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Breve crônica da ocupação neo-modernista da Igreja

Breve crônica da ocupação neo-modernista na Igreja Católica

   

Preâmbulo

Eis que há quatro décadas o mundo católico assiste a uma série aparentemente sem fim de mudanças na Igreja.

Como se estivessem em um estranho espetáculo pirotécnico eclesiástico, os católicos viram numerosas verdades de Fé se desfazerem, umas após as outras, de modo mais ou menos direto, nos fogos de artifício inventados por uma Hierarquia e um clero cada vez mais inspirado pelo aggiornamento conciliar, aberto a todas as correntes de pensamento, e pronto para trocar a verdade revelada pela miragem de um falso ecumenismo e de uma falsa paz mundial.

O mundo católico assistiu, por exemplo, a subversão do Rito Romano da Missa, substituído por um outro – o atual – a tal ponto ambíguo e ecumênico que foi aprovado pelos próprios protestantes, alguns dos quais, aliás, participaram com sugestões na elaboração do novo rito[1]. Em seguida, ocorreram progressivamente as missas-bazar com música de fundo, a introdução da comunhão na mão e o seu cortejo de inevitáveis sacrilégios, o acesso dos membros do sexo frágil no altar na qualidade de “ministras” de eucaristia (ao menos até agora).

Viu pela primeira vez na história um papa – Paulo VI – enviar num gesto eloquente o seu anel, símbolo de sua autoridade pontifical suprema, ao herético, cismático e impenitente arcebispo de Canterbury[2], e convidá-lo a abençoar a multidão e os numerosos cardeais e bispos presentes na Basílica romana de São Paulo Extramuros. 

Há pior. Viu um João Paulo II convidar os representantes das principais religiões falsas do mundo a Assis (primeiro encontro de 1986) para uma reunião de oração com grande auxílio de cachimbos da paz, oferendas de animistas a espíritos ancestrais e budistas incensando uma estátua de Buda colocada sobre o altar principal de uma igreja católica daquela cidade.

Escutou, boquiaberto, o mesmo João Paulo II declarar abertamente aos protestantes e aos “ortodoxos” sua plena disposição para modificar o modo de exercício do Primado papal segundo os seus desejos, o que equivale na prática a esvaziar o sentido do dogma do Primado de Jurisdição, ao renunciar a exercê-lo de fato (cf. Encíclica Ut unum sint).

Viu o cardeal Ratzinger, Prefeito do Santo Ofício, aprovar e assinar um documento da Comissão Teológica Internacional (“O Cristianismo e as religiões”) que nega abertamente o dogma da fé segundo o qual “fora da Igreja não há salvação” (Cf. Concílio Ecumênico do Latrão, IV, Denz. 800), reduzindo-o a uma simples “frase” de “caráter parenético”, ou seja, a uma simples exortação dirigida tão-somente aos católicos...

Ouviu João Paulo II afirmar que “a reprovação permanece uma possibilidade real, mas não nos é dado saber... se os seres humanos são efetivamente reprovados e quais[3], o que significa que o inferno pode estar vazio, o que contradiz as afirmações explícitas das Sagradas Escrituras a este respeito.

Ouviu, estupefato, o mesmo João Paulo II afirmar placidamente: “É precisamente desta abertura primordial do homem para com Deus que as diferentes religiões nascem. Encontramos amiúde, nas suas origens, fundadores que realizaram, com a ajuda do Espírito de Deus, uma experiência religiosa mais profunda. Transmitida aos outros, esta experiência tomou forma nas doutrinas, nos ritos e preceitos das diferentes religiões[4]. Conseqüentemente, segundo João Paulo II, Buda, Lao-Tsé, Zoroastro, Maomé e semelhantes teriam sido verdadeiros profetas inspirados por Deus para a fundação das suas falsas religiões. Tese já difundida pelos modernistas que, justamente, como denunciou o Papa São Pio X: “[...] os modernistas de fato não negam, ao contrário, concedem, uns confusa e outros manifestamente, que todas as religiões são verdadeiras ‘enquanto obra de certos homens extraordinários, a que chamamos profetas, dos quais o mais iminente foi Jesus Cristo’” (Encíclica Pascendi).

