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O quarto mandamento

Gustavo Corção

 

I

Uma primeira vista d’olhos sobre o panorama da atualidade, em todo o mundo, nos dá a impressão de uma efervescência sem regras nem rumo. A História, segundo esta primeira impressão, seria uma agitação errática e desordenada de vidas que querem viver seu fugaz momento, movimento browniano de pó de vidas.

Uma análise mais atenta revela-nos, indubitavelmente, linhas-de-história de marcada ascensão humana, e, portanto de marcado propósito de procurar um mundo melhor. Em que sentido? O único que nos parece incontrovertido é o do progresso, pela ciência e pela técnica, do domínio do homem sobre o mundo exterior e interior. Há um indiscutível e admirável progresso nas ciências e técnicas. O homem já vê a distancia, e já pôs o pé na Lua. Nos países mais avançados naquela linha já se entrevê uma melhor divisão dos bens materiais a despeito da atoarda que ainda fazem os revolucionários que assim vêem escapar-lhes das mãos o triunfo da miséria com que exploram a miséria.

O que não se vê, por mais que se queira abrir créditos ilimitados aos fatores materiais da vida humana, é um sinal de verdadeira ascensão humana na efervescência do momento histórico. Ao contrário disso vêem-se tendências contestatórias, torrentes de recusa e de protesto atiradas contra o passado, contra a tradição, CONTRA O PAI. As novas gerações são solicitadas a manifestarem sua maioridade com a bofetada na mãe e a morte do pai.

Essa estranha tendência contrária à lei natural contraria o próprio interesse do homem, trabalha para seu rebaixamento e sua perdição. Não se poderia, pois, pensar que tal inclinação seja normal, e faça parte dos dinamismos da História.

Em nossos dias essa aberração anti-histórica, anti-humana, aparece claramente como obra de uma contracorrente atuante ao arrepio dos mais altos interesses humanos. Essa contracorrente, indecentemente atuante em nosso tempo, vem de movimentos históricos organizados, e reativados nos últimos quatro séculos, com os quais uma caravana de dementes oferece a miragem de um mundo melhor desde que lhes permitam reduzir a pó este mundo mal feito que recebemos de nossos pais.

Quando Largo Caballero tomou as rédeas da Revolução na Espanha em 1936, proclamou: “Nosotros no dejaremos pedra sobre pedra de esta España, que devemos destruir para rehacer la nuestra!”.

Este é o ideal central da Revolução: destruir tudo, voltar à estaca zero para então recrear ex-nihilo. Seus dirigentes são deuses.

Em nossos dias ganham destaque, na turbulência dos eventos, as linhas de contestação do Pai.

***

 

Ora, o Cristianismo é, essencialmente, a Religião em que Deus se revela como Pai. Desde o Antigo Testamento se vê, passo a passo, que a preparação do Advento do Senhor é uma tradição de pai para filho: “Escutai, filhos, a instrução de um pai (...) Eu também fui um filho para meu pai, um filho dócil junto de minha mãe...” (Prov. 4, 1-2). “Não despreza, filho, a correção de Javé, e não tenhas aversão por seus castigos, porque Javé castiga aquele que ama, como um pai castiga o filho predileto” (Prov. 3, 11). E em Isaías: “Vós, Javé, sois nosso Pai, nosso Redentor. Este é o vosso nome desde tempos imemoriais. Por que, Javé, permitis que andemos errantes longe de vossas vias, com o coração endurecido contra o vosso temor?” (Is.53, 16-17).

Mas é no Novo Testamento que ganha todo o esplendor a paternidade de Deus. Desde os abismos de sua vida íntima e trinitária, Deus é Pai, e toda a vida divina procede do Pai e volta ao Pai. Analogamente, para arremate perfeito da Criação, Deus quererá para si todas as criaturas, e muito especialmente quererá a volta daquela criatura feita à sua imagem e semelhança. E envia ao mundo seu Filho Unigênito para resgate dos homens que doravante tornados filhos adotivos no Sangue do Unigênito, possam dizer com pleno direito Abba Pai. E é o próprio Jesus, num dia memorável entre todos os dias, que ensina aos homens a língua com que devem falar a Deus: “Pai Nosso”. Nessas duas palavras estão concentrados todos os mandamentos, porque a primeira diz Pai, e dirige-se a Deus, enquanto a segunda diz nosso e derrama-se em torno de nossos irmãos.

