À meia-noite do dia 31 acordei sobressaltado com o foguetório que festejava, a seu modo grosso e ruidoso, o nascimento da coisa nenhuma que se dá o nome de Ano Novo. Confesso que meu primeiro sentimento foi o de uma justíssima irritação, mas logo sobreveio um segundo sentimento de admiração diante de tão comovente e estúpida obstinação. Quê? Então ainda esperam alguma coisa das folhinhas e das órbitas planetárias? Ou inventaram mais uma vez um modo de fingir que inventaram? Porque na verdade fingidor não é só o poeta, nem é ele que quase merece este título como definição de seu absurdo modo de ser, não; fingidor é o mundo inteiro. Finge tão ruidosamente que chega a fingir que espera do Ano Novo o que ainda já dos dias só desespera. Pobre gente.
Naquela meia-noite de 31, acordado pelo ruidoso foguetório, pensei no planeta que, nos seus trinta quilômetros por segundo (se não me trai a memória aposentada do astrônomo que não cheguei a ser) acabava de traçar seu arco habitual de eclipse onde só existe marca ou sinal de estremecimento na cabeça dos homens. Nada é mais uniforme, mais liso, mais plácido, mais impávido do que as órbitas dos astros. Em torno da forma delas e sobretudo de suas inter-relações houve muita querela de que nunca participaram o sol, os planetas e as estrelas distantes, porque essas sonolentas criaturas mal acordadas do nada, ex nihilo, nada sabem dizer de si mesmas, de suas excelências e de suas prevalências. Mal sabem balbuciar seus nomes sendo o que são. Imagino o espanto de Messer frate il Sole se lhe fossemos dizer que ele tinha sido nomeado por Copérnico, ou por seus maus discípulos, centro imóvel em torno do qual descreviam os planetas suas insípidas órbitas circulares. E, se o astro-rei tivesse mais apurada capacidade de se espantar, imagino sua apiedada estupefação quando lhe dissessem que aquela demarcação trouxera aos homens da Renascença uma euforia maior do que a dos pobres 31 de dezembro convencionais e fatigados.
Na minha infância, alegremente astronômica, aprendi com o bom Flammarion que o sistema planetário, guiado pelo sol, não fechava suas elipses, não voltava jamais ao ponto de partida: num cortejo que hoje me parece sinistro, despencávamos todos na direção da constelação de Hércules. Hoje sabemos que é tão acertado ou tão estúpido dizer que o sol anda ao redor da terra como dizer que é a terra que gira ao redor do sol. Na física pós-einsteineana não há referenciais absolutos no universo. Quem quiser pensar em centro, ou em ponto referencial, terá que procurar fora e acima da física outra linguagem: a do senso-comum e a da mais apurada filosofia: em ambas eu volto a dizer que o centro é o observador e portanto é ainda aqui mesmo, e não no sol, que podemos fazer alguma demarcação sensata. A própria constelação de Hércules deixou de ser o objetivo, ou a estação para a qual nos dirigimos porque, a rigor, esse conjunto de estrelas a que associaram o nome mitológico de Hércules só existe por invenção nossa, e só existe enquanto, apesar do caminho já feito, ainda permanece praticamente constante a figura do conjunto estelar. Quando lá no meio delas nós chegarmos, veremos que as Alfa, Beta, Gama etc. debandaram, e que o Hércules do céu evaporou-se em todas as direções.
Volto a admirar a tenacidade com que a humanidade inventa suas demarcações, como esta sucessão dos anos e a outra dos séculos. Já não diria o mesmo da demarcação das horas que mais diretamente nos é imposta pela natureza das coisas.
Nesta estação do ano durmo com a janela aberta, e quando o despertador às seis horas me acorda, a primeira coisa que me surpreende, ou que me agride, é aquele retângulo lívido a me dizer um bom-dia que soa como um escárnio. Estremunhado, pergunto ao monstro: — Estou vivo?
Cada manhã acordo como um sobrevivente... E aqui me acode a lembrança de Rubem Braga, nosso gracioso cronista que desapareceu. Terá emigrado para Marte? Creio que seu gênero mais se inclinaria por Vênus do que pelo rubro Mavorte dos guerreiros.
Sento-me na cama olhando os meus pés sem nenhuma admiração, apesar do incitamento do profeta que clama: “Como são belos os pés dos que anunciaram pelos montes a vinda do Senhor...” Isaías? Creio que sim, mas agora a memória me salta para Dimitri Karamazov, preso sob suspeita de parricídio, e para maior de suas desgraças, sentado na cama, vê que tem os pés nus — e no espetáculo miserável dos artelhos dados em espetáculo do mundo, Dimitri sente tamanha humilhação que logo, para todos os policiais presentes, se transforma em evidência de culpa. Agora é um verso de Guerra Junqueiro que emerge de minha adolescência. O piedoso autor de A Velhice do Padre Eterno, devendo pagar os dízimos da estupidez da época, não podia ficar omisso à injustiça social: descreve o despertar do lavrador como um coice do monstro que em outro contexto será docemente chamado “rosicler da aurora”. Mas esse rosicler é um luxo capitalista. O lavrador é sacudido da enxerga nestes termos:
“Levanta-te, animal! Tens fome e não tens pão”.
Quando meu desgosto de acordar se prolonga, e sobretudo quando me chegam aos ouvidos os rumores dos “sete deveres de estado” de que me queixei a Manuel Bandeira — but that’s another story — costumo me sacudir com o alexandrino de Guerra Junqueiro: “Levanta-te, animal! Tens fome e não tens pão”. Na verdade não preciso trabalhar para o pão já que mais sofro de inapetência do que de fome, mas tenho carro e preciso pagar a gasolina no preço em que está para que os reis da Arábia tenham mil mulheres e automóveis de ouro — coisas que me irritam mas não me trazem a mais tênue inveja.
No dia 1° de janeiro acordei assim cercado e disposto a continuar a caminhada que neste dia começa meu octogésimo ano. Neste ponto perdi a vista e a possibilidade do gosto da leitura, mas os pés conservam a mesma disposição de me levar pelos vales e montes no serviço do Senhor. Vão calçados, e assim pode ser que não desmintam a profecia. Chego assim a este ponto da vida “comme un vieux mouton qui a perdu sa laine aux ronces du chemin”. Como Mauriac, sinto-me levado dia a dia, pouco a pouco, até a hora em que Deus me quiser arrematar por inteiro. No regaço da Mãe da Misericórdia, ensaio não sei quantas vezes por dia o que devo dizer naquela hora: — Eis aqui o servo do Senhor, faça-se em mim segundo a Vossa Palavra.
O Globo, 8/1/1976