira. Se fôssemos contemplar atentamente qual seria a sua dor, não teríamos um entendimento claro, mas a mera impressão, por assim dizer, do que é viver no inferno. Pergunto-vos: quais ombros suportarão as chamas ardentes? Quais peitos se não despedaçarão na eternidade das torturas? Como indagava o profeta Isaías: “Qual de vós poderá habitar em um fogo devorador” (Is 33, 14)?

Precisamos dizer mais alguma coisa? Além dessa punição, acrescentar-se-á outra – e, decerto, não das menores – para que os condenados sejam atormentados não apenas com o calor do fogo, mas também com o frio intolerável! Se nos estearmos nas palavras de São Basílio Magno, nenhuma das torturas se comparará com a dor resultante da amaríssima rispidez do frio.

São Basílio nos deixou a história dos Quarenta Mártires. Queria um tirano crudelíssimo e ferocíssimo supliciar esses mártires com tormentos indescritíveis. Chegou à conclusão de que o melhor tormento seria a morte de inverno, porquanto habitavam numa região fria por natureza. Era tão intenso o frio que lá vigorava que certos lagos congelavam, a ponto de as pessoas andarem por sobre eles com carroças e animais de carga; a torrente dos rios mais caudalosos se petrificava no leito, e de rios que eram se transformavam em estradas pavimentadas de mármore. O tirano escolheu uma noite em que o setentrião soprava com todo o ímpeto, e ordenou que se expusessem os mártires nus ao relento, permitindo que morressem dum tormento prolongado e indescritível.

Esses, caríssimos, serão os jogos dos condenados, e essas as suas partidas, nas quais – como lamenta Jó – serão compelidos do excesso de calor aos chuveiros de neve, e dos chuveiros de neve ao excesso de calor. Não se tratam de invenções nem fábulas dos poetas. Escutai o que diz o Senhor a Jó: “Entraste, porventura, nos depósitos de neve, ou viste os depósitos de saraiva, que eu preparei para usar contra o inimigo, no dia da guerra e da batalha?” (Jó 38, 22,23). Escutai o salmista: “Fará chover sobre os pecadores carvão ardente e enxofre; um vento abrasador será a porção do seu cálice” (Sl 10, 7). E se essa “porção” é amaríssima, que seria então ter de beber o cálice inteiro? Ah, infelizes, quão melhor ser-vos-ia se nunca tivesses nascido! Ah, olhos miseráveis, que serão aterrados com as horrendas formas demoníacas e torturados com fumo espessíssimo, e que sempre estarão abertos para observar as próprias misérias! Ah, ouvidos miseráveis, que escutarão pela eternidade o ruído dos açoites e blasfêmias, e o lamento dos malditos! Ah, nariz desgraçado, que sentirá pela eternidade o fedor dos ambientes infectos e dos corpos putrefatos! Ah, barrigas e bocas miseráveis, que serão atormentadas com fome e inanição perpétuas e sede intolerável! Ah, membros ignóbeis, que habitarão no poço que vomita flamas sulfurosas! Quanto tempo durará: dez anos, vinte anos, cem anos? De jeito nenhum, pois isso ainda seria uma espécie de consolação. Verdadeiramente, há de durar pela eternidade e além – se fosse possível chegar a um além. Eternidade. Ó mundo fugaz, que nos prenuncia uma realidade tão durável!