O mundo moderno, nos seus pruridos revolucionários, é anticristão porque é todo orientado por uma soberba rejeição do Pai. E para maior escárnio inventaram uma fraternidade revolucionaria baseada na decapitação do Rei, já que não tinham à mão a própria cabeça do Pai que está no Céu. Não é por mero acaso que a Revolução Francesa escolheu a linguagem das decapitações. Não é por mero acaso, também, que os revolucionários, da nova Igreja, dita “progressista”, exaltam o ídolo do “jovem” liberado definitivamente do 4° Mandamento.

Nós sabemos que toda a grande tradição católica tirou do 4° Mandamento as lições relativas ao princípio de autoridade e de ordem social. E assim, a moderna contestação do 4° Mandamento, pregado abundantemente na era pós-conciliar, não apenas dissolve a família como também a pátria. Toda a noção de ordem, sem a qual não há sociedade politicamente organizada e orientada para o bem-comum, prende-se à fundamental relação Pai-Filho, que o revolucionismo quer destruir.

E é com infinita tristeza, com cansadíssima tristeza que vemos, mais uma vez, o espetáculo da degradação e da impotência dos novos Bispos, ou dos Bispos atualizados, que já não sabem mais nada do tema central de toda a Revelação. Agora mesmo, na nova reunião ou congresso dos Bispos americanos, falou-se no problema da família na América Latina, e logo surgiram frases estereotipadas: os pais precisam dialogar com os jovens, nós temos confiança no jovem, e outras do mesmo quilate. Terá a Igreja Católica perdido o seu diapasão e esquecido o 4° Mandamento, terão seus hierarcas perdido o gosto de dizer Pai, e o gosto de dizer “filho, inclina o ouvido e escuta as palavras de um Pai amoroso...?

Quem passou a vida inteira a ler e reler as palavras de Deus nas Sagradas Escrituras, ou as palavras dos santos na vida da Igreja, não reconhece a mesma Voz nesse linguajar das conferências e congressos episcopais. Mais depressa reconhece o sotaque do velho conhecido lobo.

 

II

Peço ao leitor a paciência de suportar a insistência com que bato na mesma tecla: o nervo de toda a subversão e de toda a agitação que se observa hoje no mundo católico, especialmente no clero, é o da contestação do Mandamento “honrarás pai e mãe”.

Acima mostramos que este é o eixo da Revolução anticristã que de século em século se avoluma. A frase conhecida de Lacroix: “la democratie est le meurtre du père”, aplica-se melhor à Revolução que, desde a Renascença e a Reforma, pretende trazer ao mundo um novo humanismo liberado do Cristianismo, e, portanto, voltado contra o Cristianismo. Como se não bastasse a contestação de Deus Pai, e o repúdio da tradição e do passado, em favor de um progresso sem entidade idêntica a si mesma e capaz de aperfeiçoar-se sem deixar de ser o que é, ainda inventaram os homens, nas instâncias psicológicas, uma idéia de paternidade opressiva que representasse a consciência moral. E assim, em todos os níveis, a idéia de paternidade é demolida para que o novo homem, filho sem pai, possa realizar sua liberação total.

Dentro do mundo católico, esse monstro produziu aberrações que nem sempre parecem diretamente ligadas ao grande ideal parricida. Uma dessas aberrações é a frenética promoção d’O JOVEM. À primeira vista parece simpática, otimista e esperançosa essa exaltação da juventude; melhor reflexão, todavia, revela sua falsidade, e então o que parecia auroreal e otimista torna-se lúgubre e até obsceno. Tomemos por exemplo a frase “eu tenho confiança no jovem” de que muitos Padres e Bispos não conseguiram escapar. Essa frase parece uma proposição inofensiva, um sorriso, uma amabilidade, uma generosidade; na verdade, porém, é uma frase destituída de sentido e carregada das mais dissolventes conotações. De início a proposição é tola porque o jovem, por definição, é algo que ainda não disse ao que veio e, portanto, é alguém de que só posso dizer que tenho esperanças ou inquietações, conforme os sinais que nele observo. Mas dizer que tenho arrematada confiança em quem ainda não deu provas, é dizer um nonsense. A rigor, dos jovens e aos jovens, só podemos dizer com propriedade e sinceridade que cresçam e apareçam.

