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Itinerário espiritual da Igreja católica - introdução

INTRODUÇÃO
 
Em nossa extrema miséria, os membros da PERMANÊNCIA procuramos durante muitos anos conservar algum tipo de reunião que nos aproximasse um dos outros em razão do amor a Nosso Senhor, para que, de algum modo, encontrássemos um ambiente em que se falasse de Deus e para Ele se voltassem nossos esforços.

Desaparecido o Prof. Gustavo Corção, fundador da PERMANÊNCIA, deixamos de contar com os cursos que ele nos dava, cursos de religião ou de teologia para leigos com que supríamos a falta de sacerdotes ou bispos que nos assistissem com a verdadeira Fé e com a doutrina da Igreja de sempre. A situação ficou pior depois de sua morte. A missa tradicional que tínhamos conseguido, recolhida e discreta, alegria de nossos domingos, perdemo-la por denúncias de equivocados e zelo implacável do Cardeal do Rio de Janeiro. Durante muito tempo, antes que os padres de Campos pudessem vir em nosso socorro, vimo-nos obrigados a contar apenas com nossa reunião semanal para manter entre nós algum tipo de associação que nos reunisse por causa do amor de Deus.
 
E nessas reuniões, embora conscientes da distância enorme que nos separava do valor de um Gustavo Corção, procuramos manter o mesmo espírito das suas aulas e as mesmas idéias, os mesmos princípios que aprendemos com ele.
 
Foi com estas idéias e com estes princípios que formulamos nossos juízos e tomamos posição diante de certas personalidades — o Papa sobretudo — e de certos eventos, que se tinham agravado desmesuradamente depois da morte de Gustavo Corção. O que desde então vimos e ouvimos teria causado a morte de Corção por sufocamento, se ele não tivesse sido misericordiosamente poupado do que estava para vir, morrendo um mês antes de Paulo VI.
 
O assunto que mais nos interessou nos cursos com que tentamos seguir, em nossas reuniões, as pegadas de quem tinha sido nosso mestre foi não uma História da Igreja propriamente, mas uma História do itinerário espiritual da Igreja. É desses cursos que, instados por alguns ouvintes, procuramos redigir um resumo para uso dos moços que se aproximam de nós, terceira geração já — louvado seja Deus — que se segue àquele grupo de homens e mulheres que se encontraram em torno de Gustavo Corção no antigo Centro Dom Vital trinta anos atrás; os quais se casaram, muitos com moças e rapazes que encontraram ali, e tiveram filhos que, por sua vez, se casaram (só no nosso pequeno grupo se formaram quatro casais, moços e moças que se encontraram em nossos cursos). Hoje vemos com alegria novos moços e moças que se aproximam de nós, sobretudo por causa da missa tradicional, e que logo se interessam em seguir nossos cursos e pedem ensino e explicações. Louvado seja Deus. Que para honra e glória de Nosso Senhor e bem das almas sobretudo de tais moços possam servir estas páginas, que são nessa intenção oferecidas. E comecemos esta tarefa como convém aos que procuram servir a Nosso Senhor: pelo sinal da Santa Cruz, em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo. Amém.
 
Tomamos, para nosso percurso, três pontos de referência. São eles: em primeiro lugar, o principal, o fundamento e fim, origem e objetivo de toda a obra de Deus, o Cristo crucificado sobre o monte Calvário; em segundo lugar, como que um modelo essencial da espiritualidade de uma sociedade católica, modelo de viver do Corpo Místico de Cristo, os tempos cheios de graça descritos nos Atos dos Apóstolos; em terceiro lugar, exemplo do máximo transbordamento dos valores, das idéias, da mentalidade católica sobre a vida civil, os tempos dos séculos XII e XIII, a civilização medieval cristã, em que a mentalidade comum de bons e maus era polarizada pelos fins ensinados pela Igreja para a vida de cada um, tempos em que a unidade espiritual nascida da Igreja prevalecia sobre contendas e rivalidades: “[...] Reis cristãos ajoelhando, inimigos e irmãos, quando, processional, o andor passasse”, como diz, descrevendo a Idade Média em um só verso lapidar, Fernando Pessoa (Cancioneiro, “Passos da Cruz”, IV).   
 