Caríssimos fiéis, a natureza dessa eternidade é tal, que sem ela nenhuma punição se julgaria severa, e com ela nenhuma se julgaria branda; não obstante, será este o sal que irá condimentar as penas dos condenados, porquanto os anos de torturas serão tão numerosos quanto as estrelas brilhantes do céu, os grãos de areia da praia e as gotas d’água no oceano. E quando se houver esgotado este abismo de eras, será tão-somente o recomeço das dores. A roda irá girar infinitamente. Canta o salmista: “Como (um rebanho de) ovelhas são postos no inferno; a morte os apascenta” (Sl 48, 15). Os cordeiros pastam as folhas das plantas, mas não arrancam as raízes, de modo que as plantas cresçam novamente e por sua vez os tornem a alimentar. Assim será nas pastagens do inferno, onde se acharão os rebanhos dos condenados, o pasto dos tormentos e a Morte, o pastor da manada. A Morte conduzirá os condenados aos pastos, onde pastarão tormentos para sempre; a forragem nunca acabará, nem o cálice do Senhor, que terão de beber, esgotar-se-á. Enquanto o Reino dos Céus existir, as masmorras infernais perdurarão; enquanto os bem-aventurados regozijarem, os condenados padecerão; enfim, enquanto o próprio Deus viver, no inferno os réprobos morrerão. A não ser que Deus deixe de ser o que Ele é, não cessarão eles de ser o que são. Ó vida de morte, ó morte imortal! Que nome afinal te daremos a ti, Morte ou Vida? Se és vida, porque matas? Se morte, porque deves perdurar? Não nos é lícito chamá-la nem morte nem vida, pois que cada um desses estados comporta algum bem: a Vida tem sossego, e a Morte tem um fim – mas tu não terás sossego e nem um fim. Que diríamos que és tu, senão a totalidade do mal contido na vida e na morte? Da morte herdaste o tormento, e da vida a duração. Verdadeiramente, despojou Deus a vida e a morte do bem que nelas havia, e o que sobrou Ele colocou em ti! Ó poção envenenada, ó droga amarga! Todos os pecadores hão de tragar o cálice do Senhor!

Caríssimos irmãos, decerto seria algo excelente se pudéssemos entender um pouquinho que fosse a eternidade das penas, pois essa meditação por si só – qual uma rédea – refrearia toda a nossa luxúria e moderaria as nossas vidas, de forma que todos nos pareceríamos não apenas cristãos, mas monges e anacoretas santíssimos! Pensai na cruz que um homem acometido dalguma moléstia suportasse no decorrer duma única noite.  Quantas vezes não irá revirar-se daqui para acolá? Quão longa não lhe parecerá a noite! Quantas vezes conta as horas, e qual a duração de cada uma, segundo o julgamento dele? Que ansiedade não o acometerá à luz da alvorada! Quantas vezes se indaga quanto já se passou da noite e se o arrebol não tardará a aparecer! Se tal aflição nos parece enorme, qual não será a aflição dos que se deitarão não em leito macio, mas em labaredas ardentes e resplendentes, no decorrer duma noite sem aurora nem esperança de dia? Ó escuridão profundíssima! Ó noite, eterna noite! Ó noite, que a boca de Deus em pessoa amaldiçoou! Ó noite, que não há de ver o arrebol nem o esplendor da alvorada!

Caríssimos irmãos, se o mero pensamento dessa eternidade nos terrifica a nós, que será não [apenas] contemplá-la, mas abismar-se realmente nas penas eternas? O tormento eterno é uma coisa tão horrenda que, se tal pena incidisse apenas num só dos filhos de Adão, todos teríamos motivos para temer e tremer. Por que então não ficamos comovidos, quando sabemos com toda a certeza que o número dos tolos é infinito; quando sabemos que o caminho que nos conduz à vida é estreito e poucos são os que o encontram, e que o caminho da perdição é largo e muito são os que o percorrem [Mt 7, 13]? Se não acreditamos nessas coisas, onde está a nossa fé? Se acreditamos nelas, onde o [nosso] bom senso? Se temos boa cabeça e damos crédito às Escrituras, como é possível que ainda estejamos adormecidos, quando um perigo tão horrendo paira sobre nós? Como é possível que ainda nos agradem a bebedeira e a libertinagem, que ainda nos deleite a vida indolente? Por isso, cobremos ânimo. Sacudamos o torpor em alguma hora, para que assim alcancemos as dádivas da graça aqui nesta terra e depois da morte, na glória do Senhor, que para sempre seja santificado. Amen.

(Traduzido por Permanência a partir da tradução americana. Hell and its torments, TAN Books and Publishers, Inc; Rockford, Illinois, 1990.)

