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Tudo é cinza

Dizem os físicos que o Universo agoniza de um mal chamado entropia crescente e morrerá de uniformidade. O mundo da vida e sobretudo o do espírito representam um jato, um movimento ascensional e criador, um ímpeto que bem merece o nome que lhe deu um filósofo: élan vital; mas o que agora se vê, nesse mesmo mundo do espírito, nos leva a crer que há uma corrente, uma torrente que contraria o ímpeto vital, que puxa para baixo, que entra no processo geral de desmoronamento de formas e contrastes, e que tende a transformar o colorido e vistoso mundo do homem numa planície cinzenta e uniforme.

Esses pensamentos melancólicos e crepusculares me foram sugeridos por uma vistosa entrevista publicada pelo "O Cruzeiro" com o título: Revolução em Preto e Branco. Nessa entrevista foram ouvidas várias freiras, e o jornalista salienta um contraste que ainda se observa: enquanto algumas lêem Marcuse, vão ao teatro, jogam futebol e não usam hábito, outras continuam a manter a clausura, o hábito e o gosto pela vida interior de meditação e de oração. E o sentimento que o jornalista não disfarça, e que parece traduzir um anseio de nossa época, é o que se traduz em aplauso para o desembaraço das primeiras, e o desdém apiedado pelo atraso das outras. Conversando com uma carmelita reclusa, o jornalista assim se exprime: "Conversou através de um tubo em sua clausura, com voz rouca, abafada, distante, como se viesse da Idade Média." E aí está a fórmula mágica com que paralisam as inteligências. Basta dizer: "como na Idade Média" para imobilizar, congelar, curarizar qualquer pensamento. Já observei, aliás, que não é todo o passado que merece igual repulsa dos homens de nosso tempo. Ainda outro dia ouvi alguém dizer-me que a missa rezada no Mosteiro X lhe lembrava o cristianismo primitivo. E dizia "cristianismo primitivo" com o semblante banhado de doçura compreensiva e nostálgica, como se tivesse convivido com os mártires. Mas quando alguém diz, em revistas ilustradas, programas de televisão e conferências progressistas, "como na Idade Média", todo mundo entende que deve ter um infinito desprezo por essa época de obscurantismo. Lendo o "O Cruzeiro", e a tolice das entrevistadas e do entrevistador, veio-me à lembrança a frase do grande medievalista Gustave Cohen: "as trevas da Idade Média são na verdade as trevas de nossa ignorância."
 
A Idade Média não se distinguiu pelo progresso técnico, pela velocidade dos veículos ou pelo poder mortífero dos engenhos. Sob este ponto de vista, que me interessa muito como engenheiro, é indubitável o atraso da Idade Média. Mas há um outro ponto de vista em que já não me parece tão evidente esse atraso. A Idade Média foi uma era, uma civilização, de contrastes e cores: foi um imenso vitral iluminado pelo Sol das almas, e mesmo onde não havia o contraste das cores observava-se o claro-escuro dos hábitos – estou pensando na mantellata Catarina de Sena em cuja missa a Igreja continua a dizer: "Dilexisti justitiam et odisti iniquitatem" para bem assinalar os abismos galgados pela santidade.
 
Agora, a acreditar no que diz a revista ilustrada, estamos diante de uma Revolução do Branco e do Preto; ora, uma revolução desse tipo só pode ter um desenlace: o cinzento. E é isto que nosso trepidante mundo está preparando até nos lugares que nos pareciam mais abrigados. As diferenças se apagam, as arestas se embotam, as cores desaparecem, e a mulher parece homem, o homem parece mulher, a velha parece menina e a menina parece velha. Todo mundo parece todo mundo, e então aparece uma legião de idiotas para aplaudir o cinzento: as freiras parecem não-freiras, os padres parecem rapazes como outros quaisquer, e até não se distingue bem entre um bispo e um aposentado proprietário de botequim. Tudo parece tudo. Tudo é tudo. E uma multidão de imbecis chama este fenômeno de progresso!
 
A humanidade precisa ser diferenciada, vivamente, corajosamente, para bem exprimir, ao longo dos séculos, todas as virtualidades da natureza humana e do pródigo da racionalidade encarnada. Mas os contrastes só se mantêm na estabilidade dos princípios e na continuidade das tradições. Quando o chão do mundo trepida, como trepidou o chão do Irã, as formas se esboroam e a paisagem tende para a planície cinzenta e espectral. Diz o jornalista que a freira lê Marcuse. Ainda não havia acabado de ler Strauss sem entender nada. Ainda não tinha terminado o primeiro volume de Teilhard, que também não entendeu. Entender para quê? Entender é, de certo modo, parar. É contemplar. O mundo trepidante não precisa entender o que lê: o essencial é que os jornalistas possam fazer frases sobre freiras que fazem pose. Antigamente, não digo na Idade Média, digo dez anos atrás, ainda se dividiam as coisas entre estas que se dizem baixinho, na intimidade ou na malícia, e aquelas que se dizem nas tribunas ou nas praças públicas. Agora tudo virou praça pública, e as freiras avançadas se espalham nessa publicidade das praças. E há uma legião de imbecis que chama isto de progresso, quando um mínimo de reflexão nos mostra que só há progresso no mundo da vida e do espírito quando passamos do menos diferenciado para o mais diferenciado, isto é, quando as qualidades se exaltam. O cristianismo trouxe ao mundo um terrível claro-escuro, ou então trouxe ao mundo um modelo violentamente azul e violentamente vermelho. Uma multidão de imbecis, dentro da própria Igreja, conduzida por alguns poucos perversos, quer fazer do cristianismo uma desolada paisagem de planícies cinzentas. E chamam isto de progresso!
 
 
 
O GLOBO de 05/09/68

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