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Curso de Religião

O texto deste "Curso de Religião", que aqui apresentamos com exclusividade, Corção deixou inacabado, embora o tenha continuado verbalmente em suas aulas em nossa sede. O leitor que quiser prosseguir com os estudos, contudo, não se verá prejudicado se, com o auxílio de bons livros, prosseguir do ponto em que este texto termina.

 

CURSO DE RELIGIÃO

 

Introdução

 

 

1. PRIMEIRAS MOTIVAÇÕES

 

Um grupo de moços nos procurou para pedir a organização de um curso de religião, complementado por outros cursos humanísticos. A alegação desses moços não podia ser melhor. Dizem que suas atividades são tão absorventes que não permitem a elevação da mente e a dilatação do espírito, sem a qual, por mais nobre que seja a tarefa, corre sempre o homem o risco de se desumanizar.

 

Admiramo-nos todos da sabedoria desses moços que, em tempo de ativismos e secularizações, sabem que, sem o amor de Deus, corrompe-se o amor humano, e sem a bússola da boa doutrina não há quem chegue a bom porto.

 

Dedicamos este livro, de início, aos seus primeiros inspiradores, e depois a todas as pessoas de boa vontade que se acharem em análogas circunstâncias. E assim fica entendido que esta prolongada conversação sobre as coisas de Deus dirige-se a pessoas que tenham um mínimo de conhecimento de catecismo, e um médio nível secundário, e que sintam, como aqueles primeiros, a necessidade de uma coordenação e de um aperfeiçoamento de seu saber. Ficamos assim dispensados de prolongar o encarecimento e a necessidade de tal estudo.

 

2. POSIÇÃO DO HOMEM

 

Os vários seres que compõem o universo existem e movem-se, cada um a seu modo, cumprindo sua função segundo sua natureza e as tendências nela inscritas. Pode-se dizer também que, cada um a seu modo, obedece e louva a Deus. Nesse grande conjunto cósmico observam-se certos seres especiais que, por assim dizer, se segregam em si mesmos e se destacam dos cosmos: são os seres vivos, que muito mais do que os inorgânicos se caracterizam por essa integridade. Cada ser vivo, embora pertencendo ao universo pela comunidade da matéria (são compostos de oxigênio, carbono, etc. como outros seres não vivos podem ser), e embora pertencendo à comunidade da espécie, se destaca por sua unidade, por sua inteireza e por sua organização defensiva de tal integridade.

 

Um grau maior de perfeição possuem os seres vivos animais: são sujeitos de conhecimento sensível. Cada um deles, além daquela integridade em que se fecha, realiza esta outra maneira de ser um centro. Um gato, pelo fato de possuir os sentidos que lhe trazem, não apenas o calor, a umidade, ou algum outro efeito físico do mundo exterior, mas também uma representação interna desse mundo, possui uma perfeição nova que o destaca do mundo vegetal.

 

Com mais este título de destaque e autonomia, o animal irracional está bem inserido na espécie e no meio, e tem em suas tendências naturais todos os instintos para se desincumbir bem de seu papel no drama da existência. O gato pode se desavir com o cão, ou pode devorar o rato, mas nenhum desses animais se deterá a fazer cogitações sobre o que é, o que deve fazer, e de onde veio e para aonde irá.

 

Este é o privilégio do homem. Dotado de uma nova e específica perfeição, a racionalidade, de natureza espiritual, o homem é um ser que nunca estará à vontade no mundo, como estariam os ratos num mundo sem gatos ou os gatos num universo sem cães, porque, de certo modo, é maior do que o mundo. Não possui, a não ser para as funções de sua natureza inferior, os instintos afinados para necessidades vitais de sua tendência. O homem é um ser que nasce fabulosamente rico, coroado com a “imagem e semelhança de Deus”, e miseravelmente desvalido e pobre. E ao longo da vida manterá sempre esse binômio de opulência e miséria: será sempre maior do que o mundo pela espiritualidade da alma, mas também estará sempre na posição de quem tem a racionalidade e a liberdade para procurar escolher os caminhos de sua missão, e também para conhecer e querer praticar atos de obediência e louvor de Deus.

 

Não poderemos progredir ou sequer viver nossa religião se não possuirmos uma forte noção do que é o homem, e de qual é sua posição em face do mundo. E decididamente não poderemos viver o cristianismo se nos entregarmos à má filosofia que nega a nota específica, a espiritualidade da alma, e a conseqüente transcendência do homem sobre o mundo. O secularismo ou temporalismo que hoje, como erva daninha, quer abafar a videira do Cristo (como se possível fosse ao homem tal vitória), tem estas características, e concebe o homem como parte do cosmos, imanente, imerso na comunidade cósmica.

 

De todos os seres da natureza o homem é o único que se interroga e que se nega. Bastaria este fato para advertir o empirista, o imanentista, o materialista, de que alguma incongruência existe entre o homem e o resto da criação. Não alongaremos demais estas considerações pelo fato de nos dirigirmos a pessoas que já têm a convicção da especificidade do humano. Adiante, se Deus permitir, voltaremos ao assunto para mais fundas pesquisas. No momento gravemos este imperativo: para agir, para amar, para viver — em todos os planos — o homem precisa adquirir um saber.

 

3. CIÊNCIA E SABEDORIA

 

Convém distinguirmos bem essas duas castas do saber. Há um saber que tem por objeto os fenômenos, as causas próximas ou as correlações, as medidas e as relações entre elas. Temos assim a física, a química, a biologia, a matemática, e as várias outras ciências chamadas empíricas (fundadas na experiência) ou também positivas. O erro do positivismo de Augusto Comte consistiu no valor máximo atribuído a essas ciências em detrimento do valor menor dado à Filosofia e à Teologia.

 

Para nós, estas ciências mais altas, por causa do valor e da dignidade de seus objetos, merecem o nome de Sabedoria. Versam sobre todas as coisas, mas sob um ângulo mais profundo do que o das ciências do fenômeno. Tomemos um exemplo — a psicologia. Com essa mesma denominação, há duas psicologias, a empírica e a racional ou filosófica. Note-se que o termo empírico, em nossa linguagem filosófica, não tem o sentido pejorativo da linguagem comum, onde empírico é quase sinônimo de a-científico. Para nós esse termo designa o conhecimento científico fundado na observação e na experiência.

        

A psicologia empírica ou experimental (ou científica — se quiserem) tem por objeto as manifestações apreciáveis (empiricamente) das paixões da alma, ou as emoções; e procura, sem recursos próprios em seus domínios, discernir as manifestações normais e as anormais. Freqüentemente se enganará, tomando por anormal uma normalíssima reação motivada, isto sim, por alguma circunstância anormal. O psicólogo praticante da psicologia experimental, se se fechar aos ensinamentos de critérios mais altos, quererá chamar de normais as reações mais encontradiças, e chamará de doente o indivíduo que apresentar sérias inconformidades com o meio em que vive. Quererá, em suma, e como ideal supremo, inserir as pessoas nos quadros existentes. Ora, esses quadros podem estar e freqüentemente estão gravemente deteriorados como tão bem assinala Erich Fromm em Sane Society.

 

E como é que podemos nós saber o que é normal e o que não é? A experiência e a estatística só nos dizem se tal coisa é ou não é muito encontradiça, mas esse critério não nos diz decisivamente se tal coisa é normal ou anormal. (Dois Amores e Duas Cidades. Agir, pág. 72, vol. 2). Para decidir esse ponto temos de recorrer a um saber mais alto: a psicologia racional que nos diz o que é a alma humana, e a filosofia moral que nos proporciona os princípios e critérios para a avaliação dos atos humanos.

 

A teologia nos ensinará ainda mais: ela nos dirá como Deus quer ser conhecido e amado, e como Ele faz questão, zelosamente de ser bem identificado, “não terás outros deuses diante de minha Face”, (Ex. 20, 3) e bem obedecido. E por aí já se vê que essas formas de saber são mais decisivas e importantes para o homem do que todos os conhecimentos que lhe asseguram certo domínio sobre os seres da natureza inferior. Ai do mundo se os homens quiserem possuir cada vez mais Ciências a respeito das coisas e cada vez menos Sabedoria da alma e de Deus!

 

O estudo e progresso no saber mais alto têm uma dificuldade que é uma facilidade, ou vice-versa. Expliquemo-nos: A Sabedoria, ao contrário da Ciência do fenômeno, é um saber global em que o conhecimento de cada parte implica o conhecimento das outras. Tomemos a Física: podemos estudar a mecânica deixando para ulterior estudo a Termodinâmica ou a Ótica, sem que essa protelação prejudique a compreensão da primeira parte. Na matemática, na geometria, por exemplo, o estudo progride vetorialmente, partindo de definições e postulados, e conquistando gradativamente novas relações métricas ou novas propriedades das figuras. Progride-se nestas ciências quando se conhecem mais coisas.

 

Na Filosofia não sabemos bem por onde começar. Podemos começar pela Lógica, pressupondo, porém, algum conhecimento metafísico ou psicológico. Reciprocamente poderíamos começar pela Metafísica, ou pela Psicologia (racional), pressupondo algum conhecimento de Lógica. Seria impossível o estudo da Filosofia se de algum modo, embora imperfeito, não conhecêssemos todos os seus capítulos. Felizmente temos no senso comum, ou no exercício da razão espontânea, uma primeira elaboração geral que nos permite a vaga visão do todo quando nos detemos no estudo de uma das partes. Progride-se nesse saber mais alto não por saber mais coisas, mas por saber mais a fundo as mesmas coisas. O progresso das ciências empíricas é extensivo; o da filosofia (e teologia) é intensivo.

