Pe. Dominique Bourmaud, FSSPX
Alfredo Ottaviani (1890-1979) nasceu em Roma numa família humilde; o seu pai era padeiro. Estudou com os Irmãos das Escolas Cristãs, no Pontifício Seminário Romano e no Ateneu Santo Apolinário, onde recebeu os doutorados em filosofia, teologia e direito canônico. Foi ordenado sacerdote em março de 1916.
RESUMO BIOGRÁFICO
Logo foi nomeado professor de filosofia escolástica e direito público eclesiástico (sua matéria preferida) na Universidade Urbaniana e, depois, no Ateneu Jurídico Santo Apolinário. Tornou-se substituto na Secretaria de Estado e, em seguida, consultor da Suprema Congregação do Santo Ofício. Após dezessete anos de trabalho, em 1959, tornou-se o seu Pró-Prefeito – o posto de Prefeito era ocupado pelo próprio papa. Foi então consagrado bispo por João XXIII, tomando para si o lema episcopal Semper Idem – Sempre o mesmo – que refletia sua teologia conservadora.
Já como seminarista, Alfredo formou-se na luta contra os inimigos mais ferozes da Igreja, “a maçonaria e o hebraísmo reinam através do Ministro Sidney Sonnino”. Em 1937, Pio XI utilizou seus conhecimentos para escrever a encíclica Divini Redemptoris, contra o comunismo, em que o anatematizou como “intrinsecamente perverso”. Seus estudos políticos, que levaram à publicação de Institutiones juri Publici Ecclesiastici, fez dele arauto de Cristo Rei contra a corrente de John Courtney Murray e dos liberais. Abaixo, alguns dos seus ensinamentos de maior destaque no assunto:
“Tenho dito que, antes de tudo, o Estado tem o dever de professar a religião publicamente. Os homens unidos em sociedade não estão menos sujeitos a Deus do que como indivíduos, e a sociedade civil, não menos que o homem individual, é sujeita a Deus, sob o Qual, como seu Autor, ela se encontra unida, por cujo poder é preservada, por cuja bondade recebe o grande tesouro de bens que usufrui. Portanto, assim como não é lícito ao indivíduo deixar de cumprir seus deveres para com Deus e a religião pela qual Deus é adorado, tampouco os estados podem, sem grave ofensa moral, agir como se Deus não existisse ou furtar-se ao cuidado da religião, como se lhes fosse algo estranho ou de pouca importância.”
Pio XII preocupou-se muito quando percebeu os movimentos que alguns líderes da Igreja Latina faziam em direção ao comunismo, e também por causa das veredas que os neo-modernistas abriam na Igreja. O Papa convocou secretamente Ottaviani para a formação duma comissão preparatória de um futuro concílio ecumênico cuja meta seria “reafirmar vários pontos da doutrina católica ameaçados por erros, não apenas teológicos, mas também morais e filosóficos, e até mesmo sociológicos”. Mas, vendo que havia divisão na própria comissão, Pio XII interrompeu o projeto. O seu único resultado foi a vigorosa encíclica Humani Generis, de 1950, com a contribuição de Ottaviani, que condenou a Nova Teologia inaugurada pelo Pe. Henri de Lubac, no espírito de Teilhard de Chardin.
O Cardeal Ottaviani participou do conclave de 1963, que escolheu Giovanni Battista Montini, o Papa Paulo VI. Foi também Decano dos Cardeais durante o conclave, e como tal teve a honra de coroar com a tiara, em 30 de junho, o mesmo papa que a abandonaria. Esse foi o único conclave de que participou, uma vez que, em 1976, o limite de idade de oitenta anos já estava em vigor.
BATALHAS PRÉ-VATICANO II
Logo que Pio XII foi sepultado, começaram a circular os ventos de mudança. No início de 1962, Cardeal Ottaviani notificou o superior dos jesuítas de que o teólogo Karl Rahner fora posto sob quase-censura por Roma e não podia dar conferências nem escrever sem permissão. Poucos meses depois, João XXIII nomeou Rahner como perito do Concílio Vaticano II. A mesma estratégia foi adotada com Henri de Lubac e Yves Congar, que, apesar de suspeitos de neo-modernismo, também receberam do papa os títulos de peritos do Concílio.