Com verdadeiro amor só posso dizer aos moços que não tenham tanta jactância de suas imaturidades e que cuidem diligentemente de aprender duas coisas. Primeira – agradecer a Deus e aos homens o que encontraram feito: água nas bicas e no mar, frutos nas árvores e no prato. O primeiro sinal que me predisporá a ter confiança num moço será essa disposição de agradecer. O segundo será a visível disposição de continuar e prolongar o que encontrou.

Ora, a adulação, com que os padres progressistas cercam os moços, só pode produzir o resultado oposto a essas duas virtudes: sim, só pode produzir a fatuidade e a soberba.

Para agradar ao semideus moderno os padres progressistas não recuam diante das mais ousadas iniciativas. Uma delas é a de promoção de “encontros” em que se misturam, com forte densidade, os jovens dos dois sexos.

Pode à primeira vista parecer que esses “encontros” visam principalmente a destruir os tabus do 6° Mandamento. Também isto entra nas cogitações dos aduladores dos jovens, mas o principal objetivo visado é sempre o pai. O pai da Terra e o Pai do Céu.

A exaltação da autonomia dos jovens tende evidentemente a mostrar que qualquer ação normativa e educadora é contrária à liberação do jovem, e, portanto, é contrária ao espírito da nova Igreja, e do mundo novo. Num mundo em que os padres têm horror à paternidade e pervertem os moços tranqüilizando-os e estimulando-os na soberba e na jactância, é fácil prever o desamparo em que ficam os educadores. Em si nunca tal tarefa foi isenta de espinhos. Daí a insistência com que Deus revelou a necessidade de defender essa linha. Dificílima, porém, se tornará a tarefa quando a sociedade em torno da família conspira contra os pais e ainda mais árdua se torna quando, além de faltar o socorro da Igreja, os padres trabalham sofregamente na perversão da juventude. Os pais, transtornados, perdem o pé, e então o anti-pai triunfa e aponta-o como clara demonstração de impotência e de inutilidade. Acelerado o círculo vicioso chega-se ao ponto em que se torna impossível educar.

Numa sociedade assim pervertida os jovens serão “os únicos juízes de seus atos”, como diz com toda ênfase e garbo um dos catecismos aprovados neste País pelas autoridades eclesiásticas que querem corrigir as distorções socioeconômicas das regiões menos favorecidas, mas não mostram nenhum empenho em evitar que os jovens sejam pervertidos por padres revolucionários.

E aqui torno a dizer que não ponho o acento tônico dessa perversão no 6° e sim no 4° Mandamento. Os desvios do 6° Mandamento podem-se explicar por fraquezas sensíveis que estão na linha da natureza das coisas: mas os desvios do 4° Mandamento são obra de um espírito de orgulho que está na origem de todos os desconcertos do mundo.

É horrível o espetáculo que o mundo católico, na área dita progressista, nos proporciona hoje. E a conseqüência não se faz esperar. Sim, senhores Bispos, é preciso ter sempre em mente que as coisas têm conseqüências. Se os jovens são arrancados à autoridade dos pais, cedo ou tarde terão de esbarrar em outro tipo de autoridade mais áspero. Tornados viciados, indisciplinados, revoltados, e eventualmente arrastados pelos agentes da subversão até a ação direta do terrorismo, os mesmos jovens adulados e caramelados pelos ávidos padres terão de esbarrar na repressão policial que é mais dura do que os pitos e conselhos do pai.

Eu não chego a dizer que os padres progressistas promotores de jovens tenham desde o início o desejo de transformar seus amiguinhos em criminosos, mas não hesito em pensar que é isto, precisamente, que o Demônio espera desses padres.

E agora que leio nos jornais que os senhores Bispos da América Latina concluíram que, para a restauração da família, é necessário que os pais entrem em diálogo com os filhos. Sim, diálogo, conversa, tolerância, mas não palavra de pai amoroso que quer o bem de seu filho. Para esse tipo de relacionamento entre pai e filhos não podemos contar com as reuniões episcopais.

 

 

Revista Permanência, setembro de 1973, n° 59, Ano VI.

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