O famoso artigo da Civiltá Cattolica e nossa oportuníssima citação continuam assim:
”Se os liberais nos pedem a verdadeira caridade, a única que lhes convém e que nós, como redatores da Civiltá Cattolica, lhes podemos e devemos dar, tão longe estamos de querer negá-la que, ao contrário, julgamos tê-la prodigado bastante até agora, senão segundo todas as suas necessidades, ao menos segundo a nossa possibilidade.
“Os liberais cometem um intolerável abuso de palavras dizendo que nós não usamos de caridade para com eles. A caridade, una em seu princípio, é variada e multiforme em suas obras. Muitas vezes, o pai que bate fortemente em seu filho, tanto usa de caridade como o que o cobre de beijos. E ocorre freqüentemente que a caridade do pai que beija seu filho seja inferior à do pai que o castiga.
“Nós batemos nos liberais, não negamos, e batemos neles com muita freqüência (com palavras, é claro), mas quem poderá concluir deste fato que nós não os amamos, que não temos caridade para com eles? Isto poderia ser dito antes daqueles que, malgrado as prescrições da caridade, interpretam mal as intenções do próximo. No que nos diz respeito, tudo o que os liberais poderão dizer é que nossa caridade para com eles não é a caridade que desejam. Mas nem por isso deixa de ser caridade, sim senhor, e grande caridade; e visto que são eles que pedem caridade, e nós os que lha concedemos em vão, bem poderiam recordar aqui o velho provérbio: ’A cavalo dado não se olhe para o pelo’.
“A caridade que queriam de nós, seria a de os louvar, admirar, apoiar, ou de ao menos os deixar agir à vontade. Nós, ao contrário, não queremos fazer-lhes senão a caridade de gritar-lhes, repreendê-los, exortá-los por mil modos a sair do seu mau caminho. Quando dizem uma mentira, semeiam uma calúnia ou pilham os bens alheios, os liberais gostariam que lhes encobríssemos estes e outros pecados veniais com o manto da caridade. Nós, ao contrário, os apostrofamos de ladrões, embusteiros, caluniadores, exercendo assim para com eles a caridade mais excelente de todas, a de não adular nem enganar aqueles a quem queremos bem. Quando lhes escapa algum disparate gramatical, de ortografia, de linguagem, ou simplesmente de lógica, gostariam que fizéssemos vista grossa; e choram, e lamentam-se quando os advertimos em público, queixando-se de que faltamos com caridade. Nós, ao contrário, fazemos-lhe uma boa obra obrigando-os a apalpar com suas próprias mãos uma coisa que não devem ignorar, a saber: que não somente não são mestres, como pensam, mas que não passam de estudantes medíocres. Deste modo contribuímos, na medida de nossas forças, à cultura das belas artes na Itália, e ao exercício da humildade cristã no coração desses liberais que têm, como se sabe, grande necessidade dela.
“Os senhores liberais gostariam sobretudo que fossem tomados sempre muito a sério, estimados, reverenciados, obsequiados, e tratados como figuras importantes. Resignar-se-iam a que os refutássemos, sim, contanto que o fizéssemos de chapéu em mão, corpo inclinado e cabeça baixa em reverente e humilde atitude. Daí vêm suas queixas, quando às vezes são caricaturados, isto é, quando se zomba deles. Deles! Os pais da pátria, os verdadeiros italianos, a própria Itália, como costumam dizer de si mesmos! Quem tem, pois, a culpa, se é tão ridícula essa pretensão que ao próprio Heráclito faria soltar uma gargalhada?
“Pois bem! Devemos, para o seu agrado, passar a vida reprimir todo movimento natural de riso? Deixar-nos rir quando certamente não se pode deixar de o fazer é também obra de misericórdia, que os liberais poderiam outorgar-nos de boa vontade, já que por sua parte não custa muito. Todos compreendem muito bem que, assim como fazer rir honestamente, à custa do vício e dos viciosos, é em si coisa muito boa, segundo o dito castigat ridendo mores, e aquele outro ridendo dicere verum, quid vetat?, assim, fazer rir uma e outra vez os nossos leitores, à custa dos liberais, é verdadeira obra de misericórdia e caridade para os mesmos leitores, que certamente não hão de estar sempre sérios e rigorosos, enquanto lêem o jornal. E afinal os mesmos liberais, se bem considerarem, ganham muito em que os outros riam à sua custa, porquanto deste modo todo mundo vem a conhecer que nem todos os seus feitos são tão horríveis e espantosos, como podem parecer, já que normalmente só costumam provocar o riso as deformidades inofensivas.
“Não nos agradecerão nunca o caráter ingênuo com que procuramos apresentar algumas de suas picardias? Como não percebem que não há meio mais eficaz para conseguir que se corrijam delas, do que a chacota e o riso daqueles que as vêem por nós expostas em sua devida luz? E como não vêem que não têm direito algum de acusar-nos, quando assim o fazemos, de não obrar com eles como manda a caridade?