O CRISTO CRUCIFICADO SOBRE O CALVÁRIO
 
Tomemos alguns textos:
 
“Ele é a imagem de Deus Invisível, o primogênito de toda a criatura; porque n’Ele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, quer sejam os tronos, quer as dominações, quer os principados, quer as potestades; tudo foi criado por Ele e para Ele [...] e Ele é a cabeça do corpo da Igreja, e é o princípio [...]. Porque foi do agrado [do Pai] que residisse n’Ele toda a plenitude, e que por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas, pacificando, pelo sangue de sua cruz, tanto as coisas da terra como as coisas do céu” (São Paulo, Colossenses I, 15-20).
 
São João, no Prólogo de seu Evangelho, também nos diz:
 
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi feito do que foi feito [...]. E o Verbo se fez carne e habitou entre nós [...]” (I, 1-14).
 
E ainda:
 
“Porque Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu seu Filho Unigênito, para que todo o que crê n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna” (Id., III, 16).
 
Todos sabemos, pelo catecismo da Santa Igreja, que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnou assumindo uma natureza humana, e que Jesus Cristo, Filho de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, morreu na cruz para pagar por nós nossos pecados e desse modo obter para nós a reconciliação com o Pai, fato a que faz alusão o texto de São Paulo acima citado. O Verbo, como Deus, é impassível, não pode sofrer, ninguém nem nada pode atingi-lo. Mas, verdadeiro homem também, Jesus pôde sofrer e morrer na Cruz, expiando assim todos os pecados. Verdadeiro Deus, na sua única personalidade, pôde emprestar ao seu sofrimento e morte na Cruz um valor de infinita reparação, redimindo por isso a todos os pecadores e podendo por isso obter para eles aquela reconciliação. Mas o texto de São Paulo diz ainda que pelo sangue de Cristo na Cruz foram reconciliadas com o Pai todas as coisas, pacificadas por aquele sangue, tantos as coisas da terra como as coisas do céu. Isto é, foram reparados tanto os pecados dos homens como os pecados dos anjos.
 
Assim, toda a economia não apenas da salvação mas da própria criação do céu e da terra depende, de algum modo, daquele Crucificado no topo do monte Calvário. Mas ela não constitui uma espécie de “risco” que Deus teria assumido admitindo ser ofendido pelo pecado para em seguida ver reparada a ofensa pelo sacrifício cruento de Seu Filho.
 
A presciência eterna de Deus mostra-Lhe de antemão que o universo que começará a existir por ato seu dará ocasião ao pecado, e é desde logo o mistério da permissão divina que se põe. A Igreja ensina que Deus só permite o mal em vista de um bem maior, e este bem maior é o Cristo crucificado, o Verbo que encarna para oferecer a Deus infinita reparação de todos os pecados de todos os homens e de todos os anjos maus, e para redimir os homens, os únicos que podem ser redimidos. Assim, é porque a reparação infinita Lhe é dada como que antecipadamente que a criação do universo se torna possível, e que a graça santificante é dada desde logo aos anjos e a Adão no Paraíso.
 
Também a história antiga da salvação dos homens é, toda ela, uma antecipação de graças devidas ao Calvário. É por uma antecipação que o Espírito Santo fala pelos profetas, e as intervenções de Deus preparam um povo com antecipações de Sua Revelação e de suas graças para que, em seu meio, nascesse o Salvador, segundo a riqueza e a profundidade daquilo que Nosso Senhor tinha preparado para a consumação de seu aniquilamento. Toda a vida espiritual, toda a piedade do Antigo Testamento tinha os olhos voltados para “aquele que devia vir” e encarnava em figuras como a de Simeão ou da profetisa Ana, que viviam no Templo à espera.
 
Por outro lado, enquanto não ocorre a consumação, a economia da Graça divina é como que limitada, parca, concedida a conta-gotas. Palavras de São Paulo deixam claro que a “lei” não santificava (Gálatas III, 2, e Romanos I a III), mas apenas a promessa, uma vez consumada. E vê-se que apenas alguns recebiam abundância de graças, para preparar os outros para o Advento. Mas não a todos as graças de Deus eram distribuídas então do modo por que o são hoje.
 
E se, não obstante tal restrição, foi tamanha a glória da santidade de um rei Davi, de profetas como Isaías e tantos outros, e de tal beleza e de tanto empenho o cuidado de Deus em favor daquele pequeno povo, tantas vezes ingrato, o que não seria quando do advento do Reino?
 