 

Nas ciências físicas também existe certa interdependência entre as várias partes, mas essa globalização vem mais das “Teorias interpretativas” do que da experiência; e assim sendo eu diria que a dita globalização vem do teor filosófico (Filosofia da Natureza) que existe em todas as teorias interpretativas.

 

4. A SAGRADA DOUTRINA

 

Também neste domínio não saberíamos como começar se não partisse de Deus a iniciativa primeira. Nossa religião repousa sobre esse dado fundamental da iniciativa primeira, sem o qual poderíamos pensar em Deus entre as categorias filosóficas, mas não poderíamos conhecê-lo como Amigo íntimo. Para isto foi preciso que Ele tivesse, repetidamente, a iniciativa primeira. Essa primeira descida de Deus, autor da Fé, se faz de dois modos: no princípio exterior consubstanciado na Revelação; e pelo princípio exterior da Graça. Mais adiante voltaremos a este binômio; no momento basta-nos imaginar que Deus nos deu uma notícia exterior, que se acha compendiada na Sagrada Escritura e na Tradição, e logo nos deu, no mais íntimo de nossa inteligência, a capacidade de adivinhar o divino da Revelação e de crer nele de todo o coração.

 

Posto o problema nestes termos temos a mesma dificuldade anteriormente apontada no curso de Filosofia. Como começar o estudo da Sagrada Doutrina? Que itinerário seguir?

 

Nossa religião é um universo espiritual imenso, e um imenso universo cultural. Podemos passar a vida inteira estudando o cristianismo, sua doutrina, seu culto, sua liturgia, suas fontes, e mais as repercussões históricas e culturais de seus vinte séculos de civilização, de Tradição, de estudo de arte, sem lograrmos saber uma pequenina fração do que já foi pensado e dito em torno do mesmo tema central aparentemente tão pobre: um homem galileu foi crucificado, morto e sepultado, sob Pôncio Pilatos.

 

De todas as linhas possíveis, podemos destacar três linhas principais, três roteiros bem demarcados por Aquele mesmo que teve a primeira iniciativa de tal instrução. Estes três roteiros correspondem a um método clássico que está muito longe de ter dado os últimos frutos, como pretendem os modernistas.

 

São os seguintes:

 

Teologia Dogmática

Conhecimento dos artigos de fé.

“Creio em Deus Pai todo poderoso”.

 

Teologia Moral

Conhecimento da Vontade de Deus.

Dez mandamentos. “Seja feita a sua vontade...”.

 

Teologia Ascética e Mística

Conhecimento dos apelos de Deus à vida de perfeição:

“Sede perfeitos como Vosso Pai celestial é perfeito”. 

        

Estudaremos aqui a primeira linha, ou seja, a Teologia Dogmática. O roteiro nos é dado por este pequenino e maravilhoso compêndio de fé, que é atribuído aos primeiros apóstolos, e por isso chamado de Símbolo dos Apóstolos.

 

Eis o texto que devemos reter e repetir como oração e ato de fé:

 

CREIO

em Deus Pai Todo Poderoso, Criador
do Céu e da Terra;
e em Jesus Cristo um só seu Filho,

Nosso Senhor
o qual foi concebido pelo do Espírito Santo,
nasceu de Maria Virgem,
padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos,
foi crucificado, morto

e sepultado;
desceu aos infernos,

ao terceiro dia ressurgiu dos mortos,
subiu aos Céus, está sentado à direita

de Deus Pai Todo Poderoso,
de onde há de vir a julgar os vivos e mortos;


CREIO

no Espírito Santo,
na Santa Igreja Católica,
na comunhão dos Santos,
na remissão dos pecados,
na ressurreição da carne,
na vida eterna.

 

Tentaremos seguir este roteiro clássico fazendo de vez em quando explorações transversais que nos levem a apreciar o efeito do dogma na vida moral e na vida da piedade ou da santificação. Assim procuraremos escapar à rigidez excessiva dos compêndios clássicos, sem prejuízo da nitidez da doutrina.

 

Convém ainda aqui um reparo que assinale bem a diferença entre o enunciado de artigos de fé, ou a simples exposição, como se costuma fazer nos catecismo, e o tratamento propriamente teológico. Em ambos os casos temos proposições de fé com o mesmo objeto, a saber, o dado revelado. O Símbolo dos Apóstolos e um tratado de Teologia Dogmática (as primeiras partes da Suma Teológica, por exemplo) afirmam as mesmas verdades, mas dão-lhe tratamento diferente. O Símbolo apresenta as verdades da fé de um modo meramente expositivo, enquanto o Tratado ou a Suma trabalha o dado revelado procurando suas conexões vitais, sua organização em corpo doutrinal. Costumamos dizer que o objeto da Teologia é o dado revelado enquanto conexo.

 

Cabe aqui uma observação sobre os dois métodos principais da elaboração teológica: o primeiro, exemplificado pela Suma, é o da Teologia Especulativa; o segundo é o da Teologia Positiva ou Histórica.

 

Na primeira, a conexão e a organicidade dos artigos de fé é procurado com especulação racional: o teólogo especulativo raciocina para obter maior riqueza de conexões e de conclusões teológicas. E a estrutura elementar desse raciocínio (usando o esquema silogístico de Aristóteles) é o seguinte:

 

1 – MAIOR – de fé.

2 – MENOR – de razão.

3 – CONCLUSÃO – conclusão teológica.

 

Essa conclusão teológica que parte da premissa de fé e usa a infalibilidade lógica da razão, pode ser outro artigo de fé revelada (e neste caso temos o lucro de uma conexão), ou uma verdade não revelada (que pode ser revelável, isto é, implicitamente revelada ou não) e neste caso temos o lucro de uma explicitação ou de uma conclusão teológica.

 

Com este trabalho de Teologia Especulativa entende-se que possa dilatar-se, para nosso conhecimento, o campo da dogmática sem que em si mesmo ele rompa a consumação da obra de Cristo. O dogma não evolui, não muda. A Revelação, como veremos a seguir, está encerrada. Mas para nós evolui o aprofundamento do depósito Sagrado.

 

Na Teologia Positiva ou Histórica, que expõe a Doutrina ao sabor da História Sagrada, a conexão é menos lógica, menos clara, mas mais sugestiva e vital. Para a catequese infantil parece-nos melhor a perspectiva da Teologia Positiva; para o estudo mais profundo e mais sólido parece-nos melhor o itinerário da Teologia Especulativa.

 

5. VANTAGENS DA CONEXÃO DOUTRINAL

 

As vantagens da conexão doutrinal são evidentes: não somente favorecem a retenção das verdades de fé, que desconexas constituiriam atos de pura e isolada memorização, como também, e principalmente, favorecem a resistência do corpo doutrinal à semelhança do que ocorre nos processos de resistência nos organismos vivos. Além disso, o corpo doutrinal bem estruturado e dotado de conexões vivas, produz nas profundezas da alma um estado de harmonia e paz que facilitará muito o desenvolvimento das virtudes e o crescimento em perfeição. O dogma bem assimilado, bem conectado, bem colocado, bem constelado, bem sistematizado — o dogma bem trabalhado pelo estudo e pela meditação é um gerador de piedade e de fervor religioso.

 

Para isto acontecer, porém, é indispensável colocar a especulação teológica como uma forma de conversação religiosa, ou como uma atividade de filial atenção às palavras de um pai afetuoso. Não se pode estudar teologia como quem estuda geometria descritiva, ou cálculo integral. A sabedoria será sempre obra de inteligência irmanada a um ato de amor. Ninguém será teólogo sem fé, ninguém sustentará a fé sem a caridade. Mais adiante entenderemos melhor essas coisas. No momento basta reter a necessidade de uma atitude amorosa do espírito para o bom proveito das verdades de fé, que devem sempre produzir em nós ressonâncias de oração, como se estivéssemos a falar dentro de uma imensa nave.

 

Em contradição diremos que talvez se expliquem as muitas aberrações que hoje se observam na Igreja não apenas pela diminuição de fé, mas antes disso pela diminuição das práticas que resguardam a fé: o estudo e a meditação. Com o estudo articulamos melhor os vários dados que compõem o corpo doutrinal; com a meditação e a vida de oração fixamos em nós, fazemos substância de nossa substância a doutrina santa e doce que, sendo um Verbo de Deus afeiçoado à alma humana, será também uma outra maneira de termos em nós o Corpo de Cristo.

 

Sem esse resguardo, e sem aquelas conexões que traz o estudo, a doutrina será em nós um sistema de idéias bambo e mal encaixado. Ao primeiro solavanco da vida, quem não religou os dados de sua religião, quem não assimilou o que engoliu, vomitará tudo, e sairá procurando outros alimentos para sua pobre alma vazia.

 

Agarremo-nos nós ao que temos, porque a vida de Fé não consiste essencialmente em procurar, em inquirir, em pesquisar, e em renovar as experiências mentais; o progresso verdadeiro do homem de Fé consiste sim, e essencialmente, em procurar — mas em procurar acréscimos de proveito a partir do que já temos como dom de Deus.