Finalmente, o mundo católico viu e ainda vê a Hierarquia toda empenhada, desde o Concílio Vaticano II, a promover os falsos princípios que, durante séculos, serviram de estandarte ao iluminismo e ao naturalismo maçônico contra a Igreja:

  1. O liberalismo, que sustenta a laicização dos Estados outrora católicos (e segundo o qual o Estado não teria mais nenhum dever de aderir oficialmente ao Cristo e à Igreja Católica, compreendida como única religião e, portanto, como religião de Estado), bem como a promulgação do presumido direito dos indivíduos a não serem impedidos de promover publicamente toda ideologia ou religião, mesmo a mais perversa, excluindo por princípio que o Estado possa intervir para proibi-las. Liberalismo sempre condenado pela Igreja, mas aprovado e “abençoado” por Vaticano II, sobretudo por meio da declaração Dignitatis Humanae;
     
  2. O ecumenismo, isto é, a miragem de uma fraternidade entre homens de diferentes religiões e ideologias, compreendida num sentido naturalista (fundada simplesmente na posse comum da mesma natureza humana e em um vago deísmo), que conduz a dispensa da obrigação de conversão à Igreja Católica. Esta última, com efeito, não é mais a última Arca da salvação, uma vez que, conforme a intensa propaganda dos papas, bispos e padres conciliares, as diferentes comunidades heréticas e cismáticas seriam, elas também, salvíficas, e mesmo as religiões não-cristãs. Ecumenismo promovido pelo Concílio Vaticano II, sobretudo em documentos como Unitatis Redintegratio Nostra Aetate.

     

  3. A democracia antropocêntrica, introduzida na Igreja com o fim de dissolver mais ou menos progressivamente o poderoso e anti-ecumênico primado papal de jurisdição. Democracia aceita atualmente com a colegialidade episcopal do documento conciliar Lumen Gentium (o qual procura, com certo sucesso, fazer do papa um primum inter pares, aniquilando sua autoridade suprema), colegialidade que “parlamentariza” hoje a Igreja, democratizando-a por meio da instituição do Sínodo dos bispos, das Conferências episcopais nacionais, dos diversos Conselhos – presbiteriais, pastorais etc – e pela enorme descentralização dos poderes em favor dos bispos, como resultado do novo Código de Direito Canônico. A inacreditável proposição exposta pelo próprio João Paulo II na Ut unum sint, não é senão a cereja do bolo.

Os católicos, em suma, viram a rendição total e incondicional da sua Hierarquia após três séculos de lutas corajosas, de condenações e excomunhões lançadas precisamente contra os fautores deste liberalismo, deste ecumenismo e desta democracia (sempre favorecidos pela maçonaria internacional, e agora traiçoeiramente aceitos no último Concílio), contra os fautores da pax œcumenica, a “paz mundial” do anticristo, que serve apenas para relativizar e reduzir a Igreja, e o próprio Cristo em seguida, no amalgama da Nova Ordem Mundial vindoura. Objetivo expresso de modo cada vez mais conspícuo pelas instâncias ocultas que dirigem os povos e as nações.

Um desdobramento que basta para explicar o porquê do Grão Mestre do Grande Oriente da Itália ter podido escrever, em memória do Papa João Paulo II, recentemente falecido: “Para nós, trata-se da morte daquele que jogou por terra a condenação [da maçonaria – ndr] feita por Clemente XII e seus sucessores. É a primeira vez, na história da maçonaria moderna, que o chefe da maior religião ocidental morre sem ser hostil aos maçons. [...] Pela primeira vez na história, os maçons podem prestar homenagens perante o túmulo de um papa, sem ambiguidade nem contradição[5].

Um desdobramento que explica igualmente porque este mesmo Grande Oriente quis conferir a comenda maçônica “Galileo Galilei” a João Paulo II (que a recusou; mas isto não muda em nada o significado do acontecimento), afirmando que os ideais promovidos pelo papa são os mesmos que os da maçonaria[6].

Um desdobramento que explica com eloquência porque a Grande Loja Maçônica francesa aclamou com entusiasmo este mesmo João Paulo II em 1986, pelo inacreditável “encontro de oração de Assis”, declarando o seguinte: “os maçons da Grande Loja Nacional Francesa desejam  associar-se de todo seu coração à oração ecumênica que reunirá no dia 27 de outubro em Assis todos os responsáveis de todas as religiões em favor da paz mundial[7].