“Se tivessem lido a vida do seu grande Victor Alfieri, escrita por ele mesmo, saberiam que, quando pequeno, sua mãe que o queria muito bem educado costumava, quando o apanhava em alguma travessura, mandar-lhe ir à missa com a gorra de dormir. E conta Alfieri que este castigo, que não era senão expô-lo um pouco ao ridículo, de tal maneira o afligiu uma vez, que por mais de três meses se portou do modo mais impecável. “Depois disto, diz ele, quando, ao primeiro sinal de travessura, ameaçavam-me com a terrível gorra de dormir, imediatamente eu entrava tremendo na linha de meus deveres. Um dia, tendo caído em certo pecadilho, disse à senhora minha mãe uma solene mentira para desculpá-lo, e por isto fui de novo sentenciado a levar em público a gorra de dormir. Chegou a hora; a gorra fora colocada em minha cabeça, eu chorava e gritava em vão. Meu aio pegou-me pela mão para sairmos e um criado me empurrava por detrás.” Porém por mais que ele chorasse, gritasse e pedisse caridade, a mãe que queria o seu bem, permaneceu inexorável. E qual foi o resultado? “Foi, continua Alfieri, que por muito tempo não me atrevi a dizer outra mentira. E quem sabe se àquela bendita gorra de dormir não devo o haver-me tornado um dos homens mais inimigos da mentira!” Nesta última frase mostra-se de passagem o fariseu, que sempre costuma ter-se por melhor que os outros homens. Nós, portanto, que devemos supor que todos os liberais têm em alta conta os elevados sentimentos do seu grande Alfieri, por que razão não esparíamos nós corrigi-los do vício vergonhoso de dizer mentiras, ou pelo menos impedir de publicá-las, enviando-os com a gorra de dormir malgrado seus gritos, esperneios e apelos à caridade... não à missa, que isso é impossível, mas a dar uma volta pela Itália, e isso nem sempre que lhes escape uma mentira, pois que seria demasiado freqüente, mas ao menos todas as vezes que imprimam um milhar delas de uma só vez?
“Não insistam, pois, os liberais na queixa de que não os tratamos com caridade. Digam antes, se quiserem, que a caridade que lhes damos, esta não a recebem de boa vontade. Já o sabíamos. Mas isso só prova que, por seu estragado gosto, precisam ser tratados com a sábia caridade que empregam os cirurgiões com seu doentes, ou os médicos do manicômio com seus loucos, ou as boas mães com seus filhos mentirosos.
“Mas ainda que fosse verdade que não tratamos com caridade os liberais, e que os tais nada disso hão de agradecer-nos, nem por isso teriam direito algum a queixar-se de nós. É sabido que nem a todo mundo é possível fazer caridade. Nossas faculdades são muito escassas: fazemos caridade segundo a medida delas, preferindo, como é nosso dever, aqueles que a mesma lei de caridade bem ordenada manda preferir.
“Dizemos (entenda-se bem) que fazemos aos liberais toda a caridade que podemos, e cremos tê-lo demonstrado. Mas na suposição de que não a fazemos, insistimos ainda que nem por isso devem fatigar-nos com queixas os liberais.
“Eis um fato semelhante que vem muito ao caso. Um assassino de punhal na mão está agarrado a um pobre inocente para cravá-lo em sua garganta. Acontece passar na ocasião alguém que leva na mão um bom taco, e dá no assassino uma forte tacada na cabeça; deixa-o inconsciente, o amarra e entrega à justiça, livrando assim, por sua boa estrela, da morte a um inocente, e de um malfeitor a sociedade.
“Faltou este terceiro com caridade em algum ponto? Se escutarmos o assassino, para quem naturalmente lhe dói o golpe, dirá que sim. Discorrerá talvez que, contra a chamada norma inculpatae tutelae, o golpe foi forte demais, e com menos força teria bastado. Mas, à exceção do assassino, todos louvarão o passageiro, e dirão que praticou um ato não só de valor, mas ainda de caridade, não certamente em favor do assassino, mas da vítima; e que se para salvar este, teve de abrir a cabeça do outro sem ter muito tempo para medir escrupulosamente a força do golpe, não foi certamente por falta de caridade, mas porque a urgência da situação era tal que não se podia usar de caridade para com um, sem sacudir bem o outro. Teria ele tempo para demorar-se em sutilezas sobre o mais ou o menos da inculpata tutela.
“Apliquemos a parábola. Publica-se, por exemplo, um folheto maledicente, calunioso e escandaloso contra a Igreja, contra o papa, contra o clero, contra qualquer coisa boa. Muitos crêem que tudo naquele folheto é pura verdade, já que seu autor é um célebre, distinto e honrado escritor, qualquer que seja. Se, para defender os caluniados e livrar os leitores do erro, alguém dá umas tantas pauladas no desavergonhado autor, terá faltado com a caridade?
“Não poderão agora negar os liberais, eles se encontram mais freqüentemente na situação de salteadores do que na de vítimas. Que haverá de espantoso, portanto, que levem por isto uma paulada? Que haverá de estranho se queixarem de que não são tratados com caridade? Parem de comportar-se como desordeiros e arruaceiros; acostumem-se a respeitar os bens e a honra dos outros; não contem tanta mentira; não levantem tanta calúnia; pensem um pouco antes de falar sobre qualquer coisa; tenham em maior conta as leis da lógica e da gramática; sejam sobretudo honrados, como há pouco aconselhou o barão de Ricasoli, com pouca esperança de bom êxito, apesar da autoridade e exemplos de tal conselheiro, e poderão então queixar-se com razão se não são tratados com o respeito de que, como aquele da liberdade, pretendem ser os absolutos monopolizadores.
“Mas já que agem tão mal como escrevem; já que andam sempre com o punhal na garganta da verdade e da inocência, assassinos de uma e da outra com seus feitos e com seus livros, tenham paciência se não podemos em nossos jornais prodigar-lhes outra caridade que aquela algo dura, que cremos, embora contra seu parecer, seja a mais proveitosa, tanto para eles como para a causa dos homens de bem.”