Ainda assim, a economia da Graça vai mostrar-se restritiva e gradativa quando da habitação de Jesus entre nós. É para uma progressiva formação dos Apóstolos e outros discípulos que Ele vai mostrando, pouco a pouco, quem é, e para isso vai concedendo, pouco a pouco, as graças necessárias. Ele mesmo o diz: “E, desde os dias de João batista até agora, o Reino dos Céus adquire-se à força, e os violentos arrebatam-no” (Mateus, XI, 12), isto é, alguns poderiam (e Santa Maria Madalena talvez o tenha alcançado) como que “invadir” a misericórdia divina e obter desde logo a abundância das graças. Mas, para os Apóstolos e demais discípulos, a preparação se faz pouco a pouco.
 
Na Ceia e depois, ao soprar sobre eles e começar a dar-lhes o Espírito Santo a fim de os preparar para Pentecostes, ainda os vai formando, até o fim, e ordena-os sacerdotes também por partes. Mas eles ainda não estavam preparados inteiramente, porque ainda não tinham a superabundância do Espírito Santo presente em suas almas, como irão ter no dia de Pentecostes e como temos nós a partir de então. Com efeito, em Pentecostes, as línguas de fogo infundem toda a força do Espírito Santo nos Apóstolos e nos demais discípulos, que agora se mostram renovados, íntegros, dispostos, santificados e preparados para a missão que lhes fora confiada (é só ouvir como, agora, fala com sabedoria o mesmo São Pedro que ainda nas vésperas, ao subir ao céu o Senhor Jesus, Lhe perguntava com os demais discípulos se era então que o reino de Israel se iria reconstituir [Atos I, 6]). E, agora, suas bocas falam da abundância do que têm no coração (Mateus XII, 34), isto é, o Espírito Santo, as graças de Deus, que desde então se infundem abundantemente no coração dos fiéis, chovendo sem cessar sobre todos nós.
 
O sacrifício do Calvário reabriu os céus; Jesus fez neles entrar, e só então, os mortos santos do Antigo Testamento. Doravante, o menor dos filhos da Igreja terá riquezas que os antigos santos desejavam ardentemente com gemidos inenarráveis, e que os próprios anjos do céu olham com uma espécie de santa inveja, como se depreende da Primeira Epístola de São Pedro (I, 12). Começava então a vida da Igreja, e o regime da Graça com que começa é o da superabundância dos dons de Deus, espalhados incessantemente sobre todos.
 
NO TEMPO DOS “ATOS DOS APÓSTOLOS”
 
São Paulo nos ensina (I Coríntios, XIII, 8), e também grandes teólogos (ver, por exemplo, Garrigou-Lagrange, Les trois âges de la vie interieure, vol. II, pp. 836 ss), que só a caridade (compreendida em seu verdadeiro e profundo sentido) é que não passará, isto é, só ela é desde já o que será no céu, para toda a eternidade: aqui, hesitante, fraca, caminhando em meio ao claro-escuro da fé e à ansiedade da esperança; lá, esplêndida, em seu máximo desdobramento, arrebatando cada um todo inteiro no incêndio do amor de Deus que acompanha a visão deslumbrante d’Aquele que é.
 
A caridade é, por isso, “semen gloriæ”, como dizem os teólogos. É uma antecipação da vida da alma no céu.
 
Ora, assim como, para a vida interior de cada um de nós, a vida da caridade dá uma idéia, ainda que pálida, do que é a vida no céu, assim o Salmo 132: “Quam bonum est et quam jucundum, habitare fratres in unum”, nos dá uma antecipação do que é a vida no céu em termos de convivência com nossos irmãos. Como veremos mais tarde, o grande combate que o demônio move a Nosso Senhor incluirá, em sua estratégia, seduzir os homens para uma vida pessoal e social em que o terror, e não a caridade num mesmo espírito de fé, seja o ambiente profundo dominante. E esse terror é uma antecipação da vida pessoal e social do inferno. É uma antecipação do ambiente de ódio e de terror em que vivem os condenados. Como que para acostumar os homens àquilo que muitos terão.
 