  1. 1. São Roberto Belarmino proferiu este sermão ante uma congregação, cuja maioria esmagadora era de universitários católicos; por isso, não havia necessidade de ressalvar as observações com as óbvias advertências da teologia católica, que aqui estão entre chaves. – N. do Editor do original.
  2. 2. Idem.
  3. 3. Negotium, negócio; de nuga, ninharia – N. do Tradutor do original.

Entre Papas e Cardeais

Dom Lourenço Fleichman, OSB

Eis que, surpreendentemente, nos preparamos para conhecer o sexto papa do Concílio Vaticano II. Tendo já ultrapassado a marca dos 50 anos do seu início (1962), não podemos dizer que as coisas, no meio dessa crise, sejam previsíveis. Ainda há espaço para sustos e surpresas.

O papa Pio XII1 morreu em outubro de 1958. Com ele morria uma visão ainda tradicional da vida da Igreja, da moral, da liturgia, dos dogmas e da influência impressionante que a Igreja mantinha há dois mil anos sobre os caminhos da humanidade. Mesmo sendo constantemente perseguida e maltratada, os maus não conseguiam avançar sem freios e sem limites, porque havia uma palavra divina, um homem vestido de branco, sentado na Cátedra de S. Pedro, e que servia de consciência para todos os povos, para governantes e súditos, mesmo quando estes já não eram mais católicos.

Não que fosse obedecido e amado. Mas era uma referência, e o mundo não se entregava ao mal sem temer a condenação que viria da Igreja. Com isso, a decadência era contida; seguia seu curso, é verdade, mas em ritmo mais lento.

Foi eleito, então, para o trono de São Pedro, o cardeal Roncalli, o papa João XXIII2. Descrito por seus historiadores como um homem simples, amigável, quebrando protocolos, conversando com todos, ficou conhecido como o “bom” papa João. Na verdade, seu espírito ecumenista data de muito tempo, como aparece em suas atividades de jovem bispo, na Bulgária, quando iniciou relações com os ortodoxos daquele país, ou em Paris, como Núncio. Em suas encíclicas, João XXIII dará provas de um pensamento liberal e equivocado, ao tentar assimilar as tendências de um mundo socialista para torná-lo aceitável dentro de uma doutrina católica que, para ele, devia ser aberta e tolerante. O resultado são textos dúbios, calcados em preocupações temporais de certa paz e de concórdia, isentas das exigências próprias do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo.  Desenvolvia assim temas caros à maçonaria, como direitos humanos, dignidade da pessoa e afins, que fugiam completamente das preocupações espirituais de um catolismo tradicional, voltado para a defesa do depósito da fé e da Revelação sobrenatural .

João XXIII fará, então, a convocação do Concílio Vaticano II, e depois de propagar como finalidade a não condenação das heresias modernas, desejou um concílio voltado para conversas pastorais, troca de experiências e um otimismo beato sobre o futuro da Igreja. Pior do que isso foi a cumplicidade do chefe da Igreja com os revolucionários que tomaram de assalto o Concílio, sob a batuta do Cardeal Lienart. Logo no início do Concílio, este prelado exigiu a substituição dos textos já preparados para debate, por outros, liberais, que um grupo de bispos já havia preparado em segredo e por debaixo dos panos. João XXIII aceitou tal revolução, assim como aceitou outras que viriam em seguida, dando a esses progressistas da Aliança Europeia o domínio completo das ações do concílio3.

No meio de tantas ambigüidades, aberturas e revoluções, não se pode admirar que o Concílio Vaticano II tenha estabelecido uma nova religião dentro de Roma e na alma do povo católico. O resultado terrível foi a perda da fé generalizada, a destruição da doutrina tradicional da Igreja, e a diminuição constante da sua autoridade moral e espiritual sobre os desígnios da humanidade.

Apesar de ter escrito textos com ideais maçônicos, visões naturalistas sobre a vida social e política, de ter mesmo mantido certas relações com a maçonaria, não se conhece provas cabais de que tenha sido, ele próprio, maçon. Não nos parece fonte fidedigna um ou dois livros escritos por maçons, onde se afirma tal relação. Claro está que interessa a esta seita secreta vangloriar-se de ter tido um papa no seu grêmio, o que tira desses autores qualquer valor histórico.