As batalhas pré-conciliares inauguraram um novo tipo de concílio, com um poder triangular (Papa-Cúria-Concílio), uma vez que o papa, em segredo, era contrário à posição da Cúria e aberto às novidades dos teólogos de vanguarda. Ottaviani, que detinha o poder por trás da Cúria, logo se veria isolado e mal aceito. Acreditava que era seu dever afirmar a pureza e integridade da Doutrina a todo custo, a tempo e contratempo. O Cardeal Siri deixou o seu testemunho: “Nele [Ottaviani], a firmeza nas decisões expressava-se com os mais fortes acentos: a ninguém temia. Na defesa da Fé, seu temperamento o fazia muito combativo”.
Um dos debates acalorados ocorridos nas sessões do pré-Vaticano II tratou da salvação dos infiéis e do dogma Extra Ecclesiam: fora da Igreja não há salvação. Nessa subcomissão estava Monsenhor Fenton, amigo próximo de Ottaviani. Vários cardeais – Leger, Dopfner, Konig e Bea – fizeram várias mudanças substanciais. Ottaviani reagiu ferozmente contra a “perigosíssima” idéia de Bea, que dizia ser possível ser membro do Corpo Místico de Cristo sem ser membro da Igreja, o que colocaria em risco a doutrina da infalibilidade do Magistério da Igreja. Ele lembrou que “A Igreja Católica e o Corpo Místico de Cristo são a mesma coisa. Não há salvação fora da Igreja. O significado dessa tradicional frase está bem explicado na Carta do Santo Ofício ao Cardeal de Boston, em que trata da questão Feeney, que exagerara a força dessa frase. Porém, essa frase não deve agora ser reduzida à insignificância, a fim de tranqüilizar os que estão fora da Igreja.”
Nas últimas sessões preparatórias do Concílio, dois cardeais se confrontaram no assunto da liberdade religiosa: Ottaviani e Bea. Ottaviani opunha-se à separação entre Igreja e Estado e à concessão de direitos iguais a todas as religiões, mas apoiava a tolerância religiosa. Dom Marcel Lefebvre, testemunha do conflito, contou que Ottaviani levantou-se e disse a Bea: “Eminência, não tendes direito a criar este esquema, porque é esquema teológico, e pertence portanto à Comissão Teológica”. E Bea, levantando-se, disse: “Licença. Tenho o direito de criar este esquema como Presidente da Comissão pela Unidade. Se há algo que importa à unidade é essa questão da liberdade religiosa”. E, encarando Ottaviani, adicionou: “E me oponho radicalmente a tudo que afirmais no seu esquema De Tolerantia Religiosa”. O debate se tornou tão inflamado que o Cardeal Ruffini teve de intervir, notando como ficara decepcionado por testemunhar uma “discussão tão séria”. Os confrontos se intensificariam ao longo dos debates sobre o assunto, até a adoção do esquema Dignitatis Humanae.
O FURACÃO VATICANO II
Ottaviani foi o líder dos conservadores da Cúria durante o Concílio Vaticano II (1962-1965), apesar de quase cego. Além do assunto da liberdade religiosa, sua poderosa voz foi ouvida durante os debates sobre a liturgia e sobre as fontes da Revelação Divina.
O caso mais marcante da mudança de guarda e demissão da Cúria ocorreu em 30 de outubro de 1962, quando o Cardeal Ottaviani fez ardente apelo em defesa do antigo Rito Romano: “Não parece que estamos procurando causar pasmo, ou talvez escândalo entre o povo Cristão, ao introduzir mudanças em tão venerável rito, que foi aprovado há tantos séculos e nos é tão familiar? O rito da Santa Missa não deve ser tratado como tecido que é remodelado conforme os impulsos de cada geração.” Como passara em muito o limite de dez minutos, seu microfone foi cortado. Após tocar o microfone e verificar que fora desligado, o quase cego Ottaviani, humilhado, deixou cair o seu peso na cadeira e logo os aplausos estalaram na aula conciliar.
