E não obstante, caro leitor, com os liberais exaltados, os liberais moderados e com os católicos miseravelmente eivados de liberalismo temos de viver no século presente, como com os arianos se viveu no século quarto, com os pelagianos no quinto, com os jansenistas no décimo sétimo. E não é possível deixar de conviver com eles, porque os encontramos em toda parte: nos negócios, nas diversões, nas visitas, talvez até nas igrejas e na própria família.
Como deverá, pois, se portar o bom católico em suas relações com esses empestados? Como prevenir e evitar, ou diminuir pelo menos, o constante risco de contaminação?
É dificílimo indicar regras precisas para cada caso, mas é possível indicar as máximas gerais de conduta, deixando à prudência de cada um o cuidado de aplicá-las no que lhe diz respeito individualmente.
Parece-nos que, antes de tudo, convém distinguir três classes de relações possíveis entre um católico e o liberalismo, ou melhor, entre um católico e um liberal. Dizemos assim porque as idéias, na prática, não se podem considerar como separadas das pessoas que as professam e sustentam. O liberalismo ideológico é um puro conceito intelectual; o liberalismo real e prático são as instituições, as pessoas, os livros e os jornais liberais. Três classes, pois, de relações se podem supor entre um católico e um liberal:
- Relações necessárias.
- Relações úteis.
- Relações de pura afeição ou prazer.
1° - Relações necessárias. As relações necessárias são impostas a cada um por seu estado ou posição particular: não se pode evitá-las. São as que existem entre filhos e pais, marido e mulher, irmãos e irmãs, subordinados e superiores, patrões e empregados, discípulos e professores etc. É claro que, se um bom filho tem a infelicidade de seu pai ser liberal, não deve abandoná-lo por isso, nem a mulher ao marido, nem o irmão ou parente a outros da família, a não ser nos casos em que o liberalismo destes chegasse a exigir de seus respectivos subalternos atos essencialmente contrários à religião, induzindo-os à apostasia formal. Não, quando somente se impedisse a liberdade de cumprir os preceitos da Igreja, pois é sabido que a Igreja não pretende obrigar ninguém sub gravi incommodo1.
Em todos esses casos, o católico deve suportar com paciência sua dura situação e rodear-se de todas as precauções para evitar o contágio do mau exemplo. Como se aconselha em todos os livros que tratam das ocasiões próximas necessárias, o católico deve ter o coração elevado a Deus, e rogar todo dia pela sua própria salvação e pela das infelizes vítimas do erro; fugir sempre que possível de conversações e discussões sobre tais matérias, e não entrar nelas senão bem munido de armas ofensivas e defensivas; estas armas lhe serão fornecidas na leitura de bons livros e jornais, aprovados por um diretor prudente; contrabalançar a inevitável influência de pessoas contaminadas de tais erros pela freqüentação de outras pessoas de ciência e autoridade, que estejam em posse clara da sã doutrina; obedecer a seu superior em tudo que não se oponha à fé e à moral católica, porém renovar cada dia o firme propósito de negar obediência a quem quer que seja, em tudo que seja direta ou indiretamente oposto à integridade do catolicismo. E não desanime quem se encontra nessa situação. Deus, que observa suas lutas, não faltará com o auxílio conveniente.
Convém observar aqui que os bons católicos de países liberais e de famílias liberais costumam distinguir-se, quando são verdadeiramente bons, por seu especial vigor e têmpera de espírito. É este o constante proceder da graça de Deus, que auxilia com mais firmeza aí onde mais urgente e apertada vê a necessidade.
2° - Relações úteis. Outras relações há que não são absolutamente indispensáveis, mas que o são moralmente, porque sem elas não é possível a vida social, que se baseia toda numa troca mútua de serviços. Tais são as relações de comércio, as do patrão e seus empregados, as do artista com seus clientes etc. Nestas não há a estrita sujeição das relações do grupo anterior; pode-se, pois, agir com mais independência. A regra fundamental é não por-se em contato com tal gente, senão quando o exige a engrenagem da máquina social. Se és comerciante, não traves outras relações que as de comércio; se és empregado, limita-te às que exige o serviço; se és artesão, contenta-te ao “entregue” e ao “recebido” relativos à tua profissão.
Guardando esta prudência, e considerando as precauções gerais recomendadas no grupo anterior, pode-se viver sem prejuízo da fé, mesmo em meio a um povo de judeus; sem esquecer que neste caso não pode haver razão alguma de vassalagem, e que a independência católica tem o dever de manifestar-se com freqüência para impor respeito aos que crêem poder aniquilar-nos com seu liberalismo indecente. E no caso de uma imposição arbitrária, deve-se repeli-la com toda a franqueza, e erguer-se ante a desfaçatez do sectário com toda a nobre e firme intrepidez de um discípulo da fé.
3° - Relações de mera afeição. Estas são as que contraímos e mantemos por gosto ou inclinação e que podemos romper livremente, bastando querê-lo. Com liberais devemos abster-nos delas como de verdadeiros perigos para a nossa salvação. Aqui tem pleno lugar a sentença do Salvador: “Quem ama o perigo perecerá nele” (Eclo 3, 27). Custa? Rompa-se o laço perigoso, ainda que muito custe. Tenhamos presente as seguintes considerações, que certamente nos convencerão, ou pelo menos nos confundirão, se não nos convencem. Se certa pessoa estivesse atacada de uma moléstia contagiosa, terias contato com ela? Sem dúvida não. Se tuas relações com ela comprometessem tua reputação, as manteria? É certo que não. Por acaso a visitaria, se professasse idéias injuriosas com respeito à tua família? Também não. Pois bem, nesta questão que toca à honra de Deus e à salvação espiritual, façamos o que a prudência humana nos aconselha fazer pelo nosso interesse material e nossa honra humana.
Sobre este ponto, lembramo-nos ter ouvido uma pessoa de alta hierarquia hoje na Igreja dizer: "Nada com os liberais; não freqüenteis suas casas, não cultiveis suas amizades!" O Apóstolo São Paulo já antes havia dito a seus contemporâneos: Ne commiscemini: "Não vos relacioneis com eles" (1Cor 5, 9) Cum hujusmodi nec cibum sumere: "Com eles nem sentar-se à mesa." (1Cor 5, 11).
Horror, pois, à heresia que é o mal acima de todo mal! Em país empestado, o que primeiro se procura é isolar-se. Quem nos dera poder estabelecer hoje um cordão sanitário absoluto entre os católicos e os sectários do liberalismo!