Uma inversão total, como se pode compreender, finalmente, pelas considerações de outro Grão-Mestre do mesmo Grande Oriente, Armando Corona:

A sabedoria maçônica estabeleceu que ninguém pode ser iniciado sem crer no G. A. D. U [Grande Arquiteto do Universo – ndr], e que ninguém pode ser excluído de nossa família por causa do deus em que crê e do modo em que o honra.

Foi devido a este interconfessionalismo que devemos a excomunhão que nos foi infringida em 1738 por Clemente XII. Mas a Igreja certamente trabalhava em erro, se é verdade que, no dia 27 de outubro de 1986, o atual pontífice reuniu em Assis os homens de todas as confissões religiosas para rezarem juntos pela paz. O que buscavam nossos Irmãos senão o amor entre os homens, a tolerância, a solidariedade, a defesa da dignidade da pessoa humana, quando se reuniam nos Templos, julgando-se iguaispara além das crenças políticas, das crenças religiosas, e da cor das suas peles?”[8]

Quando se considera que a maçonaria, ao longo de dois séculos de existência, colecionou quase 600 (!) condenações oficiais da parte da Igreja[9], há realmente matéria para nos pasmarmos.

O Espírito Santo, se assim fosse, e segundo os membros da atual Hierarquia conciliar, teria então abandonado a Igreja (obscurantista, anti-liberal e anti-ecumênica e, por isso, merecedora dos incessantes mea culpa de João Paulo II), ou ao menos não a teria esclarecido suficientemente durante a bagatela de quase dois mil anos, isto é, até o fatídico super-concílio Vaticano II, que teria visto o surgimento de uma nova “Igreja conciliar”, de uma nova “figura de Igreja” – assim como a chamou João Paulo II – mantida, segundo ele, escondida por dois milênios na Igreja “pré-conciliar”[10].

Em suma, uma “Igreja” tinindo de nova e, é claro, impregnada destes princípios iluministas e maçônicos como, de resto, foi claramente revelado pelo Cardeal Ratzinger há alguns anos:

“ Vaticano II – explicou o cardeal – desejou com razão revisar as relações da Igreja com o mundo. Com efeito, há valores que, conquanto tenham nascido fora da Igreja, podem encontrar seu lugar nela – passados no crivo e corrigidos. Nestes últimos anos, lançamo-nos nesta tarefa[11]. Numa entrevista anterior (concedida à revista Jesus, em novembro de 1984), fora ainda menos prudente, deixando escapar que se tratavam justamente dos “melhores valores expressos por dois séculos de cultura liberal”, que são os valores iluministas e liberais, como responderia até mesmo um aluno do ginásio.

O mesmo Cardeal Ratzinger, sentindo-se mais seguro após 25 anos de lavagem cerebral do “povo de Deus” promovida pelo Concílio, não teve mais nenhuma dificuldade em admitir abertamente que as famosas “novidades” do Vaticano II e do atual Magistério pontifical estão em franca oposição com o Magistério dos papas “pré-conciliares”, Magistério que ele declarou estar doravante “ultrapassado”:

“Há decisões do Magistério – declarou com efeito aquele que era então Prefeito do Santo Ofício – que não podem ser a palavra final sobre o assunto enquanto tal [...] mas que são [...] também uma expressão da prudência pastoral, uma espécie de disposição provisória [...]. Pode-se pensar tanto nas decisões dos papas do século passado sobre a liberdade religiosa como nas decisões antimodernistas do início deste século, sobretudo nas decisões da Comissão bíblica de então. No detalhe das determinações de conteúdo, elas foram ultrapassadas após terem cumprido, por um momento particular, seu dever pastoral” (Conferência de imprensa para a publicação da Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo, aos cuidados da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé)[12].

Aí está, portanto, a absolvição e a reabilitação em regra do liberalismo e do modernismo, enunciada publicamente pela mais alta autoridade doutrinal após o papa, com o fim evidente de cobrir e justificar a injustificável ação da Hierarquia conciliar.

Como se admirar, depois disso, com a crise de Fé que arrisca destruir a Igreja e perder as almas, quando gente deste tipo ocupa, desde a era de Paulo VI, os postos mais elevados no Vaticano, numerosas sedes episcopais, as cátedras das universidades pontifícias, os seminários, os institutos católicos, os postos dirigentes das ordens e das congregações de religiosos e as redações da mídia dita católica em todo o mundo?

