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Sedevacantismo: uma resposta ilógica e indefensável

Agosto 10, 2018 escrito por admin

Um leitor nos escreve:

 

Caro diretor,

Li com grande interesse seu artigo no Sim Sim Não Não de setembro passado (há sete anos devoro esse jornal, forte alimento espiritual que tem renovado minha vida) e gostaria de partilhar certas considerações e questões sobre um assunto que para mim é de importância vital. O senhor diz com Leão XIII que às vezes é preciso desobedecer aos homens para obedecer a Deus, o que é muito correto. Pergunto-me, entretanto, como o simples fiel pode fazer distinção, cada vez que o Papa fala, entre o que está correto e o que não está. O simples fiel tem uma noção da infalibilidade que talvez não seja teologicamente exata, mas é uma noção de bom senso: normalmente, podemos confiar tranqüilamente no que diz o Papa quando se trata de um assunto justo e santo, mesmo que tal assunto não esteja dentro do âmbito da infalibilidade. O Papa age e fala normalmente para o bem das almas e não para sua perdição. Na verdade, a atitude da maioria esmagadora dos católicos em relação aos que são fiéis à tradição é uma atitude de desconfiança, pois aparentemente, estes “pretendem saber mais do que o Papa”. Nós temos o Sim Sim Não Não e outras publicações excelentes para nos guiar, mas o que farão os que não têm essa chance? Como pode o simples católico se orientar nos meandros do magistério papal, guardando o que deve ser guardado e rejeitando o que deve ser rejeitado? O Papa não é a norma estrita da verdade? Quero dizer que, se formalmente o discurso de Georgius não muda de rumo, conclui-se que, pelo intuito ou pelo bom senso (não falo do sensus fidei), ou deve-se aceitar tudo o que o Papa diz ou deve-se tudo desprezar. Não me refiro a assuntos menores, mas à linha magisterial em seu conjunto, linha caracterizada por um extremismo ecumênico sem precedentes, fundada sobre um erro doutrinal de fundo (o fundamento da salvação deslocado da Redenção para a Encarnação), como bem mostrou o professor Doerman em suas obras. Eis porque as posições sedevacantistas, sem entrar nas distinções entre elas, me parecem mais lógicas e mais defensáveis, entre outras razões, porque permitem não nos  alinharmos com os extremistas de “esquerda”, que criticam o Papa por motivos opostos. Não ignoro que o sedevacantismo origina alguns problemas doutrinais, mas eles me parecem menos graves do que o fato de reconhecer como Pontífice uma pessoa que, ocasionalmente, tem razão em pontos particulares, mas que fundamenta seu pontificado sobre uma doutrina já condenada pela Igreja, e que instaurou na própria Igreja (os senhores ilustram isso regularmente na rubrica “Semper Infideles”) uma situação aparentemente desesperadora. Não foi o senhor que nos explicou (esses princípios estão gravados na minha alma) que “a fé ou é inteira ou não é”, que “a pior mentira é aquela que se aproxima da verdade”, e que nas heresias e nas falsas religiões “a verdade serve ao erro”? Não podemos repetir tudo isso, falando de João Paulo II? Ele não parece lembrar-se da doutrina católica somente de vez em quando? Para que tenhamos certeza de que ele não é Papa, ao menos formalmente (o caso do Papa herético é previsto pela doutrina), o que teria ele ainda de dizer ou fazer, pior do que já tenha dito ou feito até hoje?

Essas questões me atormentam há anos, desde que conheci o tradicionalismo. A divisão sobre esse ponto separa muitas pessoas, muitos bons combatentes, espalhando incompreensões e ódio entre eles, a ponto de fazer o que Leopardi deplorava em “Ginestra”: voltar as armas contra os próprios companheiros em vez de apontá-las contra o inimigo comum. Essa é uma situação que literalmente me impede de dormir. É possível que tudo isso esteja no plano de Deus? 

Com devoção e gratidão, in Jesu et Maria,

Carta assinada.

 

Caro amigo,

A posição sedevacantista não é nem a mais lógica nem a mais defensável; ela é apenas a resposta mais simplista que se pode dar à atual crise da Igreja. Ela se justifica apoiando-se sobre o seguinte silogismo: 1) o Papa é sempre infalível; 2) o Papa se engana; 3) logo ele não é Papa. Mas quando foi que a Igreja ensinou que o Papa é sempre infalível, mesmo quando não fala ex cathedra?

