Pe. Juan Iscara, FSSPX
“Culto” é a manifestação pública da honra dada em memória de um Santo pela comunidade dos fiéis e ratificada pela autoridade eclesiástica.
Desde os primórdios da Igreja, os corpos dos mártires eram resgatados por fiéis piedosos, que corriam risco de vida às vezes, e recebiam um sepultamento honroso. Até mesmo suas roupas ensanguentadas eram resgatadas e preservadas com veneração. Portanto, os Atos Proconsulares do martírio de São Cipriano relatam que os fiéis de Cartago espalharam linho próximo a ele, para coletar o sangue derramado em sua decapitação.
Os mártires foram os primeiros a se tornar objeto de veneração da Igreja local, porque o martírio é a expressão mais elevada da fé e a comunhão mais íntima no mistério de Cristo. Eles eram solenemente lembrados nos aniversários de suas mortes, que os cristãos consideravam seu dies natalis, o dia de seu nascimento no Céu. Esse louvor e comemoração periódicos vinha sempre em conjunto com a celebração do sacrifício eucarístico, como testemunhado no Século III pelas Constituições Apostólicas. Era uma Eucaristia alegre pelo triunfo de Cristo em um dos membros de Seu Corpo Místico.
A disposição dos cristãos de honrar e comemorar os mártires é claramente observada no relato do martírio de São Policarpo de Esmirna (falecido em 155):
Coletamos seus ossos, mais preciosos que as joias mais raras e mais puros que ouro e depositamo-los em um local adequado, onde, reunidos conforme a oportunidade nos permitisse, com alegria, o Senhor nos dava a chance de celebrar o aniversário de seu martírio, tanto em memória daqueles que já haviam terminado seu curso, quanto pelo treinamento e preparação daqueles que ainda estavam por imitar seus caminhos (Martyrium Polycarpi, 18).
A mesma narração, claramente, esclarece a natureza do culto oferecido ao mártir:
A Cristo, de fato, sendo Filho de Deus, adoramos; mas os mártires, como discípulos e seguidores do Senhor, nós os amamos em razão de sua afeição pelo Rei e Mestre, de Quem possamos também ser companheiros e discípulos! (Martyrium Polycarpi, 17).
A veneração especial dos mártires também se manifesta nas inscrições em cemitérios. Inscrições cristãs antigas têm muitas orações pelos mortos, suplicando os favores de Deus por eles – Requiescat in pace, Vivat in Christo, “Descanse em paz”, “Que ele viva em Cristo”. Mas, como o martírio abriu as portas do Céu para eles, as orações diretamente aos mártires advieram espontaneamente da consciência do povo cristão, pedindo-lhes que intercedam por nós. Portanto, por exemplo, sob a Basílica de São Sebastião em Roma, do ano aproximado de 260, encontra-se uma inscrição: Paule et Petre, petite pro Victore, “Pedro e Paulo, rogai por Victor”. Na catacumba de Praetextatus, outra pede pela intercessão dos mortos perante Deus: Succurrite cum judicabitis, “Auxiliai-nos quando chegardes ao juiz”. E, na Igreja de Santa Sabina, do ano aproximado de 300: “Ático, descansai em paz, seguro em vossa segurança, e rogai por nossos pecados.”
Santo Agostinho, claramente, distingue essas duas formas de oração.
Se lembramos os mártires, tomando nossos lugares na mesa do Senhor, não é para rezar por eles, como pelos outros mortos que descansam em paz. É para que eles rezem por nós e para que sigamos seus caminhos. Pois eles atingiram aquele amor do qual diz o Senhor que não pode haver outro maior. Eles ofereceram a seus irmãos aquilo que receberam na mesa do Senhor.
Além de rezar pedindo sua intercessão, o culto dos Santos também se manifestava pela veneração de seus restos e de suas imagens, uma veneração que logo adquiriu um caráter litúrgico.