Seja o que for, uma coisa é clara: após a aceitação injustificável dos valores de dois séculos liberais, a Hierarquia atual “reabilita”, uns após os outros, modernistas, liberais e heresiarcas como Lutero (definido por João Paulo II como um homem de “profunda religiosidade”[13]), judeus que se obstinam a negar Jesus Cristo (mas subitamente tornados, para João Paulo II, “irmãos mais velhos”[14]) e os “ideais” de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução anticristã francesa (esta é a razão de João Paulo II ter desejado justamente que a França “contribua a fazer progredir sem cessar os ideais da liberdade, igualdade e fraternidade que ela soube apresentar ao mundo”[15]).

Por outro lado, mais aqui ainda com a lógica inquebrantável da práxis de 1789, desta feita introduzida na Igreja – a do “pas de liberté pour les ennemis de la liberte[16]— eis que a Hierarquia, conquanto não perca uma ocasião de se declarar ultraliberal e hipertolerante com tudo e com todos, sob os aplausos entusiasmados de maçons, comunistas e de toda a mídia laicista, “excomunga” inexoravelmente, mas invalidamente, bispos fiéis de grande mérito como um Dom Marcel Lefebvre e Dom Antônio de Castro Mayer, culpados de terem se recusado a aceitar, fosse apenas por um silêncio cúmplice, as “novidades” pró-maçônicas e pró-modernistas do Concílio Vaticano II e a sua difusão no seio do “povo de Deus” ignorante e indefeso. Tal é, com efeito, a verdadeira motivação, por vezes mal dissimulada, desta pseudo-excomunhão, para além do pretexto disciplinar de um “ato cismático” inexistente atribuído a estes dois prelados.

A este respeito, Dom Marcel Lefebvre tinha ele mesmo recordado, alguns anos antes:

Eu não fiz mais do que todos os bispos fizeram ao longo dos séculos e séculos. Não fiz senão o que fiz durante os trinta anos da minha vida sacerdotal e que me valeu ter sido eleito bispo, delegado apostólico na África, membro da Comissão central pré-conciliar, assistente do Trono Pontifical. Que poderia ter desejado a mais como prova de que Roma julgava que meu apostolado era fecundo para a Igreja e para o bem das almas? E eis que no momento em que realizou uma obra inteiramente semelhante a que fiz durante trinta anos, eu sou de um golpe suspenso “a divinis” e talvez brevemente excomungado, separado da Igreja, renegado e o que mais?

É isto possível? Então, o que fiz por trinta anos era também suscetível de uma suspensão “a divinis”? Eu penso ao contrário que, se eu tivesse formado naquele tempo os seminaristas como são hoje formados nos novos seminários, eu teria sido excomungado; se eu tivesse então ensinado o catecismo que se ensina nos dias de hoje, eu teria sido qualificado de herético; e se eu tivesse dito a Missa como se diz hoje, eu teria sido suspeito de heresia, teria sido declarado fora da Igreja. Ora, não compreendo mais. Alguma coisa mudou na Igreja, e é disto que quero tratar” (Extrato da homilia pronunciada em Lille, em 29 de agosto de 1976).

Perante tudo isto, pois, e de muitas coisas mais, numerosos católicos se questionam, desconcertados, o que se passa, sem geralmente conseguir compreender as causas profundas desta verdadeira Revolução, dado que a desinformação dos fiéis e dos padres mais moços, no tocante aos reais acontecimentos eclesiásticos destes últimos decênios, é praticamente completo. Desinformação que se estende também, logicamente, ao domínio da ideologia do modernismo e do neo-modernismo da nova teologia, dominante hoje na Igreja no nível oficial, mas já solenemente condenada pelos soberanos pontífices pré-conciliares. 

Tentaremos responder nas páginas seguintes a tais questões.

É importante dar desde já e em guisa de preliminar alguns esclarecimentos sobre certos pontos doutrinais e disciplinares para eliminar toda perplexidade quanto ao papel e às responsabilidades dos papas “conciliares” – João XXIII, Paulo VI e João Paulo II[17] – na crise atual, posto que está fora de dúvida, como demonstraremos na sequência, que estes papas favoreceram fortemente a ocupação da Igreja por bispos e teólogos neomodernistas a partir do Concílio Vaticano II, quando não os louvaram e premiaram.