O cardeal Montini4 era Patriarca de Milão quando foi eleito no lugar de João XXIII. A porta do erro e da decadência tinha sido entreaberta por João XXIII, ela será escancarada por Paulo VI. Quando trabalhava na Secretaria de Estado do Vaticano, o bispo Montini recebera um castigo grave por ter mantido contatos com os comunistas de Moscou nas costas de Pio XII. Será afastado de Roma. O erro de Pio XII foi ter dado a este bispo desobediente uma diocese cardinalícia, mesmo não tendo recebido esta honraria do papa Pacelli. Será cardeal no 1º consistório de João XXIII, abrindo caminho para a sua eleição, poucos anos depois.

Com Paulo VI a Igreja verá um tempo de destruições. Todo o belo edifício doutrinário e sacramental da Igreja será demolido. Não sobrará pedra sobre pedra. Todos os sacramentos serão reformulados segundo o novo espírito, a missa nova será assinada, sendo mais um culto protestante do que verdadeira missa; a disciplina eclesiástica será tão mitigada que os escândalos sexuais começarão a surgir de todos os lados. A fé será ultrajada, com padres e bispos deturpando a divindade de Nosso Senhor, a perpétua virgindade de Maria, a natureza da revelação, a sacralidade dos ritos e sua eficácia. Enfim, tudo será abalado. A destruição será o resultado de um grande terremoto religioso. E o povo fiel perderá a fé sobrenatural e até mesmo a noção do que seja essa fé.

De João Paulo I5 só podemos dizer que deu a impressão de querer reverter o quadro de destruição, senão na questão de fé, pelo menos nas influências maçônicas dentro do Vaticano. Não teve tempo. Seu pontificado durou 33 dias, e muitos afirmam que foi assassinado.

João Paulo II6 dará continuidade à obra do Concílio Vaticano II, cabendo a ele a reconstrução de todo o edifício destruído por Paulo VI, mas agora com o novo espírito do Concílio. Terminará a reforma dos sacramentos, fará um novo Código de Direito Canônico, prosseguirá a reforma completa da Cúria Romana, publicará o novo Catecismo oficial, nova tradução oficial da Bíblia, nova Via Sacra, modificando até mesmo o Rosário da Virgem Maria. Além disso, levará o ecumenismo ao seu ponto mais afastado da verdadeira fé católica, instituindo os encontros de Assis, onde todas as religiões enviam seus chefes para rezarem juntos, significando que pouco importa a religião de cada um. Desse encontro heretizante, surgirá o que o papa chamou de “espírito de Assis”, um novo espírito que passa a governar a Igreja de Vaticano II.

Finalmente, Bento XVI7, que ainda é papa quando escrevemos esse editorial, apesar de ter tido algumas atitudes mais conservadoras, jamais renunciou à obra do Concílio, nem mesmo se permitiu diminuir a influência deste sobre seu pensamento e seus atos.

Suas encíclicas dão prova dessa influência constante do Concílio, mesmo dos textos claramente opostos à doutrina católica, como Gaudium et Spes, freqüentemente citado pelo papa. Tomemos como exemplo a primeira encíclica, Deus Caritas est8 , onde Bento XVI envereda por certa tese acadêmica sobre a noção de amor. Mas não consegue se livrar dela ao abordar a questão do amor como está no Novo Testamento, e faz comparações do amor divino em termos de Eros e Agape, no mínimo, inconvenientes.

Essa tendência intelectualista de escrever teses aparece também nas demais encíclicas do papa. Em Spes Salvi9, a erudição é grande, mas o espírito católico fica de lado, jamais encontrando a definição clara do dogma católico sobre a virtude da Esperança. Em Caritas in Veritate10, o papa faz o elogio da Populorum Progressio11,  de Paulo VI, sobre a política e desenvolvimento dos povos, sob o enfoque liberal do Concílio Vaticano II.