Mas, voltando ao nosso tema, o versículo do Salmo 132 encontrou sua plena realização terrena na mais comovente e mais doce parte dos Evangelhos, aquela que conta os atos dos Apóstolos e o modo de viver dos primeiros cristãos. Comecei a sublinhar em vermelho as passagens dos Atos em que fala da unidade de espírito, de alegria, de consolação, de amor a Deus. E cobri meu exemplar de vermelho:
 
“E todos os que criam estavam unidos [...]” (II, 44).
“[...] tomavam a comida com alegria e simplicidade de coração [...]” (II, 46).
“E a multidão dos que criam tinha um só coração e uma só alma [...]” (IV, 32).
“E todos estavam unidos num mesmo espírito no pórtico de Salomão” (V, 12).
“Porém eles saíam da presença do Conselho contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus” (VI, 12).
“Tinha então paz a Igreja [...] e estava cheia da consolação do Espírito Santo” (IX, 31).
“Entretanto os discípulos estavam cheios de alegria e do Espírito Santo” (XIII, 52).
“[...] consolaram e confortaram com muitas palavras os irmãos [...]” (XV, 32).
“[...] do que receberam grande consolação” (XX, 12).
 
E muitas outras passagens.
 
 
Essa sociedade católica, que então vivia assim, banhada na alegria e na consolação, não dispunha de nenhum dos divertimentos modernos e de modo algum buscava divertir-se. De que viviam seus membros, ou melhor, o que é que lhes enchia a alma e os arrebatava para as coisas de Deus?
 
Vemos, ainda pela descrição dos Atos, que os Apóstolos e os que os ajudavam trabalhavam na evangelização dos judeus, pregavam o Cristo crucificado, batizavam os convertidos. E os fiéis, aqueles aos quais os Apóstolos pregavam, recebiam “a palavra [de Deus] com toda a avidez, examinando todos os dias as Escrituras para ver se estas coisas eram assim” (XVII, 11), e alegravam-se “com todos os de sua casa de ter crido em Deus” (XVI, 34).
 
E, quando Paulo e Barnabé lhes falavam na sinagoga, os fiéis rogavam à saída “que, no sábado seguinte, lhes falassem sobre o mesmo assunto” (XIII, 42) e... “no sábado seguinte, concorreu quase toda a cidade a ouvir a palavra de Deus” (XIII, 44).
 
E, depois, cada um ia contar aos outros “quão grandes coisas Deus tinha feito com eles” (XIV, 26 e XV, 4).
 
Era nesse apaixonado interesse pelas coisas de Deus, pela pregação dos Apóstolos, pela cooperação na obra do apostolado que estava sua razão de viver. A isso dedicavam sua vida, seus bens. Por amor a isso irão morrer com alegria daqui a pouco.
 
Nas cartas de São Paulo se vê como o Apóstolo se relaciona com pessoas assim. Escreve a alguns, da Igreja de Roma, dos Coríntios, dos Gálatas, e suas saudações finais, citando nomes, mandando recados, louvando a uns, reprovando a outros, mostra-nos um pai a governar a Igreja, cuja unidade é visível.
 
Mas essa unidade do Corpo Místico será posta à prova. Já nestes tempos de paz, a perturbação começa. O primeiro mártir da Igreja, Santo Estevão, é morto pelos judeus. Herodes, mais tarde, vai matar São Tiago, irmão de São João. E os judeus, que os Atos dizem “movidos por seu falso zelo”, começam a amotinar as populações e a incitar os romanos contra os cristãos.
 
Finalmente, por volta do ano 64, o imperador romano Nero inaugura a era das perseguições, que durará três séculos e meio e produzirá milhares de mártires conhecidos e não se sabe quantos desconhecidos.
 
É muito importante observar, como o fez o Cardeal Pio em notável sermão que publicamos na revista Permanência (nº de novembro/dezembro de 1986), que os romanos não começaram por hostilizar os cristãos. Ao contrário, eles haviam construído um panteão onde colocavam todos os deuses do mundo, cujos ídolos seus soldados traziam, respeitosos, para Roma. Ali, no panteão, propuseram aos judeus pôr Moisés e aos cristãos pôr Jesus. E é o grande escritor católico Chesterton que diz, em nota também publicada na Permanência (id.), que não tem nenhuma afinidade com o espírito do cristianismo quem não compreende que naquele tempo, às margens do Mediterrâneo, a única religião verdadeira correu perigo mortal de perecer num festival de “compreensões” e “fraternidades”. Mas os cristãos recusaram o convite. Para escândalo de muitos escritores pagãos sérios e até simpáticos a eles, como Plínio, o Jovem, os cristãos reivindicavam constituir a única religião verdadeira; isto parecia àqueles uma absurda pretensão: era como se quisessem ser melhores que os outros. Foi para manter a integridade de sua fé, a qual lhes testemunhava a realidade dessa mesma fé e a unidade que nela se devia realizar, que os cristãos se submeteram, ao contrário, a tantos séculos de martírio continuado.
 