Com efeito, quando tentamos abrir os olhos de padres, religiosos e leigos sobre a trágica realidade atual da Igreja e sobre o grave perigo de perda da Fé, eles se mostram incrédulos e se refugiam por detrás de expressões do tipo: “O papa não pode se enganar”, “ele tem a assistência do Espírito Santo”, ou “ainda assim, é preciso obedecer, porque a obediência é a primeira virtude”, e “quem obedece nunca erra”, para concluírem: “mas o Espírito Santo [no Concílio Vaticano II, claro] estabeleceu que... etc, etc”.

Ao fim e ao cabo se despedem normalmente indignados, classificando-nos – por vezes apenas mentalmente – como um rebelde, um tradicionalista obtuso, incapaz de compreender a evolução dos tempos.

Daí a necessidade de examinar, uma vez por todas, estes argumentos à luz da doutrina católica, para demonstrar a sua inconsistência. É o que faremos agora.

As principais objeções que a maior parte dos que se alinharam à “nova corrente” eclesiástica opõe – de boa ou má fé – aos que tomaram posição contra as “novidades” do Vaticano II e do Magistério pós-conciliar podem em substância ser resumidos às três seguintes:

  1. A infalibilidade do papa;
  2. A obediência devida ao Vigário de Cristo;
  3. A autoridade dos decretos emanados do Vaticano II que – sublinha-se – por resultarem de um concílio ecumênico, tem para todo católico força de lei.

Estas objeções são desprovidas de fundamento. Vejamos:

  1. De acordo com a doutrina católica, os casos em que o Magistério do papa é infalível resumem-se a dois:
    1. Quando define solenemente ex cathedra uma verdade de fé ou de moral[18] (Magistério extraordinário, sempre infalível).
    2. Quando enuncia uma verdade que “sempre foi tida e admitida na Igreja ou... atestada pelo acordo unânime e constante dos teólogos” mesmo se não foi explícita nem solenemente definida (Magistério ordinário infalível). A infalibilidade lhe vêm neste caso daquela que goza a Igreja ela mesma.

Ora, quanto a isto:

  1. Nem João XXIII nem Paulo VI nem João Paulo II jamais definiram algum dogma de Fé ao longo dos seus pontificados, muito menos no que se refere às “novas ideias” de Vaticano II.
  2. As novas ideias promovidas pelo Magistério – ecumenismo, liberalismo, colegialidade democrática – não fazem parte do Magistério constante e universal da Igreja, elas não são portanto doutrinas “sempre tidas e admitidas na Igreja” (fala-se justamente em novidades do Vaticano II); elas fazem parte do Magistério ordinário meramente autêntico, isto é, não coberto pela infalibilidade.

Disso decorre que não se pode de modo algum, senão de má-fé, invocar o dogma da Infalibilidade papal para exigir uma adesão cega e incondicional dos fiéis às novas doutrinas do Magistério conciliar.

  1. É ainda menos possível apelar ao dever de obediências. Estas novidades do Magistério dos papas “conciliares”, com efeito, não apenas carecem de toda garantia de infalibilidade, mas sobretudo são doutrinas que já foram explicitamente e repetidamente condenadas pelo Magistério precedente e constante da Igreja.

Nem o papa, nem um concílio ecumênico podem licitamente exigir a obediência, seja ela explícita ou tácita, a uma corrente eclesiástica como a corrente atual, que propaga ideias e práticas já condenadas pela própria Igreja, pela simples razão que nem um papa nem um Concílio podem legitimamente ordenar aos fiéis a aceitarem, ainda que passivamente, o que a própria Igreja, pela boca de uma longa série de papas e concílios, já julgou e condenou oficialmente como errado e mau.

Eis como um Dicionário de Teologia Moral, clássico e celebrado, resume a doutrina católica sobre a matéria:

“Uma vez que a autoridade dos superiores é limitada, o dever de lhes obedecer possui também limites. É claro que nunca é permitido obedecer a um superior que comandar algo contrário às leis divinas ou eclesiásticas: seria então preciso repetir as palavras de S. Pedro: ´é preciso obedecer a Deus antes que aos homens´ (At 5, 29) [...] Peca-se contra a obediência por excesso, obedecendo nas coisas contrárias a uma lei ou a um mandamento superior: neste caso, trata-se de servilismo[19].