 

Recentemente, em La Documentation Catholique, n° 1522, 4 — 18 de agosto de 1968, sob o título “Religion verticale et religion horizontale”, lemos uma alocução pronunciada por Sua Santidade Paulo VI. Nessa alocução o Papa frisa bem que a fé não é uma interminável procura, que a fé consiste essencialmente numa posse: “A fé é antes de tudo uma posse: o crente já está em posse de certas verdades supremas que lhe vêm da palavra de Deus (...). Para o crente tudo se passa como se, no meio da obscuridade e da confusão, visse uma luz acender-se nele...”. Mais adiante acrescenta que esse dado primeiro, esse dom de Deus, pede progresso e crescimento, e nos lembra duas palavras admiráveis de Santo Agostinho: “Se o amor cresce, a busca d’Aquele que nós já achamos também deve crescer” e depois: “Achamos Deus para o procurar mais intensamente”.

 

 

CAPÍTULO I

 

CREIO...

 

 

1. A PALAVRA CHAVE

 

Antes de analisarmos sucessivamente os vários artigos do Símbolo dos Apóstolos precisamos compreender bem a importância e o sentido exato da primeira palavra, que está para o conjunto dos artigos como a clave para a partitura musical.

 

Mas a palavra em questão, “creio”, tem aqui uma especial ressonância, um especial sentido que difere do que lhe é habitualmente atribuído. Nos textos comuns quando digo “creio” quero dizer que sei alguma coisa de um modo que inclui uma margem de dúvida. Crer, nesse sentido comum e natural, é um saber impreciso, anterior à certeza.

 

O humano saber tem vários matizes, vários graus de imperfeição antes de atingir a certeza clara em que repousa o assentimento perfeito. O termo “creio” é usado sempre para designar um assentimento com temor de erro, uma esperança, uma suposição, e nunca uma certeza. Quase diríamos que o termo designa uma incerteza e uma inquietação, e, portanto um estado de espírito que se presta pouco a um ato de fé. E por aí se concluiria que o termo chave de nossa fé deve ter aí, no Símbolo dos Apóstolos um sentido oposto ao que tem na linguagem comum. E isto é verdade, porque não podemos admitir a idéia de uma margem de dúvida num ato de fé. Por que então usar a palavra que habitualmente significa o oposto do que queremos aqui significar? Porque na verdade o “creio” da fé sobrenatural tem certa semelhança com o “creio” da linguagem comum. Se não podemos admitir um ato de fé com margem de dúvida podemos, entretanto, admitir um ato de fé com alguma imperfeição, alguma obscuridade de nossa parte. Deus diz, não duvidamos, mas vemos mal. “Por enquanto vemos só em sinais e enigmas”.

 

Para entendermos melhor as dessemelhanças e as semelhanças que existem entre o “creio” da linguagem comum e o “creio” da fé, temos de abrir um tópico para considerações um pouco mais extensas sobre os itinerários da razão humana em busca das certezas.

 

2. CERTEZAS E INCERTEZAS

 

Todos nós nos guiamos na vida por certas coisas que sabemos com certeza, e outras que sabemos com graus diversos de incerteza. Os filósofos nos ensinam que o critério supremo da certeza é a evidência com que uma determinada verdade se impõe aos nossos sentimentos ou à nossa inteligência. Os céticos dirão que esse critério é falso e que na verdade somos todos enganados e nos movemos entre sombras. Esse exagero do ceticismo vem do fato incontestável de serem obscuros e imperfeitos os nossos conhecimentos; mas o conhecimento pode ser certo e imperfeito. Tomemos um exemplo sensível: “eu conheço o professor Francisco e sei, com certeza, que ele está sentado diante de mim”. Este conhecimento sensível, no caso visual, é certo, mas não é perfeito porque não sei tudo nem vejo tudo da referida pessoa. Tomemos um exemplo científico: “os metais são condutores de eletricidade” ou “o calor dilata os corpos”. Essas proposições também são certas, mas também não são perfeitas porque não sabemos tudo a respeito desses fenômenos. As certezas mais perfeitas que possuímos são aquelas que envolvem princípios universais: “tudo o que age, age por uma causa”, “o todo é maior do que as partes”, “duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si”. Essas mais perfeitas certezas que possuímos são a certeza metafísica e a certeza matemática. Essas certezas podem ser espontâneas, ou axiomáticas, e desde logo evidentes; ou demonstradas por um raciocínio perfeito e tornadas evidentes na conclusão. À primeira espécie pertencem os chamados axiomas, e à segunda os teoremas como este: “a soma dos ângulos internos do triângulo (na geometria de postulados euclidianos) é igual a dois retos”. A certeza matemática é mais perfeita do que a metafísica porque esgota todas as significações envolvidas; a certeza metafísica é mais perfeita em razão de seu objeto e no plano mais alto e mais rico em que se estabelece. Abaixo de ambas está a certeza física que nos vem da intuição dos sentidos, a que nos referimos atrás.

 

Sistematizemos:

 

CERTEZA METAFÍSICA, inicial ou terminal.

CERTEZA MATEMÁTICA, inicial ou terminal.

CERTEZA FÍSICA, direta e intuitiva.

 

Abaixo desta temos as certezas científicas (física, química, biológica, etc.) que só são certezas pela verificação experimental, ou pela indução dos casos observados. Tomemos para exemplo um fenômeno universalmente admirado pela certeza com é previsto; um eclipse. Será correto dizer que os eclipses são determinados com precisão matemática? Não. Com precisão matemática só podemos enunciar as realidades imateriais das formas matemáticas. Posso dizer que a tangente de um círculo é perpendicular ao raio que passa pelo ponto de tangência. Esta proposição tem um rigor matemático. Se agora tomássemos um compasso, construíssemos um círculo (agora físico), e com a régua traçássemos a tangente e o raio, poderia acontecer que os dois ângulos formados sejam 89° 59’ e 90° 01’ ou 89°59’59” e 90°00’01”. Se eu trabalhasse com extremo rigor físico conseguiria erro cada vez menor, precisão cada vez maior, mas jamais alcançaria a absoluta precisão matemática.

 

A física, por causa da matéria envolvida em seus fenômenos, só é conhecida em grau aproximado. E quanto maior for a densidade de dados, maior será a imprecisão, ou a dificuldade de precisão. O prestígio que cerca os eclipses vem do simples fato de se tratar de um fenômeno muito isolado e muito isento de perturbações. O sistema planetário que habitamos fica a distância prodigiosa dos outros sistemas que possivelmente existam, e por isso é extremamente pequena a probabilidade de uma interferência de corpo estranho que venha perturbar a regularidade de nosso relógio planetário. Mas essa interferência não é impossível; o eclipse previsto para o ano de 3000 poderá não se realizar, ou se realizar atrasado ou adiantado. E por aí se vê que a certeza astronômica não tem o rigor e o absoluto das certezas metafísicas e matemáticas.

 

À medida que se adensa o teor material, e à medida que o fenômeno se torna mais complexo, mais incerta se torna a ciência. Tomemos como exemplo agora a atitude do médico diante de um doente que sente tais e tais coisas. Inicialmente, ao entrar no quarto do doente o médico está na estaca zero, mas sua ignorância não é igual a dos leigos na matéria que cercam o doente: ele dispõe de uma ciência da normalidade do organismo humano graças à qual poderá iniciar a procura, a saída da pura ignorância. O segundo passo, proporcionado pelo quadro de sintomas bem explorado, é o de uma dúvida entre este ou aquele diagnóstico. No terceiro passo há a forte suspeita, isto é, a nítida preferência para um dos termos da dúvida: diríamos que está na pista da certeza. Poderá chegar até a convicção de que está diante de tal ou qual doença bem determinada. Mas esse diagnóstico ainda não tem por si a evidência, e, portanto ainda não é uma certeza absoluta. Será a opinião, será uma hipótese de trabalho que se confirmará ou não na continuação do tratamento. Em muitos casos o médico poderá pedir exames que quase lhe permitam o pronunciamento categórico sem temor de erro. Uma radiografia, por exemplo, pode evidenciar a presença de um corpo estranho em algum órgão, a biopse e o exame microscópico poderão evidenciar o mau caráter do tumor. Estará diante da certeza absoluta? Os puristas poderiam objetar: ainda não, porque o médico não tem certeza física nem metafísica de que os exames em questão pertencem efetivamente ao caso particular que examina. Ele não fez os exames pessoalmente, ele não acompanhou a revelação da chapa, etc., etc. Em termos rigorosos diríamos que todo esse conjunto de confianças tácitas e informuladas, forma o que chamamos certeza moral.

 

Essa certeza moral, ou de segunda mão, está em todos os atos e decisões de nossa vida, ocupam uma área imensa de nossa ciência das coisas e dos homens. Mais adiante voltaremos a esse problema. Agora, voltando ao caso do médico, imaginemos um diagnóstico de câncer, com a certeza quase absoluta que muitas vezes chamamos simplesmente de certeza, que está diante de um câncer. Perguntem-lhe agora qual é a causa do câncer, e qual é sua terapêutica: o médico mostrará logo a situação de dúvida em que se acha o problema, longe da suspeita e da opinião.

