Pe. Juan Carlos Iscara, FSSPX
A Lei natural impõe a todos os homens a obrigação de adorar a Deus. E Ele mesmo definiu como os homens deveriam cumprir essa obrigação ao emitir Seu preceito divino no Antigo Testamento. O Terceiro Mandamento da Lei de Deus diz:
“Lembra-te de santificar o dia de sábado. Trabalharás durante seis dias e farás (neles) todas as tuas obras. O sétimo dia, porém, é o sábado (o dia de repouso), consagrado ao Senhor, teu Deus; não farás nele obra alguma, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu gado, nem o peregrino que está dentro das tuas portas. Porque o Senhor fez, em seis dias, o céu e a terra e o mar e tudo que neles há e descansou ao sétimo dia; por isso o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou” (Ex 20, 8-11)
Após a Ressurreição de Cristo, esse dia se tornou o Domingo, o “dia do Senhor” – “dies Domini”.
Consequentemente, a Igreja, em seu primeiro mandamento, determinou como os cristãos devem santificar o domingo e os dias de preceito prescrevendo certos atos e proibindo outros, como foi detalhado no Código de Direito Canônico de 1917:
“Nos dias de preceito, deve-se ir à Missa; deve-se abster de trabalho servil, atos jurídicos e, de modo semelhante, a não ser que haja um indulto especial ou que os costumes locais disponham de modo contrário, deve-se abster de comércio, compras e outros atos de compra e venda públicos” (Cânone 1248).
Enquanto o Sábado judaico era marcado principalmente pelo descanso, a Igreja, desde o princípio, deu ao Dia do Senhor um foco mais espiritual, dando primazia ao aspecto positivo, isto é, à obrigação de render a Deus o culto que Lhe é devido e de tomar conta das coisas que dizem respeito à alma da pessoa. A Lei da Igreja deu concretude a esses deveres com a obrigação de no mínimo ir à Missa.
Apesar disso, o dever de descanso também permanece sem sombra de dúvidas. Ele inclui abster-se de trabalhos servis [braçais], procedimentos judiciais e mercados públicos. Abstenção do trabalho e o descanso em decorrência dele, além de ter o propósito natural de restaurar nossas forças, tem a finalidade religiosa clara de nos ajudar a dar atenção a Deus e a desviá-la do mundo.
Em uma edição anterior de The Angelus (Maio-Junho de 2022), tratamos de como cumprir a primeira parte do preceito eclesiástico, a obrigação positiva de ir à Missa. Agora, vamos dar atenção ao aspecto negativo, abster-se do trabalho, um dever que, no mundo de hoje, costuma ser desprezado até por católicos.
Qual é a disciplina tradicional acerca do trabalho aos Domingos?
O Catecismo do Concílio de Trento explicou que o descanso sabático significa abster-se de trabalhos servis:
“Todos os trabalhos servis são proibidos, não porque sejam ruins em si mesmos, mas porque eles tiram atenção do culto de Deus, que é o fim último do mandamento”
Mas o que é “trabalho servil”? Embora o termo seja usado pela Igreja por séculos, ele nunca foi definido, e mesmo o Código de Direito Canônico de 1917 se absteve de defini-lo. A descrição do que constitui trabalho “servil” deve ser encontrada nos decretos de certos Concílios, no ensinamento dos teólogos e nos costumes locais que a Igreja aceitou.
A maioria dos manuais de Teologia moral o descrevem como um trabalho físico, manual, feito pelas necessidades e pelos ganhos do corpo; o tipo de trabalho que, no passado, era desempenhado por escravos ou, em tempos mais recentes, por empregos domésticos e lavradores contratados. Enquadram-se nessa categoria os trabalhos agriculturais (aragem, cavar, etc) e trabalhos mecânicos ou industriais (prensa, construção, engessamento, etc).
Ele se distingue dos trabalhos “liberais”, que são produto principalmente das faculdades mentais, imediatamente direcionados ao desenvolvimento da mente e que, no passado, eram realizados por pessoas que não eram escravos ou servos. Trabalhos desse tipo são os trabalhos intelectuais (ensinar, ler, escrever, estudar, etc), trabalhos artísticos (tocar música, cantar, desenhar, pintar, bordar etc) e também trabalhos de recreação (esportes moderados ou diversões, como futebol, baseball, tênis e xadrez).