Se por acréscimo estivesse em perigo a conservação da fé, a salvação das almas e a subsistência mesma da Igreja, seria preciso então reagir abertamente, como ensina Santo Tomás de Aquino, que dá justamente como exemplo, aliás perfeitamente conveniente ao nosso caso, da fraqueza momentânea do primeiro papa:

Devemos porém saber, que correndo iminente perigo a fé, os súbitos devem advertir os prelados mesmo publicamente. Por isso Paulo, súdito de Pedro, repreendeu-o em público, por causa do perigo iminente de escândalo, para a fé. E assim, diz a Glosa de Agostinho: O próprio Pedro deu aos maiores o exemplo de se porventura se desviarem do caminho reto, não se dedignem serem repreendidos mesmo pelos inferiores[20]

E no seu comentário a Epístola aos Gálatas, o mesmo Santo Tomás repete:

“... a correção era justa e o seu motivo grave: um perigo para a preservação da verdade evangélica... [...] O modo foi apropriado porque público e manifesto [...]. Na mesma epístola a Timóteo, nós lemos: “Aqueles que pequem, acusem-nos diante de todos”. Isto deve ser compreendido das faltas manifestas e não das faltas escondidas...”[21].

  1. No que toca enfim o Concílio Vaticano II, fonte oficial do atual desastre eclesiástico, é absolutamente necessário lembrar o que o próprio Paulo VI, que encerrou o Concílio, declarou. O concílio Vaticano II, explica o papa, “evitou fazer definições dogmáticas solenes, que engajassem a infalibilidade do Magistério eclesiástico[22]. Realidade que o próprio Cardeal Ratzinger foi obrigado a admitir:

“A verdade é que o próprio concílio (Vaticano II) não definiu nenhum dogma e buscou, de modo consciente, exprimir-se num nível mais modesto, tão-somente como concílio pastoral[23].

Em resumo:

a. O dogma da infalibilidade pontifical decididamente não está em questão, mas contesta-se alguns pontos do magistério ordinário não infalível do Papa (no qual não se exclui, ao menos em princípio, que se possa enganar), contestação que pode ser feita em presença de graves motivos;

b. Estes motivos graves existem, posto que não é possível obedecer, ou sequer se submeter passivamente, a diretrizes que querem nos fazer aprovar aquilo que sempre foi condenado pelo Magistério da Igreja, ou seja, diretrizes que nos levam a renegar a verdade doutrinal, ainda que tacitamente, e calar diante da sabotagem da fé e em face da ruína das almas.

c. Não se pode, de modo algum, recorrer a autoridade do Vaticano II, a qual não definiu nenhum dogma, e certamente não o fez no que diz respeito às novidades que contestamos (principalmente, o ecumenismo, a colegialidade episcopal e a democracia na Igreja, a liberdade religiosa e o laicismo dos Estados), a respeito das quais valem as mesmas considerações que fizemos a respeito da autoridade do papa.

 

Tudo isto é suficiente para fazer desaparecer, como a neve sob o sol, o sofisma habitualmente utilizado contra quem critica o Vaticano II, segundo o qual, se a Igreja se engana hoje, então ela também poderá ter se enganado no passado e, logo, não seria mais digna de fé, muito menos infalível. É fácil responder que o magistério de Vaticano II e todo o magistério pós-conciliar, no que respeita às “novidades”, é um magistério não infalível da Igreja, que se opõe ao precedente magistério infalível da Igreja, tanto ordinário como extraordinário, logo, o raciocínio não se sustenta.

Como se verá na sequência deste estudo, esta “Breve crônica” consistirá, sobretudo, numa cronologia dos desvios progressivos dos papas “conciliares”e dos seus mais estreitos colaboradores na Cúria romana.

Poderia se perguntar por que voltar a atenção sobre eles, antes do que sobre os inúmeros exemplos que poderíamos citar do quadro das dioceses e das diversas sedes episcopais.

Não seria preferível passar em branco as numerosas falhas dos últimos sucessores de Pedro, ao invés de pô-las em questão, o que, além de ser particularmente desagradável e doloroso para todo católico que busca ser fiel e, portanto, também para o autor destas linhas, comporta ao menos o risco de escandalizar os mais fracos na Fé, que não conhecem bem a doutrina católica acerca do papado?

O fato é que não é possível proceder de outro modo. Estamos obrigados a isto por uma razão bastante simples, que se pode resumir em poucas palavras: o papa não é um bispo qualquer, mas o Vigário de Cristo.

A ele cabe a guia de toda a Igreja militante, pelas palavras e, mais ainda, pelo exemplo, e na Igreja todos – clero, religiosos e simples fiéis – estamos justamente habituados a “seguir Pedro”, vendo nele o pastor terrestre e o guia espiritual mais seguro.