 

3. A FÉ HUMANA.

 

Entre as coisas que sabemos de modo incerto, com maior ou menor probabilidade de acerto, vamos distinguir agora:

 

a) as coisas que sabemos por nós mesmos;

b) e as coisas que sabemos por outro.

 

As primeiras, de que já falamos no tópico anterior, são aquelas que, para chegarem à certeza, terão de chegar à evidência racional ou à evidência empírica dos sentidos. Mesmo nessas aquisições diretas, em que é nosso olhar ou nossa própria inteligência que vê, pode haver interposição de outras pessoas. No caso anterior vimos que o médico não tem certeza metafísica da relação entre a radiografia e a doente. Há ainda outro caso de interposição de pessoa, que não diminui a apropriação da certeza: é o caso do que sabemos porque o professor nos ensinou. Este caso precisa ser cuidadosamente examinado e divido em dois:

 

a) sei isto porque o professor me ensinou, e não tenho nenhum meio de ver por mim mesmo se isto é verdade ou não; neste caso o “porque o professor me ensinou” é o próprio critério de meu saber;

 

b) sei que a soma dos ângulos do triângulo (na geometria de postulados euclidianos) é igual a dois retos porque o professor me ensinou. Neste caso o “porque o professor me ensinou” só tem caráter de circunstância: ainda que dificilmente pudéssemos aprender a matemática inteira sem o professor, o critério da ciência reside na visão clara que tenho da demonstração. No momento em que vi, em que compreendi, o professor desapareceu e eu estou diante da verdade que se tornou minha própria verdade.

 

O segundo caso recai no que já dissemos no tópico anterior: mas o primeiro nos leva a considerar um caso muito importante e extremamente difundido de ciência: o que repousa na autoridade, na confiança que em outro depositamos. Chamemo-lo de fé humana. Tudo o que sabemos, sabemo-lo primeiro por fé humana; poucas são as coisas que sabemos por nós mesmos, e dessas, poucas são as que sabemos com certeza, e pouquíssimas as que sabemos com certeza e perfeição.

 

A fé humana é o menor dos critérios do saber científico; o argumento de autoridade, com já dizia Santo Tomás, é o mais fraco dos argumentos. O estudioso ganha maturidade de espírito à medida que passa da fé humana para o conhecimento próprio. Pode-se, entretanto, acrescentar que só crescerá normalmente o espírito que soube esperar a hora conveniente de ver com seus próprios olhos. A situação ideal entre o professor e o aluno é aquela em que o professor tem empenho de liberar o aluno e vê-lo nadar sozinho, e em que o aluno tem o maior empenho de aproveitar o tempo de receber e de ouvir. Será preciso assinalar que o drama de nosso tempo produz exatamente o contrário? Há professores (demais) cujo sonho ardente é o de teleguiar multidões de jovens; e há jovens (demais) que aos dezoito anos já sabem tudo, e paradoxalmente (e sem saber o que fazem) se deixam guiar como autômatos.

 

A fé humana está exilada no domínio das ciências; mas está em sua terra natal na vida social e na convivência política. Por mais que a amarga experiência nos prove que os homens mentem e atraiçoam, não há possibilidade de estruturar um corpo político na base da pura desconfiança. Ponderem bem e considerem a imensa área de coisas que sabemos, e que utilizamos, porque outros nos disseram. Obedecemos ao médico por fé humana; casamo-nos por fé humana; marcamos encontros; fundamos instituições, debruçamos sobre as crianças por fé humana (e no caso também pela certeza que temos de que devemos praticar o bem e evitar o mal); votamos por fé humana; sabemos que existe o Vietnam por fé humana; e assim por diante.

 

O mecanismo psicológico da fé humana é complexo e variado: compõe-se de um ato de inteligência (um assentimento) com critério em um ato por sua vez composto de inteligência e vontade (a confiança no outro). Essa confiança no outro (pai, professor, autor, informante, etc.) não é cega nem incondicional; ela nasce do que sabemos dele, do que nos parece ele digno de crédito. O bom funcionamento da fé humana depende essencialmente do bom discernimento que nos leva a ouvir a pessoa que merece ser ouvida; o mau funcionamento, que constitui a impostura generalizada das épocas de crise é produzido pelas correntes de difamação e pelas outras de falsa glorificação. Nos tempos modernos a febre publicitária, e o seu mercantilismo, tornam quase impraticáveis as instituições sociais e políticas que dependem da fé humana. O exercício da autoridade se enfraquece e é substituído pela demagogia inculcadora de mentiras.

 

Nossa vida religiosa não consiste em atos de fé humana, e até se pode dizer que somos muito exigentes nessa matéria, mas não deixa de sofrer grandes aflições quando sentimos abalados os vínculos normais de estima e respeito, e, sobretudo quando vemos funcionar mal a camada social de onde esperávamos as melhores lições.

 

4. A FÉ DIVINA

 

Depois de todas essa considerações voltamos ao CREIO que está no eixo de todos os artigos de fé. Trata-se de um assentimento parecido com o de fé humana: “creio” nisto, naquilo, etc., porque um Outro me disse...”. Temos aí a combinação do mais pobre dos critérios de certeza (o da autoridade), e a mais rica e alta das fianças (a do próprio Deus). Destarte, aquele assentimento em confiança que, no caso de tratar-se de homem para homem, freqüentemente revela seu fundo de miséria, está aqui transfigurado, por tratar-se de uma comunicação de Deus para o homem, mas assim mesmo conserva, da parte do homem, seu aspecto de miséria. Apesar do infinito valor da Autoridade, o ato de fé é sempre para nós obscuro e enigmático: “Vemos agora em sinais e enigmas”.

 

Mas agora cabe aqui a pergunta: como sabemos que isto nos foi dito por Deus? Ou então: como sabemos que a Revelação é de origem divina? Se fomos nós mesmos, ou os papas, ou os apóstolos que discerniram o divino na Revelação, então fomos nós que julgamos e que decidimos aceitar a Autoridade reveladora, e, portanto, será ainda humano (e, portanto enganador por falta da evidência) o principal do ato de fé divina.

 

Completa-se o processo do ato de fé divina com o princípio interno que nos vem do próprio Deus, que nos dá a sua Revelação e que nos capacita, no interior da alma, nas profundidades, nas raízes de nossas faculdades espirituais, para aderirmos de toda a alma, de todo o coração e de todo o entendimento, às verdades reveladas. Representando a inteligência humana por um olho, e lembrando que toda a comunicação divina nos veio por seu Verbo, poderíamos traçar este esquema de nosso ato de Fé:

 

 

Esta “nova pupila” que nos permite discernir e ver o divino é a virtude teologal infusa da Fé divina.

 

Deus nos atende assim de dois modos: dá-nos a notícia externa de seus mistérios, e dá-nos a possibilidade interna de nivelarmos nossa inteligência para tal objeto. Mais adiante veremos melhor a riqueza interior que nos vem dos dons divinos. Desde já convém fixarmos, numa primeira aproximação, a seguinte noção: o que Deus dá à alma humana que aceita seus misteriosos convites (“Levanta-te minha amiga, minha bela, e vem!”. Ct. 2, 10) é uma qualidade divina, uma marca que excede nossa natureza, que é sobrenatural. Essa marca ou qualidade habitual se chama graça santificante. Além dessa forma nova e habitual, Deus dá, para todos os atos sobrenaturais, uma força, moção, chamada graça atual. Desse organismo sobrenatural resultam as virtudes e os dons. As virtudes teologais são a Fé, a Esperança e a Caridade. Todas elas estão voltadas para Deus e para o convívio a Ele nos chama.

 

A tem por objeto as verdades reveladas.

 

A Esperança tem por objeto as promessas de vida Eterna.

 

A Caridade tem por objeto Deus mesmo e seu Amor.

 

Voltemos à composição de nosso ato de Fé sobrenatural e observemos que Deus não revela os seus mistérios a cada um de nós, pessoalmente. A Revelação que se formou gradativamente no Antigo Testamento e que se consumou com a obra de Cristo e se encerrou na morte do último apóstolo é um patrimônio do Povo de Deus. Os primeiros apóstolos tiveram a noção exata de serem uma hierarquia portadora de um Sagrado Depósito doutrinal. À medida que a Igreja se organiza com suas sucessivas vitórias sobre as heresias dos primeiros séculos, vê-se crescer a consciência de um Magistério portador das jóias da divina revelação. E gradativamente o Povo de Deus aprendeu a dizer assim:

 

CREIO nisto, nisto e naquilo PORQUE DEUS REVELOU,

e porque a Santa Madre Igreja ensina.

 

Analisemos este enunciado. A parte constituída pelos vários artigos de Fé (isto, isto, aquilo, etc.) é, digamos assim (usando o hilemorfismo aristotélico) a matéria de nossa Fé. O “PORQUE DEUS ENSINOU” é a razão formal de nossa Fé. O “porque a Igreja ensina” é o circunstancial, mas um circunstancial sine qua non. DEUS quis que a Igreja que instituiu fosse o instrumento de nossa salvação, e instrumento sine qua non. Mas não é a Igreja que nos salva, é Deus; nem é a Igreja que nos revela, é Deus.

 

E porque terá Deus estabelecido assim o plano de nossa salvação? Não podemos penetrar os desígnios de Deus, mas podemos procurar certas razões que entre si vinculem e harmonizem as verdades da Fé. Podemos dizer que Deus afeiçoou seu plano por nossa natureza, que melhor do que nós Ele conhece. E assim concebeu o plano de nossa redenção em torno do Verbo Encarnado, em que o próprio Deus assume nossa natureza.