Embora escrevesse séculos mais tarde, Santo Tomás de Aquino expressa a razão da prática da Igreja a esse respeito desde os tempos mais remotos:
Por onde é claro que quem tem afeto por outrem venera-lhe também o que dele resta depois da morte; e não só o corpo ou partes do corpo, mas também certos bens exteriores, como as vestes e outros semelhantes. Ora, é manifesto que devemos venerar os santos de Deus como membros de Cristo, filhos e amigos de Deus e nossos intercessores, por isso devemos lhes venerar quais relíquias com a honra devida em memória deles; e sobretudo os seus corpos, que foram os templos e os órgãos do Espírito Santo, que neles habitou e operou, e hão de assemelhar-se ao corpo de Cristo pela glória da ressurreição. Por isso, o próprio Deus honra convenientemente essas relíquias, fazendo milagres na presença delas (Summa Theologiae, III, q. 25, a.6).*
Na Igreja primitiva, as catacumbas eram, acima de tudo, os locais de sepultamento dos mártires. Contrariamente às lendas, se os cristãos em Roma se reuniam nas catacumbas para celebrar a Eucaristia, era menos para se esconder (pois as catacumbas eram locais muito públicos) do que para estar próximos às tumbas dos mártires. Os fiéis estavam dispostos e até competiam para serem enterrados ad martyres, ad sanctos, “próximo aos mártires, aos santos”. Como São Paulino de Nola explicou, quando decidiu enterrar seu filho Celso próximo aos mártires de Complutum, ele desejava fazê-lo “para que, pela proximidade do sangue dos mártires, ele possa adquirir a virtude que purifica nossas almas como o fogo”.
Nas circunstâncias, as tumbas em si se tornaram altares. Dessa primeira Liturgia, quase ditada pelo layout das catacumbas, adveio a ideia de que não poderia haver celebração real sem a presença protetiva do corpo, ou, ao menos, algum resto de um mártir.
De acordo com o Liber Pontificalis, o Papa São Félix I (falecido em 274) transformou o costume em uma obrigação. Ao final do Século IV, Santo Ambrósio de Milão respeitosamente depositou os corpos dos mártires sob o altar:
Que as vítimas triunfantes tomem seu lugar onde Cristo Se oferece como vítima. No altar, Ele sofreu por todos e, abaixo, aqueles que Ele redimiu por Sua Paixão.
O 5º Concílio de Cartago, em 401, formalizou essa prática, tornando compulsório que todo altar tivesse relíquias, chegando até mesmo a ordenar a destruição dos altares que não as tivessem. Desde essa data, não pode haver consagração do altar sem que haja relíquias ali. O traslado solene dos restos dos Santos torna-se parte da Liturgia da dedicação das Igrejas até os dias atuais.
Infelizmente, a piedade popular, se transviada, arrisca transformar o culto das relíquias em superstição. No Século IX, Vigilâncio, um Padre de Toulouse, chegou a condenar como idolatria. Mas São Jerônimo (falecido em 420) escreveu uma carta severa, Contra Vigilantium, na qual explicava que damos honra às relíquias dos mártires para adorar Aquele pelo Qual eles foram mártires.
Todos os Padres da Igreja apoiavam com sua autoridade e iluminavam com sua ciência tão estimável veneração. No Oriente, São João Crisóstomo (falecido em 407) fez-se seu inspirado cantor:
Quereis experimentar delícias inexplicáveis? Vinde às tumbas dos mártires, curvai-vos humildemente ante seus ossos sagrados, beijai devotamente o relicário que os contém, lede os combates que travaram, os traços edificantes de sua fé e de sua coragem [...] e vós sentireis os efeitos de sua poderosa intercessão com Deus (Homilia I sobre os Mártires)
A piedade cristã primitiva também honrava as imagens dos Santos: pinturas em cemitérios, mosáicos nas Basílicas. Essas representações não eram, originalmente, objeto de veneração, mas parte de uma decoração que dava glória e servia de lembrete das virtudes a serem praticadas. Foi o Oriente que desenvolveu a Teologia do ícone, sustentando a legitimidade de sua veneração contra os imperadores iconoclastas.