Em nenhum momento Bento XVI apresenta a doutrina católica pelo seu dogma, por aquilo que ela tem de imutável e eterno. Sempre reflexões, aberturas, autores estrangeiros ao catolicismo e mesmo inimigos da fé são convidados à mesa de “discussões” de Bento XVI. O grande sucesso desses textos junto aos novos católicos desse mundo de hoje deve-se mais à imensa ignorância que se tem da verdadeira fé, do que à fidelidade da doutrina ali contida.

Todos os seus livros, mesmo aqueles contendo erros graves de tempos mais progressistas, foram reeditados depois de se ter tornado papa, e jamais ouvimos de sua boca um sinal de querer mudar o que antes escrevera.

Se, por um lado, escreveu o Motu Proprio Summorum Pontificum, em 2007, afirmando que a missa tradicional nunca fora ab-rogada e pode ser celebrada, não se vê interesse, no Vaticano, em defender a causa de tantos padres que são perseguidos por seus bispos diocesanos e impedidos de celebrar a missa de sempre. De certa forma, o Motu Próprio serviu para confirmar e estender a perseguição, pois ela agora se aplica também a padres diocesanos mais conservadores.

Mais tarde, em 2009, teve a coragem de levantar as falsas excomunhões impostas aos quatro bispos da Fraternidade São Pio X, mas logo viu-se obrigado a dar explicações numa carta que escreveu a todo o clero. Ainda aqui, Vaticano II era como um manto que cobria todo o pensamento do papa.

 

Finalmente, ordenou que se recebesse uma comissão teológica da Fraternidade S. Pio X, para debater os pontos de litígio apresentados por esta. Após dois anos de debates, o impasse impediu que se prolongassem as conversas, pois os representantes do Vaticano não aceitavam que a doutrina progressista do Vaticano II se opunha à Tradição católica. Queriam de todas as maneiras forçar o pensamento em aceitar que Vaticano II estaria na continuidade da Tradição, mesmo diante de evidentes contradições.

Dessas conversas surgiram, em 2011-2012, tentativas de um entendimento prático que daria à Fraternidade um estatuto oficial reconhecido por Roma. Mas após meses de grandes angústias nos meios tradicionais, o próprio papa encerrou a conversa, afirmando, em carta pessoal ao Superior Geral da Fraternidade, que a aceitação do Vaticano II, dos ritos novos, do novo espírito, era exigência para um reconhecimento da Fraternidade.

Agora, diante da surpresa da renúncia do papa, nos deparamos com mais uma grave questão. O tempo todo, Bento XVI se refere ao seu ministério. Sempre que fala da renúncia, refere-se a esse ministério petrino. Temos a impressão que os próprios papas desse catolicismo deformado já não acreditam muito na realidade que lhes foi imposta pelo Divino Espírito Santo. Falam como se tivessem aceito uma função, como um acionista de grande empresa aceitaria ser Diretor Presidente por certo tempo. Aliás, faz parte da linguagem transformada pelo Vaticano II, chamar a esse ministério, de “serviço”, o que só vem reforçar essa triste impressão. E essa constatação nos faz lembrar aquelas palavras antigas de Mons. Marcel Lefebvre, quando afirmava que nós, os que guardamos a Tradição contra os detratores da Igreja, somos os verdadeiros defensores do papa e do papado. Eles próprios já não acreditam mais no poder sobrenatural do sucessor de Pedro.

O pontificado de Bento XVI não trouxe nenhuma solução aos graves problemas de fé que assolam a Igreja há décadas. O estilo tornou-se mais comportado, mais conservador na liturgia, mais intelectual nos escritos; porém, o naturalismo horizontal, o ecumenismo irenista onde cada qual encontra o seu deus e se sente bem, o liberalismo político e social e a oposição constante à Tradição da Igreja, continuaram até o fim. E a crise não terminou.