O TEMPO DOS MÁRTIRES
 
Uma das coisas mais interessantes para a observação do nosso itinerário é o estilo próprio, com sua beleza especial e particular, de cada uma das grandes etapas da espiritualidade cristã. Aquilo que mais conhecemos, nessa perspectiva, é o ambiente medieval, com seus castelos e catedrais, o colorido e a abundância, o espírito de apreço pela nobreza e pela coragem que impele os cavaleiros e põe a mulher em lugar de honra, num ambiente viril mas delicado o bastante para apreciar em alto grau a poesia e a música, os vitrais e as belas estátuas cristãs que ornamentam as igrejas e as abadias. Se olharmos, por exemplo, para o ambiente, os valores, os feitos e os registros escritos dos tempos de Davi, como não reconhecer instantaneamente que este tempo foi o de uma Idade Média judaica?
 
Assim também podemos reconhecer as marcas próprias das histórias do tempo dos mártires. As histórias de Santa Perpétua e de Santa Felicidade, de Santa Inês, de Santa Cecília, e de Santa Catarina, que confundiu os filósofos que tentavam reduzi-la ao silêncio, e de tantos outros que foram conduzidos aos tribunais e condenados ao suplício em nome das leis romanas; enchem de admiração os que as lêem e têm um colorido especial, que podemos encontrar, por exemplo, na “História de Mártir” publicada na revista Permanência (nº 114-115). Esta história, aliás, mostra o aspecto central da condenação dos mártires. Eles recusavam a coexistência religiosa, a concessão de homenagens mínimas aos deuses pagãos, que era tudo de que precisavam os juízes, às vezes condescendentes e até querendo salvar os presos, para mandá-los de volta para casa. No caso da Santa Perpétua, ainda moça, o juiz procurava salvá-la dizendo-lhe que atentasse para os cabelos brancos do pai em lágrimas e que bastaria ela fazer algumas oferendas com incenso pela prosperidade do imperador. Mas ela respondeu: “Não”. Os mártires respondiam: “Não podemos”, “Não é possível”. E davam a vida por isto, por um nada, por alguns grãos de incenso recusados! Quando hoje vemos o que vemos, o ecumenismo, o encontro de Assis, tantos escândalos da mais alta hierarquia da Igreja, chegam a arrancar-nos lágrimas e urros de dor as histórias de mártires.
 
 
Os pagãos antigos merecem muitas e severas condenações por vários aspectos de sua conduta, mas eram inocentes perto da maldade dos neopagãos que já conheceram o cristianismo e, não obstante, o recusaram de um ou de outro modo. E isso é o próprio Senhor que no-lo diz: “Se eu não tivesse vindo, e não lhes tivesse falado [...]” (João XV, 22).
 
As perseguições romanas aos cristãos começaram por obra de Nero, que, mais por uma questão de loucura e astúcia política, procurou jogar sobre esta minoria as iras populares. Mas o pior é que Nero formulou um famoso edito, que proclamou fora da lei a prática do cristianismo, e esse edito (que mais tarde vai ser apenas regulamentado por Trajano) não foi revogado. Desse modo, se os sucessores de Nero, muitas vezes, eram indiferentes aos cristãos e não os perseguiam, a ilegalidade do cristianismo continuava de pé, e bastava, pois, um pequeno incidente ou qualquer pretexto político para que se desse início a novas perseguições e massacres. A cólera dos imperadores, mais tarde, vai-se exasperar ainda mais, quando começarem a aparecer personagens importantes da casa imperial ou de nobres famílias romanas inculpados de cristianismo.
 
Mas nosso objetivo aqui, repetimos, não é fazer a história da Igreja, e sim seguir o percurso da espiritualidade católica ao longo do tempo.
 
Digamos, portanto, que a perseguição durou até o ano 315, quando, pela graça de Deus, o imperador Constantino fez publicar o famoso Edito de Milão, pelo qual o cristianismo não apenas era tolerado e legalmente permitido mas se tornava a religião do Império, já que o próprio imperador se tinha convertido.
 