Antes do Concílio Vaticano I, em 1859, o Padre Zaccaria S. J., escrevendo contra Febronius, exprimia assim a fé da Igreja: “o privilégio dado aqui [Lc 22, 32, ss] a Pedro e a seus sucessores comporta a infalibilidade [1onas decisões solenes[2oem matéria de fé e de moral[3odirigidas por ele mesmo a toda a Igreja (Anti-Febronius, t. II c.X). O Concílio Vaticano I apenas dogmatizou essa fé perene da Igreja.

A Cilviltà Cattolica, que era editada sob o controle da Santa Sé, escrevia em seu número 4, de março de 1902:

Mas todo ensinamento é infalível?

"Eis o ponto da questão que muitos negligenciam sem malícia. Mas é dessa negligência que provêm os escândalos que enumeramos abaixo.

Um assunto pode encontrar-se fora da esfera da infalibilidade do magistério eclesiástico de dois modos, isto é, por duas razões: seja por estar fora do objeto da infalibilidade prometida à Igreja, seja por estar fora do sujeito ao qual a infalibilidade foi prometida. São objetos da infalibilidade todas as verdades que concernem à fé e à moral ou que estão necessariamente ligadas a elas. O sujeito da infalibilidade é duplo: O Papa, mesmo sozinho, e a Igreja com seu chefe, quando exercem a autoridade de ensino em seu grau supremo. É preciso reter bem esse último ponto, para não cair em equívoco; na verdade é raro que a Igreja e o Papa, no exercício de seu poder e ensino, façam uso de seu poder no mais alto grau, porque eles podem – e é o que acontece normalmente – exortar, aconselhar, permitir, ordenar, sem verdadeiramente definir ex cathedra por sentença irrevogável”.

A posição sedevacantista é fundada sobre uma premissa errada (o Papa é sempre infalível), e essa razão já é suficiente para considerá-la como ilógica e indefensável.

Todos os textos de teologia católica, além disso, (da verdadeira teologia católica, naturalmente, não da “nova teologia” que é elucubração neomodernista) distinguem o magistério pontifical infalível do magistério pontifical simplesmente autêntico (isto é, provido de autoridade, mas não infalível), e portanto, distinguem o assentimento absoluto, incondicional, sem exame (cego), devido ao magistério infalível, do assentimento que se deve ao magistério “mere authenticum”: assentimento relativo, condicionado, em que o exame é permitido, e portanto também a eventual suspensão ou eventual recusa do próprio assentimento. Os sedevacantistas pularam essa página da teologia católica. Com que direito?

Além do mais: a questão do “Papa herético” é ainda uma questão controvertida, sobre a qual teólogos (e canonistas) estão longe de entrar num acordo e sobre a qual a própria Igreja não se pronunciou.

Assim, certos teólogos competentes excluem o fato de que o Papa, como “pessoa privada” (mas o que significa pessoa privada não está muito claro) possa cair em heresia, outros teólogos tão competentes quanto os anteriores sustentam o contrário, enquanto que outros ainda levam em consideração as duas hipóteses. Quase todos os teólogos autorizados sustentam que o Papa herético é destituído de seu pontificado, mas outros, como Bouix, afirmam o contrário, e mesmo dentro do primeiro grupo há divergência: alguns pensam que o Papa herético perde seu pontificado no mesmo momento em que cai na heresia, outros pensam que ele o perde quando sua heresia torna-se manifesta (esses últimos não chegam a um acordo sobre o que se deve entender por heresia “manifesta”); enfim, segundo alguns, o Papa herético perde ipso facto, automaticamente, o pontificado; segundo outros, é necessária uma declaração de heresia por parte – e aqui também há divergência – de um concílio ou de cardeais ou de bispos.

Resumimos tudo isso rapidamente1 mas é o suficiente para podermos indagar: é lógica e defensável uma posição cujo fundamento, em matéria tão grave, está numa hipótese (e não numa doutrina) teológica ainda controvertida?

Além de tudo, o senhor próprio escreve que para poder falar de um “Papa herético” é necessário que ele seja formalmente herético. Portanto, é preciso que ele professe um erro contrário à fé (heresia material) e também, consciente e deliberadamente, sustente a heresia com obstinação, o que constitui propriamente a essência, a forma da heresia. Ora, podemos afirmar com certeza que os últimos Papas sejam Papas formalmente heréticos? Não poderiam ser eles – e esta é nossa modesta opinião – Papas teologicamente mal formados e, sobretudo, fascinados pela ilusão ecumênica, em que eles não percebem plenamente todas as implicações heréticas?