Na disciplina tradicional, para discernir se uma atividade constitui trabalho servil ou liberal, o fator determinante é a natureza do trabalho em si (finis operis), sem levar em consideração nenhuma circunstância extrínseca, como o propósito do agente (finis operantis), ou o esforço físico despendido para o trabalho, ou sua duração. Portanto, se o trabalho for “servil” ele permanece proibido por qualquer motivo que seja.
A obrigação é grave, mas a contravenção do preceito pode ser consideravelmente reduzida se o trabalho não requerer esforço excessivo, não durar mais de 2 horas e não causar escândalo.
Como Nosso Senhor também disse que “o Sábado foi feito para o homem, e não o homem para o Sábado” (Mc 2, 27), a Igreja, distanciando-se de excessos farisaicos, reconhece diferentes razões que podem escusar a abstenção do trabalho no Sábado:
É claro que nem toda razão escusa do preceito. Portanto, aqueles que, desnecessariamente, colocam-se em situação de impossibilidade de observar a lei cometem um pecado (por exemplo, aceitando um trabalho que peça que trabalhem o Domingo inteiro), ou aqueles cujas razões são frívolas (como aqueles que trabalham no Domingo só para ter algo para fazer).
Para evitar o autoengano, os fiéis devem consultar seu pastor ou confessor, se houver dúvida acerca da suficiência da escusa.
O que a legislação atual diz?
Através do Século XX, e especialmente após as duas grandes guerras, considerando as circunstâncias sociais e econômicas alteradas do mundo, houve muita discussão entre os teólogos acerca da definição de trabalho servil.
Um eco dessas discussões encontra-se na presente disciplina da Igreja, que está estabelecida no Cânone 1247 do Novo Código de Direito Canônico, promulgado em 1983:
“No domingo e nos outros dias de festa de preceito, os fiéis têm a obrigação de participar na missa; além disso, devem abster-se das atividades e negócios que impeçam o culto a ser prestado a Deus, a alegria própria do dia do Senhor e o devido descanso da mente e do Corpo”
O novo Código, em comparação com a legislação anterior, não menciona o trabalho “servil”, porém mantém a obrigação de abster-se de trabalho aos Domingos, ao mesmo tempo em que altera a ênfase de como deve ser feito, acrescentando a referência ao “descanso da mente e do corpo”.
O Catecismo da Igreja Católica (n. 2187) desenvolve o requisito canônico:
“Santificar os domingos e festas de guarda exige um esforço comum. Todo o cristão deve evitar impor a outrem, sem necessidade, o que possa impedi-lo de guardar o Dia do Senhor. Quando os costumes (desporto, restaurantes, etc) e as obrigações sociais (serviços públicos, etc) reclamam de alguns um trabalho dominical, cada um fica com a responsabilidade de um tempo suficiente de descanso. Os fiéis ficarão atentos, com moderação e caridade, para evitar os excessos e violências originados às vezes nas diversões de massa. Não obstante as pressões de ordem econômica, os poderes públicos preocupar-se-ão em assegurar aos cidadãos um tempo destinado ao repouso e ao culto divino. Os patrões têm obrigação análoga para com os seus empregados”
Então, o que devemos fazer?
Como podemos ver, a nova legislação não contradiz, nem rejeita o que a Igreja pedia antes, mas expressa-a em termos mais gerais. Ao mesmo tempo, realça o espírito no qual a lei deve ser observada, isto é, o objetivo que o legislador – Deus e a Igreja – desejava obter ao impor uma obrigação particular. Como São Paulo (2Cor 3, 6) já havia explicado, devemos evitar desprezar o espírito da lei ao cumprir sua letra.
Portanto, em geral, devemos submeter-nos à disciplina tradicional, mas sem perder de vista os critérios expandidos de discernimento que a nova lei trouxe.
A abstenção do trabalho servil visa permitir-nos livrar-nos de nossa labuta diária, deixando-nos livres para render a Deus o culto que Lhe é devido. Ela também nos permite cuidar do bem de nossas almas, dando-nos tempo e oportunidades de descanso e divertimentos honestos. De tempos em tempos, precisamos de uma pausa das preocupações e cansaços inerentes ao esforço diário. Sem recreações prudentes e bem administradas, nossas forças físicas e mentais logo ficariam exaustas, incapacitando-nos para qualquer tipo de trabalho.