 

No ato de Fé, e na posição instrumental da Igreja, há uma consideração parecida com o ato de conhecimento da razão natural. A inteligência se serve dos sentidos, como de seu instrumento: nada está na inteligência que não tenha passado pelos sentidos; mas não são os sentidos que conhecem as notas inteligíveis das coisas, é a inteligência.

 

Tornemos a dizer: a razão formal de nosso CREIO é a procedência divina, e nesta razão formal, neste essencial de fé, como ensina Santo Tomás de Aquino, não entra nada de criado, nem a Igreja, nem os apóstolos, nem os anjos, nada a não ser DEUS: “nihil aliud quam Veritas Prima”.

        

5. TUDO OU NADA

 

Retomemos o esquema estrutural do Credo: “Creio em (a, b, c,...) porque Deus revelou”. E consideremos o seguinte: não é em cada um dos artigos a, b, c,... , ponderados e examinados em seus títulos de credibilidade, que nós cremos primeiramente, essencialmente — é na palavra de Deus. Este é o eixo a que se referem, e em que se prendem os artigos a, b, c,...; de onde concluímos o seguinte: não podemos abandonar um só desses artigos, porque se eu disser que não creio em c, por exemplo, não é somente desse que eu descreio, e sim do critério essencial, do motivo formal de nossa Fé sobrenatural, isto é, da palavra de Deus. E se descreio da palavra de Deus descreio de todos os outros artigos como revelados. Continuarei a crer na coleção de artigos de minha escolha, mas então esse CREIO não será mais de Fé divina, e sim de Fé humana.

 

Vamos mais longe: se pretendermos crer com Fé divina no dado revelado (Sagrada Escritura e Tradição) com livre interpretação, como querem os protestantes, e com desprezo pelo que ensina a Igreja, novamente caímos no mesmo engano mortal. Não é divino esse modo de crer que contraria tão afrontosamente a vontade de Deus, claramente expressa nos evangelhos: “Ide, ensinai a todos os povos, e batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os também a observar meus mandamentos e eu estarei convosco até o fim do mundo”. (Mt. 28, 19).

 

É aos discípulos, e, portanto ao colégio apostólico, e, por conseguinte à Igreja que Jesus dá o divino diploma para ensinar as verdades de Deus.

 

E daí se conclui o que era de esperar. Uma vez que o critério de nosso assentimento de Fé divina, ou teologal, é a palavra de Deus, primeiro anunciada pelos profetas, e depois, na plenitude dos tempos confirmada e completada pelo próprio Verbo Divino, temos de aceitar todos os artigos, e temos de nos submeter ao condicionamento do Magistério, sem o quê perdemos aquele critério e com ele todo o valor divino de nossa Fé. Estamos diante de uma opção sem igual no mundo, e podemos dizer que Deus espera de nós uma rendição incondicional: tudo ou nada.

 

Há inúmeras situações humanas em que a solução acertada é um meio termo. Assim acontece quando, por exemplo, queremos regular o uso dos bens materiais; e assim também acontece quando devemos navegar entre escolhos. Seria, entretanto um erro gravíssimo supor que a boa solução está sempre no meio termo ou na bissetriz. Costuma-se hoje criticar, apostrofar as pessoas que em certas situações de dilema tomam posições extremadas ou radicais. Há também inúmeros casos em que o acerto está num extremo e não no meio. A integridade e a totalidade da Fé estão nesse caso.

 

A Fé divina constituirá para nós a mais bela e adamantina intolerância; ou a maior das exigências feitas aos homens. Seria insustentável se Deus mesmo, para tanto, não nos desse a força interna, a virtude teologal, visão obscura, mas certa, semente de vida eterna, mas já eternidade diante de Deus. E para nós é especialmente grato lembrarmo-nos de que aparelho, de que obra, nos vêm essa energia espiritual — a Cruz de nosso Salvador.

        

6. FÉ SOBRENATURAL

 

Já mais de uma vez aludimos a esta característica essencial de nossa Fé. Ela consiste no teor divino da qualidade criada por Deus nas almas dóceis, ou melhor, consiste no caráter sobrenatural de tudo o que deriva da Fé divina. Trata-se, pois, de uma qualidade, de uma faculdade, e de operações que não pertencem à ordem da natureza e sim à ordem da graça. E é essa ordem, esse domínio, e essa vida que chamamos de sobrenatural.

 

Mas adiante, no momento azado de estudar esses problemas da moral e da psicologia sobrenatural, completaremos, ou melhor, dilataremos essas noções. Agora, não podemos dispensar uma referência mínima a esse dualismo da vida cristã: não podemos prosseguir o estudo de nosso Credo sem esta advertência: estamos no domínio das verdades sobrenaturais, cuja altitude e cuja pureza é um dos nossos principais pontos de honra. Mais de uma vez, ensinando aos seus discípulos, Jesus reage vivamente quando algum deles tenta puxar para baixo (hoje diríamos: horizontalizar) as coisas da Fé divina. Um belo exemplo é o dia em que o Cristo instituía o papado e elegeu Pedro, primeiro pontífice.                                       

 

“Quando chegavam à região da Cesareia de Filipe, Jesus interrogou seus discípulos: — ‘Quem dizem que é o Filho do homem?’ E eles responderam: ‘Dizem uns que é João Batista, outros Elias, outros Jeremias ou algum dos demais profetas’. E Ele: ‘E vós? quem dizeis vós que eu sou?’ Simão Pedro, tomando a palavra disse: ‘Vós sois o Cristo, Filho de Deus vivo’. Jesus lhe respondeu: ‘Bem-aventurado és tu, Simão Bar-Jona, porque não foi a carne e o sangue que te revelaram isto, mas meu Pai que está nos céus. E eu te digo que tu és pedra, e sobre essa pedra edificarei minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves dos céus...”. (Mt. 16, 13).

 

Mas logo após, quando anunciava sua paixão, e quando Pedro intempestivamente quer julgar a obra de Deus com seus critérios, eis a voz severa que ouve nosso primeiro bom Papa:

 

“Voltando-se para Pedro, Ele diz: ‘Afasta-se de mim Satanás! tu me escandalizas porque (agora) não tens o instinto das coisas de Deus, e sim o das coisas dos homens’”.

 

Saibamos nós, dia a dia, à força de oração, meditação, freqüência dos sacramentos e estudo, possuir cada vez mais vivo o sentir das coisas de Deus com os critérios da Fé pura; e saibamos, com todas as armas do Cristo, nos defender do erro principal de nosso tempo, que consiste em julgar com critérios humanos e temporais as coisas de Deus e da religião que Ele mesmo nos ensinou. A grande heresia, a grande tentação de nosso tempo reside nessa temporalização ou horizontalização do cristianismo.

 

Por outro lado, e até por causa do flagelo do “naturalismo” (que quer destruir o sobrenatural), lembremo-nos que devemos aos nossos irmãos o benfazejo testemunho de Cristo, e a saudável refração nas obras temporais dos princípios santos que nos purificam o coração.

 

 

Capítulo II

 

 

... Em Deus Pai Todo Poderoso

 

 

1. O INSTINTO DE DEUS

 

Em todas as épocas, em todas as civilizações e em todos os quadro históricos encontramos sempre no homem, manifestada dos modos mais variados, a obsessiva idéia, a inevitável crença a que daremos aqui o nome de instinto de Deus. Pode-se dizer que o homem sempre se moveu entre duas convicções fundamentais nem sempre, entretanto, bem ajustadas: a primeira lhe dizia que era ele o Rei do mundo visível, com direito e capacidade eficaz de exercer o domínio sobre a natureza inferior; a segunda lhe dizia que ele não era senhor de si mesmo, de sua vida e de sua sorte, e que o próprio domínio exercido sobre a natureza inferior não era pleno e absoluto, ao contrário, pendia de um poder mais alto a que tudo está submetido.

 

Nas civilizações primitivas, onde era frágil o senhorio do homem sobre os elementos da natureza inferior, entende-se bem que tenha sido o temor a principal motivação do instinto de Deus. Assim é que, movidas pela insegurança, essas primitivas civilizações inventaram mil modos de contar com o apoio das misteriosas potências escondidas para os negócios da vida terrestre, e outros mil modos de conjurar as transcendentais irritações sobre-humanas, que explicariam as doenças, as calamidades e a derrota nas armas. Podemos dizer que foi o medo que, primeiro, inventou os deuses? O poeta pagão, materialista, arrogantemente isolado do grande consenso, deixou-nos este escárnio: “primus in orbe deo fecit timor”. Nas civilizações mais apuradas, tomemos a Grécia no seu esplendor, não é o medo do trovão ou dos animais ferozes que leva a mente humana a buscar instâncias mais altas. A tragédia grega nos mostra motivações mais profundas que se traduzem nestes poucos termos: o homem não é senhor de sua sorte. Povoaram os gregos, o céu de deuses intermediários e quase humanos, vistosos e claros, mas atrás deles sentiam a presença de um destino transcendente e até implacável: “moira”; e atrás desse decreto imutável sentiam ou escondiam o ignoto deo, a quem Sócrates quis obedecer.