Estes são os papas do Vaticano II. Eles o fizeram, prosseguiram, impuseram ao povo católico sem se preocuparem se era da vontade de Deus ou para a salvação das almas. Da noite para o dia, uma missa sem sacrifício e sem cruz foi imposta, sob penas severas, a todos os padres. Muitas almas perderam a fé, escandalizadas pelo que viam acontecer na Igreja. Outras a perderam por terem absorvido o novo espírito de Vaticano II, tornando-se protestantes sem se darem conta. Paralelamente, o laicismo invadiu toda a Igreja, causando um esvaziamento impressionante dos mosteiros e casas religiosas. Muitos conventos fecharam as portas e foram vendidos para se tornarem museus ou escolas. O número de católicos foi diminuindo em todo o mundo e já não podemos mais falar de uma Civilização ocidental Católica, aquela impressionante herança dos mil anos de Idade Média, que formaram a Europa e o mundo católico.

Enquanto isso, os papas e bispos, ao longo desses últimos 50 anos, nunca conseguiram enxergar a realidade do mundo segundo a verdade de Deus. A todo momento interpretam os desastres, acidentes, guerras e tudo o mais com palavras pacifistas, moles, sem eficácia e sem sentido. Raras vezes atribuem os escândalos ao pecado e nunca se ouve um chefe católico se preocupar com a condenação eterna das almas. Só falam de uma falsa paz, só pregam a concórdia nessa vida, só se preocupam com o corpo do homem e sua felicidade na terra, e de salvar as aparências de certa “decência” boazinha.

Um novo papa será eleito. Humanamente não há nada que nos incline a achar que algum dos cardeais possa vir a restaurar a Igreja e ajudar as almas a se salvarem. Todos eles, para chegarem onde estão, aderiram de todo o coração aos desmandos desse maldito concílio que tanto mal trouxe para a Igreja e para as almas. Estão, pois, certos de que devem continuar a propagar esse Humanismo com tintas de religiosidade, que tudo contaminou.

Não temos preferências. Se for eleito um péssimo cardeal, progressista, destruidor, as coisas podem ficar mais claras, a evidência da falta de fé ficaria mais patente, o que nos ajudaria a segurar melhor a espada do bom combate. Por outro lado, a perseguição se tornaria mais amarga, e nós teríamos apenas a graça divina como sustento, o que já é nossa condição há 50 anos. Se for eleito um cardeal “conservador”, veremos as mesmas ambigüidades atuais perdurarem na Igreja. Cada vez que o papa falar em latim, ou celebrar uma missa mais conservadora, os blogs conservadores de plantão darão urras de alegria e dirão que o papa está restaurando a Igreja.

Mas Deus vomita os mornos e não aceita que a defesa da sua Igreja seja feita por homens cegos, ingênuos e débeis. Porque a restauração da Igreja só poderá ser realizada quando nós merecermos, por nossos sacrifícios e dores oferecidas, pelas humilhações e perseguições suportadas, pela constância das nossas orações e das nossas lágrimas. Somente assim o Divino Espírito Santo realizará o milagre da conversão de um papa. Sem essa conversão espetacular, espiritual, sem que o papa entenda na fé, ao menos em parte, todo o enlace da crise atual, não haverá grandes mudanças no horizonte da Igreja.

Peçamos a São José, esposo da Virgem Maria, protetor da Santa Igreja, e a São Miguel Arcanjo, chefe da milícia celeste, que nos permita ver com nossos olhos, ouvir com nossos ouvidos, o dia abençoado em que tal conversão chegará ao coração do sucessor de São Pedro.

(Editorial da Revista Permanência 269)

  1. 1. Eugênio Pacelli (1876-1958)
  2. 2. Angelo Giuseppe Roncalli (1881-1963)
  3. 3. Cf. Wiltgen, Ralph, S.V.D., O Reno se lança no tibre, Ed. Permanência
  4. 4. Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini (1897-1978)
  5. 5. Albino Luciani (1912-1978)
  6. 6. Karol Józef Wojtyła (1920-2005)
  7. 7. Joseph Alois Ratzinger (1927-2005)
  8. 8. 25 de dezembro de 2005
  9. 9. 30 de novembro de 2007
  10. 10. 29 de junho de 2009
  11. 11. 26 de março de 1967
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