Não queremos discutir opiniões, e o que acabamos de expor é apenas uma opinião. De definido e claro há apenas o fato de que, enquanto a heresia formal não for provada, não se pode falar em “Papa herético”.

Abordemos agora o problema das almas. Normalmente  (o senhor tem toda razão de sublinhar esse termo) é de bom senso confiar tranqüilamente no Papa, mesmo quando o que ele ensina não está garantido pelo carisma da infalibilidade. O Papa normalmente (ainda é o senhor que frisa) fala e age para o bem das almas, mas o sensus fidei e os frutos da atual corrente eclesial nos advertem de que não estamos mais em tempos normais.

Uma vez que o fiel tenha tomado consciência da anormalidade dos tempos, não é preciso que ele faça distinção, cada vez que o Papa se pronuncia, entre o que está certo e o que está errado. Não. Basta que ele, em cada caso, recuse o que ele percebe ser contrário à fé constante da Igreja. Essa fidelidade, que não exige grande ciência teológica, atrairá para ele, da parte de Deus, luzes cada vez maiores. Para quem teve a sorte de conhecer a normalidade dos tempos com Pio XII, basta ater-se ao que foi ensinado naqueles tempos de posse tranqüila da doutrina. É verdade que a doutrina já estava atingida pelo modernismo, mas ela era defendida por Roma (e hoje os modernistas acusam a Igreja de ter feito isso). As gerações seguintes, mesmo se não tiverem acesso ao Sim Sim Não Não e outras ótimas publicações, têm a ajuda interior do Espírito Santo e o catecismo de São Pio X, que resume a fé perene da Igreja (e por isso ele é tão mal visto pelos modernistas). Os erros de hoje são tão enormes que basta, para percebê-los (não estou dizendo para refutá-los), conhecer bem o catecismo da Santa Igreja.

Infelizmente, o Concílio aconteceu quando os católicos já se encontravam num deplorável estado de ignorância culpável e de fé morta não traduzida em atos na vida prática. Os Pontífices Romanos pré-conciliares lutaram, sem terem sido escutados, contra essa decadência. Lembremo-nos do brado de S. Pio X: “Catecismo! Catecismo!” e do doloroso discurso de Pio XII sobre as “almas mortas”, numerosas demais.

Como o sensus fidei não pode se exercer sem um conhecimento elementar das verdades da Fé e um esforço sério para viver segundo a Fé, compreende-se que muitos católicos não tenham sabido enfrentar a prova, cuja gravidade talvez nem tenham percebido (o que demonstra falta de vitalidade espiritual). O ensinamento da Sagrada Escritura se verifica aqui: os maus pastores são uma punição para todo o povo infiel.

Seja como for, a provação atinge também as almas de boa vontade, e é uma verdadeira prova, pois, como escreve o Padre Palmieri2, o Papa, “mesmo que não fale com toda plenitude de sua autoridade (magistério infalível), fala com autoridade, eis porque não se pode considerá-lo como um doutor qualquer”. É então difícil e doloroso – eu diria até antinatural – para toda consciência católica ter de resistir ao Papa, assim como seria difícil, doloroso e antinatural um filho ter de resistir ao pai se este o obrigasse a fazer qualquer coisa contra Deus. Difícil e doloroso, mas justo, por fidelidade a Cristo e para sua própria salvação e previsto pela doutrina católica (mesmo se até Pio XII não foi necessário ensiná-la comumente ou lembrá-la). Na verdade, deve-se ao Pontífice Romano, quando ele não ensina infalivelmente, “um assentimento religioso desde que não haja nada que aconselhe, segundo a prudência, a suspensão do assentimento”3. Hoje, o motivo que aconselha a suspensão prudente do assentimento é fundamental: o magistério dos últimos Pontífices, dotado de autoridade, mas não de infalibilidade, está, por razões abertamente ecumênicas, em contradição com o ensinamento infalível e bimilenar da Igreja. Ora, é claro que “o Papa é norma estrita da Fé”, mas, precisamente por ser “norma estrita”, o Papa tem o dever de estar em harmonia com a norma mais alta da Fé: a Revelação divina (Sagrada Escritura e Tradição), tal como ela foi fiel e infalivelmente transmitida e explicada pela Igreja durante dois mil anos. Eis porque um Papa em ruptura com a Tradição, que em lugar do “depósito da Fé” propõe suas opiniões pessoais e suas utopias, cessa de ser norma “estrita da Fé”.

A suspensão do assentimento pode também ser geral, se a prudência exigir, mas tal suspensão não tem nada a ver com a proclamação de que o Papa é “herético” e que a sede de Pedro está vazia, proclamação que seria também – esperamos tê-lo demonstrado – altamente imprudente, pois corre o risco de lançar os sedevacantistas num cisma irreparável.