 

Diremos nós, então, com São João Damasceno que “o conhecimento da existência de Deus é naturalmente infuso em todos os seres”.

 

Concluiríamos nós que é evidente a existência de Deus?

 

Não. A idéia de Deus e de sua existência não é evidente, não é inata, não é universal como a ciência dos primeiros princípios, nem pode ser anterior à experiência como pretenderam os teólogos, como Santo Anselmo, que tentaram a demonstração apriorística da existência de Deus. O que podemos desde já é dizer que Deus se torna visível nos seus efeitos, e que a primeira noção, ingenuamente revestida de uma imagerie que dependerá da cultura dos povos, é um patrimônio universal do senso comum, isto é, das primeiras e mais espontâneas elaborações da razão tiradas da experiência.

 

“Existe o mundo exterior à nossa consciência”.

“O homem se distingue de todos os animais por algo que lhe é específico”.

“Os filhos devem honrar pai e mãe”.

“Existem realidades invisíveis”.

“Deus existe”.

 

Eis aí diversas proposições desse primeiro cabedal de sabedoria, não sistematizado, não integrado em forma de Ciência filosófica, mas já compendiado numa espécie de credo fundamental da razão natural. Nos tópicos seguintes tentaremos resumir o tratamento filosófico desse problema que se inscreve na chamada Teodicéia ou também Teologia Natural, onde veremos que, independentemente da Fé sobrenatural que nos trás um conhecimento mais íntimo de Deus, a simples razão natural já alcança algum conhecimento de Deus, imperfeito mas certo, e até alcança, por vários caminhos, a demonstração de sua existência.

 

Antes de deixarmos este tópico queremos frisar um ponto: os homens que foram levados a crer num ente supremo pelo medo, ou pelo sentimento de desamparo, foram mais sensatos e mais inteligentes do que os outros que deles zombaram. “No princípio foi o medo que fabricou os deuses”, disse o materialista pagão. E daí? Foi efetivamente o medo que motivou, que provocou o despertar de anseios mais altos da alma; e foi efetivamente o estado cultural de cada povo que influiu na paramentação da idéia central. Nada disso, entretanto, a não ser para os tolos, mostra que é falsa a idéia por causa dos sentimentos menores que a provocaram, e por causa da variedade de símbolos de que se revestiram. A própria variedade de manifestações prova a existência de uma idéia comum; e o itinerário que tomam sempre as motivações emocionais prova que está na natureza das coisas, na realidade das coisas, a explicação de tal tendência.

 

Pouco inteligente, muito pouco sensata, será a atitude produzida nos homens por certas correntes da história. Pelo fato de medirem os céus e a terra, e de fabricarem veículos velozes, os homens se esqueceram dos antigos temores e da antiga sabedoria, se viciaram a viver no exíguo pé-direito de suas realizações técnicas e por isso, com prodigiosa insensatez, passaram a dispensar qualquer apelo mais alto, e se puseram de pé na crosta do mundo como se fossem senhores de sua vida e de sua sorte. A eliminação de Deus pelos transistores e naves espaciais é realmente muito menos razoável e inteligente do que a procura de Deus motivada pelo medo e pelo sentimento de dependência.

 

2. A EXISTÊNCIA DE DEUS

 

A noção adivinhada e rusticamente apresentada pelo senso comum deve ser agora apurada em termos mais rigorosos. Neste tópico, como no anterior, não abordamos ainda o objeto da Fé sobrenatural que é o mesmo Deus dos filósofos, visto em maior profundidade, como só se tornou possível pela Graça e pela Revelação; não falamos de Deus-Trino e sim de Deus-Uno, termo da investigação feita com a razão natural.

 

A Igreja, traduzindo bem a vontade de Deus, não se contenta com a difusão da notícia sobrenatural, vista somente com sobrenaturais recursos; ela defende os direitos da razão e faz questão fechada de concatenar a vida da Fé na vida da inteligência. “Fides quærens intellectus”, dizia Santo Anselmo, tido por iniciador da Escolástica. A Fé procura a inteligência. O Concílio Vaticano I, presidido por Pio IX, e bruscamente dissolvido pela Guerra Franco-Prussiana, decretou um vigoroso anátema contra os que negam à inteligência humana a possibilidade de um conhecimento de Deus e até de uma prova de sua existência.

 

Existem cinco vias, cinco itinerários clássicos para a demonstração metafísica da existência de Deus. Tornemos a dizer que não se trata de demonstrar um artigo de Fé, que, como diz o Apóstolo (Heb. 11, 1): “é a convicção das coisas que não se vêem”, e sim de chegar à certeza da existência de um Ente Supremo, pelos caminhos que o mesmo apóstolo aponta. “As perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis à inteligência por meio de suas obras”. Por onde se vê que os apurados itinerários da demonstração metafísica da existência de Deus partem da experiência, e seguem a mesma direção das primeiras elaborações mais ou menos rústicas do senso comum.

 

3. AS CINCO VIAS

 

A exposição das famosas cinco vias da demonstração metafísica da existência de Deus, desenvolvidas dentro da corrente aristotélico-tomista, (ver Santo Tomás, Suma Teológica, I, Q. 2 a 3) envolve dificuldades e terminologia filosófica que exige preparação prévia.

 

Tentaremos resumir e simplificar:

 

PRIMEIRA VIA

 

Partimos do fato universalmente observado: tudo se move. Entenda-se aqui o verbo mover não apenas no sentido de deslocamento, mas também no amplo sentido de mudança qualquer. Tudo se move: ora, tudo o que se move, por outro é movido. Com efeito, nada se move por aquilo que está em potência para o movimento que produz, e sim pelo que está em ato, porque mover é fazer alguma coisa passar de potência ao ato, e nada pode passar da potência ao ato a não ser por algo que já esteja em ato.

 

Lembremos aqui a divisão aristotélica de importância capital: todos os seres (criados) são compostos de potência e ato, isto é, são já plenamente o que são (em ato), e serão eventualmente o que podem ser (em potência). Ora, se admitíssemos que cada ser pode por si mesmo, e em cada linha de potência-ato, passar da possibilidade à plenitude, não existiria tal divisão, e tudo seria por si mesmo tudo o que pode ser. E então tudo seria, considerado sob o mesmo ângulo, ao mesmo tempo em potência e em ato, o que é absurdo. E então, para mover-se, o móvel precisa de um motor, o qual, por sua vez, sendo também composto de potência e ato, é movido por outro, e este por outro ainda, e assim por diante. O inteiro universo, no espaço e no tempo, é um encadeamento de coisas movidas umas pelas outras. Diríamos que é um jogo de empurra indefinidamente prolongado. Mas esse prolongamento, esse recurso ao infinito não explica o movimento de todos os seres compostos de potência e ato: impõe-se à razão a existência de algo que mova sem necessidade de ser movido. Tal ser, Motor imóvel, ou Ato-puro, é aquele supremo Ser a que damos o nome de Deus.

 

Para tornar mais acessível o itinerário desta demonstração e a invalidez do recurso ao infinito número de elos, imaginemos um comboio de trem de ferro em que cada carro é empurrado, e não se vê em nenhum a razão do próprio movimento. Claro é que tanto faz considerar 40 ou 4.000 carros, se nenhum deles tem o princípio do motor. Mas não se julgue, nesta imagem, que uma locomotiva explicaria cabalmente o movimento mecânico dos vagões sem necessidade de explicar o próprio. Longe de ser o motor capaz por si mesmo de explicar o movimento dos vagões, a locomotiva por sua vez é empurrada pelo mecanismo de transformação de energia térmica em mecânica, o qual, por sua vez foi empurrado por uma série de fenômenos químicos, térmicos e mecânicos na formação do depósito de carvão, da crosta da Terra, etc., etc.

 

Vê-se assim que, pela via da concatenação dos seres compostos em potência e ato chega-se à necessidade de um Ato-puro ou Motor imóvel.

 

SEGUNDA VIA

 

A segunda via, paralela e análoga à primeira, usa a noção de causa eficiente em vez de usar o movimento. Observamos nas coisas sensíveis que existe uma ordem, uma concatenação de causas eficientes. O que não se encontra e o que não nos parece possível é que uma coisa do universo sensível seja causa dela mesma, pois isto nos levaria a supor que ela seria anterior a si mesma, o que é impossível. Mas também não é possível que tal encadeamento remonte ao infinito, porque na série de causas eficientes a primeira é causa das intermediárias, e as intermediárias são causa do último termo, qualquer que seja o número dos intermediários, sejam eles numerosos ou raros.

 

Do outro lado, se suprimirmos a causa suprimiremos os efeitos. Logo, se não existe a primeira, na ordem das causas, não haverá última nem intermediárias. Ora, remontar ao infinito na série de causas equivale a suprimir a primeira: em conseqüência não haveria nem efeito último nem causas intermediárias, o que é evidentemente falso. Necessariamente, então, a razão exige a Causa Primeira, que nós chamamos Deus.

