O gemido está no quarto canto de Os Lusíadas e quem o pronuncia é um ancião de “aspecto venerando” que não vê com bons olhos o esplendor da nova civilização que os varões da ocidental praia lusitana querem inaugurar.
“Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!”
Todas as almas afinadas, um Pascal, um Péguy, a seu turno, e cada um com seu modo, dirão que o homem é um incôngrua criatura, “un monstre de contradictions, un puits d’inquietude”. O próprio Camões, mais de uma vez volta à obsessiva idéia do “desconcerto do mundo” trazido pela mesma conturbada condição humana. Nós sabemos pela Fé que tais desconcertos e contradições são conseqüências do pecado de nossos primeiros pais, e Chesterton dizia que, de todos os dogmas e mistérios da fé, o mais claro, o mais evidente é sem dúvida o do pecado original. Basta efetivamente olhar em torno de si com alguma atenção para descobrir que o animal racional é o menos razoável dos seres, e para começar a crer que algum grave mal-entendido está na origem do homem, e perdura em sua condição ao longo dos séculos.
O Concílio de Trento nos diz majestosamente: “Adão perdeu para si e para seus descendentes a inocência e a santidade de seu primeiro estado ficando assim sujeito à morte e ao cativeiro do Diabo”.
No mesmo contexto o Concílio de Trento nos ensina que, além da perda da justiça original que lhe assegura a Vida Eterna, os descendentes de Adão ficaram privados dos dons preternaturais, e da natural integridade, ficando assim decaída a natureza humana: a inteligência torna-se obnubilada para as coisas mais altas, e o livre-arbítrio se torna fraco, vacilante e com certa inclinação para o mal. Além disso, nas profundezas da alma decaída, o pecado original deixará o veneno do amor-próprio, que o Catecismo de Trento, mantendo a fórmula paulina, chama de “carne”, e que está na origem de todos os pecados, a começar especialmente pelo orgulho e pela cupidez.
Não podendo o Homem, por sua própria força, salvar-se para a Vida Eterna, dada a infinita eminência da pessoa ofendida pelo pecado, Deus nos enviou seu próprio Filho, que nasceu de Maria Virgem, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi morto na cruz para nossa salvação, e deixou-nos em sua Igreja as fontes de graça que nos vêm de seu Sangue. Assim é que desde a pia batismal a água nos cura e nos lava a culpa do pecado original mas não restaura a natureza decaída nem nos liberta do amor-próprio. Nos dias da vida, se quisermos firmemente chegar com Jesus à Casa do Pai, teremos de lutar incessantemente contra três cruéis inimigos: o demônio, o mundo e o amor-próprio; e só os venceremos se nos arrimarmos na graça de Cristo.
Já aqui, em termos de catecismo elementar, percebemos os aspectos paradoxais de nossa condição: somos criaturas resgatadas, mais ainda somos criaturas decaídas e cercadas de inimigos, a começar pelo amor-próprio.
A graça divina, que mana da Cruz, é remédio específico de nossa salvação sobrenatural. O homem por suas próprias forças naturais poderá fazer muitas coisas proporcionados à sua natureza; mas é preciso não esquecer que essa natureza está decaída de sua perfeição própria, e por isso o homem precisa do arrimo da graça, principalmente quando a obra a que se dedica tem dimensões morais elevadas, como por exemplo a política e a civilização.
Santo Tomás na Iª., IIæ., q.109, a.2 restringe severamente e quase ironicamente o âmbito das coisas que por si mesmo os homens sem o socorro da graça podem fazer: construir casa, plantar vinhas e coisas desse gênero. Creio que poderemos conceder muito mais, e o prodigioso progresso técnico e científico autoriza certo otimismo. O entusiasmo eufórico despertado por aquele progresso científico e técnico se abala e até desaparece quando consideramos o outro lado das maravilhosas conquistas do homem. Há efetivamente o lado do inventar e do fazer, e o outro lado, aparentemente mais fácil mas realmente mais difícil, o lado do usar, quando abordamos o problema do ponto de vista político ou civilizacional. É no lado do uso dessas maravilhas que surge o problema moral, às vezes tragicamente difícil.
Ainda devemos fazer outra subdivisão e outras distinções, antes de chegarmos ao problema da condição humana no mundo contemporâneo.
Para começar, tomemos o caso de um homem católico, mas acidentalmente privado da graça santificante por haver caído em pecado grave.
Ainda assim, o trabalho desse pecador não está inteiramente privado de qualquer auxílio da graça. Se a graça não o ajuda diretamente nas operações de seu ofício natural, esse homem, na medida em que ainda vive conscientemente na comunhão dos santos é membro da Igreja, será sempre indiretamente, mas fortemente, ajudado pelo envoltório sobrenatural em que vive.
Muito mais lamentável seria a condição de nosso personagem católico pecador se os ventos da vida o levassem a um deserto espiritual em que ele não visse os sinais da santa visibilidade da Igreja, nem convivesse com nenhuma família católica. Pior ainda seria a sua situação se na sociedade em que vive, herdeira de uma civilização cristã, multiplicam-se os pecados, e o indiferentismo religioso é visto como largueza de idéias e o deserto espiritual é chamado de progresso moral.
O mundo ocidental que nasceu cristão manteve uma civilização cristã durante um milênio. Hoje essa prodigiosa realização é objeto de escárnio para aqueles que trazem na alma o obscurantismo que atribuem ao mundo medieval.
Não pretendo fazer a apologia da Idade Média com critérios políticos, sociológicos e científicos. Poderia dizer e provar que os famosos progressos científicos e técnicos têm suas raízes históricas na Idade Média e no Cristianismo. Basta lembrar a coincidência das duas geografias: a Europa inteira, que durante um milênio se mantém cristã, coincide com a Europa que a partir do século XIV é indubitavelmente a pátria do grande progresso técnico e científico. Não insisto nesta nem em outras apologias da Idade Média, mas para a inteligência destas linhas devo insistir num ponto. Naquele tempo, não somente a Igreja mostrava ao mundo seus sinais que são fontes de graça, como também na própria vida temporal os homens iam e vinham, pecavam ou se santificavam, mas todos respiravam o mesmo ar que vinha de um firmamento espiritual católico como também, no rez do chão, na sua atividade temporal, sentiam-se cercados de gente que vivia e morria com os mesmos critérios e valores. Sob o ponto de vista da realização prática e da viva consciência da necessidade da graça, direta ou indiretamente, para a salvação da alma ou para estímulo e purificação da vida temporal, a Idade Média não é uma realização histórica nem um weltschauung que se pretende retomar. Em termos de teologia da história eu prefiro dizer, simplesmente, que foi um milagre. E hoje, de todos os pontos do mundo os homens vêm admirar as obras forjadas no ferro ou lavradas na terra por essa raça, por uma raça extinta de gigantes que reconheciam a realeza de Cristo, e que interrompiam o trabalho para rezar, quando o sino da igreja mais próxima anunciava a hora do Angelus.
O Globo