Nessa provação, que é castigo para uns e provação para outros, o fiel é socorrido pela graça divina e reconfortado pela certeza de que, mesmo a partir dos males atuais, Deus saberá tirar um bem maior para a Igreja e para as almas. Além disso, sabemos por experiência própria – e sua carta no-lo confirma – que Deus não permite que almas sinceras e de boa vontade se percam por causa da crueldade do tempos. Parece que Ele, ao contrário, aumenta Sua graça na proporção em que crescem as necessidades. Se os semeadores da cizânia trabalham nessa noite pós-conciliar, Deus, como o fazendeiro da parábola, não perde o controle da situação e tudo voltará à ordem no tempo oportuno. Então, confiança e coragem!

Passemos às divisões entre os que resistem ao neomodernismo. Essa divisões certamente não são desejadas por Deus mas elas não são de admirar nesse quadro tão transtornado da atualidade. Quando a cabeça não funciona, todo o resto do corpo vacila (“Ferirei o Pastor e as ovelhas se dispersarão” Mc 14, 27). Além disso, essas divisões têm uma função providencial porque elas nos lembram a importância da Autoridade na Igreja e afastam as almas de boa vontade da tentação de erigir uma “Igreja” por conta própria sob pretexto de que a infidelidade dos homens da Igreja encobriu com um véu a Igreja de Nosso Senhor.

Essas divisões (não achamos que cheguem a ser ódios) nascem, enfim, da fraqueza e da miséria humana. Deus nos previne, pela boca de São Paulo: “Não discutam sobre opiniões!” Mesmo assim, alguns não sabem se limitar a defender a Fé sem emitir opiniões pessoais que gostariam de impor aos outros, apesar de não terem a menor autoridade para isso. Eles não se dão conta de que somos como pessoas mergulhadas nas trevas do imprevisto, a quem só resta esperar imóveis que a luz volte, exatamente no mesmo lugar onde a escuridão os surpreendeu. E isso, sem se aventurar a fazer movimentos irrefletidos, bruscos, arriscando cair não se sabe onde.

O centro de unidade estabelecido por Deus é e continua sendo o Pontífice Romano, guardião supremo da verdadeira Fé. Ora, mesmo que os últimos Pontífices pareçam (contra os princípios do Concílio dogmático Vaticano I) ter exercido mais o papel de “inventores” de uma “nova religião” do que o de guardiões da Fé revelada, não estamos totalmente nas trevas, apesar de estarmos mergulhados na obscuridade desde que a lâmpada mais próxima de nós se apagou: contra as heresias do modernismo, temos para nos guiar, diferentemente dos cristãos dos primeiros séculos, dois mil anos de Magistério ordinário e extraordinário. Nenhum “Papa de hoje em dia” tem autoridade para contradizê-lo e é em sua direção que podemos e devemos nos voltar como faríamos em direção a uma luz que ilumina nossas trevas, começando pelo simples e luminoso catecismo de S. Pio X. Tudo isso não significa pretender “saber mais do que o Papa”, é somente pretender saber o que sabe a Igreja, infalível “coluna e fundamento da verdade” (S. Paulo). Nós participamos dessa infalibilidade quando professamos a fé perene, que todo Papa tem o dever de “confirmar” e que ele não tem o direito de transformar nem de por em perigo.

Já dissemos, mas não nos cansaremos jamais de repetir: é tempo que as almas de boa vontade reconstruam em si mesmas e em suas vidas o que elas, sofrendo, vêem se destruído na Santa Igreja de Deus. É assim, e não através de polêmicas perigosas e estéreis contra as vítimas do neomodernismo (que também são, a nosso ver, sedevacantistas) que apressaremos a hora da divina Misericórdia.

Hirpinus

  1. 1. Remetemos os leitores interessados por esta questão ao excelente estudo, detalhado e documentado, que Arnaldo Xavier da Silveira fez sobre este assunto em Considerações sobre o “Ordo Missae” de Paulo VI (edição francesa La nouvelle Messe de Paul VI. Qu’en penser?). Limitamo-nos a citar aqui uma observação importante do autor, que vem a ser igualmente a conclusão do estudo: no estado atual da questão teológica do Papa herético, ninguém pode adotar uma posição determinada, e ainda menos impô-la aos outros.
  2. 2. Tractatus de Romano Pontífice, tese 32, scholion 2.
  3. 3. Ibidem