 

TERCEIRA VIA

 

A terceira prova se tira da condição dos seres que são contingentes ou necessários. Existem em todo o universo seres contingentes, isto é, que existem mas poderiam não existir; ou melhor, que não têm em si mesmo a razão de existir. Não podemos conceber um universo de seres puramente de aventura ou acaso, e sem nenhuma conexão de necessidade, como quer uma corrente materialista. A união de um casal humano pode ser fecunda ou estéril, o filho pode nascer e pode não nascer, e o filho que nasce é este e não aquele por um acaso (já que de muitos modos pode o óvulo feminino ser fecundado). Esse filho que nasce mas poderia não nascer é contingente, não tem em si mesmo tudo para por si só existir. Mas se nasceu, necessariamente nasceu de um casal humano; tem então outro sua razão de ser. O universo inteiro, como disse Jacques Maritain, é uma combinação de natura (necessidade) e aventura (contingência). Prendem-se os seres por esses elos de dependência; mas novamente diremos que não se explicaria o universo pelo prolongamento desse encadeado até o infinito.

 

A congênita fraqueza de todos os seres que vemos, como que pendurados, exige a existência de um Ser que em si mesmo tenha sua razão de existir: um ser a-se. E é esse ser que chamamos Deus.

 

QUARTA VIA

 

Esta quarta via procede dos graus de perfeição que se observam as coisas. Vê-se realmente mais ou menos por toda a parte. O universo é hierarquizado e pode-se dizer sem nenhum artifício que a planta tem uma perfeição que os minerais não possuem; que os animais têm no conhecimento sensível uma perfeição que as plantas ignoram; e que o homem tem no conhecimento racional uma perfeição que todo o universo visível não possui. Ora, o mais e o menos se diz das coisas na medida diversa em que se aproximam daquilo que realiza a máxima perfeição. Haverá pois algo que é soberanamente verdadeiro, soberanamente bom, soberanamente nobre e também, por conseqüência, soberanamente ser.

 

Dir-se-á que o escalonamento ascendente de todos os gêneros aponta para a Suprema Perfeição, que nós chamamos Deus.

 

QUINTA VIA

 

A quinta via, diz Santo Tomás, remonta a Deus pelo governo das coisas. Nós vemos que as coisas privadas de conhecimento agem em vista de um fim. Basta observar as plantas e os animais para ver que não agem ao acaso e sim segundo uma tendência que busca o melhor. Consideremos, por exemplo, a astúcia com que as espécies vegetais procuram espalhar as sementes e atirá-las o mais longe possível da sombra materna e mortífera: esta inventa um pára-quedas, para cair devagar e oferecer ao vento maiores oportunidades, aquela inventa uma cápsula explosiva que atira as sementes à distância, sem falar nas árvores que confiam aos pássaros e às abelhas a disseminação que lhes assegura o bem da espécie.

 

Ora, aquilo que está privado de inteligência não pode tender a um fim senão por um agente dotado de inteligência. Haverá então uma Inteligência Suprema governando todas as coisas. E é esse agente governador do mundo que chamamos Deus.

 

4. A FORÇA DE PERSUASÃO DAS CINCO VIAS

 

Bastará a leitura atenta dessas cinco vias para convencer alguém da existência de Deus? Não creio que alguém respondesse afirmativamente a essa pergunta. Nós respondemos: não, sem hesitar. Mas então não demonstram realmente? Respondemos: demonstram, mas não demonstram facilmente para todos, nem, em todos, penetram em toda a profundidade da alma de modo a produzir um abalo em todas as raízes da inteligência, da vontade e do afeto.

 

Não creio que a exposição de uma dessas vias demonstrativas da existência de Deus pudesse converter um descrente: de início ele não está habituado a se mover bem entre os princípios metafísicos aí implicados; além disso, dada a obnubilação da inteligência trazida pelo pecado original, e dada a abstração mental trazida pela confusão cultural do mundo, sem falar nos “interesses” afetivos mobilizados pela perigosa aproximação de uma verdade cheia de conseqüências, o valor demonstrativo do raciocínio não chega a conquistar a atenção profunda e vital do espírito prisioneiro. Menos controvertido me parece o valor dessas demonstrações metafísicas para o homem de Fé. Elas não trarão um acréscimo de Fé divina, mas trarão harmonia entre a Fé e a inteligência que destarte se vê envolvida, e como que levada à homenagem devida às coisas da Fé. Para nós, que mal ou bem já vivemos as verdades reveladas, é bom sabermos até onde alcança a razão e até onde devem nossas faculdades naturais se elevar na procura de uma visão melhor de tudo à luz da idéia de Deus. Dissemos que o tratamento filosófico da existência de Deus harmoniza a vida interior do crente; acrescentamos agora que dignifica sua inteligência. Sem algum estudo filosófico, sem alguma especulação teológica (sempre feita com instrumental filosófico) ficaríamos, para a vida da Fé, na situação dos imaturos. Essa situação não é boa para a salvaguarda da Fé. Nos dias que correm encontramos muitos homens que ocuparam a inteligência com toda a sorte de conhecimentos exigidos por suas profissões, mas conservaram-se infantis no catecismo de que só conhecem rudimentos memorizados. Na primeira volta do caminho da vida largarão a bagagem que lhe parece ser mera lembrança de coisas idas e vividas, que os anos não trazem mais.

 

5. OS ARGUMENTOS MORAIS E PSICOLÓGICOS.

 

Como falaremos de Deus, de sua existência e de suas perfeições, às crianças, e aos adolescentes que se aproximam de nós com boa inquietação?

 

Antes de tudo, em termos de senso-comum, isto é, de idéias que resultam das primeiras elaborações de nossa razão. Às crianças menores falaremos pelo exemplo do respeito que temos ao Pai do Céu. Sem grande inconveniente (apesar de tudo o que dizem os modernos racionalistas da pastoral catequética) podemos usar imagens, desde que envolvidas no sentimento de respeito que será, para a criança, a principal descoberta. Ela está habituada a ver nos pais a mais alta instância do quadro familiar, e agora, diante do respeito que os pais demonstram pelo Pai do Céu, ela se sente solicitada a ultrapassar os quadros visíveis e rotineiros de sua vida.

 

Em relação ao adulto sem fé que nos procura, a atitude é semelhante, mas mais rica de recursos: começamos pelos lados do senso comum; conforme as circunstâncias usaremos ou não recursos apologéticos da defesa da credibilidade (os vinte séculos da Igreja, a vida religiosa de homens famosos nas artes e nas ciências, etc.); mas a melhor abordagem é proporcionada pelos argumentos psicológicos e morais que não demonstram mas condicionam e abalam mais profundamente as pessoas do que uma demonstração metafísica.

          

Tomemos, por exemplo, a idéia de contingência (Terceira Via) moral e psicologicamente condicionada. Cada um de nós sente agudamente essa essencial dependência de nosso ser em contraste como o alto valor, a alta dignidade de que somos portadores em face de todo o mundo físico. Nós medimos o universo, pesamos os astros, desvendamos os átomos, liberamos as energias escondidas na matéria, mas todos esses títulos de glória se contrapõem a uma congênita e essencial debilidade. Somos, mas poderíamos não ser. Cada um que nasce é o que é por uma composição de lei e de acaso, um e outro fora de nosso alcance. Nascemos sem ser ouvidos, aqui estamos, e em cada momento a composição de ser e não ser manifesta a mais aguda dependência. Eu, tão autônomo, tão eu, sou assim uma leve coisa pendurada não sei até quando, nem sei em quê.

 

E assim, gemendo, a alma sobe à procura duma razão de ser das coisas que em si mesmas não têm a própria razão de ser. Hoje estou aqui, hoje faço previsões, cálculos, programas, e ouso estender por dias e até anos os meus projetos insensatos. De repente cruzam-se as órbitas, as minhas e as de outro fenômeno qualquer, e eu tombo.

 

Nossa infinita dependência pede explicações, nosso instinto de imortalidade da alma, nossa idéia de valores que transcendem à rotina da vida (e pelos quais vale a pena dar a vida), tudo nos pede explicações. A que vim? O que sou? Aonde vou? Nosso coração inquieto, como disse Santo Agostinho, só em Deus encontrará verdade e paz. E é pelo solícito aproveitamento de todos esses anseios da alma que podemos aproximar de Deus quem se aproxima de nós.

 

Alguns textos de inspiração divina ou humana poderão ajudar a alma inquieta: “Ó Senhor, diante de vós sou como um verdadeiro nada... como tivestes lembrança de mim para me criar?”. São Francisco de Sales usa essa consideração para sua primeira meditação na Introdução à Vida Devota: “Considera que há tantos anos não existias, e teu ser era um verdadeiro nada. Onde estávamos nós, ó minha alma, nesse tempo? O mundo já durara tanto, e de nós não tinha sequer notícias...”.

 

Glosando esses sábios motes, escrevemos estas linhas em que se traduzem as interrogações angustiadas de um personagem:

 

“Mas naquele tempo eu não existia. Minha mãe brincava com boneca. Se por hipótese alguém lhe gritasse ao ouvido o meu nome: — José Maria! José Maria! Ela não teria nenhum sobressalto materno. Eu não era. Nem havia necessidade de que fosse. O ar do mundo não tinha o menor frêmito que me denunciasse e que me anunciasse. Não havia papel caído no chão de que pudesse dizer: foi o José Maria. Não havia um livro esquecido numa cadeira de que pudesse afirmar: é do José Maria. Nada. Nada. Um nada branco, transparente, inocente, indolor. Um não ser de que ninguém se poderia lastimar, de que ninguém se poderia espantar...”.

(Lições de Abismo — Cap. X).