Que se considere então o que poderia ocorrer com a eventual ascensão ao trono de Pedro de papas impregnados de uma teologia errônea, já condenada pela Igreja (coisa que Deus pode muito bem permitir, como punição pelos nossos pecados). Isto será uma catástrofe para a esmagadora maioria de almas, que continuarão a segui-lo, mesmo onde não deveriam fazê-lo, ao ponto de arriscar a sua fé e salvação eterna. É isto o que se verificou depois do Concílio Vaticano II, e que continua a ocorrer ainda em nossos dias.

Donde o necessário – conquanto ingrato – dever de pôr em guarda o clero e os fiéis para que não se deixem levar sob pretexto algum no abismo pelo “espírito do Concílio” e suas novas doutrinas.

Ao primeiro papa e aos seus sucessores, com efeito, “o Espírito Santo não foi prometido para que eles manifestem, por sua revelação, uma nova doutrina, mas que com sua assistência guardem santamente e exponham fielmente a revelação transmitida aos apóstolos, isto é, o depósito da fé”[24].

De resto, nada de novo sob o sol: certamente não é a primeira vez na história que papas, agindo evidentemente fora do exercício da infalibilidade, para seguir de modo imprudente ideias pessoais mais ou menos desviadas, põem em perigo a conservação da fé e a subsistência mesma da Igreja. Pense-se, por exemplo, no caso célebre do Papa Libério (século IV) que, para encontrar a todo preço um acordo ecumênico impossível e ilegítimo com os heréticos arianos, aceita compromissos doutrinários ambíguos, chegando mesmo ao ponto de proibir aos católicos fiéis de lutar contra a heresia (e mesmo excomungando – invalidamente, claro está – o grande santo Atanásio de Alexandria que não queria aceitar compromissos perigosos para a fé).

Finalmente, é à santíssima Mãe de Deus, sempre Virgem Maria, que confio estas páginas; a ela que sempre esmagou a cabeça de todas as heresias: Gaude, Maria Virgo: cunctas haereses sola interemisti in universo mundo.

< CONTINUA >

[Fonte: Courrier de Rome nº 296 (Janeiro de 2007)]

Tradução: Permanência

 

 


[1] Notitiae, novembro de 1966, n. 23.

[2] Cf. “ Il regno / documenti” n. 3, 1997.

[3] L´Osservatore Romano (ed. semanal), 30 de julho de 1999.

[4] L´Osservatore Romano, 10 de setembro de 1998.

[5] Giordano Gamberini, editorial publicado em La Rivista Masonica, ano de 1978, n. 5, p. 290.

[6] Il Giornale, 22 de dezembro de 1996, p. 10.

[7] La Civiltá Cattolica, 6 de dezembro de 1986, p. 45.

[8] Hiram, revista do Grande Oriente da Itália, abril de 1987, pp. 104-105.

[9] Declaração do Pe. Rosario Esposito SSP, notoriamente pró-maçom, em Jesus, outubro de 1988, pág. 10.

[10] L´Osservatore Romano, 3 de agosto de 1979.

[11] Entrevista sobre a Fé, aos cuidados de Vittorio Messori, ed. Paoline, 1985, p. 34

[12] L´Osservatore Romano, 27 de junho de 1990.

[13] L´Osservatore Romano, 6 de novembro de 1983.

[14] L´Osservatore Romano, 15 de abril de 1986.

[15] Cf. Avvenire, 24 de setembro de 1996.

[16] Não há liberdade para os inimigos da liberdade. [N. da P.]

[17] [N. da P.] O artigo foi escrito em 2007. Apenas por isso não se menciona os nomes dos Papas Bento XVI e Papa Francisco.

[18] Denz. 3073-3075.

[19] Francesco Roberti, Pietro Palazzini, Dicionário de Teologia Moral, ed. Studium, Rome, 1961, 3ª. Edição, art “obediência”.

[20] S. T., IIa IIae, q. 33, a. 4.

[21] Super ad Galatos, c. 3, lect. 3.

[22] Discurso à audiência geral, 12 de janeiro de 1966. Cf. Igualmente, discurso de encerramento do Concílio.

[23] Discurso à Conferência Episcopal do Chile, in Il Sabato, 30 de julho-5 de agosto de 1988.

[24] Concílio Ecumênico Vaticano I, Constituição Pastor aeternus: Denz. 3070.

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