Portanto, no Domingo, devemos, preferencialmente, dar tempo a Deus, às coisas espirituais e à elevação de nossas almas a Ele. Claro, ir à Missa é o mínimo que a Igreja requer, mas isso não significa que podemos esquecer Deus pelo resto do dia e apenas aproveitar o descanso.
Embora a Igreja não imponha uma observância excessiva, farisaica do descanso do Domingo, ela também não admite lassidão na observância do Dia do Senhor. Como um autor colocou, “o Domingo não precisa ser fúnebre, mas também não pode ser ateu”
Não podemos entregar-nos a coisas inapropriadas ou danosas para nós ou para outros, nem perder completamente nossa seriedade da alma, ou fazer algo em circunstâncias desonestas.
Portanto, nosso Domingo não pode ser tomado por jogos ou pela televisão, por conversas fúteis ou risadas sem propósito, ou ficarmos grudados no computador, olhando sem parar nossas redes sociais – ações que, em si mesmas, não são necessariamente más, mas que tiram nossas mentes e corações de Deus.
Alguns exemplos práticos
Às vezes, pessoas de boa fé se encontram em situações complicadas, porque gostam de relaxar com atividades aos Domingos como jardinagem, que, em sentido estrito, seriam um trabalho “servil” e, portanto, estariam proibidas.
Mas mesmo a legislação tradicional considerava que tal trabalho não seria uma violação séria do descanso do Domingo se não demandasse um esforço físico intenso, se fosse realizada por um breve período, sem causar escândalo e sem interferir com nossas obrigações para com Deus.
À luz do novo Código, o mesmo trabalho, realizado em tais circunstâncias, também seria permitido se com a intenção de relaxamento e recreação, como uma maneira simples de se afastar das preocupações que atingem nossas mentes pelo resto da semana. Se esse for o caso, essas almas não precisam se preocupar.
Por outro lado, a legislação tradicional permitia trabalho intelectual, “liberal”, tal como o de um advogado preparando um processo, um arquiteto desenhando planos de uma construção, um contabilista preparando declarações de impostos, etc.
Mas à luz da legislação recente, essas atividades – embora não constituam pecado, pois são autorizadas pela lei anterior – devem ser desencorajadas, ao menos como imperfeições, se desnecessariamente trouxerem para o Domingo as preocupações mundanas e as tarefas que nos absorvem nos demais dias da semana, pois, nesses casos, o espírito da lei, a intenção do legislador, não estaria adequadamente atingida.
Em conclusão
Todas essas explicações servem para nos ajudar a emitir um julgamento prudente quando se trata de decidir se devemos ou não realizar certo trabalho ou atividade.
Apesar disso, devemos não apenas evitar o pecado, mas também buscar uma perfeição maior em todas as nossas ações. Portanto, não devemos tentar tirar vantagem de qualquer brecha que encontrarmos ou procurar desculpas. O amor de Deus, fortalecendo nosso bom senso e guiando nosso discernimento prudencial, deve prevalecer em tudo e acima de todas as coisas.
Nesse tema de se abster do trabalho, devemos ter em mente o terrível aviso de Nossa Senhora de La Salette:
“Se meu povo não obedecer, eu soltarei o braço de meu Filho. Ele é muito pesado, tão pesado que não consigo mais segurá-lo... ‘Eu designei seis dias para o trabalho. O sétimo eu reservei para Mim. E ninguém quer Me dá-lo’... É isso que faz o peso do braço de meu Filho ser tão insuportável”
Conhecendo nossa própria fraqueza, dirijam-nos, portanto, a São José, pedindo sua ajuda e sua orientação na hora de guardar o Dia do Senhor:
“Ó gloriosíssimo Patriarca, São José, obtende, pedimos a Vós, de Nosso Senhor Jesus Cristo bênçãos abundantes sobre aqueles que mantêm santo os Domingos e os Dias de Preceito da Igreja e dai a todos aqueles que os profanam que possam perceber, enquanto ainda podem, o grande mal que cometem e o castigo que trazem para si mesmos tanto nesta vida quanto na próxima, e dai-lhes que se convertam. Ó fidelíssimo São José, Vós, que, durante vossa vida terrena, observastes tão lealmente as Leis de Deus, dai-nos que chegue o dia em que todos os Cristãos abster-se-ão de trabalhos proibidos nos Domingos e Dias de Preceito, preocupar-se-ão seriamente com a salvação de suas almas e darão glória a Deus, que vive e reina para sempre. Amém” (São Pio X, 20 de Maio de 1905).