Ao longo desses séculos de perseguição e martírio, os chamados Padres da Igreja deixaram seus escritos, que terão sempre, para a Igreja Católica, especial autoridade. São estes Padres discípulos dos Apóstolos, segunda e terceira geração de bispos que se prolongam até os doutores do século IV, entre os quais doutores se incluem Santo Agostinho, São Cipriano, São Clemente, Santo Irineu e Orígenes. Os Padres deixaram escritos que são o começo das elaborações teológicas (depois de São Paulo e dos demais Apóstolos), mas que também descrevem a vida dos primeiros cristãos ou, como pela pena de São Justino, ousam defendê-los perante as autoridades romanas ainda em plena perseguição.   
 
Estes tempos de perseguição foram, como é de supor, de fervente piedade e de firmíssima perseverança; mas não de todos. Foram muitos os que fraquejaram, os chamados lapsi, cuja reintegração no rebanho católico pareceu a muitos impossível, na época. A penitência que se devia impor aos lapsi e as questões que se foram apresentando como conseqüências de seu arrependimento vão constituir ocasião para pronunciamentos da autoridade papal.
 
A autoridade do bispo de Roma, aliás, já se havia mostrado imperante desde antes do fim do primeiro século. São João, apóstolo, vivia ainda, mas é de Roma que vem a intervenção firme e paternal do Papa São Clemente, que corta rente as discussões em Corinto a propósito da autoridade dos presbíteros nomeados pela Igreja de Roma. A palavra do Papa é acatada, e a paz restabelecida de tal modo, que setenta anos mais tarde a carta de São Clemente ainda é lida nas missas de Corinto. Por volta do fim do século II, a intervenção enérgica do Papa Vítor I acabou com as discussões que dividiam as Igrejas orientais e a Igreja latina a propósito da maneira de fixar a data da Páscoa. Os asiáticos, firmes na sua antiga tradição apostólica, recusavam-se a aceitar a decisão do Papa, a qual contrariava seus hábitos, mas este não hesita em condená-los com a pena de excomunhão. E a decisão do Papa termina por ser acatada em toda a Igreja, embora Santo Irineu tenha considerado excessiva, mas não ilegítima, sua severidade.
  
Ainda mais interessante é a controvérsia que vai opor um santo, São Cipriano, bispo de Cartago, ao Santo Papa Estevão I, a propósito do batismo de convertidos por sacerdotes ou bispos heréticos. São Cipriano negava-lhe a validade, alegando que aqueles que os haviam batizado não tinham nada para dar. A questão trazia, em seu bojo, graves conseqüências. Hoje, quando a teologia tem já elaboradas suas idéias, e a doutrina católica já se fixou em dogmas, aquelas conseqüências se mostram claramente. Naquele tempo, o problema era menos claro, e o Papa não tinha à disposição nem o pensamento teológico elaborado nem o recurso a posições dogmáticas fixadas. Mas tinha e utilizou, com admirável simplicidade, o critério que a Igreja sempre utilizou como parâmetro: a tradição hierárquica e apostólica, sobretudo de Roma, onde está o depósito da fé. Assim, a conformidade com a tradição romana era e é critério de toda e qualquer verdade religiosa, e esta belíssima e confortadora manifestação da verdade de nossa fé vai mostrar-se, ao longo de nosso estudo, a mais tocante, a mais pungente, a mais arrebatadora evidência de sua santidade. A Igreja sabe-se santa. Esta é a mais profunda e mais importante e mais bela manifestação da presença do Espírito Santo entre nós.
 
E, por saber-se santa, a Igreja, esposa de Cristo, Virgem Imaculada, Mãe Sapientíssima, olha para si mesma, olha para seu comportamento no passado, quando precisa discernir alguma coisa, procedimentos, espíritos, interpretações, para apurar o que lhe vem do Esposo e o que lhe é exterior. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos mantém amparados com o Seu Espírito e nos conforta e nos guia assim. Louvado seja. Santo Estevão responde a São Cipriano dizendo que não era como ele pensava que se comportava a Igreja de Roma e que a norma da Igreja de Roma é que devia prevalecer. “Se alguém vier a vós oriundo da heresia”, diz Santo Estevão com nitidez, “vós não deveis inovar nada contrariamente à tradição em vigor. Vós vos contentareis com lhes impor as mãos in pœnitentiam.” Ora, estávamos então no século III. Que beleza! Louvado seja Deus. Hoje sabemos — e a doutrina dos sacramentos o explica — que o sacramento do batismo não se renova e independe da santidade de quem o ministra, contrariamente ao que pensava São Cipriano. Louvado seja Deus.
 


Livro editado pela Editora Permanência (ISBN 85-85432-03-9).

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