 

Por outro lado sou obrigado a reconhecer que medi as distâncias dos astros, compus óperas, construí monumentos, desmontei átomos, como se minha raça tivesse o domínio sobre todas as coisas — um domínio gradualmente conquistado, mas, ainda assim, verdadeiro e cada vez maior. Tenho inteligência para medir, compor, analisar, e ao mesmo tempo tenho a sorte frágil das moscas. Poderei razoavelmente pensar tamanho absurdo? Poderei pensar que seja, como homem, e por puro acaso, o único ser inteligente do Cosmos? Poderei pensar que a pura matéria, na sua cega loteria, alcance sucessivamente formas perfeitas que não estavam na memória e na intenção dos inocentes átomos de hidrogênio? Poderei pensar que não houve intenção, que não houve finalidade na elaboração de um olho? Ou então deverei dizer que vejo porque tenho olhos e jamais que tenho olhos para ver?

 

Todas essas considerações, que desenvolvem as idéias essenciais contidas naquelas cinco vias, adaptam-se assim as exigências psicológicas e morais de nossa alma, e nos levam a enfrentar uma opção decisiva: ou prolongamos suas conseqüências e nos aproximamos da idéia de Deus; ou nos detemos e volvemos à rotina da vida dispostos a não levar avante tais investigações que já pressentimos cheias de exigências.

        

6. EXPERIÊNCIAS DA ALMA

 

Depois das demonstrações da existência de Deus, e dos argumentos morais e psicológicos, isto é depois da especulação metafísica e dialética que procura transmitir uma convicção com jogos de argumentos, convém agora mencionar as experiências profundas da alma que normalmente nos levam ao encontro de Deus. Há a experiência da admiração diante da beleza das coisas e a experiência do gosto da verdade, mas acima de todas há a experiência profunda do bem por si mesmo amado e desejado. Por quê? Em nome do que me inclino eu diante do Bem, por si mesmo amado e desejado? Cada homem normal já fez mil vezes essa experiência profunda na qual sente que não é o interesse direito próprio ou alheio que está em jogo. Quem salva com risco de vida uma criança desconhecida não encontra nenhuma das motivações invocadas uma cabal explicação. O imperativo do bem, livre e amorosamente obedecido, é uma das mais profundas e reveladoras experiências da alma: nela se vê um como que instinto certo de Deus.

 

“Medito durante a noite em meu coração”. (Sl. 76, 7).

 

Podemos dizer que é essa iluminação espiritual, essa conversação no íntimo da alma que predispõe o homem para os argumentos, para as demonstrações, e para a vida da Fé desabrochada. Ai do homem que se entrega à trepidação constante da vida e foge do silêncio-fecundo!

 

7. NATUREZA E ATRIBUTOS DE DEUS

 

A filosofia nos ensina que as coisas são para nós inteligíveis pela forma, que é, nas coisas, espírito ou reflexo de espírito. Em si mesmas, as coisas serão mais inteligíveis à medida que se imaterializam; mas para nós essa luz de inteligibilidade passa por um máximo no nível proporcionado a nossa natureza. Assim é que para nós o máximo de clareza se encontra na ciência física, que estuda as formas ou as essências das coisas corporais, ou na ciência matemática onde a quantidade, categoria própria dos seres materiais, se encontra em estado de decantação abstrata. Daí por diante, e à medida que se espiritualiza o ser, cresce nele o fulgor da inteligibilidade, mas diminui para nós a percepção, como se a luz excessiva nos ofuscasse. Os antigos diziam que a inteligência humana, a mais baixa das inteligências, padece de certa nictalopia, que vê melhor nos ambientes de sombras. Temos “olhos de coruja”, e por isso o Sol dos seres, que é Deus, é visto dentro de uma grande ofuscação.

 

Além disso, o conúbio em que vivem sempre em nós o conhecimento racional e o sensível, a cada instante nos estorva. Sim, a cada instante queremos imagens das coisas espirituais. Mais adiante, quando chegarmos ao ponto de Encarnação do Verbo, veremos que Deus se relacionou conosco de modo a atender a exigência de totalidade de nossa natureza dual. Teremos então nos Sinais Sagrados uma visibilidade de nosso comércio com Deus.

 

Mas agora, enquanto permanecemos no domínio mais filosófico do que religioso, preparemo-nos para manter a inteligência isenta de qualquer representação sensível.

 

Nós diremos a seguir que Deus é bondade infinita, infinita inteligência, diremos que é todo poderoso, que governa o mundo, mas antes de tudo isto devemos começar pela idéia de ser que abrange universalmente, e analogicamente, tudo o que é. E nesta linha podemos dar o primeiro e principal titulo filosófico de Deus: é o ser por excelência, o ser pleno, o ser que tem em si mesmo a sua própria razão: o ser A-SE; e essa aseidade de Deus, achada pelo filosofo, corresponde bem ao nome que de si mesmo deu Javé a Moisés: “Ego sum qui sum”. “Eu sou aquele que sou”.

 

Em torno deste primeiro nome filosófico poderíamos colocar os outros que se prendem a eles e que nos foram dados nas vias demonstrativas: ATO PURO, CAUSA PRIMEIRA, SER A-SE.

 

Pensemos agora nos atributos de Deus, que dividiremos em negativos e positivos. Temos, de fato dois modos de erguer o pensamento a Deus, ou por sucessiva eliminação de imperfeições, ou por procura de perfeições que existem nas criaturas, mas em Deus atingem grau supremo.

 

Os atributos negativos são:

 

SIMPLICIDADE, ou imaterialidade, que exclui qualquer idéia de composição;

 

IMUTABILIDADE, que exclui a idéia de mudança;

 

ETERNIDADE, que excluía idéia de duração;

 

IMENSIDADE, que exclui a limitação de lugar;

 

INFINIDADE, que exclui limitação de qualquer perfeição sua;

 

UNIDADE, que é como a conseqüência lógica de todas as outras: Deus é uno e único. (Note-se desde já que essa unidade se refere à natureza de Deus, e não exclui a Trindade de Pessoas vista na Fé).

 

Os atributos positivos de Deus são aqueles a que somos levados a pensar quando seguimos o itinerário da Quarta Via. Enquanto as outras nos levavam a sucessivas exclusões e nos obrigavam a pensar num supremo absolutamente isento de tais limitações, a Quarta Via nos traça o itinerário dos graus de perfeição. E nesse itinerário Deus nos aparece como o Vivo dos vivos, com infinita capacidade de conhecimento e de amor.

 

É inevitável, em todas essas considerações, um certo antropomorfismo, pelo qual fazemos um Deus à nossa imagem. Precisamos usar aqui os mais fecundos e elásticos recursos da analogia para conseguirmos balbuciar alguma coisa sobre as perfeições divinas, e devemos anotar que essa analogia, por audaciosa que seja, não é um simples malabarismo verbal, e sim uma forma de conhecimento circunscrito às coisas visíveis e mensuráveis, podemos partir das criaturas, dos efeitos e remontar às causas supremas.

 

O apóstolo Paulo, para exprimir a transcendência das perfeições divinas disse: “Ele habita numa luz inacessível, e nenhum mortal o viu nem pode vê-lo aqui (no mundo) tal como Ele é em si-mesmo”. (I Tm. 6, 16) Mas o mesmo apóstolo também disse que “as perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis à inteligência por meio de sua obra”. (Rm. I, 20).

 

Partimos de sua obra para a demonstração de sua existência e para a enumeração de suas perfeições negativas; agora, para o enunciado das perfeições positivas partiremos daquela obra mais alta em que o Criador deixou mais viva a marca de sua imagem e semelhança. Antropomorfismo, artifício de criação de figuras homólogas, haveria, e houve todas as vezes que o espírito humano se contentou com meras metáforas que não realizavam a decolagem espiritual que só o conhecimento metafísico pode proporcionar.

 

Com a Fé, a alma humana galga todas essas dificuldades e diz: “Abba, Pai!”. Ou diz: “Creio em Deus Pai...” ou ainda, como o próprio Cristo nos ensinou: “Pai nosso, que estais no céu...”.  Mas a própria inteligência reclama seus direitos e consegue, no mais tenso de seus exercícios, balbuciar alguma coisa sobre as perfeições divinas a partir das perfeições humanas. E as duas afirmações se completam e se amparam: o título de Pai ajuda a inteligência a manter a difícil proporcionalidade de analogia entre o quase nada da criatura e o Tudo do Criador; e a elevação da inteligência ajuda a ver na Fé um Pai que transcende todo o universo: o Pai nosso, que está no céu.

 

Eis as chamadas perfeições positivas de Deus:

 

SAPIÊNCIA – “Quão magníficas são tuas obras Senhor, tudo fizeste com grande sapiência”. (Sl. 103, 24).

 

ONIPOTÊNCIA – “Tudo o que quis Deus fez, no céu, na terra, no mar e em todos os abismos”. (Sl. 134, 6).

 

JUSTIÇA – “Tu és justo, Senhor, e teus decretos são equânimes, e tu os promulgaste segundo a justiça e a exata verdade”. (Sl. 119, 137).

 

SANTIDADE – “Tu só és Santo...” (Glória, Lit. da Missa).

 

BONDADE E MISERICÓRDIA – “Como é misericordioso o Senhor para quem o teme”. (Sl. LIX, 3).

 

(Série – CADERNOS PERMANÊNCIA - 1979)

        

 

 

 

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