Durante o Concílio, a mídia freqüentemente encontrava em Ottaviani reações vivas nas tempestuosas sessões de trabalho. Certa vez, reagindo aos constantes clamores pela “colegialidade” dos bispos mais liberais, Ottaviani notou que a Bíblia registra apenas um exemplo dos Apóstolos agindo colegialmente – no Jardim do Getsêmani, quando “todos fugiram”. Nessa mesma matéria, outro embate histórico ocorreu com o Cardeal Frings, em 8 de novembro de 1963. Ottaviani defendeu o papado contra a Primazia Papal meramente honorária, proposta pela aliança liberal do Reno. “Quem quiser ser ovelha de Cristo deve ser apascentado por Pedro, o Pastor. Não são as ovelhas [os bispos] que devem guiar Pedro, mas Pedro deve guiar as ovelhas [os bispos] e os cordeiros.”
O DESMANTELAMENTO DO SANTO OFÍCIO
O Concílio Vaticano II não tinha ainda fechado as portas quando um motu proprio papal, Regimini Ecclesiae Universale, retirou da Congregação do Santo Ofício o título de “Suprema”, suplantando-a pela Secretaria de Estado. A partir daí, a política prevaleceria sobre a pureza da fé.
Ottaviani comentou a mudança: “Lembrem-se, esse é um dia negro na história da Igreja, porque essa mudança não afeta apenas o título, mas a substância. Com efeito, até agora, o princípio supremo do governo da Igreja foi a verdade revelada, cuja preservação e interpretação correta é confiada primeiro ao Papa, que usava a Suprema Congregação do Santo Ofício para esse propósito. Agora, temo que o critério decisivo para o governo da Igreja será o diplomático e o contingente. Posso ver que a Igreja sofrerá muito dano.”
Apesar de cego, tinha penetrante percepção dos eventos futuros. Em 1967, ofereceu sua renúncia, pois não desejava contribuir com o desmantelamento do Santo Ofício.
A ÚLTIMA BATALHA DE OTTAVIANI
Em 25 de setembro de 1969, Ottaviani, junto com Cardeal Bacci, redigiu veemente carta a Paulo VI em defesa de um estudo feito por um grupo de teólogos que, sob a direção de Dom Marcel Lefebvre, criticaram o Novus Ordo Missae, o qual viria à luz uns meses depois. Ottaviani escreveu o seguinte:
“O breve estudo crítico em anexo é o trabalho de um grupo seleto de teólogos, liturgistas e pastores de almas, e, ainda que breve, examina os elementos de novidade implícitos na Missa do Novus Ordo, aos quais podem se dar diferentes interpretações. Este estudo demonstra suficientemente que o Novus Ordo Missae representa, no todo e nos detalhes, um afastamento visível da teologia Católica da Missa como elaborada na Sessão XXII do Concílio de Trento, a qual, fixando permanentemente os ‘cânones’ do rito, erigiu uma barreira intransponível contra toda heresia que pretendesse minar a integridade do Mistério.
“As reformas recentes demonstraram amplamente que as novas mudanças na liturgia não podem ser feitas sem escandalizar os fiéis, que já mostram que essas mudanças são intoleráveis e diminuirão com certeza a sua fé. Em conseqüência, grande parte do clero passa agora por uma torturante crise de consciência, que vemos diariamente e em grande número. Temos certeza de que estas considerações, que se inspiram diretamente nas vozes vibrantes de pastores e do rebanho, encontrarão eco no coração paternal de Vossa Santidade, que está sempre tão profundamente atento às necessidades espirituais dos filhos da Igreja. No entanto, aqueles para quem as leis são feitas têm o direito, e mesmo o dever, de pedir ao legislador que ab-rogue leis comprovadamente danosas.”
O Cardeal Palazzini, em sua apresentação de Il Balluarto, explicou que a chave para ler a pessoa e o trabalho do Cardeal Ottaviani é que a verdade nos faz livres. “Ele sabe como perceber com excepcional agudeza e impressionante visão a desordem profunda e os amargos desenvolvimentos da novidade que começou a se infiltrar nos anos 1940 e que explodiu no Vaticano II. No curso do ano de 1965, Ottaviani escreveu no seu diário: ‘Peço a Deus que me permita morrer antes do fim desse Concílio. Assim, ao menos, morrerei católico.’”